Investigando o mosquito, o parasita e o homem, equipe internacional busca nova abordagem para controlar uma das mais persistentes doenças da Amazônia Cerco à malária unespciência G ui lh er m e G om es GEOLOGIA ENIGMAS DA ILHA QUE INTRIGOU DARWIN SERRA DO JAPI FLORESTA NEBULAR AMEAÇADA ETOLOGIA BICHOS REAPRENDEM A SER SELVAGENS junho de 2011 ° ano 2 ° número 20 ° R$ 7,00 UC_20_Capa03.indd 1 19/05/2011 17:51:10 C M Y CM MY CY CMY K ca rt a ao le ito r Governador  Geraldo Alckmin Secretário de Desenvolvimento  Econômico, Ciência e Tecnologia Paulo Alexandre Barbosa Lá vem a danada M aleita, danada, tremedeira, intermitente, febre terçã, sezão. Os nomes adotados pela popu- lação de áreas do Brasil onde a malária é endêmica para descrever a doença dão uma ideia do impacto que a moléstia tem em suas vítimas. Apesar de o país vir nos últimos anos apresentando uma queda gradual no número de casos e de mortes, ainda está longe de erradicar o problema. E ao mesmo tempo em que, pa- ra algumas comunidades, pegar malária é algo quase banal, que faz parte do cotidiano, a doença é prova- velmente também a coisa mais debilitante para elas. É a sensação que eu e o fotógrafo Guilherme Gomes tivemos ao acompanhar em abril o trabalho de pesqui- sadores no Acre e no sul do Amazonas (veja a partir da pág. 18). Eles fazem parte de uma verdadeira “força- -tarefa” que tenta desvendar as artimanhas do parasi- ta, o comportamento variado das diversas espécies de mosquito que lhe servem de vetor, e a forma como as pessoas reagem à infecção. O objetivo é melhorar as formas de controle para, quem sabe, eventualmente alcançar sua erradicação. O problema é que a doença de fato é “danada”, co- mo diziam Primo Ribeiro e Primo Argemiro na precisa descrição da doença que Guimarães Rosa fez no conto “Sarapalha”, de Sagarana (Nova Fronteira, 2001). São cada vez mais comuns pessoas que, apesar de infecta- das, não apresentam sintomas, mas ainda assim conti- nuam transmitindo a doença. Além disso, os parasitas estão ficando resistentes às poucas drogas existentes. Não é à toa, portanto, que exatamente um ano após dedicarmos uma matéria de capa para o problema, voltamos a ele nesta edição. Em junho de 2010 (ed. 9), mostramos o trabalho de Lin Chau Ming (que, por coincidência, tem a sala retratada nesta estação de tra- balho, pág. 16) em busca de plantas usadas por índios para combater a malária. Agora seguimos uma turma de entomologistas que tentam entender, entre outras coisas, a ecologia do mosquito transmissor. É um trabalho de literal doação de sangue pela ci- ência, no qual a equipe, muito voluntariamente, fica com as pernas expostas para atrair o bicho e, assim, capturá-lo – uma técnica que chega a ser cem vezes mais eficaz que outros tipos de armadilha. O trabalho é realmente puxado e chega a seguir por até 12 horas, do anoitecer ao amanhecer. É que, como lembra Rosa, “o mosquito fêmea não ferroa de dia; está dormindo, com a tromba repleta de maldades”. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Reitor afastado  Herman Jacobus Cornelis Voorwald Vice-reitor no exercício da reitoria  Julio Cezar Durigan Pró-reitor de Administração  Ricardo Samih Georges Abi Rached Pró-reitora de Pós-Graduação Marilza Vieira Cunha Rudge Pró-reitora de Graduação Sheila Zambello de Pinho Pró-reitora de Extensão Universitária Maria Amélia Máximo de Araújo Pró-reitora de Pesquisa Maria José Soares Mendes Giannini Secretária-geral Maria Dalva Silva Pagotto Chefe de Gabinete Carlos Antonio Gamero Assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa Oscar D’Ambrosio   Presidente do Conselho Curador Herman Jacobus Cornelis Voorwald Diretor-presidente José Castilho Marques Neto Editor-executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente administrativo e financeiro William de Souza Agostinho unespciência Diretora de redação  Giovana Girardi Editor de arte  Ricardo Miura Editores-assistentes  Luciana Christante e Pablo Nogueira Repórter Luiz Gustavo Cristino Colunista  Oscar D’Ambrosio Colaboradores  André Julião e Igor Zolnerkevic  (texto), Cristiano Burmester, Daniela Toviansky,  Guilherme Gomes e Luiz Machado (foto), Erika  Onodera (ilustração) Revisão  Maria Luiza Simões Projeto gráfico  Buono Disegno  (Renata Buono e Luciana Sugino)   Produção  Mara Regina Marcato Apoio de internet  Marcelo Carneiro da Silva Apoio administrativo  Thiago Henrique Lúcio  Endereço Rua Quirino de Andrade, 215, 4o andar,  CEP 01049-010, São Paulo, SP. Tel. (11) 5627-0323.     www.unesp.br/revista; unespciencia@unesp.br    Diretor-presidente Marcos Antonio Monteiro Diretora vice-presidente e financeira  Maria Felisa Moreno Gallego Diretor industrial Ivail José de Andrade Diretor de gestão de negócios  José Alexandre Pereira de Araújo    Tiragem  25 mil exemplares É proibida a reprodução total ou parcial de textos e  imagens sem prévia autorização formal. junho de 2011 .:. unespciência 3 Giovana Girardi diretora de redação UC_20_Editoria01.indd 3 19/05/2011 17:52:52 Ilha incógnita Quase 180 anos depois de Charles Darwin ter se impressionado com a diversidade geológica das ilhas Falkland, pesquisadores brasileiros investigam o solo, os fósseis e os intrigantes “rios de pedra” do arquipélago situado nos confins do Atlântico Sul Cruzada contra a malária Entender como a doença se propaga na Amazônia, conhecer os hábitos do mosquito e as artimanhas do parasita e identificar pessoas que, embora aparentemente imunes, podem funcionar como reservatórios da infecção são alguns dos objetivos de um audacioso projeto internacional e multidisciplinar que reúne cientistas brasileiros, peruanos e americanos A reabilitação dos bichos Numa clínica nos arredores de Botucatu, macacos se exercitam em grandes viveiros, corujas treinam a caça a roedores e tucanos aprendem a reconhecer uma refeição. São todos animais apreendidos ou doados, que estão sendo preparados para o retorno à vida selvagem 10 28 su m ár io unespciência .:. junho de 20114 18 A reabilitação rio UC_19_Sumario.indd 4 19/05/2011 17:55:35 Fiquei sabendo da repor tagem sobre os proble- mas da produ- ção de ba na na (“Quem vai que- rer plantar bana- na”, edição 19) por acaso, navegando na internet. Queria dar os parabéns à repórter e à revista, que ainda não conhecia. Sou do tempo em que a ba- nana maçã era comum nas casas dos brasileiros. Meu pai tinha um peque- no cultivo no litoral sul paulista e me lembro dele se lamentando do tal fun- go (Mal do Panamá raça 1) que estava destruindo toda a plantação. Foi um momento difícil para minha família. Fiquei muito feliz em lembrar esta his- tória lendo uma reportagem tão baca- na e de tanta qualidade. Guilherme Piavon, pelo blog Parabenizo a equipe de Unesp Ciên- cia pela matéria “Yes, nós temos bana- na” (edição 19, maio). Sou professor da Escola Agrotécnica do IFRR (Institu- to Federal de Roraima), câmpus Novo Paraíso, localizado no sul de Roraima, e já vivemos este problema do fungo. Arnóbio Ferreira da Nóbrega, por e-mail Agradeço a todas as pessoas empe- nhadas no projeto da revista Unesp Ciência. Estudo tecnologia em radio- logia e tenho usado as reportagens para aprimorar meu conhencimento e em trabalhos da faculdade. Vocês estão de parabéns. Para o público em geral é muito importante ter material de fontes confiáveis e transparentes. Paulo de Sales Pereira, pelo blog É com prazer que leio a reportagem sobre pesquisas do Departamento de Fisiologia e Patologia da Faculdade de Odontologia da Unesp em Araraquara (“Sede de sal”, edição 17), onde os pro- fessores Laurival de Luca e Vanderley Menani dirigem estudos importantes. José Pedro Renzi, por e-email Sensacional a revista Unesp Ciência, estou curtindo muito, do design ao conteúdo. Euclides Santos, por e-mail, envia- do por Ipad NA BLOGOSFERA A matéria de capa da edição de abril (“Jogo ‘sujo’ só até 2014”) comenta so- bre o desaparecimento dos lixões pre- visto pela Lei n. 12.305/2010. É claro que é tudo uma questão de política, mas esperamos que aconteça. Porém não devemos ficar esperando que a iniciativa seja feita pelo nosso gover- no. As ações das pessoas são exemplos de ação e arte. É o caso do jovem Da- vid Rocha, de 20 anos, que aproveitou o conhecimento das aulas de luteria e encontrou no lixão material (madei- ra) para construir seus próprios ins- trumentos. Rogério Corrêa, no blog http://bit.ly/mjqro7 PISAMOS NA BOLA Diferentemente do informado na re- portagem “Sede de sal” (edição 17), a primeira célula surgiu na Terra há cer- ca de 3,5 bilhões de anos. O nome do inventor da ferramenta Bar- code (“Código de barras da biodiversi- dade”, edição 19) é Paul Hebert. 9 1 0 0 0 Pesquisadores no Brasil e no mundo lutam para combater pragas cada vez mais agressivas que ameaçam de extinção a fruta mais popular do planeta Yes, nós temos banana (mas até quando?) unespciência Q ua ng H o ASTEROIDES SISTEMA SOLAR GANHA NOVA FAMÍLIA IMPRENSA LITERATURA POLÍTICA NO ESTADO NOVO GENÉTICA CÓDIGO DE BARRAS DA BIODIVERSIDADE maio de 2011 ° ano 2 ° número 19 ° R$ 7,00 UC_19_Capa02.indd 1 15/04/2011 12:44:45 www.unesp.br/revistablog twitter.com/unespciencia unespciencia@unesp.br Perfil Clodoaldo Bueno: o Barão do Rio Branco e a política externa no Brasil Estação de trabalho O acervo indígena de um agrônomo com alma de antropólogo Estudo de campo A fragilidade de rãs e pererecas que vivem junto às nuvens Quem diria Cientistas usam ultrassom para garantir a qualidade de queijos Arte Ana Claudia Agazzi ensina a arte de subir no palco Livros O sempre essencial Thomas Kuhn Click! Morte lenta de uma castanheira Ponto crítico Doenças duplamente negligenciadas junho de 2011 .:. unespciência 5 cartas 48 6 36 16 42 44 46 50 UC_19_Sumario.indd 5 19/05/2011 17:55:35 S e o mundo acabar um dia, prova- velmente será por uma crise nas relações internacionais.” A afir- mação é do historiador Clodoaldo Bueno, professor da Faculdade de Ciências e Le- tras da Unesp em Assis e um dos maiores estudiosos da história da política externa brasileira – área que, lembra ele, demorou a emplacar no Brasil. “Sentia que ninguém fazia história das relações internacionais. Quando comecei a estudar o assunto, en- contrei apenas dois manuais”, recorda hoje, aos 68 anos. Foi com a queda do Muro de Berlim e o desmonte do bloco soviético que o historiador viu sua área de trabalho entrar em evidência. Bueno focou suas pesquisas no perío- do da República Velha (1889-1930) e na figura do Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores de 1902 a 1912, geógrafo e historiador carioca que dá no- me à escola de formação da diplomacia brasileira, o Instituto Rio Branco, ligado ao Itamaraty. Nascido José Maria da Silva Paranhos Jr. (1845-1912), ele e seu farto bi- gode estamparam a nota de mil cruzeiros nos anos 1980. Seu principal legado foi ter sido o res- ponsável pelos contornos atuais do terri- tório brasileiro, o que conseguiu por meio de tratados com os países vizinhos, de forma geral estabelecidos pacificamente. Apesar de manter o espírito crítico que sua profissão exige, Bueno não disfarça a simpatia pelo personagem. “Um histo- riador não pode desgostar do personagem que retrata, mas também não pode amar demais, senão perde um pouco da cria- tividade. Mas confesso minha admiração por ele, não é à toa que marcou tanto a nossa história”, diz. Ao longo dos últimos 40 anos, Bueno pesquisou em arquivos particulares, cor- respondências oficiais e atos diplomáticos, entre outros documentos dos acervos do Itamaraty. “Foi uma gestão que criou tra- dição no Itamaraty e no comportamento internacional do Brasil”, explica. No que diz respeito à delimitação das fronteiras do país, os estudos de Bueno revelaram como o Barão buscou aproximação com os Estados Unidos – ter o apoio da emi- nente potência mundial era importante caso houvesse divergências com os paí- ses vizinhos. Naquela época, explica ele, os ameri- canos, principais importadores do café brasileiro, tinham uma série de isenções alfandegárias. A estratégia servia tanto pa- ra incentivar a compra quanto como para estreitar as relações entre os dois países. “A aproximação com os Estados Unidos já “ unespciência .:. junho de 20116 Professor da