UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Câmpus de Araraquara – SP ALEX RICARDO BOMBARDA O PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E A PROMOÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL ARARAQUARA – S.P. 2015 ALEX RICARDO BOMBARDA O PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E A PROMOÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Estado, Sociedade e Políticas Públicas Orientadora: Profª Dra. Carla Gandini Giani Martelli Bolsa: CNPQ ARARAQUARA – S.P. 2015 ALEX RICARDO BOMBARDA O PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E A PROMOÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL Trabalho de Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Estado, Sociedade e Políticas Públicas Orientadora: Profª Drª Carla Gandini Giani Martelli Bolsa: CNPQ Data da defesa: 22/05/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________ Presidente e Orientadora: Profª Drº Carla Gandini Giani Martelli UNESP FCL/ Araraquara ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Profº Drº Marcelo Santos UNESP FCL/ Araraquara ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Profº Drº Marcelo Fetz de Almeida UNICAMP/Campinas Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedico este trabalho aos meus amigos, pelas conversas e sugestões, e à minha mãe, por estar sempre presente. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço à Unesp, campus de Araraquara, e ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, pelo apoio no desenvolvimento desta pesquisa. Meus especiais agradecimentos à profª Carla Gandini Giani Martelli que, graças ao seu empenho, apoio, competência e paciência ao longo do processo de orientação, tornaram este trabalho possível. Agradeço aos professores responsáveis pelas disciplinas que cursei: Lucila Scavone, Marcelo Santos, Maria Orlanda Pinassi, Milton Lauerta, José Antônio Segatto, Darlene Ap. de Oliveira Ferreira, Angelo Del Vecchio e Maria Ap. Chaves Jardim que, partindo de diferentes perspectivas teóricas, contribuíram e possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço enormemente aos meus pais, Maria Peres Belucci e José S. Bombarda, pela incondicional ajuda nos mais diversos momentos. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo auxílio financeiro. Agradeço a Deus. “Existem dois tipos de políticos: os que lutam pela consolidação da distância entre governantes e governados e os que lutam pela superação dessa distância.” Antonio Gramsci http://kdfrases.com/autor/antonio-gramsci http://kdfrases.com/frase/120284 http://kdfrases.com/frase/120284 http://kdfrases.com/frase/120284 RESUMO O objetivo deste trabalho é discorrer acerca do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) analisando, além da sua importância para a promoção dos direitos humanos no Brasil, as proposições e medidas, presentes no PNDH-3, que conseguiram ser implementadas. Esta pesquisa parte da hipótese de que o tema dos direitos humanos não é prioritário para parte dos congressistas, o que será mostrado por meio do posicionamento de alguns deles sobre temas referentes aos direitos humanos. Além de sua efetividade, será verificado o modo como interesses particulares se sobrepõem aos coletivos, desfigurando princípios democráticos presentes na Constituição de 1988. O estudo do Programa Nacional de Direitos Humanos justifica-se na medida em que permitirá refletir sobre o contexto de construção dos direitos humanos no Brasil, contribuindo para os estudos da formação da cidadania brasileira. Quanto à metodologia, este trabalho trará, primeiramente, uma pesquisa bibliográfica sobre a temática em pauta com o objetivo de resgatar o contexto histórico que possibilitou o debate em torno da questão dos direitos humanos e da justiça no Brasil. Em segundo lugar, outras fontes serão utilizadas para ampliar o entendimento sobre esse debate. Por esse viés, serão considerados os acervos de dois jornais: O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, disponibilizados nos sites http://acervo.estadao.com.br/ e http://acervo.folha.com.br/. Utilizou-se do recurso da palavra-chave – PNDH – para busca de arquivos. O período que corresponde à busca é de 01/01/1995 até 30/05/2014. O objetivo deste recorte temporal está relacionado à necessidade de buscar apreender todos os artigos e reportagens publicados um ano antes da primeira edição do PNDH até o período mais recente, para acompanhamento das medidas dos programas que foram implementadas. Além dos jornais também será utilizado, para verificar as propostas do programa que foram implementadas, o site da SDH (Secretaria de Direitos Humanos), http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal, que mantém um observatório, trazendo informações sobre a execução das ações programáticas previstas no PNDH-3 Palavras-chave: Cidadania. Democracia. Direitos Humanos. PNDH-3. http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal http://acervo.folha.com.br/ http://acervo.estadao.com.br/ ABSTRACT The objective of this work will be discuss about the “Programa Nacional de Direitos Humanos” (PNDH) analyzing, besides your importance for the promotion of human rights in Brazil, the propositions and measures, contained in PNDH-3, that it can be implemented. This research starts from the hypothesis that the issue of human rights is not a priority for most of the congressman. We will seek to show that set up the context of intense dispute. Besides your effectiveness, also will be verified the way how the particular interests overlaps in the collective order, by defacing the democratic principles present in the constitution of 1988. The study of “Programa Nacional de Direitos Humanos” is justified according as will allow to reflect about the context of the construct of human rights in Brazil, contributing for the studies of the formation of Brazilian citizenship. How about of the methodology, this project will bring, firstly, a bibliographical research about the thematic referred with the objective redeem the historical contexts that enabled the debate about