Unesp em Assis é um dos maiores estudiosos do legado do Barão do Rio Branco, ministro da República Velha que marcou para sempre a política externa brasileira Clodoald o B u e n o , confessando sua admiração pelo Barã o do R io B ra n co Um historiador não pode desgostar do personagem que retrata, mas também não pode amar demais, ou perde a criatividade e a história das relações exteriores Clodoaldo Bueno Luiz Gustavo Cristino UC_19_Perfil01.indd 6 19/05/2011 15:28:37 D an ie la T ov ia ns ky junho de 2011 .:. unespciência Bueno UC_19_Perfil01.indd 7 19/05/2011 15:28:43 Clodoaldo Bueno aos 18 anos de idade Com alunos do curso de História da Unesp em Assis e em reunião com o historiador Amado Luiz Cervo, em Brasília existia na República, mas era, de uma for- ma geral, romantizada. Rio Branco trans- formou essa relação em algo pragmático”, conta o historiador, que escreveu algumas obras de referência sobre o tema. O pioneirismo de Bueno como estudioso da atuação do ministro acabou influen- ciando outros pesquisadores. O historiador Amado Luiz Cervo, da Universidade de Brasília, conta que ficou impressionado quando, em 1984, conheceu um dos tra- balhos dele – que depois se tornou o livro A república e sua política exterior (Edito- ra Unesp, 1995). “Como estava com meu projeto ‘História da Política Exterior no Brasil’ sobre a mesa, pensei: ‘Este homem será coautor’”, recorda. “Assim aconteceu.” Juntos eles publicaram A política externa brasileira e História da política exterior do Brasil (em 1986 e 1992, ambos pela Ática). Sobre as críticas que se costumam fazer à atuação do Barão, de que ele deveria ter se preocupado mais com a industrialização do país, Bueno contra-argumenta: “Acho que é exigir demais dele. Não entendo co- mo se pode fazer uma crítica dura nesse sentido. Poxa vida, ele não foi presidente da República!”. Adiaram o carnaval Mas não foi somente com o historiador que o Barão desfrutou de popularidade. Sua gestão como ministro das relações exteriores foi a mais duradoura até hoje. Foram dez anos consecutivos, interrompi- dos por sua morte, em fevereiro de 1912, que ocorreu na sexta-feira anterior ao car- naval. Uma prova de sua reputação foi o adiamento da festa, transferida para abril por determinação do governo – feito único na história do Brasil. O interesse de Bueno pela história da política externa começou nos anos 1960, quando estava no quarto ano da graduação em História, na Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, que em 1976 passa- ria a compor a Unesp. Ele procurava um tema para sua tese de licenciatura, uma espécie de ancestral do atual “trabalho de conclusão de curso”. Decidiu-se pela Revolução Mexicana, um levante contra o ditador militar Porfírio Díaz, iniciado em 1910 e que se transfor- mou numa guerra civil. Bueno procurou analisar o conflito pelo prisma das rela- ções do México com outros países, e en- controu aí um caminho a ser desbravado também no Brasil. Nascido em Presidente Prudente (oeste do Estado de São Paulo), o pesquisador foi criado numa cidade próxima, a pequena Osvaldo Cruz, hoje com 30 mil habitantes. Começou a trabalhar com 11 anos, como auxiliar de dentista, e estudava à noite. “Na minha casa todo mundo começou a trabalhar cedo, éramos uma família hu- milde, meu padrasto era padeiro, e minha mãe foi cozinheira e depois decidiu ficar cuidando das crianças.” Depois, arrumou emprego melhor, num cartório da cidade. Só aos 20 anos deixa- ria a pacata Osvaldo Cruz para viver em Marília (SP), com o objetivo de se formar historiador, embora sua vontade fosse es- tudar Direito, influenciado pelas pessoas que havia conhecido no cartório. A História acabou surgindo na sua vida mais pela facilidade de acesso ao ensino superior. “Eu era um menino pobre, e por sorte havia o curso em Marília. E História era uma disciplina que eu gostava, tinha facilidade.” Isso não significa, entretanto, que tenha se arrependido da decisão ou seguido a carreira com desinteresse. “Acho vocação uma coisa muito relativa”, diz. “É claro que eu não poderia ser matemá- tico, por exemplo, pois não tenho jeito nenhum com números. Mas, respeitando Tullo Vigevani professor da Unesp de Marília, especialista em relações internacionais “É uma pessoa modesta, simples, que se tornou um dos pesquisadores mais importantes do Brasil, com prestígio internacional, em conhecimentos sobre a política externa dos primeiros anos da República. Mas ele não se limita àquele período, contando com uma ampla trajetória de boas publicações.” Amado Luiz Cervo professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco “Clodoaldo Bueno alia duas virtudes que o tornam respeitado e admirado: a fundamentação do conhecimento em base sólida, fornecida por documentos originais de arquivo, e a produção de conceitos que organizam o material e lhe dão inteligibilidade. É um dos poucos na universidade brasileira capazes de alimentar suas aulas com conhecimento original e inovador.” Antônio Carlos Lessa editor da “Revista Brasileira de Política Internacional” “Fui aluno do Clodoaldo no doutorado, quando ele foi professor visitante aqui na UnB. Ele aprecia muito o contato com os jovens, tem muita paciência, lê e comenta tudo o que recebe, coisa daquele tipo de professor que não existe mais. É um verdadeiro gentleman. E conseguiu se consolidar como uma das principais autoridades do Brasil em locais onde não havia tradição em relações internacionais.” unespciência .:. junho de 20118 O que dizem sobre Clodoaldo Bueno UC_19_Perfil01.indd 8 23/05/2011 14:28:55 Com alunos do curso de História da Unesp em Assis e em reunião com o historiador Amado Luiz Cervo, em Brasília ca da política externa dos governos mais recentes. Considera exagerado dizer que nos últimos anos o Brasil cresceu além do esperado nesse cenário. “Eu me per- gunto quais foram as conquistas efetivas do Brasil. Reconheço que houve um des- taque maior, mas pelo tamanho da nossa economia, poderíamos ter uma presença maior ainda.” Sobre a vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, que o governo brasilei- ro tanto almeja, ele pondera: “Merecemos uma vaga e devemos tentar. Só questio- no o fato de fazermos boa parte da nossa política com essa preocupação. Acho que será muito trabalho, muito desgaste e mui- ta despesa”. Também critica a posição do governo Lula a favor do programa nuclear do Irã. “Achei uma grande tolice. Seria sim- patia ideológica? Isso bate de frente com o que o Barão do Rio Branco dizia, sobre as relações internacionais não poderem ser guiadas por camaradagem”, recorda. A postura da presidente Dilma Rous- seff nesse quesito é bem avaliada pelo historiador. “Lula era mais loquaz. Dilma tem um estilo mais discreto, até porque ela não tem o mesmo carisma. Até ago- ra, as mudanças foram positivas. Houve uma mudança com relação à questão dos direitos humanos, o que melhora nossa imagem”, explica Bueno, referindo-se ao voto do Brasil a favor de investigação do Irã pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. “Até agora, a discrição fez bem, esses limites, o importante é você se de- dicar ao que está fazendo, pensar sempre em fazê-lo bem.” Durante a graduação, cujas aulas eram matutinas, Bueno lecionava história, à tarde e à noite, no ensino secundário (período entre o sexto ano do ensino fundamental e o terceiro do ensino médio). O magistério foi importante para seu desempenho como professor universitário, papel que exerce em período integral desde 1972, quando foi contratado na Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Aposentou-se em 1994 e dois anos mais tarde voltou a lecionar, desta vez na Faculdade de Ciências e Le- tras da Unesp em Assis. Aula à moda antiga Bueno é daqueles professores à moda an- tiga, que valorizam o modelo de aulas ex- positivas. “Com aquela parafernália toda, datashow, ponteirinhos, há uma tendência de o cara que vai dar aula ficar lendo ali. Isso pra mim não é aula”, critica. Para ele, lecionar tem a ver com uma “abertura de espírito”. “Quando começo a dar aula, tenho de construir o que pretendo demonstrar lá na frente. É uma coisa artesanal.” O pro- fessor afirma preocupar-se com o destino dos alunos que enfrentarem as salas de aulas do futuro pelo fato de esse modelo didático estar desaparecendo. Estudioso e admirador do passado, Bueno não gosta muito de comentar o presente, mas ainda assim faz uma avaliação críti- mas vamos ver como o governo vai se comportar quando houver questões bila- terais, com algum país específico”, ressalta o pesquisador. Para Bueno é difícil estabelecer uma comparação entre o Barão do Rio Branco e seus sucessores no Ministério das Re- lações Exteriores. “Depois dele, tivemos bons ministros, mas o Rio Branco já era um estudioso da área antes de ir para o ministério. Os que vieram logo depois não tiveram o mesmo brilho e a mesma sagacidade, até porque, dois anos depois, estourou a Primeira Guerra e o mundo aca- bou ficando muito diferente”, diz. “Como as gestões posteriores tiveram problemas tão distintos, é difícil compará-las”, justi- fica. Para ele, o Barão do Rio Branco é, ainda hoje, insuperável. Bueno, so b re a p o lítica de relações internacionais no g ove rn o D il m a Até agora, a discrição fez bem. Vamos ver como o governo se comporta quando houver questões bilaterais com algum país específico Fo to s: A rq ui vo P es so al junho de 2011 .:. unespciência 9 UC_19_Perfil01.indd 9 23/05/2011 14:28:57 unespciência .:. junho de 201110 D an ie la T ov ia ns ky UC_20_Como02.indd 10 19/05/2011 16:22:16 Pablo Nogueira Soltando as feras Bichos apreendidos ou doados passam uma temporada no Centro de Triagem de Animais Silvestres até terem condições de retornar à vida em ambiente natural de conservação. Mas o passo nesse sentido só aconteceu em 2002, quando procurou a ONG Instituto Floravida, ligada ao grupo Centroflora, que administra a Anidro do Brasil, e propôs a criação de um centro de triagem de animais silvestres. “Nós trabalhamos principalmente com educação ambiental”, conta Marilda Pe- trechen, diretora-presidente do Flora- vida, “mas percebemos as dificuldades enfrentadas pelos órgãos que trabalham com animais silvestres. Como não havia um centro de triagem aqui, era necessário levar os bichos apreendidos ou doados até outras cidades, muitas vezes distantes. Por isso resolvemos apoiar a iniciativa”, conta ela. O Instituto Floravida doou R$ 30 mil para a construção de instalações dentro da Unesp em Botucatu, destinadas a acolher os animais recém-chegados. Além disso, criou a infraestrutura que funciona no terreno da Anidro. Segundo Vincent Lo, analista ambiental C omo faz todas as sextas, Nabor Veiga passeia pelo terreno da empresa Anidro do Brasil, nos arredores de Botucatu. Desta vez, está acompanhado pela equipe de Unesp Ci- ência. De repente, uma voz aguda solta um “oi!” bem ao lado do cientista, como se quisesse puxar papo. “Acho que a gen- te já ficou tempo demais aqui”, comenta Veiga, afastando-se do dono da voz, um simpático papagaio. A aversão de Veiga ao diálogo com o pássaro tem uma boa razão. Ele coordena o Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) que funcio- na nas instalações. Lá, ele recebe animais apreendidos em situação irregular ou doa- dos por seus antigos donos e os prepara para retornarem aos seus habitats naturais. Professor do departamento de produ- ção animal na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Veiga pesquisa espécies silvestres desde os anos 1990. Já na época, queria se aproximar do trabalho do núcleo de fauna do Ibama, 4 em cada 10 animais silvestres traficados no Brasil têm como destino o Estado de São Paulo. “Entre 30 e 40 mil são apreendidos aqui anualmente. Só para comparar, o zoo- lógico da cidade de São Paulo, o maior da América Latina, tem apenas 3.500 animais. É como se a gente apreendesse quase um zoológico inteiro todo mês”, diz. Destes, 10 mil são destinados aos cinco Cetas em funcionamento no Estado. O centro coordenado por Nabor atende a região de Botucatu e mais 41 municípios. Desde 2002, passaram por lá cerca de 1.200 animais, sendo 94% aves (sua maior especialidade). Os demais são répteis e ma- míferos. Atualmente abriga 190 animais: aves como tucanos, papagaios, mutuns, corujas, periquitos, coleirinhos, rolinhas, cardeais, corrupiões, galos-da-campina, mas também cerca de duas dúzias de ja- butis, um par de bugios, outro de maca- cos-prego e meia dúzia de tartarugas de junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Como02.indd 11 19/05/2011 16:22:16 FASE INICIAL Nabor Veiga dirige o processo de reabilitação e coordena o Centro de Triagem de Animais Silvestres, onde os bichos chegam originalmente em jaulas e gaiolas (à esq.) MUTUNS POUCO HUMANIZADOS Quase selvagens, aves batiam cabeça contra grades para fugir de humanos orelha vermelha, uma espécie típica do rio Mississipi (EUA). Assim que chegam, os animais são anali- sados para determinar o gênero e a espécie a que pertencem e o local onde vivem na natureza. A seguir, podem ter três destinos. Alguns são encaminhados para zoológicos e criadouros comerciais e conservacionistas, onde seguirão vivendo em cativeiro. Outros são sacrificados, devido a problemas de saúde, dificuldades de adaptação e outros males. Um terceiro grupo é considerado adequado para retornar à vida selvagem. Embora não haja registro de quando ocorreu a primeira devolução de animais abrigados em cativeiro ao seu ambiente original, uma experiência com 17 bisões feita em 1907, nos EUA, é apontada co- mo um dos primeiros marcos. A partir dos anos 1970 as experiências foram se multiplicando, e os fundamentos de uma metodologia começaram a se assentar. No Brasil, a reintrodução do mico-leão- -dourado no Estado do Rio, nos anos 1980, é vista como referência de processo bem conduzido. A reintrodução de um animal, porém, exige uma preparação adequada. “O longo tempo de cativeiro faz com que o animal torne-se ‘humanizado’”, explica Veiga. “Ele não experimenta mais as varia- ções de frio e calor, não tem que procurar abrigo, caçar ou fugir de um predador. Se Várias estratégias são usadas para adaptar os animais ao mundo selvagem. Macacos exercitam a agilidade em viveiros amplos, corujas treinam caçando ratos e tucanos aprendem que os ninhos de outros pássaros são fonte de alimentos for devolvido à natureza assim, as chan- ces de sobrevivência são mínimas”, diz. A reabilitação consiste na reversão da hu- manização. O processo é coordenado por Veiga, que tem como auxiliares a veteriná- ria voluntária Maria Lúcia de Souza e os tratadores Antonio Carlos Fogatti e Mauro dos Santos. A equipe é complementada por mais 14 estudantes de graduação. Banco de penas O processo de reabilitação tem três fases. Inicialmente os animais são isolados em instalações conhecidas como ‘quaren- tenário’, onde ficam sob observação. A fase dura 30 dias para as aves, 40 para os mamíferos e 90 para os répteis. O ob- jetivo é permitir que eventuais doenças incubadas se manifestem, e os animais recebam tratamento. Também são feitas intervenções mais específicas, dependendo da espécie. No caso dos gaviões quiriquiri, por exemplo, o desafio é recriar sua capacidade de voo. Os donos desses animais costumam cortar algumas de suas penas para impedir a fuga. A solução encontrada foi montar um banco de penas, coletadas na natureza ou doadas por zoológicos. Eles identificam a mais adequada para substituir a faltante e, usando um pedaço de bambu e cola, conseguem fixá-la na asa, num procedi- mento de cerca de duas horas. Ainda nesta fase, os pesquisadores pro- curam manter o estilo de vida a que o animal estava acostumado. “Enviamos um questionário à pessoa que possuía o animal indagando os hábitos, se ele ti- nha nome, o que comia. Se ela colabora conosco, isso é levado em conta positiva- mente pelo juiz no processo, pois mostra que houve conscientização”, explica o zootecnista. O bicho segue tendo conta- to direto com gente. Quando da visita da reportagem, por exemplo, Fogatti prepa- rava uma papinha para dar de almoço a duas jovens maritacas. “São dois bebês que estou criando”, brinca. Em muitos casos, porém, não é possível levantar informações pregressas. Para es- unespciência .:. junho de 201112 UC_20_Como02.indd 12 19/05/2011 16:22:30 DÁ O PÉ, LOURO? Diversas análises são feitas para determinar o grau de familiaridade dos animais com pessoas. Aqui, no teste do ponto de fuga, a maritaca se mostra bem mansa CONTATO REDUZIDO O tratador Fogatti é um dos poucos humanos que os animais veem no viveiro tabelecer um perfil e orientar o trabalho de reabilitação, Veiga criou uma escala de mansidão com cinco níveis, que indica o grau de intimidade do bicho com humanos – e, por tabela, seu possível despreparo para a vida selvagem. A classificação do animal dentro da escala é feita através de diversos testes e observações. Os mais básicos incluem a análise de características corporais. Aves com garras curtas e gastas indicam uma vida passada em meio às durezas do ambiente natural. Penas cortadas mostram convivência com o homem. Testes comportamentais aju- dam a refinar essa percepção. Um deles consiste em colocar alimentos silvestres, como frutas e plantas, junto com rações, e ver se o bicho come todas ou só as na- turais. Outra avaliação é colocá-lo numa gaiola ou viveiro com água acondicionada numa estrutura artificial, como um co- cho. Animais domesticados costumam usá-lo rapidamente, enquanto os selva- gens só atinam para sua finalidade após algumas horas. Por fim, é feito o chamado teste do pon- to de fuga. Um pesquisador caminha di- retamente em direção ao bicho. Quando a distância entre os dois alcança certa extensão, é esperada alguma reação do animal. Os mais selvagens tentam fugir ou atacar. Alguns chegam a jogar-se contra as grades sistematicamente, procuran- do uma saída. Os mais domesticados, porém, abaixam a cabeça em sinal de submissão ou se aproximam, procurando contato. “Uma vez, um jabuti criado por uma senhora foi apreendido e trazido até aqui. Ele foi colocado num viveiro com dezenas de animais semelhantes. Pou- co depois, a senhora veio ver o animal”, lembra Veiga. “Ela gritou ‘Antônio’. E o jabuti veio andando. Eu não acreditei, fiz uma marca no casco e coloquei de novo junto aos outros. Ela chamou de novo, e ele retornou mais uma vez”, conta. Novo estilo de vida A segunda fase envolve a modificação dos velhos hábitos. Os animais são leva- dos para um denso fragmento florestal, acondicionados em dezoito viveiros que lhes permitem experimentar as variações naturais de temperatura e umidade. Estão expostos também à visitação de outros animais, muitos deles portadores de ver- mes e parasitas. Através desse contato, o sistema imunológico dos animais começa a desenvolver as defesas adequadas. Os viveiros também têm dimensões maiores para que os bichos possam desenvolver suas aptidões físicas, às vezes bastante tolhidas na vida em cativeiro. É o caso de um macaco-prego que passou sete anos aprisionado por uma coleira com apenas 1 m de extensão. Após ser solto no viveiro, ele foi encontrado caído no chão de dor, pois não estava acostumado a tanto esforço físico. A equipe recorre também a diversas estratégias para preparar os animais para a vida selvagem. A prática é chamada de enriquecimento ambiental e também é adotada em alguns zoológicos e criadouros. Uma delas consiste em rechear uma me- lancia oca com insetos, a fim de permitir que os macacos desenvolvam a agilidade motora necessária para desentocá-los. Ni- nhos encontrados caídos na floresta são levados para o viveiro dos tucanos, para que eles aprendam a identificá-los como fonte de ovos para sua dieta. Pedaços de carne são pendurados em cordas para as corujas aprenderem a dar um bote per- feito. As aves recebem sementes escondi- das em galhos e troncos de bambus para obterem o alimento com mais esforço. Igualmente importante é o isolamento. Uma vez nos viveiros, a equipe não usa mais nomes para se referir aos animais e evita qualquer interação mais próxi- ma. “A gente procura até não conversar perto deles, para que percam o vínculo com o homem”, explica o estagiário Raoni de Almeida. Daí a preocupação em sair rapidamente de perto da maritaca no co- Fo to s: D an ie la T ov ia ns ky junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Como02.indd 13 19/05/2011 16:22:40 COMUNIDADE DIFÍCIL Para realizar a soltura de um grupo de tucanos, Veiga vai ter de primeiramente tentar solucionar os conflitos surgidos entre os indivíduos abrigados no Cetas CONHECENDO O AMBIENTE A preparação à vida ao ar livre é feita em viveiros, onde um bugio (alto, à dir.) já mordeu um tratador. O macaco-aranha fugiu, mas foi recapturado meço da reportagem. A única presença humana regular é a de Fogatti, que dia- riamente renova a alimentação e limpa os viveiros. Os efeitos do distanciamen- to são perceptíveis para quem visita os viveiros. Embora uma ou outra ave se aproxime buscando interagir, a maior parte permanece distante e silenciosa. Mas há sinais mais diretos. Fogatti os- tenta no polegar uma cicatriz, resquício dos sete pontos que precisou levar para fechar a ferida causada pela mordida de um dos bugios. Um dos macacos-prego descobriu uma maneira de evadir-se do viveiro, e às vezes passa dias desapare- cido. “Esses animais já querem ganhar a liberdade”, explica. Outra preparação específica envolve os animais que só podem sobreviver em grupo. É o caso dos 14 tucanos que atual- mente estão no Cetas. Quatro deles foram rejeitados pelo grupo e acondicionados em viveiros separados. “Tucanos são ex- tremamente violentos quando se trata de excluir alguém do grupo”, explica Veiga. Se as quatro aves forem soltas sozinhas, dificilmente conseguirão se inserir num grupo selvagem já existente. Por isso, a equipe vai tentar reintroduzi-las no grupo maior para depois soltar todas juntas, a fim de que, na vida ao ar livre, continuem reproduzindo a mesma hierarquia que ocorre no viveiro. Para isso, o zootecnis- ta vai iniciar, ainda neste semestre, um projeto de pesquisa que visa estudar o comportamento dos animais e entender as causas do comportamento agonístico, isto é, de conflito, neste grupo. De volta à floresta Antes de devolver os animais à nature- za, também é preciso ter certeza de que a região onde eles serão soltos possui as características adequadas para recebê- los. Esse processo de avaliação é feito tanto por Veiga e sua equipe quanto pe- los técnicos do Ibama, e é chamado de credenciamento de área de soltura. São feitas algumas análises gerais, co- mo a identificação de todas as espécies de flora e de fauna que ocorrem no local. O mapeamento permite identificar aquelas que poderão ser úteis aos animais que Fo to s: D an ie la T ov ia ns ky unespciência .:. junho de 201114 UC_20_Como02.indd 14 19/05/2011 16:22:59 ATRAÇÃO EXTERNA Para estimular os papagaios a explorar o ambiente onde vão viver definitivamente, os biólogos espalham várias fontes de alimento no entorno dos viveiros DEVOLUÇÃO À NATUREZA Portas ficam abertas, mas os periquitos demoram para abandonar as gaiolas capturar os novos moradores. Depois da dispersão, Veiga e sua equi- pe retornam ao local e iniciam a etapa de monitoramento, procurando sinais dos animais, que são identificados visualmen- te por sinais no corpo, como as anilhas e tatuagens. O objetivo é localizar os bichos exatamente onde foram deixados. Se um animal for rastreado a quilômetros de dis- tância, é sinal de que o lugar escolhido para a soltura não era o mais adequado. Às vezes o monitoramento traz notícias tristes, como na ocasião em que a equipe encontrou três maritacas mortas poucas horas depois de deixarem o viveiro. “Isso é sinal de que ainda não estavam pron- tas”, comenta Veiga. Mas não raro eles se deparam também com um “final feliz” – quando o animal encontrou um par e se reproduziu –,o que constitui o índice máximo de sucesso na reabilitação. Há quem critique a ideia de reabili- tação, dizendo que o animal teria uma vida mais confortável se permanecesse em cativeiro. Veiga, porém, explica que há outros motivos, além do bem-estar, para devolvê-los à natureza. “Cerca de 80% das espécies vegetais que ocorrem em florestas tropicais têm suas sementes disseminadas pela ação dos animais. Preservá-los é essencial para preservar- mos também a flora”, diz. serão soltos: as que servem de