the issue of the human rights in Brazil. Secondly, others source will be used for widen the understanding about the discussion that makes about of the human rights issues and justice in Brazil. By this bias, it will be considered the two newspaper´s archive: O Estado de São Paulo and the Folha de São Paulo, made available on sites http://acervo.estadao.com.br/ and http://acervo.folha.com.br/. We used the keyword resource- PNDH, in this research- for the search files. The period that matches to the search is from 01/01/1995 until 05/30/2014. The purpose of this temporal cut is associated to the need seek get all the newspaper article and news reports published one year before of the first PNDH edition until the most recent period, for monitoring the measures of the programs that have been implemented. Besides the newspaper, it will be used too, to check the program proposals that were implemented, the site SDH ( Human Rights Secretary, in the portuguese abbreviation), http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal, that keep a observatory, bringing informations about the execution of the programmatic actions provided on PNDH-3. Keywords: Citizenship. Democracy. Human Rights. PNDH-3. http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal http://acervo.folha.com.br/ http://acervo.estadao.com.br/ LISTA DE TABELAS Tabela 1 Ações programáticas iniciadas ou concluídas. 167 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MCidades Ministério das Cidades MD Ministério da Defesa MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fomentar ME Ministério do Esporte MEC Ministério da Educação MinC Ministério da Culturais MJ Ministério da Justiça MMA Ministério do Meio Ambiente SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial MPA Ministério da Pesa e Aquicultura MPS Ministério da Presidência Social MRE Ministério das Relações Exteriores MS Ministério da Saúde MTE Ministério do Trabalho e Emprego Mtur Ministério do Turismo PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento SG Secretaria Geral SPM Secretaria de Políticas para Mulheres SRI Secretaria das Relações Institucionais SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 1 2 OS DIREITOS HUMANOS: BREVE CONSIDERAÇÃO HISTÓRICA E TEMÁTICA 7 2.1 A I Conferência Mundial de Direitos Humanos 8 2.2 A II Conferência Mundial de Direitos Humanos 12 2.3 O universalismo e o relativismo cultural 14 2.4 O conceito de justiça em John Rawls 23 2.5 Boaventura de Sousa Santos e a concepção multicultural dos direitos humanos 32 2.6 A promoção dos direitos humanos no Brasil 36 2.7 A ditadura militar de 1964 42 2.8 A Constituição Cidadã 46 2.9 Direitos universais e a promoção do PNDH no Brasil 49 3. OS PROGRAMAS NACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: TEMAS EM DISPUTA 52 3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos 1 (PNDH-1) 53 3.2 O Programa Nacional de Direitos Humanos 2 (PNDH-2) 62 3.3 O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) 69 3.3.1 O PNDH-3 e o significado de direitos humanos 72 3.3.2 O PNDH-3 e a questão da democracia direta 80 3.3.3 O PNDH-3 e a Comissão da Verdade 87 3.3.4 O PNDH-3 e a questão da imprensa 100 3.3.5 O PNDH-3 e o conflito com a Igreja 105 3.3.6 O PNDH-3 e a questão dos conflitos rurais e urbanos 114 3.3.7 O PNDH 3 e outros temas 131 4. OS PROGRAMAS QUE SE TRANSFORMARAM EM LEI 139 4.1 O observatório do PNDH-3 139 4.2 As diretrizes polêmicas e a efetivação de suas ações programáticas 142 4.3 Diretriz 9 142 4.4 Diretriz 10 147 4.5 Diretriz 17 150 4.6 Diretriz 22 154 4.7 Diretrizes 24 e 25 160 4.8 Ações iniciadas ou concluídas 166 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 170 REFERÊNCIAS 174 1 1. INTRODUÇÃO Desde quando os direitos humanos foram instituídos, vários debates têm ocorrido no sentido de explicar como este conjunto de direitos, elaborados pela ONU, seriam promovidos nos mais diversos contextos culturais, sociais e políticos. Após a Segunda Guerra Mundial, uma série de tratados e acordos internacionais foram firmados em diferentes países. Dentre os países envolvidos com tais acordos está o Brasil, que conta com grupos e movimentos que atuam no sentido de promover e efetivar os princípios e direitos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada no ano de 1948. A I e II Conferência Mundial de Direitos Humanos, que ocorreram no ano de 1968 e 1993 respectivamente, apontaram medidas e ações que deveriam ser tomadas para a promoção destes direitos. O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que será objeto de pesquisa deste trabalho, foi o resultado de uma recomendação feita aos países participantes da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena no ano de 1993. No ano de 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso promulga a primeira edição do PNDH, trazendo importantes ações e medidas que, além de promover, “… teve o mérito de situar os direitos humanos como pauta no debate público e como política de Estado…” (PIOVESAN, 20101), indo ao encontro dos princípios legais presentes na Constituição de 1988. Episódios como a Chacina da Candelária, no ano de 1993; o Massacre de Corumbiara, em 1995; o Massacre do Eldorado dos Carajás, em 1996, representaram graves violações dos direitos humanos. Assim, a iniciativa do PNDH significou também uma resposta aos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos, como a ONU e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estavam questionando o país acerca das violações ocorridas. A primeira edição do programa deu ênfase aos direitos civis2, apresentando ações de curto, médio e longo prazo que tratavam do direito à vida, à segurança, à luta contra a impunidade, à liberdade e o acesso à justiça. O programa também atentou para o tratamento igualitário de todos perante a lei, incluindo crianças, adolescentes, mulheres, a população indígena, negra, idosos e pessoas com deficiência. Apesar das inovações, o programa também 1Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20100117-42460-spo-175-ali-j6-not. Acesso em: 08 Abr de 2015. 