alimento, as que proporcionam abrigo, as que são usadas para nidificação etc. Também são feitos cálculos levando em consideração comportamentos específi- cos. Os canários, por exemplo, quando estão em fase de reprodução, demarcam uma área de cerca de 40 m2 e atacam qualquer outro macho da espécie que passe por ali. Para realizar uma soltura de mais canários num terreno, é preciso, através da observação, estimar quantos já vivem ali, dividir a área total por 40 e calcular então quantos indivíduos podem coexistir ali. Esta avaliação é chamada de capacidade de carga da área. Outro item observado é a proximidade de locais habitados. Afinal, a presença humana, em grande quantidade, pode ocasionar a recaptura ou a caça do animal. A soltura começa com a chegada da equipe às áreas credenciadas (o que, no caso de espécies vindas de outras regiões, pode implicar a realização de viagens pa- ra diferentes Estados) para a construção dos viveiros que abrigarão os animais. Estes chegam depois. Como parte do processo de aclimatação, eles podem viver por meses nos viveiros. Sua dieta passa a incorporar alimentos coletados nos arredores. Os bichos também recebem anilhas para serem identifica- dos na natureza. Eventualmente, um dia, de forma natural, as portas são abertas. É o chamado soft release – em vez de expulsar os animais dos viveiros, per- mite-se que eles explorem os arredores e retornem sempre que queiram. Nesta fase, alimentos continuam a ser oferecidos dentro do viveiro, e caixas com comida são dispostas também nos arredores. “É uma dispersão gradativa. Eles vão natu- ralmente colonizando o ambiente, à me- dida em que desenvolvem a confiança e o tônus muscular para deixarem o viveiro de vez”, explica Vincent Lo, do Ibama. Um trabalho de educação ambiental é feito com eventuais moradores das re- dondezas, a fim de que eles colaborem com o trabalho e não tentem caçar ou Além de preservar as populações, a reintrodução de animais silvestres reabilitados tem impacto positivo no ecossistema, pois cerca de 80% das espécies vegetais das florestas tropicais têm suas sementes disseminadas pela ação da fauna Fo to s: V in ce nt K ur t Lo junho de 2011 .:. unespciência 15 UC_20_Como02.indd 15 19/05/2011 16:23:02 unespciência .:. junho de 201116 CHOCALHO Feito com cascas de sementes de serin- gueira, é usado nos tornozelos de índios do Amazonas. Lin o leva nas aulas de Etnobotânica para alertar contra coleta ilegal de espécies CÍRIO DE NAZARÉ Barco comprado no evento religioso em Belém, onde foi ofertado como ex- -voto. “Uma TV local me entrevistou, por eu ser oriental, na procissão”, conta Lin Chau Ming Ele é agrônomo, mas tem alma de antropólogo. Filho de imigrantes chineses, dedica-se ao estudo das plantas medicinais do Brasil e suas formas de uso e de cultivo pelas comunidades tradicionais. Especialista em Etnobotânica e professor da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp em Botucatu, Lin viaja muito com seus projetos, do Vale do Ribeira (SP) a várias regiões da Amazônia Legal. Em 2010, Unesp Ciência o acompanhou em uma missão ao alto rio Negro (AM), relatada na edição de junho (ed. 9). Sua sala (bem mais ampla do que a foto consegue mostrar) é uma espécie de museu- -biblioteca das culturas indígena e cabocla do país. UC_20_Estacao01.indd 16 23/05/2011 14:32:07 Fo to s D an ie la T ov ia ns ky DO XINGU Banco em formato de águia, pintado com o fruto imaturo de jenipapo. “São muito confortáveis de usar durante atividades em que é preciso ficar de cócoras”, explica junho de 2011 .:. unespciência 17 AMULETO A carranca veio de Pernambuco, quan- do Lin avaliou um projeto na Caatinga. “Nadei no rio São Francisco e a com- prei pela proteção que dá a quem viaja por suas águas” IMIGRANTES Na foto familiar, quando tinha 5 anos (hoje ele tem 52). Segundo o cientista, a tradição chinesa manda ter um registro com toda a família em pose austera UC_20_Estacao01.indd 17 19/05/2011 16:08:05 S ão seis da tarde quando três pesquisadores paulistas sentam- se nas cadeiras da varanda de uma casa na zona rural de Acrelândia (AC), tiram os tênis e as meias, arrega- çam as calças até os joelhos e esperam. De quando em quando, iluminam as pró- prias pernas com lanternas para checar se as demais convidadas para o encontro não chegaram sorrateiras. Finas, escuras e com inconfundíveis “botinhas” brancas, elas têm o hábito de se aproximar na perpendicular jun- to à pele exposta, como um prego. Mas tão logo o fazem, são interpeladas pela equipe e conduzidas ao local reservado para elas – pequenos potes de plástico cobertos com uma redinha. A rapidez da ação é fundamental para coordenação geral do patologista Joseph Vinetz, da Universidade da Califórnia, em San Diego. É um esforço para forne- cer subsídios para a elaboração de me- canismos mais eficientes de controle da doença. E, quem sabe, sua erradicação. No Brasil, a partir do início da década de 1990, a malária se estabilizou em cerca de 500 mil casos por ano – a maciça maio- ria na Amazônia Legal –, experimentando uma queda para pouco mais de 300 mil em 2008 e 2009 (último ano com dados fechados), de acordo com o Ministério da Saúde. Também houve redução na mor- talidade: de 3 em 10 mil habitantes, em 1999, para 1,5 em 10 mil, em 2008, ainda segundo o ministério. O órgão credita esses resultados à ampliação da rede de diag- nóstico e tratamento na região amazônica. Giovana Girardi que o resultado do encontro não seja muito doloroso. Afinal, a expectativa daqueles cientistas, numa literal doação de sangue pela ciência, era atrair naquela noite de abril, e nas muitas outras que vão se seguir periodicamente pelos próximos anos, fê- meas de mosquitos do gênero Anopheles, vetores do parasita causador da malária. O trabalho visa capturar especifica- mente os insetos que chegam até as casas dos moradores de áreas onde a doença é endêmica. E é uma das etapas de um amplo projeto que pretende compor um quadro detalhado de como a malária se propaga na Amazônia. A iniciativa reúne um time multidisci- plinar de pesquisadores brasileiros (de universidades como USP, Unesp e Fede- ral do Acre), peruanos e americanos, sob Com a missão de desvendar os mecanismos de propagação da malária na Amazônia, uma equipe multidisciplinar de cientistas brasileiros, peruanos e americanos está literalmente ‘dando o sangue’ pela ciência G ui lh er m e G om es unespciência .:. junho de 201118 saúde Decifra-me ou te devoro UC_20_Malaria02.indd 18 23/05/2011 14:42:19 “Ambos escutaram o mosquito a noite inteira. E o anofelino é o passarinho que canta mais bonito, na terra bonita onde mora a maleita.” Guimarães Rosa no conto “Sarapalha”, do livro Sagarana “Ambos escutaram o mosquito a noite inteira. junho de 2011 .:. unespciência Decifra-me ou te devoro UC_20_Malaria02.indd 19 23/05/2011 14:42:21 A CAMINHO DO ACRE A partir de Rio Branco, seguimos por 110 km para Acrelândia, onde uma casa funciona de base para os pesquisadores em seus trabalhos de campo no Estado e no Amazonas CRIADOUROS DE ANOPHELES “Soneca” vai analisar possíveis locais onde as fêmeas põem seus ovos Mas mesmo não sendo mais tão letal no país, o problema é extremamente debili- tante para quem o enfrenta, ainda mais quando se considera que há populações expostas continuamente ao risco, pegan- do uma malária atrás da outra. A doença também segue desafiando a ciência. Os especialistas estão intrigados, por exemplo, com a existência de infecções assintomáticas – algumas pessoas con- traem o plasmódio (o protozoário causa- dor da doença), mas não adoecem e, por isso, acabam não se tratando, embora continuem sendo capazes de transmitir a moléstia se forem picadas pelo mosqui- to. As estimativas são de que até 2/3 dos infectados se encaixem nesse quadro. “A hipótese é que exista um grande re- servatório de infecção”, explica Marcelo Ferreira, parasitologista da USP e um dos líderes da nova pesquisa no país. Essa é uma das muitas questões a que o projeto pretende responder. Tratando essas pessoas, qual impacto pode haver nos índices de transmissão da malária? Há também que se investigar por que alguns indivíduos simplesmente não se infectam. E por que nem todos apresentam as formas sexuadas do plasmódio, os gametócitos, que são as que infectam o mosquito. Por outro lado, há as dúvidas sobre o ve- tor. Quais das muitas espécies de Anopheles estão transmitindo malária na Amazônia? Quais são seus horários de maior ativida- de? Como isso varia com as estações do ano? Sem contar as perguntas sobre as di- ferentes espécies e variedades do parasita (o Plasmodium vivax, mais prevalente no Brasil hoje, e o P. falciparum). “Em um mesmo projeto, ao longo de um mesmo tempo e numa mesma região vamos estudar o mosquito, o parasita e a doença”, explica o bioquímico Paulo Ribolla, do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu. Ele está a cargo, no Brasil, da parte de entomologia, que vai investigar, entre outras coisas, a ecologia do mosquito. Foram o pesquisador e sua equipe que descrevemos com as canelas de fora no começo da reportagem. Centros de excelência Com financiamento dos Institutos Nacio- nais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês) da ordem de US$ 12 milhões, foi formado em 2010 um Centro de Excelência em Pesquisa em Malária para a Amazônia, que vai avaliar ao longo de sete anos três localidades com diferentes contextos epidemiológicos no Brasil e no Peru. Da mesma forma, serão apoiados outros nove centros em todo o mundo. “Um dos pré-requisitos dos NIH era que, dentro de cada um desses núcleos, diferentes tipos de transmissão estivessem representados. No nosso caso, foi escolhi- do um assentamento agrícola conhecido como Remansinho, na fronteira do Ama- unespciência .:. junho de 201120 saúde UC_20_Malaria02.indd 20 19/05/2011 17:31:12 GRANADA Casa de Darildo Oliveira representa local com vegetação mais degradada QUEM JÁ PEGOU MALÁRIA? Diante da pergunta, praticamente todos os alunos da única escola do Remansinho levantam a mão. Alguns sinalizam com os dedos quantas vezes já a pegaram zonas com Rondônia. No Peru, dois locais serão estudados: Puerto Maldonado, que é uma área de mineração perto da fronteira com o Acre, e a periferia de Iquitos, de população ribeirinha”, afirma Ferreira. O objetivo, diz, é obter bases científicas para o controle da malária em cada uma dessas regiões. “Já reconhecendo de an- temão que as necessidades de cada uma são diferentes, precisamos conhecer suas especificidades para lidar com elas.” Hoje, no Brasil, apesar de também haver transmissão entre ribeirinhos, é nos assen- tamentos onde a doença mais se destaca, daí a decisão de estudar esse tipo de local. “Há uma sobreposição quase perfeita dos locais onde há transmissão de malária no país com as áreas de assentamento agrí- cola. A doença está se deslocando para a Amazônia ocidental, onde há muitos novos assentamentos, como no sul do Amazo- nas. É o caso do Remansinho, que surgiu há cerca de cinco anos”, diz. A alta incidência da moléstia está dire- tamente relacionada ao processo de der- rubada da mata. Porque coloca as pessoas no ambiente dos mosquitos, mas também porque aumenta a abundância de vetores, explica o pesquisador: “O Anopheles dar- lingi, o grande vetor de malária na Amazô- nia, é um inseto de floresta, mas ele adora esse ambiente transformado. Então, nas fases iniciais de desmatamento aumenta muito sua densidade”. Mas depois que o ambiente está degradado demais, não há mais áreas sombreadas, os criadouros estão poluídos, aí a malária diminui. O que não significa que o desmatamento seja bom, mas que é necessário pensar em outros modelos de ocupação que não envolvam a constante abertura da mata. Tivemos um vislumbre do projeto em abril, quando acompanhamos os trabalhos de alguns dos participantes por uma se- mana na região. O Remansinho é parte do município de Lábrea (AM), o centro urbano dista cerca de 400 km do assentamento, mas não há um caminho direto por terra entre eles. O acesso mais fácil se dá por Rondônia, na altura de Nova Califórnia. No entanto, o município mais bem es- truturado das proximidades é Acrelândia. Na cidade, Ferreira e sua mulher, Marly Augusto Cardoso, também da USP, já há alguns anos vêm realizando pesquisas com malária e saúde infantil e acabaram comprando uma casa que serve de base científica para outros pesquisadores em seus estudos de campo. Na época em que estivemos lá, encontramos a equipe de en- tomologia de Ribolla e dois colaboradores dos estudos de epidemiologia de Ferreira. Apesar das mais de sete horas de viagem de São Paulo até lá, assim que chegamos No Brasil, apesar de haver muita transmissão entre ribeirinhos, é nos assentamentos rurais onde a doença mais se destaca, daí a decisão de estudar um local com essas características. O problema está se deslocando para a Amazônia ocidental Fo to s: G ui lh er m e G om es junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Malaria02.indd 21 23/05/2011 14:43:18 já saímos para a primeira noite junto aos mosquitos. O plano era fazer coleta das 18 h às 21h. Para compreender melhor as condições de transmissão da malária no Remansinho, os pesquisadores decidiram compará-las com a situação de outro assen- tamento, no chamado ramal do Granada, que também foi palco de anos de estudos de saúde por parte de Ferreira e colabo- radores. Ele foi aberto no início dos anos 1980 e já tem uma paisagem bem mais alterada. Lá, por exemplo, há luz elétrica, na localidade amazonense, não. O ramal é uma estradinha de terra que sai da BR 364, cerca de 20 km depois de Acrelândia, no sentido de Rio Branco, e se estende por pelo menos 30 km para dentro do que um dia já foi mata. O ca- minho é tortuoso e, como tinha chovido, estava cheio de atoleiros, o bastante para fazer o jipinho que nos levava rodar duas ou três vezes. Tração acionada, chegamos após uma hora e meia ao nosso destino. A casa da família de Darildo Oliveira já tinha sido, há três anos, objeto de es- tudo do então mestrando Paulo Rufalco Moutinho, aluno de Ribolla, que avaliou a transmissão de malária e a densidade de anofelinos ali e num ponto no início do ramal, ainda mais antigo. O cenário mu- dou bastante desde então – a vegetação foi bem mais degradada, e a malária já não é tão alarmante, mas continua presente. Da varanda, a família nos olha com curiosidade. Anoitecia quando foram sur- preendidos com a chegada de um jipe enlameado, com placas de São Paulo, de onde saltam cinco pessoas pedindo para ficar umas horinhas do lado de fora da casa catando mosquito. Mas ao verem Moutinho, mais conhe- cido ali como Soneca, a recepção é boa. Inês, a dona da casa, já pega cadeiras para todo mundo e Darildo nos situa: “Quando chegamos aqui, em fevereiro de 99, isso era mata pura, aí ficava uma semana bom e uma caído com ‘ela’. Era uma malária em cima da outra. Às vezes tava tomando remédio pra vivax. Em dois, três dias não passava o efeito, aí furava o dedo e dava a falciparum junto. Depois acalmou”. Uma dezena de vetores De fato a expectativa dos pesquisadores não é encontrar uma densidade tão alta de mosquitos quanto Soneca observou antes. A metodologia de captura dá um certo arrepio à primeira vista: assim que sentem que o mosquito pousou, ou começou a picá-los, eles sugam o bicho com uma mangueira adaptada com uma redinha dentro, para impedir que ele vá parar goela abaixo, e o colocam num pote de plástico. Diante da pergunta inevitável (vocês não têm medo de pegar malária?), porém, a equipe contemporiza o risco: “Ah, somos mais rápidos que o mosquito. Capturamos antes de ele ter tempo de transmitir”, é uma das respostas padrão. E se três ou quatro chegarem ao mesmo tempo? “Mas em mé- dia se imagina que apenas um anofelino em mil carrega o parasita”, é a estatística que trazem na ponta da língua. Se ela falhar, no entanto, eles parecem não se importar tanto assim: “Bom, pelo menos eu vou saber mais como são os sintomas da doença que eu estudo, né?”, afirma, descontraída, Aline Fernandes An- gella Martins, que recentemente concluiu o doutorado sobre os vetores da malária de uma região de Porto Velho (RO) e estava ali ajudando Ribolla e Soneca. Até por conta dessa baixa estatística de infecção do mosquito – o que não significa baixo risco para a população, uma vez que existem milhões de mosquitos e há épocas do ano em que uma pessoa pode tomar até cem picadas por hora, como alerta Ribolla –, os cientistas precisam coletar muitos para poder fazer suas análises. Por isso, estão planejadas de quatro a cinco idas a campo por ano. De cada vez, a ideia é passar de uma semana a 10 dias fazendo coletas de 3 e de 12 horas, tanto no Granada quanto no Remansinho. Os animais coletados vão inicialmente passar por uma avaliação taxonômica para identificação das espécies presentes em cada localidade, tarefa que ficará a cargo de Maria Anice Sallum, da Faculdade de Saúde Pública da USP. Apesar de o Anopheles darlingi ser nor- ATRAÇÃO HUMANA Sem medo de se contaminar, pesquisadores aguardam pacientemente por longas horas a chegada do mosquito; acima, Soneca ilumina as pernas para vê-los melhor AÇÃO RÁPIDA Antes de ser picado, Ribolla captura o mosquito com mangueira adaptada... Fo to s: G ui lh er m e G om es saúde unespciência .:. junho de 201122 UC_20_Malaria02.indd 22 19/05/2011 17:31:43 malmente mais associado às infecções na Amazônia, os pesquisadores desconfiam que bem uma dezena de outras espécies esteja transmitindo a doença. “Como cada uma tem um pico de atividade diferente, essa diversidade de vetores provavelmente interfere na transmissão da malária”, expli- cou posteriormente Anice em São Paulo. Os pesquisadores já perceberam que normalmente uma espécie predomina, mas duas ou três outras também são ve- tores – às vezes só por um período do ano ou do dia, por exemplo, só por três meses e só às sete da noite. O trabalho anterior de Soneca já havia trazido uma indicação nesse sentido. Ele observou que a abundância de mosquitos varia ao longo dos meses e que, quando ela é muito alta, os insetos picam as pessoas a noite toda, enquanto nos meses de menor densidade, a atividade fica mais restrita ao intervalo das 18 h às 21h. Ele também notou que os mosquitos coletados no perío- do de seca são geneticamente diferentes dos de época de chuva. “Isso significa que cada vez mais teremos de pensar em me- canismos de controle diferenciados. Mas precisamos antes entender a biologia dos mosquitos num dado local, em diferentes épocas, para propor isso”, afirma Ribolla. Nesse sentido, será feita também uma investigação genética dos insetos coletados. Além de servir para mostrar se eles estão ou não infectados com o plasmódio, o uso de marcadores genéticos vai permitir des- cobrir se a estrutura das populações muda durante o ano. Também serão analisados genes relacionados com resistência a in- seticidas. “Como a principal ferramenta que existe hoje para combatê-los é o uso de inseticida químico, temos que analisar se são ou não resistentes, tanto por ensaio biológico quanto geneticamente”, diz. Mesmo considerando só o darlingi, sabe- -se que há cepas ou linhagens diferentes de acordo com a região geográfica. Isso pode ter reflexo na resistência a inseti- cidas e na capacidade vetorial. Algumas cepas podem transmitir melhor ou pior o parasita. “Ao longo de sete anos podere- mos avaliar se as metodologias de com- bate ao mosquito estão sendo eficientes”, complementa o pesquisador. Para aquela primeira noite, porém, os planos eram mais modestos. Todos can- sados contavam os últimos minutos para a coleta de 3 horas acabar. Apesar da pele suculenta à mostra, menos de 30 anofelinos chegaram até a equipe e foram capturados naquela noite. Ainda haveria outras seis chances de captura na semana. “Um frio que Deus me livre” No dia seguinte, enquanto a turma da en- tomologia dormia, saímos às 6 h para ir enfim ao Remansinho, a duas horas e meia de Acrelândia (1h30 de estrada de terra). Acompanhávamos dessa vez o último dia de trabalho da equipe de Ferreira, que ava- lia a incidência da malária na população. Ele e colaboradores vêm trabalhando com aquela população desde o final de 2008, quando perceberam que a situação no Granada estava menos calamitosa. Os níveis de transmissão na região ama- zonense, por outro lado, eram impressio- nantes, segundo conta o parasitologista: “No estudo imunológico que estávamos fazendo na ocasião, precisávamos cole- tar amostras dos mesmos indivíduos no momento do diagnóstico da infecção e 30 dias depois, já tratados. Mas quando a gente voltava, muitos deles estavam com malária de novo e não eram mais elegíveis para o estudo”. “Vimos pessoas que saíram de lá, prestes a receber a documentação do Incra pelo lote, porque não aguentavam mais pegar SALDO Nos potinhos se vê a quantidade capturada em uma das noites; no alto, a perna de Ribolla após alguns dias de coletas intensas – outras espécies também fizeram a festa PEGO EM FLAGRANTE ...mas às vezes ele consegue se alimentar, como revela a barriga cheia de sangue O Anopheles darlingi é o mosquito normalmente mais associado às infecções na Amazônia, mas os pesquisadores desconfiam que uma dezena de outras espécies deste gênero esteja transmitindo a doença, cada uma com um pico de atividade diferente junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Malaria02.indd 23 19/05/2011 17:32:01 malária. Gente que faz um trabalho bra- çal pesado e não consegue trabalhar por quatro ou cinco dias.” Hoje a incidência é menor, mas ainda preocupa e incomoda. É o que percebemos nas conversas dos pesquisadores com os moradores. Seguimos naquela manhã o biólogo Carlos Eugênio Cavasini, professor da Faculdade de Me- dicina de Rio Preto e antigo colaborador de Ferreira, e o biomédico Pablo Secato Fontoura, mestrando da USP. A primeira casa onde paramos é de uma mulher que se queixava de muita dor de cabeça e “nos ossos”. “Rapaz, fiquei 20 anos sem pegar malária, quando cheguei aqui, depois de 8 dias peguei. É um frio que Deus me livre. Uma fraqueza nas pernas, um desânimo de fazer as coisas. Não tenho vontade de comer”, conta Maria Alves Costa, de 43 anos, que saiu de Extrema (RO) para a região do Remansinho. “Mas é assim mes- mo, a vida é essa.” A pesquisa atual vem sendo realizada desde o ano passado, com financiamen- to da Fapesp, mas os dados vão compor o projeto do centro de excelência. Foram selecionados cerca de 200 moradores da região para serem acompanhados duran- te o estudo. Mas eventualmente algumas pessoas pedem a atenção da equipe e são atendidas, como Maria. Nas visitas da equi- pe, que ocorrem a cada quatro meses, eles têm o sangue coletado e passam por um questionário de acompanhamento das suas condições de saúde. A análise imediata, feita por um micros- copista, é para checar se o indivíduo está infectado. Se estiver, ele já é medicado. Também é feito um hemograma, em um laboratório montado no posto de saúde de Acrelândia, para checar se há anemia. Parte do sangue segue para São Paulo, onde serão feitas análises de biologia mo- lecular e também genética do plasmódio, quando houver a infecção. “A gente está interessado em saber quem tem infecção e está doente e quem tem infecção e está assintomático”, explica Ferreira. Até há algum tempo, diz, havia “um mito” de que a malária observada nas áreas de assentamento atingia tipi- camente indivíduos migrantes que não desenvolviam nenhum tipo de imunida- de aos sintomas (como a observada em ribeirinhos e indígenas). De modo que todo mundo que se infectava adquiriria a doença e que, tratando os indivíduos doentes, se eliminaria a transmissão. “Certamente no momento em que elas chegam, uma vez infectadas, vão ter a do- ença. Mas os trabalhos no Granada mos- traram que essas populações dos assen- tamentos, com o tempo, vão adquirindo imunidade. E as infecções assintomáticas passam a ser, nesses contextos, um proble- ma real de saúde pública, uma potencial fonte de infecção”, afirma. Pesquisas que vêm sendo feitas nessa linha sugerem que pode haver uma rela- ção entre a ausência de sintomas e uma carga parasitária muito baixa – que às vezes nem é identificada por microscopia, COLETA DE SANGUE Análise imediata vai mostrar se há malária e anemia nos moradores INQUÉRITO EPIDEMIOLÓGICO Cavasini entrevista Maria Costa sobre sua saúde e hábitos; uma das perguntas é sobre a hora de acordar e de dormir, para