2De acordo com T.H. Marshall (1967), os direitos civis são compostos por direitos necessários à liberdade individual - liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos, e o direito à justiça http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20100117-42460-spo-175-ali-j6-not 2 contou com críticas. A população LGBT, por exemplo, reclamou um capítulo voltado aos homossexuais. Críticas também foram feitas em relação a importantes projetos de lei, como o que transferia para a justiça comum crimes cometidos por policiais militares. A própria base governista votou contra o projeto, gerando desconfiança da intenção do governo em relação aos direitos humanos. O primeiro presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, chegou a atestar na época que um país como o Brasil, que contou com quatrocentos anos de escravidão e quinhentos anos de extermínio de populações indígenas, tem dificuldades para assimilar a cultura dos direitos humanos (MIRANDA, 1998). No ano de 2002, foi promulgado o PNDH-2, que foi elaborado com base em críticas e sugestões feitas em relação à primeira edição do programa. Dentre as principais ações previstas, estava a adoção de ações afirmativas; o projeto de lei que oficializava a união civil de casais homossexuais e a sugestão para que o assunto passasse a ser tratado como tema de saúde pública. O programa também herdou a proposta de transferir da Justiça Estadual para a Federal crimes cometidos contra os direitos humanos que, apesar de presente no PNDH-1, não havia sido implementada. Dentre as críticas, estava a ênfase dada aos direitos civis em detrimento dos sociais, que estiveram presentes na segunda edição do PNDH. Apesar de contar com várias medidas visando ao estabelecimento dos direitos civis, políticos, sociais e culturais, o PNDH-2 foi criticado, a exemplo do PNDH-1, pela falta de empenho do governo em relação à promoção dos direitos humanos, conforme poderá ser verificado na seção que trata da ênfase dada pela mídia em relação ao programa. Apesar de contar com importantes propostas, muitas acabaram não sendo implementadas, ficando apenas no papel. Com o intuito de solucionar problemas verificados em relação às edições anteriores, o PNDH-3 instituiu uma série de mecanismos visando promover, de fato, as mais de quinhentas propostas voltadas aos direitos humanos. O observatório do PNDH-3, criado como meio de informar à sociedade acerca das medidas relativas à política de direitos humanos empreendida, também representa uma maneira de reforçar o processo de implementação dos direitos humanos no Brasil. Vários ministérios se tornaram responsáveis pela implementação das medidas do 3 PNDH-3 que, além dos recursos financeiros, ampliou as parcerias entre os ministérios com o intuito promover os conjuntos de ações programáticas que compõem o programa. As inovações trazidas pelo PNDH-3, no entanto, foram contestadas por determinados grupos e por determinados representantes políticos, como líderes de religiosos da Igreja Católica e de igrejas evangélicas; setores do agronegócio, como a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA); representantes da mídia, tais quais a ANJ, ANER, ABERT e representantes das Forças Armadas. O descontentamento desses grupos levou o governo a recuar, modificando todas as ações programáticas que foram alvo de críticas. Dentre as medidas polêmicas, está a ação programática presente na diretriz 9, Objetivo Estratégico III, que gerou polêmica ao propor a descriminalização do aborto. Outra medida polêmica foi a presente na Diretriz 10, Objetivo Estratégico VI, que propôs a proibição de símbolos religiosos em locais públicos. Após forte pressão exercida por membros da Igreja Católica e por grupos representados por denominações evangélicas, as medidas foram modificadas. Desse modo, o decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010, modificou item relativo ao aborto e revogou o projeto de proibir símbolos religiosos em locais públicos. Já a proposta presente na Diretriz 17, Objetivo Estratégico VI, trata do “Acesso à Justiça no Campo e na Cidade”, buscava instituir a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários, dando prioridade à realização de audiência coletiva com os envolvidos como medida preliminar à avaliação de concessão de medidas liminares. Devido à forte pressão exercida pela bancada ruralista, o texto foi revisado, deixando de ser a mediação entre as partes envolvidas um ato inicial na resolução do conflito. Outra proposta polêmica foi a presente na Diretriz 22, Objetivo Estratégico I, que visava regulamentar o art. 221 da Constituição, visando estabelecer respeito aos direitos humanos nos serviços de rádio e televisão concedidos, permitidos ou autorizados como condição para a renovação ou outorga. Também estavam previstas multas e penalidades administrativas em casos de desrespeito aos direitos humanos. Importantes grupos e associações representantes dos interesses dos principais veículos de comunicação: ANJ3, a ANER4 e a ABERT5, promoveram forte pressão para que tais itens fossem modificados. A mudança incluiu as medidas referentes à regulamentação da mídia, que teve seu processo de 3Associação Nacional de Jornais. 4 Associação Nacional de Editores de Revistas. 