checar a exposição aos mosquitos Um dos focos do estudo é tentar entender por que algumas pessoas, apesar de contaminadas com o parasita, não ficam doentes. “As infecções assintomáticas são um problema real de saúde pública, uma potencial fonte de infecção”, afirma Marcelo Ferreira Fo to s: G ui lh er m e G om es unespciência .:. junho de 201124 saúde UC_20_Malaria02.indd 24 19/05/2011 17:32:21 Apelo para erradicação No Dia Mundial de Combate à Malária (25 de abril), neste ano, a ONU fez um apelo para que a doença, uma das mais antigas a atingir a humanidade, seja erradi- cada até 2015. Em todo o mundo, cerca de 800 mil pessoas morrem por ano em decorrência da doen- ça, em especial na África, onde a maior incidência é de Plasmodium falciparum, bem mais letal e cada vez mais resistente aos remédios. A orientação já vem de alguns anos e foi o que possibilitou que as pesquisas também passassem a focar o Plasmodium vivax. Ape- sar de menos grave, ele é mais fácil de transmitir (as formas in- fectantes aparecem antes mesmo de a pessoa começar a se sentir doente) e tem um residual difí- cil de erradicar por causa das formas que ficam dormentes no fígado. Além disso, a movimen- tação muito comum de pessoas na Amazônia, que estão perma- nentemente abrindo novas áreas na mata, deixa-as em constante contato com o mosquito. “Nenhum grande financiador de pesquisa em malária no mundo dava dinheiro para vivax, o que era uma tragédia para nós. O ar- gumento era de que ele não ma- ta e, em escala global, a maior parte de malária do mundo é cau- sada por falciparum. Mas para erradicar, ele também precisa desaparecer”, afirma Ferreira. De uns cinco anos para cá, po- rém, cada vez mais se conhecem casos de morte por vivax. “Não se sabe se sempre se morreu de vivax e não se percebia ou de fato é um fenômeno novo”, diz. Para piorar, evidências indiretas indi- cam que a dose usada de medi- camento já não é eficaz contra as formas dormentes do fígado. DIAGNÓSTICO LOCAL Suzi observa ao microscópio lâminas com amostras de sangue coletadas pelos pesquisadores e por ela própria; treinamento lhe permite medicar os doentes FOCO NOS CASOS ASSINTOMÁTICOS Parte do sangue coletado será examinado em São Paulo com técnicas mais sensíveis de biologia molecular, que conseguem captar baixos índices do parasita checando o material que eles coletaram. “Estou aqui com o diagnóstico, mas o pai não quer deixar a menina tomar o remédio porque ela não está sentindo nada”, conta Eusueli Arraes Silva, de 44 anos, ou sim- plesmente Suzi, a responsável pelo local. Com 56 malárias no currículo – segun- do cálculos da própria –, pode-se dizer que ela sabe uma coisa ou outra sobre a doença. E isso só em três anos. “Mas são 56 mesmo, Suzi, não são as recaídas, não?”, questiona Cavasini ao chegarmos ao posto. Quando infectadas por Plas- modium vivax, não raramente as pesso- as experimentam episódios de recaída, mesmo quando tratadas, porque algumas formas do parasita ficam dormentes no fígado e voltam a circular no sangue um somente por técnicas moleculares mais sensíveis. O que é um problema extra, porque o governo federal só autoriza que seja fornecido o medicamento quando o diagnóstico é feito pelo modo tradicional. Mas mesmo quando o plasmódio é visí- vel ao microscópio, o indivíduo pode não se sentir mal. Era o que ocorria com uma criança enquanto estávamos no Remansinho. Ali, assim como em outros locais afetados pela doença, há um posto de notificação de malária, ligado à Secretaria de Saúde do Amazonas, com uma pessoa treinada para colher sangue da população do entorno, fazer a análise das lâminas ao microscó- pio e medicar as pessoas contaminadas. No caso do projeto, ela também serve de ponto de apoio para os pesquisadores, junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Malaria02.indd 25 19/05/2011 17:32:51 tempo depois, deixando novamente o in- divíduo doente. “São 56 porque era de 15 em 15 dias. Mas faz um ano que não pego mais malá- ria”, conta ela. Cavasini insiste: “Mas não pega ou não tem sintoma?” “Não, eu não pego, eu faço exame direto. Sinto dor de cabeça, já furo meu dedo. Deu febre, furo dedo, senão a coisa pega. Daquele jeito eu já estava querendo ir embora daqui.” Ela está no Remansinho há quatro anos, vinda de Comodoro (MT), onde morou por 30. “A gente cansa do lugar, né? Uma hora falei: vam’bora conhecer o mundo. Aí viemos parar aqui.” Ônus da terra própria O lugar atraiu muita gente justamente pela possibilidade de conseguir um pedaço de terra, mas a doença é um dos principais entraves. “Para quem quer construir as coisas, ter uma vida melhor, aqui é bom, mas tem de batalhar muito e pegar muita malária”, conta uma pálida Andreia Villis de Oliveira, de 22 anos, que acabara de ser diagnosticada por Suzi. No postinho, ela recebe as pessoas que estão se sentindo doentes e também faz o que chama de busca ativa por casos. Até aquele dia (18/4), ela já tinha diagnostica- do dez casos de malária no mês, em uma população de cerca de mil pessoas (mas somente uma parcela tinha feito o exame). A expectativa era de que com o período de seca, que estava começando, os casos aumentassem. Com a baixa das águas nos criadouros, os mosquitos se proliferam. Nas duas semanas em que estiveram lá, os cientistas examinaram quase 200 pessoas e quatro tiveram lâmina positiva para malária (P. vivax em todos os casos). Eles ainda fariam o diagnóstico molecular (para checar se passou algum parasita não visto na microscopia). “Para comparar, em nosso primeiro inquérito, há um ano, 10% das lâminas foram positivas”, diz Ferreira. “Também há um ano fizemos hemograma de todos e vimos que a prevalência de ane- mia era alta. Agora temos raros casos. É um sinal de que o pessoal está tendo me- nos malária, porque o plasmódio destrói as hemácias e causa anemia.” Depois de algumas horas de coletas e entrevistas, voltamos a Acrelândia para entregar o carro para a equipe de ento- mologia. Naquela noite e na próxima, eles foram também ao Remansinho pegar os mosquitos de lá. Como era de se esperar, a abundância ali foi bem mais alta. So- mente Ribolla pegou mais de 60 do lado de fora da casa de Suzi na primeira noite. Os dados parasitológicos e entomoló- gicos podem juntos ajudar a entender melhor como se dá o desenvolvimento e a evolução da doença na população. Os pesquisadores da área de saúde suspei- tam, por exemplo, que a imunidade po- de estar relacionada com algumas cepas específicas do plasmódio. “Esperamos ver neste trabalho que isso esteja relacionado a variedades também diferentes de mosquito. Se comprovarmos, talvez a gente consiga usar o inseto como um indicador de qual cepa do parasita está circulando”, afirma Ribolla. “Mosquitos novos que entrem na região podem tra- zer parasitas novos, assim como pessoas novas que chegam ao local podem iniciar uma nova transmissão. No fim está tudo relacionado”, diz. Soneca também vai investigar os cria- douros de cada localidade – ou seja, os possíveis locais onde a fêmea vai colocar os ovos. Se tem criadouro, pode ter mos- quito, então pode ocorrer transmissão de malária. Ele vai se concentrar em três pontos no Remansinho e um no Granada, no entorno da casa de Darildo. Em volta de cada ponto, vai traçar um raio de mais Saber os horários de maior abundância dos mosquitos é importante para orientar as políticas de controle do vetor, como o uso de mosquiteiros impregnados com inseticida; eles se tornam pouco efetivos se o pico ocorre quando as pessoas estão acordadas 12 HORAS COM MOSQUITOS Nas coletas prolongadas, os pesquisadores se revezam entre o trabalho e um cochilo; na rede, mosquiteiro funciona para evitar os insetos do meio da madrugada PERIDOMICILIAR Enquanto Ribolla fica sentado do lado de fora da casa... unespciência .:. junho de 201126 saúde UC_20_Malaria02.indd 26 19/05/2011 17:33:13 ou menos 1 km e analisar todos os cria- douros nesses pontos, para depois tentar correlacionar isso com a abundância de mosquitos e a diversidade de espécies, para saber como está a estrutura popula- cional desses mosquitos. Mosquiteiros em xeque Voltamos à casa de Darildo na quarta noite para a parte mais exaustiva da pesquisa: uma coleta de 12 horas. Apesar de nor- malmente o Anopheles darlingi estar mais associado ao anoitecer, sabe-se que depen- dendo da cepa e da época do ano, além de outras espécies que podem estar em atividade, pode haver picos à meia noite, no meio da madrugada ou ao amanhecer. Com a investigação de longo prazo, vai ser possível conhecer melhor esse movi- mento e saber quais são os horários em que as pessoas estão mais vulneráveis. Para isso, o trabalho de captura é feito dentro e fora da casa e contabilizado por hora. Antes do trabalho, a equipe já empi- lha 24 potinhos, onde os mosquitos serão acondicionados, devidamente etiquetados (I1, P1; I2, P2, etc., sendo I para interdo- miciliar e P, peridomiciliar). Os dados são importantes para, por exemplo, orientar as políticas públicas de controle do vetor. Um dos métodos que mais vêm sendo indicados é o uso de mosquiteiros impregnados com inseticida. Recentemente, inclusive, vários deles foram comprados com financiamento do Fundo Global de Luta contra Aids, Tuberculose e Malária. O método é bastante eficaz na África, mas lá o mosquito é diferente e bem mais noturno, pica as pessoas enquanto elas estão dormindo. “É uma medida interessante também porque mata seletivamente os mosqui- tos que penetram na casa e são aqueles que em última instância vão transmitir a malária, não é só jogar inseticida. Mas no Brasil é diferente. As pessoas não estão dormindo debaixo do mosquiteiro às sete da noite, principalmente onde tem luz elé- trica. Claro que mesmo se remover parte do risco já é alguma coisa, mas o medo é que o mosquiteiro cause uma falsa noção de proteção”, afirma Ferreira. Para responder a essas dúvidas, a equipe de Ribolla vai investigar, além da densidade do mosquito por hora, quantos estão com o parasita. “Se percebermos que, apesar de haver poucos durante a noite, eles es- tão infectados, o mosquiteiro faz sentido”, explica. “Mas se o mosquito só estiver pi- cando às 18 h, 19 h, 20 h, e as pessoas não estiverem na cama, não adianta.” Mais uma vez a postos, a turma vai se revezando (alguns dormem enquanto ou- tros coletam) para pegar os mosquitos. A atividade acaba mobilizando a família e Darildo e as crianças acham graça da situa- ção dos pesquisadores de perna de fora. “Mais do que na perna assim, eles gostam é de quem está com meia preta, porque se escondem. Mas eu nunca fico de short aqui, tô sempre de calça, porque eu te- nho pavor de ficar dando tapa na perna. Não gosto de dar tapa em carapanã não.” As reações, após tantos dias e horas, são engraçadas. Ribolla, na quinta hora de coleta, das 22 h às 23 h, dá sinais de cansaço: “Chega uma hora que começo a não sentir mais as picadas, tem de ficar olhando mais para ver se tem alguma coi- sa. Outras horas, eu sinto uma ‘picada fan- tasma’. Tenho certeza de que estou sendo picado, mas quando vou olhar, não tem nada”. O resultado final, porém, valeu a pena: 291 mosquitos em 12 horas – 190 fora da casa e 101 dentro. No dia seguinte eles encarariam ainda mais uma coleta prolongada, dessa vez no Remansinho, na casa de Manoel Ado- nai Mendes de Araujo, e Ribolla teria de enfrentar uma difícil pergunta: “Puxa, faz 15 anos que você trabalha com isso e até agora nada?”