5 Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV. 4 implementação prejudicado. O último item polêmico considerado foi o que tratava da criação de uma comissão, classificada como Comissão da Verdade, que visava esclarecer à sociedade brasileira fatos e acontecimentos ocorridos no contexto da ditadura militar de 1964. Familiares e amigos de vítimas da ditadura, que foram os principais defensores da instituição de uma Comissão da Verdade, depois de quase trinta anos de espera, puderam vislumbrar o esclarecimento de fatos ocorridos no passado, relacionados à morte ou sumiço de parentes e amigos que foram vítimas da ditadura. A medida, que visava revogar leis remanescentes da ditadura militar, foi interpretada pelo então ministro da justiça, Nelson Jobim, como uma tentativa de modificar a lei da anistia, de 1979. A polêmica também esteve relacionada a outros itens, como a proposta de mudança dos nomes de prédios, ruas, avenidas que foram batizados com nomes de militares envolvidos com práticas de torturas e à medida que visava “…Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos…” (BRASIL, 2009, p. 175-6). Os ministros e os militares acusaram o programa de ser “revanchista” e “provocativo”. Outro ponto que também incomodou os militares foi a quebra de um “acordo tácito” que fosse considerado, no PNDH-3, os movimentos civis da esquerda, que faziam oposição ao regime militar, como alvo de processos que investigariam possíveis violações dos direitos humanos. A medida sobre a modificação da lei da anistia sugeria: “acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985” (BRASIL, 2009, p.177). Após a pressão exercida pelas Forças Armadas, os militares conseguiram que aquelas medidas polêmicas, que lhes afetavam, fossem modificadas ou revogadas, como poderá ser verificado na seção que trata do conflito com os militares. As mudanças ocorridas no PNDH-3, que desconsideraram reivindicações vindas da sociedade civil organizada, demonstram o quanto os direitos humanos não são prioritários para a maior parte dos congressistas. Também podemos notar que a pressão exercida pela Frente Parlamentar da Agropecuária; pela ANJ, ANER e ABERT; por religiosos da Igreja Católica e das igrejas evangélicas e por militares resultou na prevalência de interesses particulares em detrimento dos coletivos, contrariando princípios de justiça presentes na 5 Constituição de 1988, como o item presente no Art. 1º, inciso II e III, que atenta para a cidadania e para a dignidade da pessoa humana, respectivamente. No Art. 3º, inciso I, é apontada a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, com prevalência, de acordo com o inciso III, dos direitos humanos. Assim, o objetivo deste trabalho será discorrer sobre o Programa Nacional dos Direitos Humanos verificando quais medidas, presentes no PNDH-3, foram implementadas. Sob a hipótese de que os direitos humanos não são prioridade para parte dos congressistas, já que importantes medidas da terceira edição do programa foram modificadas e revogadas, será verificado o modo como interesses particulares se sobrepõem aos coletivos, desfigurando princípios democráticos presentes na Constituição Cidadã, de 1988. Como o Programa Nacional de Direitos Humanos visa à promoção dos direitos humanos no Brasil, foi incluído, na segunda seção, teóricos que debateram o tema do universalismo e relativismo cultural envolvendo tais direitos. Também foi considerada a discussão empreendida por Boaventura de Sousa Santos em relação ao multiculturalismo. José Murilo de Carvalho foi lembrado para abordar a história da cidadania no Brasil que, com o apoio de John Rawls e o conceito de justiça, permitiu contextualizar a história e a política envolvendo o debate sobre os direitos humanos. Na terceira seção, foi realizada pesquisa nos acervos dos jornais O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, disponibilizados nos sites http://acervo.estadao.com.br/ e http://acervo.folha.com.br/, que considerou artigos e reportagens que abordaram o PNDH e o debate ocorrido por representantes da mídia, religiosos, ruralista, militares e outras personagens em torno das proposições polêmicas do PNDH-3. Os vários posicionamentos verificados, através do que foi divulgado pelos jornais pesquisados, permitiram levantar o contexto de intenso debate que envolveu o PNDH-3. Para contextualizarmos historicamente o programa, foram consideradas as reportagens e artigos publicados no período que vai de 01/01/1995 até 30/05/2014 pelos jornais pesquisados, abrangendo, além da terceira, a primeira e segunda edição do programa. Na quarta seção foi utilizado, para verificar o processo de implementação do PNDH-3, o site do observatório do programa, http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/entenda-as- estrategias#observatorio, que fornece informações detalhadas sobre as ações programáticas do programa e sobre os ministérios responsáveis por sua implementação. A ideia de verificar as http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/entenda-as-estrategias#observatorio http://www.pndh3.sdh.gov.br/portal/sistema/entenda-as-estrategias#observatorio 6 proposições que foram promovidas visa apreender a importância do Programa Nacional de Direitos Humanos para a promoção dos direitos humanos no Brasil A base teórica utilizada para a análise da terceira e da quarta seção foi a representada pelo pensamento de autores como John Rawls e Amartya Sen. Também foram consideradas as principais gramáticas políticas verificadas no Brasil por Edson Nunes, compostas pelo clientelismo6 e corporativismo7. A importância dessa discussão tem relação com o processo de implementação dos direitos humanos na sociedade brasileira, que, desde a ditadura militar (1964-1985), passou a ser reivindicado por diversos grupos sociais e entidades. Atualmente, o tema é discutido e apontado como meio de promover a construção de uma sociedade justa e igualitária, como buscaremos mostrar com esta pesquisa. 6De acordo com Edson Nunes (2010), o clientelismo “… repousa num conjunto de redes personalistas que se estendem aos partidos políticos, burocracias e cliques. Estas redes envolvem uma pirâmide de relações que atravessam a sociedade de alto a baixo. As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até as localidades. Os recursos materiais do Estado desempenham um papel crucial na operação do sistema; os partidos políticos – isto é, aqueles que apoiam o governo – têm acesso a inúmeros privilégios que vão desde a criação de empregos até a distribuição de outros favores ...” (NUNES, 2010, p. 53). 7Ocoporativismo e seus regulamentos “… não contêm cláusulas para o desafio individual ao sistema de leis corporativas. Essas leis preocupam-se com a incorporação e controle, não com justo e igual tratamento de todos os indivíduos. O corporativismo determina os limites de participação e não pôde ainda ser completamente alterado pelo voto daqueles que se submetem a ele ...” (NUNES, 2010, p. 57). 7 2. OS DIREITOS HUMANOS: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E TEMÁTICA Os Direitos Humanos, após o fim da segunda Guerra Mundial, emergiram como referência para a constituição de um horizonte normativo que oferecesse proteção a indivíduos e grupos, de diferentes Estados e nações, evitando a guerra e atentando para o respeito aos direitos e liberdades considerados essenciais para o bem-estar humano e social. A segunda Guerra Mundial (1939-1945), que representou um triste capítulo para a história da humanidade, foi palco de uma série de acontecimentos cruéis e desumanos que chocaram a opinião pública mundial. Milhares de seres humanos foram mortos tanto nos conflitos armados quanto nos campos de concentração nazistas, que foi marcado “pela lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana” (PIOVESAN, 2004, p. 21). Judeus, eslavos, homossexuais, negros e comunistas estiveram entre as principais vítimas de um genocídio que assumiu uma projeção industrial e política. O fim da segunda Guerra Mundial, ocorrido com o aterrorizante episódio das bombas nucleares de Hiroshima e Nagazaki lançadas pelos Estados Unidos, trouxe a preocupação de se estabelecer e promover uma nova concepção de direitos humanos pautada na tentativa de elaborar bases legais com o intuito de evitar futuras guerras e deflagrar a paz entre as nações, buscando extirpar do horizonte dos seres humanos os horrores e aberrações ocorridas durante o período de guerra. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948, foi responsável por estabelecer uma nova concepção desses direitos, que passaram a ser concebidos como universais e indivisíveis. A ideia de universalidade dos direitos humanos é fundamentada “… nas premissas da igualdade em dignidade e valor de todos os seres humanos, sem discriminação. Tal noção é totalmente incompatível com as doutrinas e práticas de uma pretensa superioridade fundada em raça, religião, sexo ou qualquer outro elemento…” (MBAYA, 1997, p. 31). Já a questão da indivisibilidade está relacionada à inter-relação entre os direitos de primeira (direitos civis e políticos) e os de segunda geração (direitos sociais, culturais), concebendo que ambos constituem “… um conjunto de valor essencial para a manutenção da dignidade, da liberdade e do bem-estar dos homens…” (MBAYA, 1997, p.31). Mesmo não constituindo uma obrigação jurídica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se configurou como um parâmetro a ser seguido pelos países. Ao longo dos anos foi 8 se constituindo um sistema internacional de direitos humanos, sendo a ONU o principal órgão responsável por fomentar o respeito e estimular a efetivação desses direitos com o intuito de estabelecer critérios para que sua promoção seja universal, abrangendo os diferentes países “independente da diversidade cultural, política, econômica, religiosa de cada sociedade” (PIOVESAN8). Assim, a proposta de promoção dos direitos humanos remonta ao pós-Segunda Guerra Mundial, tendo ocorrido posteriormente a elaboração de tratados e acordos internacionais com a intenção de aprofundar o diálogo acerca do conteúdo desses direitos em relação aos diferentes contextos sociais, culturais, políticos e econômicos. A construção de um sistema internacional de direitos humanos sob comando da ONU foi se intensificando após a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além da I e da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, que estabeleceram um diálogo acerca da universalização desses direitos, foram instituídos vários pactos e tratados internacionais. Entre os tratados internacionais adotados podemos citar: Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, 1951, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, 1979, Convenção sobre os Direitos das Crianças, 1989. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que em 1976 se tornou lei internacional. Quanto às conferências, podemos citar duas: a I Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida no Teerã em 1968 e a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena em 1993. Esses dois eventos ocorreram em contextos históricos diferentes, marcados por características que são importantes para compreendermos a repercussão de cada uma no sistema internacional de direitos humanos. 2.1 A I Conferência Mundial de Direitos Humanos A I Conferência Mundial dos Direitos Humanos ocorrida em Teerã entre 22 de abril e 13 de maio de 1968, no contexto da Guerra Fria, foi contemporânea da revolta dos estudantes, que teve início em Paris em maio de 1968, indo até Nova Iorque, passando pelo Rio de Janeiro. Naquela ocasião também ocorrera “… a revolta contra o domínio soviético na 8Disponivel em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan1.html. Acesso em: 19 Jan de 2015. http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan1.html 9 Tchecoslováquia, a chamada Primavera de Praga …” (PINHEIRO, 2010, p.6). De acordo com o embaixador José Augusto Lindgren Alves9, o período pode ser caracterizado como uma fase em que o sistema internacional foi ausente em relação à “promoção dos direitos humanos, ainda sem qualquer mecanismo para sua proteção”. O fato dos dois Pactos Internacionais, que tratavam dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturas, elaborados no ano de 1966, terem entrado em vigor somente em 197610, devido ao fato de não ter conseguido antes o número de ratificações necessárias, demonstra o caráter abstencionista da época. Não havia, naquele período, tratados jurídicos com caráter impositivo que amparassem os direitos humanos expressos na Declaração Universal de 1948. Segundo Alves, também inexistiam comitês responsáveis por acompanhar o cumprimento de acordos previstos e meios para denunciar e apurar violações de direitos humanos ocorridas nos Estados-membros. Sendo assim, a constituição dos dois pactos internacionais, que foram formulados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, obtivera força jurídica obrigatória e