. “É, tenho de reconhecer que até agora não temos uma cura”, admitiu o pesquisador depois. “Mas nossa expectativa é diminuir o im- pacto. Aos poucos, conhecendo melhor a doença, a transmissão, o vetor, chegaremos a novas estratégias. Acho muito compli- cado pensar em erradicar ou curar, não que não tenha que ser uma meta a longo prazo. Por agora é ir entendendo melhor para conseguir diminuir aos poucos.” ANOFELINOS POR HORA Potinhos preparados para receber os mosquitos capturados a cada hora fora e dentro da casa; na coleta feita no Granada, 291 foram pegos INTRADOMICILIAR ...Aline fica dentro; método mostra quantos anofelinos chegam aos moradores Fo to s G ui lh er m e G om es junho de 2011 .:. unespciência 27 UC_20_Malaria02.indd 27 19/05/2011 17:33:33 unespciência .:. junho de 201128 geologia UC_20_Malvinas03.indd 28 23/05/2011 17:02:16 Cl au di o R ic co m in i junho de 2011 .:. unespciência A diversidade geológica das ilhas Falkland, que intrigou até Darwin, está na mira de diversas pesquisas empreendidas por geólogos brasileiros A ilha misteriosa A final, são ilhas Falkland ou ilhas Malvinas? Usar um nome ou outro parece implicar em optar entre ingleses e argentinos, os dois povos que, desde o século 19, disputam a soberania do pequeno arquipélago, situado nos confins austrais do Atlântico. Mas, discretamente, a ciência brasileira está descobrindo uma maneira de contornar a disputa política – embora use o nome em inglês para se referir às ilhas – e inserir-se numa fasci- nante aventura de investigação geológica que independe de nacionalidade e cujo princípio está ligado a ninguém menos do que Charles Darwin (1809-1882). O britânico aportou por lá em 1833 (ano em que o Reino Unido ocupou o ar- quipélago), durante a viagem a bordo do Beagle. É importante lembrar que a for- mação de Darwin não era em biologia, tal como hoje a conhecemos, mas sim numa área conhecida como história na- tural, que incluía também a geologia. E no começo de sua viagem, seu interesse geológico estava bastante evidenciado. Darwin percorreu algumas trilhas nas ilhas principais e ficou intrigado com duas coisas que encontrou por lá. A primeira foram as stone runs (que os brasileiros chamam de ‘rios de pedras’), aglomerados de rochas do tipo quartzito com quilômetros de extensão, que se es- palham pelos campos do interior. A outra foi a rica diversidade de fósseis. Alguns espécimes coletados por ele estão até hoje no Museu de História Natural britânico. Pablo Nogueira UC_20_Malvinas03.indd 29 23/05/2011 17:02:17 F ot os : C ar lo s G ro hm an n “Todo o aspecto das ilhas Falkland se transformou a meus olhos [...] pois encon- trei uma rocha com conchas abundantes, e estas eram de uma idade interessan- tíssima”, registrou em seu diário. Quase 180 anos depois, tanto os fósseis quanto as stone runs ainda intrigam a ciência e estão começando a ser investigados pelos geólogos brasileiros. Os fósseis já haviam chamado a atenção de outro importante cientista, o geólogo americano John Clarke (1857-1925). Em 1913, ele foi o primeiro a descrever fós- seis do período Devoniano (cerca de 400 milhões de anos atrás) encontrados ali. Clarke também andou pelo Brasil, onde igualmente desempenhou um papel pio- neiro ao relatar a existência de fósseis semelhantes aos vistos nas Falkland. Os vestígios desses animais – principalmente invertebrados marinhos, como braqueó- podes, trilobitas, moluscos etc. – foram encontrados ao norte do Paraná, perto da fronteira com São Paulo. Fósseis parecidos foram achados por outros pesquisadores também na Bolívia, no Uruguai, em Gana e na Nova Zelândia. A semelhança da fauna pré-histórica de- voniana desses lugares não é coincidên- cia. No passado, todos estavam reunidos num supercontinente, a Gondwana, que foi desfeito pela deriva continental. Na- quela época, as massas de terra que hoje formam as ilhas eram parte do atual su- deste da África do Sul, um pouco abaixo de onde se ergue Durban (veja quadro na pág. 32). A região do Brasil conhecida atualmente como bacia sedimentar do Paraná era parte do fundo de um grande mar interior de Gondwana, mais vasto do que o Mar Negro. A possibilidade de estudar os fósseis das Falkland foi um dos elementos que atraíram o paleontólogo Marcelo Guima- rães Simões, professor do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu. Há quase duas déca- das ele se dedica a investigar a paleofau- na devoniana do Paraná, e seu trabalho deu origem a toda uma linha de pesquisa nesta área. Simões também é professor convidado da pós-graduação do Instituto de Geociências da USP (IGc). HABITANTES DE GONDWANA Simões encontrou grande quantidade de fósseis do Permiano e do Devoniano. Mais de 200 não puderam ser trazidos, devido à limitação de bagagem IMORTALIZADO Vista aérea das grandes Inscrições em solo criadas para homenagear navios de pesquisa que atracaram nas ilhas. O HSM Beagle trazia a bordo o jovem Darwin unespciência .:. junho de 201130 geologia UC_20_Malvinas03.indd 30 23/05/2011 17:02:41 Geólogos debatem se o Mar de Eurydesma, uma grande massa de água que se estendia por Austrália, Argentina e África do Sul, também chegava às Falkland; descoberta de brasileiro sugere, porém, que na época as ilhas estavam cobertas por lagos Desta colaboração surgiu a possibilidade de acompanhar Claudio Riccomini, que é professor do instituto e desde 2007 tem feito visitas prospectivas às Falkland, em uma expedição em abril passado. O gru- po era completado por Carlos Grohmann, professor do IGc, e por Lucas Warren, Fernanda Qualio e Marlei Chamani, es- tudantes de pós-graduação do instituto. Ecologia paleontológica Entre os animais que Simões estuda, des- tacam-se os trilobitas da família dos ho- malonatídeos. Eles chamavam a atenção por seu tamanho, que chegava aos 20 cm de comprimento – o mais comum era em torno de 10 cm. Viviam semienterrados na lama e na areia do fundo dos mares e, à medida que se deslocavam, revolviam o sedimento, levantando a matéria orgâ- nica ali depositada para se alimentarem. Diferentemente de outros trilobitas, que podiam sobreviver em diferentes profundi- dades, os homalonatídeos habitavam águas muito rasas, bem perto da lâmina d´água. Nas Falkland, Simões encontrou fós- seis desses animais em duas localidades, Many Branch e Saddle Quarry, nenhuma das quais havia sido pesquisada anterior- mente. Os espécimes coletados da espé- cie Burmeisteria herscheli, já encontrada tanto no Brasil como na África do Sul, estavam em excelente estado de conser- vação. Mas o foco do paleontólogo não é a identificação de novas espécies. Seu interesse situa-se na paleoecologia, isto é, a compreensão de como era o ecossis- tema em que aqueles animais existiram. “Os fósseis dos homalonatídeos que temos no Brasil foram deslocados para águas mais profundas antes que a fos- silização ocorresse. O ótimo estado de preservação dos espécimes que encon- tramos nas Falkland mostra que foram preservados exatamente onde viviam. Isso nos dá uma perspectiva de como eram as águas rasas dos mares devonianos, algo que ainda não tínhamos visto”, explica Simões. Segundo o paleontólogo, isso demonstra a existência de ligações entre os mares interiores do supercontinente durante aquele período. Uma paisagem, talvez, semelhante à que existe hoje entre os Mares Negro e Cáspio. Outra descoberta feita por Simões pode ajudar no esforço de recompor a Gondwa- na de 250 milhões de anos, uma espécie de super quebra-cabeça da paisagem que usa como peças os continentes de hoje. O trabalho diz respeito a um período geo- lógico posterior, o Permiano, e envolve um debate científico que já dura quase uma década. Sabe-se que, naquela época, Gondwa- na estava saindo de uma glaciação, que levou à criação de um vasto mar interior, batizado de Eurydesma. O nome deriva de um grupo de vertebrados, a fauna de Eurydesma, cujos restos fossilizados foram encontrados na Austrália, na Argentina e na África do Sul. Este mar alagou as regiões que hoje são conhecidas como Bacia de Sauce Grande, na Argentina, e Kalahari-Karoo, na Na- míbia e na África do Sul. Uma vez que, na época, as Falkland eram parte inte- grante do sul da África, alguns autores sugeriram que espécimes da fauna de Eurydesma povoaram também a ilha e predisseram que seus fósseis seriam en- contrados por lá. Tal descoberta, porém, nunca fora feita. Em 2002, três pesqui- sadores britânicos publicaram um arti- go contestando a ideia, ao afirmar que a análise das rochas não fornecia qualquer evidência de que a ilha estivesse coberta pelo mar naquele período. Simões se viu diante da possibilidade de procurar por exemplares dessa fauna e, as- sim, reforçar algum dos lados da polêmica. Um pesquisador do serviço britânico de geologia deu à equipe de brasileiros uma dica de onde, eventualmente, poderiam ser encontrados fósseis de moluscos bi- valves que viveram no Permiano. O lugar, AMBIENTE SAUDÁVEL PARA ROCHAS O frio e a ausência de vegetação preservam as rochas das ilhas e facilitam a visualização de dobras como esta, possibilidade menos comum no Brasil junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Malvinas03.indd 31 23/05/2011 17:02:47 Um pedacinho da África Há 300 milhões de anos, as zonas de terra firme que hoje conhecemos como os continentes da América do Sul, África e Antártida, além da Austrália e da Índia, estavam reunidas numa única formação. Este supercontinente era chamado de Gondwana Por volta de 200 milhões de anos atrás, Gondwana começou a se romper. América do Sul, África e Antártida se separaram, surgindo o Atlântico Sul. Vários pequenos fragmentos continentais foram envolvidos na movimentação das grandes massas de terra. Um fragmento desprendeu-se da África do Sul, um pouco ao sul de onde se situa hoje a cidade de Durban, na costa do Índico. Em sua trajetória, ele rodopiou, alterando sua orientação original. Outro fragmento, desprendido de uma região próxima, incorporou-se à Antártida. HILL COVE Esta região possui, além de fósseis do período Devoniano, blocos de calcário oriundos da Antártida Parque de diversões geológico Várias ocorrências estão atraindo a atenção dos pesquisadores brasileiros nas Falkland PONEY PASS Vestígios de praia encontrados a 40 m de altura podem ter sido gerados por tsunami há 9 mil anos MANY BRANCH Fósseis de trilobitas são sinal de interconexão entre mares interiores de Gondwana, durante o período Devoniano RORY´S CREEK Ilhas não foram parte do Mar de Eurydesma durante o Permiano, sugerem os fósseis de animais de água doce descobertos aqui ESTRADA PORT STANLEY – MOUNT PLEASANT Um dos muitos pontos onde se observam os ‘rios de pedras’ E ri ka O no de ra unespciência .:. junho de 201132 geologia UC_20_Malvinas03.indd 32 23/05/2011 17:02:49 F ot os : C ar lo s G ro hm an n na baía de Choiseul, era de difícil aces- so. Mas Simões, com Fernanda Quaglio e Lucas Warren, conseguiram chegar lá e passaram uma tarde analisando o solo. Encontraram seis fósseis de moluscos bivalves, alguns bem preservados, além de diversos fósseis menores e os vestígios de uma folha de Glossopteris, um vegetal que vivia em terra firme. Os bivalves são espécies ainda desconhecidas dos gêneros Carbonicola, Paleoanodonta e Anthraco- naia, e são todos de água doce. A desco- berta coincide com a interpretação feita pelos três pesquisadores ingleses com base nas rochas. “E quando as rochas e os fósseis contam uma mesma história, esta tende a ser a versão correta”, diz Simões. Também aqui, ele usa parte da fauna para reconstruir a paisagem pré-histórica. “Sabemos que esses bivalves viviam en- terrados no fundo, e sua presença é um indicador de água pouco oxigenada e ri- ca em matéria orgânica.” Em vez de um mar de água salgada, ele visualiza uma paisagem de grandes lagos de água doce dominando aquele pedaço de Gondwana de 250 milhões de anos atrás. “Já sabía- mos que existiam lagos onde hoje ficam a Austrália, a África do Sul e o Brasil. Agora parece que o mesmo acontecia nas Falkland”, afirma o pesquisador. Carlos Grohmann, Claudio Riccomini e Marlei Chamani aproveitaram a via- gem às ilhas para começar a pesquisar as stone runs mencionadas por Darwin. O naturalista anotou em seu diário que “em muitas partes da ilha, os fundos dos vales estão cobertos, de uma maneira extraordinária, por miríades de grandes fragmentos de quartzo de rocha, formando ‘correntes de pedras’ (‘streams of stones’, no original) [...]