vinculante para “que pudessem garantir de forma mais efetiva o exercício dos direitos e liberdades fundamentais constantes da DUDH11” (HIDAKA, 2002, p. 10). Além de ressaltar alguns princípios presentes na Declaração de 1948, tal qual a questão da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos alargou o repertório de direitos ao promover o direito à autodeterminação, o direito de não ser preso por descumprir obrigação contratual e o direito das minorias à identidade cultural, religiosa e linguística (HIDAKA, 2002, p. 10-11). Já o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a exemplo do PIDCP12, reafirmou a importância de uma série de direitos e garantias já presentes na DUDH, como o direito à saúde, ao trabalho e a uma remuneração justa. Um ponto importante a ser ressaltado tem relação com o fato de terem sido elaborados dois pactos de direitos com diferentes sugestões quanto ao modo como ambos deveriam ser implementados. Enquanto os direitos civis e políticos deveriam ter aplicabilidade imediata, os direitos econômicos, sociais 9Disponível em:http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/atualidade.htm. Acesso em: 20 Jan de 2015. 10O De acordo com HIDAKA (2002), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi aprovado dez anos após ter sido aprovado, quando obteve o número mínimo de 35 ratificações necessárias para o pacto fosse vigorado. 11Declaração Universal dos Direitos Humanos. 12Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/atualidade.htm 10 e culturais poderiam ser efetivados no longo prazo. Para Hidaka (2002) o ponto de vista ocidental, capitalista e liberal, teria prevalecido na medida em que se verifica uma ênfase nos direitos civis e políticos em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais. O fato do PIDESC13 tratar de direitos que eram mais relevantes para os países socialistas da época fez com que, no cenário internacional, tais medidas perdessem visibilidade frente aos “poderosos Estados capitalistas desenvolvidos”. De acordo com Jayme Benevuto Lima Jr.: Os Pactos Internacionais, diga-se de passagem, deveriam ser um só, a detalhar a Declaração Universal de Direitos Humanos, não o sendo em função da guerra fria, que impedia os blocos socialista e liberal de verem – como hoje não resta dúvida – os direitos humanos numa perspectiva integral. De qualquer forma, os pactos representam a jurisdicização da Declaração Universal de Direitos Humanos, na medida em que detalham e ampliam os direitos nela contidos (LIMA, 2002, p. 22). Apesar da indivisibilidade dos direitos humanos ter sido propagada desde a Declaração de 1948, o modo como os direitos econômicos, sociais e culturais foram considerados gerou dúvidas quanto ao caráter indivisível que se buscava atribuir aos direitos de primeira e segunda geração14. Mesmo tratando de importantes questões, como a condenação à discriminação de gênero, a preocupação com o analfabetismo e com o direito relacionado à paternidade e à maternidade, que versava sobre o direto humano básico que os pais têm de determinar de modo livre e responsável o número e o espaçamento de seus filhos, a I Conferência Nacional de Direitos Humanos foi pouco inovadora e estimulante para a proteção dos direitos humanos no âmbito internacional. Para J. A. Lindgren Alves15, a repercussão da conferência teria sido: 13Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 14Os Direitos Humanos de primeira geração incluem os direitos civis e políticos, compreendendo o princípio de liberdade. Os direitos de segunda geração estão relacionados ao princípio da igualdade, englobando os direitos econômicos, sociais e culturais. Informações disponíveis em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/tertuliano/dhnaidademoderna.html. Acesso em: 20 jan de 2015. 15Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/atualidade.htm. Acesso em: 21 jan de 2015. http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/atualidade.htm http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/tertuliano/dhnaidademoderna.html 11 […] limitada em sua atuação pelas disputas ideológicas Leste-Oeste, a ONU contava em seu ativo sobretudo com os avanços obtidos no processo de descolonização. Estes se traduziam no grande número de países afro-asiáticos recém-emersos do sistema colonial e acolhidos na Assembleia Geral, todos mobilizados contra o colonialismo, a discriminação racial e o regime aparteísta sul-africano, de efeitos sensíveis em toda a África Austral. Em contraste com os apenas 58 Estados soberanos que haviam participado, em Paris, da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 […] da Conferência de Teerã, em 1969, já participaram delegações de 84 países independentes (ALVES, 2000). Cabe ressaltar a questão da soberania dos Estados, no contexto do final da década de 1960, que em muitos casos serviu como empecilho para que o processo de efetivação dos direitos humanos pudesse ser monitorado. O fato de muitos tratados não contarem com o número de ratificações necessárias, o não surgimento de órgãos responsáveis por averiguar a promoção e o desrespeito aos direitos humanos entre os países foram fatores que comprometeram a efetivação dos direitos. Contudo, é inegável que, mesmo tendo em vista a limitação que o princípio da soberania dos Estados, presente no próprio texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o documento representou, de acordo com o filósofo italiano Giacomo Marramao (2007), um decisivo turning point para o processo de “desterritorialização do direito”, conforme expresso no art. 6º da Declaração: que todo indivíduo tem o direito de ter reconhecida sua personalidade jurídica, independentemente do local onde se encontra. Já o art. 28 subscreve que os indivíduos têm direito de contar com uma ordem social e internacional que promova os direitos e liberdades presentes na declaração. Assim, apesar de ter trazido para a discussão questões importantes, algumas delas reforçando e outras adicionando direitos não presentes na Declaração Universal de 194816, a Conferência de Teerã acabou sofrendo limitações relativas à própria época, que acabaram não permitindo que o tema se desenvolvesse de modo mais pleno no sentido de promover um diálogo deliberativo com diferentes países, considerando suas diferenças sociais, econômicas e culturas, visando estabelecer um consenso acerca dos Direitos Humanos. 16O direito referente à paternidade e à maternidade não estava previsto na Declaração de 1948. 12 2.2 A II CONFERÊNCIA MUNDIAL DE DIREITOS HUMANOS Durante a década de 1990, uma série de acontecimentos acirrou a discussão sobre a emergência daqueles direitos proclamados em 1948. O fim da Guerra Fria, no ano de 1991, com a extinção da URSS, inaugurou uma nova fase da humanidade, caracterizada pelo contato entre diferentes povos e culturas. De acordo com cientista político norte-americano Samuel P. Huntington (1993), após o fim da Guerra Fria, marcada pelo conflito ideológico, surgiria o conflito entre civilizações, gerado pelo contato entre povos de diferentes culturas. O conflito Norte-Sul, compreendido pelo Norte desenvolvido e Sul subdesenvolvido, colocou distorções relacionadas à ênfase dada, nos países do Sul, aos direitos civis e políticos em detrimento dos direitos econômicos e culturais. Para Alves (2000), outra questão esteve relacionada à negação, por parte das culturas autóctones, dos valores importados do ocidente. Também o fundamentalismo religioso emerge, no pós-Guerra Fria, como um importante elemento político no contexto da globalização. Tais fatores estiveram presentes ao longo da década de 1990, levantando novos questionamentos em relação à configuração dos Direitos Humanos no pós-Guerra Fria. A II Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, no ano de 1993, apresentou os novos rumos que o sistema internacional de Direitos Humanos tomaria após a dissolução da URSS. O evento contou com a participação de 171 delegações17 de Estados, além de ONGs, organizações intergovernamentais e instituições nacionais de proteção aos Direitos Humanos. Assim, houve um aumento significativo na participação dos países na Conferência de Viena em relação à Conferência de Teerã, de 1968 e da Declaração Universal, de 194818. Outro fator importante a ser ressaltado em relação à Conferência de Viena, diz respeito à chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que relaciona tais direitos a uma pluralidade de significados. Assim, “tendo em vista tal pluralidade, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 17Informações disponíveis em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/atualidade.htm. Acesso em: 09 Jan 2015. 18Hernandez (2011). Disponível em: http://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/e-book_relacoes %20internacionais.pdf. Acesso em: 06 Jan 2015. http://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/e-book_relacoes%20internacionais.pdf http://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/e-book_relacoes%20internacionais.pdf http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/atualidade.htm 13 1993” (PIOVESAN, 2006, p.6). Também foi reforçada na Conferência de Viena a questão da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, que igualam os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, reafirmando que tais direitos devem ser implementados a partir dos princípios de equidade, justiça e universalidade. Um outro importante elemento, que, de acordo com Paulo Sérgio Pinheiro (2010), estava praticamente ausente na Conferência de Teerã, foram as ONGs. Durante a realização da II Conferência Mundial de Direitos Humanos ocorreu o Fórum Mundial das ONGs da sociedade civil “que se realizava paralelamente à conferência dos 171 Estados-membros, esses no primeiro andar, as ONGs, no subsolo” (PINHEIRO, 2010, p. 7). O Brasil representou um importante papel durante a realização do evento. O embaixador Gilberto Sabóia, ao lado de colegas como o embaixador José Augusto Lindgren, foi responsável pela coordenação do comitê de redação da Declaração e Programa de Ação de Viena, que apontou a responsabilidade dos Estados participantes no sentido de promover os direitos humanos em seus respectivos países. Todas as recomendações feitas foram aceitas sem nenhum voto contrário ou abstenções. As recomendações que constavam no Programa de Ação de Viena “apesar de não serem obrigatórias, traziam assim maior peso de persuasão que recomendações geralmente feitas aos Estados soberanos” (PINHEIRO, 2010, p. 7). No parágrafo 69 do referido programa, havia indicação para que fosse estabelecido um programa abrangente, no âmbito das Nações Unidas, com o intuito de auxiliar os Estados na tarefa de constituir ou fortalecer estruturas nacionais que fossem adequadas para a promoção dos direitos humanos. Já no parágrafo 70, é solicitado “ao Secretário-Geral das Nações que submeta propostas à assembleia Geral das Nações Unidas contendo alternativas para a criação, a estrutura, as mobilidades operacionais e o financiamento do programa proposto”(DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA, 1993, p.19). No parágrafo 71, consta a recomendação para “que cada Estado pondere a oportunidade da elaboração de um plano de ação nacional que identifique os passos através dos quais esse Estado poderia melhorar a promoção e a proteção dos Direitos Humanos” (DECLARAÇÃO E 14 PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA19, 1993). O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), decretado no ano de 1996 sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi fruto desta recomendação que não apenas propôs, mas ofereceu apoio técnico e financeiro para os países interessados em elaborar programas voltados à promoção dos direitos humanos. O Brasil, devido ao importante papel desempenhado durante a realização da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, foi um dos primeiros países a acatar a recomendação da ONU no sentido de promover os direitos humanos. Assim, as várias recomendações presentes no Programa de Ação de Viena tinham o propósito de estruturar um sistema internacional de direitos