. Elas não estão dispostas em pilhas irregulares, mas espalham-se como grandes correntes”. A forma como as rochas estão dispos- tas – formando caminhos bem definidos, que vão do topo de montanhas até o fun- do de vales e são visíveis a quilômetros de distância – é um dos fatores que ainda intrigam os pesquisadores. Outra caracte- rística interessante é o fato de os maiores fragmentos de rocha estarem na parte superior dos depósitos, e os menores, na parte de baixo. Este é um fenômeno co- nhecido como “efeito castanha-do-pará”, diz Chamani, e é característico de proces- sos onde os objetos envolvidos, apesar de serem sólidos, se comportam como se fossem fluidos. Os pesquisadores do Serviço Britânico de Geologia acreditam já ter desvendado o mecanismo de formação dos tais “rios de pedra” – teoria da qual os pesquisadores brasileiros discordam. Segundo os ingleses, eles teriam iniciado sua formação há 15 mil anos, quando a Terra passava por uma glaciação. Naquela época, havia glaciares nos pontos mais elevados do terreno, e o solo das Falkland ficou congelado, assim como as rochas, a lama e a areia que co- briam o chão. Variações de temperatura ocasionais promoviam um derretimento da parte superior do solo congelado, que, posteriormente, tornava a congelar. Um dos efeitos da repetição desse ci- clo de derretimento e congelamento te- ria sido a fragmentação do quartzito em grandes blocos de rochas, enquanto ou- tras, menos duras, teriam sido esmiga- RIOS DE PEDRA Vista aérea das grandes aglomerações que impressionaram Darwin. Modelagem 3 D em computador vai ajudar a explicar distribuição dos depósitos de rocha EFEITO CASTANHA-DO-PARÁ Os fragmentos maiores de rocha ficam na parte de cima dos depósitos Cientistas ingleses acreditam que a origem dos ‘rios de pedra’ está na ação dos glaciares que cobriram a ilha na última era do gelo. Mas brasileiros sugerem que um terremoto pode ter dispersado as rochas, gerando uma espécie de cascata sólida junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Malvinas03.indd 33 23/05/2011 17:03:02 de forma mais precisa”, diz. Chamani e Riccomini elaboraram ainda uma segunda hipótese para a origem das correntes de pedras. Chamani diz que os ciclos de congelamento e descongelamen- to podem ter desempenhado um papel ao fragmentar as serras compostas de quart- zito. Mas, posteriormente, outro aconteci- mento teria espalhado o material encosta abaixo. “As stone runs não parecem ter surgido de forma gradual, mas sim a partir do que em geologia se chama de evento extremo, como um terremoto”, explica. Este terremoto, acredita ele, teria arre- messado o quartzito já previamente frag- mentado num processo conhecido como avalanche “seca”. Em vez de um desliza- lhadas completamente, virando areia e solo. Gradualmente, esse material teria despencado pelas encostas, originando as estruturas que se veem hoje. Especialista em modelos de relevo, Gro- hman refuta essa explicação ao lembrar que a interferência de glaciares deixou em outras partes do planeta marcas bem características na paisagem, mas que não são vistas nas Falkland. Um exemplo são vales em formato de “U”, que podem ser encontrados nos países nórdicos e são os vestígios da presença de uma grande massa de gelo no passado. “Se houve uma glaciação na ilha, foi muito antes e houve tempo suficiente para que a erosão aca- basse com aquela paisagem característica. Se as stone runs tivessem se formado na época, a erosão as teria afetado também.” Grohmann pretende dar um salto tec- nológico no estudo do tema. Seu projeto é usar fotos de satélite para mapear todas as ocorrências de stone runs na ilha e desenvolver modelos tridimensionais do relevo no computador para tentar enten- der melhor sua distribuição. “Em certos lugares, parece que as rochas contorna- ram os obstáculos e depois seguiram em direção ao vale. E vistos de cima, eles parecem ter alguma orientação. Mas isso é algo que a tecnologia pode determinar mento com materiais fluidos, como neve e lama, na avalanche “seca” precipitam-se apenas elementos sólidos, as próprias ro- chas da encosta. Neste modelo, as rochas se comportariam como um estado inter- mediário entre um fluido e um sólido, o que explicaria o efeito castanha-do-pará. “É como se fosse formada uma cascata de rocha, ao invés de uma cascata de água”, diz Chamani. Tsunami em pleno Atlântico Sul Uma terceira linha de pesquisa iniciada pelo trio de pesquisadores nesta viagem pode também ajudar a repensar algumas ideias sobre o Atlântico Sul. Eles visita- ram uma região nos arredores de uma pequena baía ao sul da capital da ilha, Port Stanley. Lá, a uma altitude de 40 m acima do nível do mar, os três analisaram um depósito de sedimentos que, original- mente, estavam no fundo do mar. O fenô- meno, conhecido como “praia suspensa”, já foi notado por geólogos ingleses, que acreditaram tratar-se de evidência de que houve uma atividade tectônica rápida no passado, responsável por elevar a antiga zona próxima da costa. Riccomini, Chamani e Grohmann de- fendem outra interpretação. “Uma onda gigantesca, causada por um tsunami, po- DEPOIS DA GRANDE ONDA Riccomini (à esq.) coletou amostras de três camadas de sedimentos: uma mais profunda, amarronzada, uma intermediária e outra de turfa, mais escura (dir.). Hipótese é de que a camada do meio, hoje 40 m acima do nível do mar, tenha sido elevada por tsunami Comunidade científica ainda discorda quanto à possibilidade de que tsunamis ocorram também no Atlântico Sul. Mas geólogos franceses trabalhando nas Falkland já fizeram descobertas semelhantes às dos brasileiros unespciência .:. junho de 201134 geologia UC_20_Malvinas03.indd 34 23/05/2011 17:03:16 deria ter retirado o material do fundo do mar e depositado a essa altura”, explica. Ele coletou amostras do solo imediata- mente abaixo e imediatamente acima dos sedimentos de fundo do mar e enviou para datação. Os resultados obtidos foram de aproximadamente 9 mil e 2 mil anos, respectivamente. Apesar de plausível, ele reconhece que se trata de uma hipótese polêmica. “Não se acredita que ocorram tsunamis no Atlântico Sul”, explica. Coincidentemente, em 2008, uma equi- pe de geólogos franceses trabalhando em outra região das Falkland anunciou ter encontrado os vestígios de uma praia suspensa, 10 m acima do nível do mar. Foram os primeiros a sugerir a possibili- dade de que um tsunami tivesse ocorrido no passado. “Mas outras possibilidades, como uma tempestade, poderiam expli- car o que viram”, afirma Riccomini. “Já a praia a 40 m de altitude que encontra- mos não poderia ter surgido desta forma.” Vários fenômenos poderiam ter gerado um tsunami na região. Sabe-se que even- tos como a queda de um grande meteoro ou o desabamento de um pedaço da costa no mar podem gerar ondas com centenas de metros de altura. Outra possibilidade, porém, é a ocorrência de terremotos sub- marinos causados pelo atrito entre placas continentais, a exemplo do tsunami que atingiu o Chile em 2010. A sudeste das Falkland, já nas proxi- midades da Antártida, fica outro grupo de ilhas, conhecidas como Sandwich do Sul. Perto delas fica a fossa das Sandwi- ch, ponto de encontro de três placas con- tinentais, a da Antártida, a da América do Sul e outra conhecida como Scotia. O atrito entre elas costuma promover sismos submarinos, e pelo menos um de baixa magnitude já ocorreu neste ano. De 1900 para cá há registros de vários eventos de magnitude 7 e um de grau 8. “A baía que fica próxima à praia suspensa que estudamos está voltada diretamente para essa região de encontro das placas. Um tsunami poderia ir de um ponto a outro sem obstáculos”, diz Riccomini. A riqueza de investigações deslancha- das nesta última temporada pode suge- rir que a pesquisa geológica nas ilhas Falkland envolva poucas dificuldades, mas esta impressão é falsa. O trajeto por avião é feito via Chile e pode levar 36 ho- ras a partir de São Paulo. Todo visitante deve obrigatoriamente fazer um seguro de vida que cubra um resgate aéreo de emergência até Santiago, procedimento estimado em US$ 75 mil. A ilha dispõe de pouquíssimas estradas, de modo que a maior parte dos desloca- mentos envolve cruzar campos abertos e só é feita por veículos off road. O clima da região não é muito favorável à vegeta- ção – nas ilhas praticamente não existem árvores, o que permite que correntes de ar circulem livremente, piorando a sen- sação do frio intenso. E ainda hoje 117 campos minados permanecem intocados, lembrança do conflito de 1982. Para quem é geólogo, porém, a contabi- lidade de aspectos positivos é ainda maior. “Como vivemos em solo tropical, as rochas são muito alteradas pelo intemperismo. É difícil enxergar no Brasil a rocha sã”, diz Grohman. “Lá, como o clima é tempera- do e não tem vegetação, você pode ver a rocha exposta, é uma beleza.” “Trabalhei na África do Sul, que ainda é uma região com problemas para a ação do geólogo. Nas Falkland pode-se andar tranquilamente para todos os lados, não tem perigo de assalto e os moradores nos tratam bem”, conta Riccomini. “A maioria dos assuntos com que nos deparamos por lá tem alguma familiaridade para nós, pois a ilha era parte de Gondwana. Mas você observa coisas que não podem ser vistas no Brasil. Isso é muito emocionan- te”, complementa Simões. “A ilha é um grande parque de diversões geológico.” OUTRA HISTÓRIA DAS FALKLAND Minas e escombros da guerra de 1982 também compõem paisagem da ilha CAMINHOS ACIDENTADOS Devido à ausência quase absoluta de estradas nas ilhas, a maior parte dos deslocamentos dos pesquisadores é feita em veículos do tipo off-road F ot os : C ar lo s G ro hm an n junho de 2011 .:. unespciência 35 UC_20_Malvinas03.indd 35 23/05/2011 17:03:32 estudo de campo unespciência .:. junho de 201136 Perereca-carara na Serra do Japi: uma das espécies ameaçadas pelas mudanças climáticas UC_20_Estudo01.indd 36 19/05/2011 17:39:56 Q ue os sapos estão entre os animais que mais podem sofrer com o aquecimento global é um assunto que já há tempos aflige os biólogos, mas um grupo específico deles está realmente na berlinda. São aqueles que vivem nas chamadas florestas nebulares, cerca de 1.200 metros acima do nível do mar, e podem ser afetados duplamente – em decorrência do aumento da temperatura e da diminuição da umidade. A fim de avaliar essa vulnerabilidade, um grupo de pesquisadores vem unindo esforços, dentro de um projeto temático da Fapesp, para descrever o maior número possível de espécies que vivem nessas condições e tentar entender o efeito que a altitude tem sobre a diversidade de an- fíbios. A expectativa é que, com esses da- dos, seja possível identificar áreas em que há maior diversidade e focar os esforços de conservação nelas. Sapo nas alturas Pesquisadores de Rio Claro procuram desvendar os segredos de duas espécies de anfíbios que vivem na Serra do Japi, em florestas nebulares, um dos ambientes mais ameçados pelo aquecimento global Por ocuparem tanto a terra quanto a água, os sapos são considerados importantes in- dicadores da qualidade ambiental de um lugar. “A pele deles é muito permeável, por isso estão sujeitos a infecções por fungos”, explica Célio Haddad, do Instituto de Bio- ciências da Unesp em Rio Claro e um dos coordenadores do projeto. Um dos mais perigosos é o fungo quitrídio. Espalhado por praticamente todo o planeta, já dizi- mou espécies inteiras em outros países. No Brasil, a praga foi detectada em vários girinos e adultos, mas muitos permanecem vivos e se reproduzindo após a infecção. Suspeita-se que, por aqui, a ação do fungo seja menos letal. “Não se vê um grande número de animais mortos, como acon- tece em outros países”, diz Haddad. “Mas assim como ele pode ser menos mortífero aqui, já pode ter devastado populações inteiras em épocas em que havia menos pesquisas”, complementa.Cr is tia no B ur m es te r André Julião junho de 2011 .:. unespciência UC_20_Estudo01.indd 37 19/05/2011 17:39:57 Fo to s: C ri st ia no B ur m es te r O projeto temático começou em 2009 e deve ir até 2014. Além dos brasileiros, pesquisadores dos EUA, da Alemanha e da Argentina estão envolvidos. No Bra- sil, todas as regiões, exceto o Norte, es- tão cobertas pelas pesquisas. Mas com a possível inclusão da Serra dos Carajás, no Pará, e da Serra do Divisor, na fronteira do Acre com o Peru, logo todo o território nacional estará coberto. O canto da rã diurna Um dos focos do estudo é a Serra do Japi, localizada a cerca de 60 km de São Paulo, entre os municípios de Jundiaí, Cabreú- va, Bom Jesus de Pirapora e Cajamar. No local, dois mestrandos em Zoologia da Unesp em Rio Claro, Fábio Perin de Sá e Danilo Barêa Delgado, investigam duas espécies quase desconhecidas da comunidade científica. Acompanhamos um pouco do trabalho, que envolve taxo- nomia e