humanos, buscando torná-los presentes na Constituição dos mais diferentes Estados, efetivando, assim, o princípio da universalidade, presente desde a Declaração de 1948. A conferência de Viena avançou no sentido de promover os direitos humanos, abrindo a possibilidade de um diálogo intercultural no sentido de definir a configuração que tais direitos passariam a assumir no pós-Guerra Fria. 2.3 O universalismo e o relativismo cultural Em dezembro de 2015 a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 67 anos. Ao longo desse período, os vários documentos e tratados internacionais buscaram integrar seus preceitos aos mais diferentes contextos econômicos, sociais, políticos e culturais. O intenso processo de globalização, de acordo com Huntington (1993), acirrou o contato entre diferentes civilizações e tornou premente a discussão acerca dos direitos humanos e a incorporação de seus princípios aos diferentes contextos culturais verificados. A base teórica utilizada para refletir acerca desta questão remonta ao pensamento moderno, sendo Kant e Hegel referências para o desenvolvimento da discussão que envolve os direitos humanos a partir de uma perspectiva que concebe a possibilidade de princípios e normas constitucionais universais, aplicáveis em qualquer contexto social, se tornando, desse 19Disponível em: http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-e- Programa-de-A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%Aancia-Mundial-sobre-DH.pdf. Acesso em: 21 Jan de 2015. http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-e-Programa-de-A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%AAncia-Mundial-sobre-DH.pdf http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-e-Programa-de-A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%AAncia-Mundial-sobre-DH.pdf 15 modo, um meio de promover a justiça, partindo de conteúdos e condições que caracterizariam uma sociedade justa. Em contrapartida temos o relativismo cultural que nega a possibilidade de existirem princípios e normas universais capazes de garantir a justiça em determinados contextos culturais. Sendo assim, “…há muitos bens peculiares, típicos das várias idiossincrasias e das diversas formas de vida, derivados de crenças e de hábitos que não têm que ser universalmente compartilhados…” (ROCHA, 2000, p. 58). Tais referências nos proporcionam um importante arsenal teórico para reflexão dos direitos humanos em sociedades caracterizadas pelo pluralismo cultural. Dado o cenário internacional, caracterizado por uma série de tratados e acordos visando difundir princípios legais que resguardem não somente indivíduos, mas coletividades, os direitos humanos adquirem um papel essencial no sistema internacional. O empenho da ONU, que através do Conselho de Direitos Humanos busca reforçar a proteção dos direitos humanos em todo o planeta, tem resultado em grandes avanços em relação ao estabelecimento de normas e leis com validade universal. O Conselho de Direitos Humanos foi criado em 09 de maio de 2006, com a eleição de 47 países como membros. A distribuição dos membros foi feita a partir de uma representação geográfica equitativa, sendo composta por: 13 membros representantes dos Países Africanos, 13 dos Países Asiáticos, 7 dos Países do Leste Europeu, 8 dos Países da América Latina e das Caraíbas e 7 dos Países da Europa Ocidental e Outros20. Desde quando foi instituído, o Conselho de Direitos Humanos contou com algumas mudanças em relação à extinta Comissão de Direitos Humanos. Uma delas é o vínculo com a Assembleia Geral da ONU e a inclusão de novos critérios para a candidatura dos membros. A possibilidade do mandato também passou a vigorar em situações em que ocorram violações sistemáticas aos direitos humanos. Além da mudança no processo eleitoral, os países do continente Africano e Asiático passaram a contar com uma força numérica maior com a criação do Conselho. Outra mudança ocorreu em relação à agenda e o programa de trabalho, que passaram a 20Informações disponíveis em: http://www.unric.org/pt/direitos-humanos-actualidade/3310. Acesso em 21 jan de 2015. http://www.unric.org/pt/direitos-humanos-actualidade/3310 16 contar com uma série de princípios a serem tratados nas sessões ordinárias e que se tornam parte do programa de trabalho anual da instituição. A inovação em relação à antiga Comissão consiste na explicitação dos princípios nos quais a agenda deve se basear, tendo como desafio que o trabalho de cada sessão seja amplamente divulgado, de modo que ONGs e outros agentes possam participar das sessões. Além dos princípios estabelecidos, um conjunto de dez itens passou a permear o trabalho do Conselho, que, de acordo com Nader (2007), envolveu a questão de organização e procedimentos; a elaboração de um Relatório Anual do Alto Comissariado para os Direitos Humanos e do Secretário-Geral da ONU; Promoção e proteção de todos os direitos humanos, sejam eles civis, políticos, sociais etc.; situações de direitos humanos que requerem a atenção do Conselho; Órgãos e mecanismos de direitos humanos; Revisão Periódica Universal; Situação dos Direitos Humanos na Palestina e outros territórios árabes ocupados; Seguimento e implementação da Declaração e Programa de Ação de Viena; Racismo, discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância, seguimento e implementação da Declaração e Programa de Ação de Durban; Assistência técnica e reforço da capacidade institucional. Os itens elencados se tornaram mais concisos, englobando um amplo conjunto de temas e questões relevantes para os direitos humanos. Um aspecto negativo, contudo, estaria relacionado a questão de conflitos envolvendo a Palestina e outros territórios árabes, indicando uma certa “… seletividade e […] politização herdada da extinta Comissão…” (NADER, 2007, p. 13). Também se questionou um maior tempo para a discussão de temas prioritários e a posição que cada um dos países pretendem adotar em relação a cada um dos itens. Quanto aos métodos de trabalho e as regras de procedimento, as mudanças envolveram um aumento no número de sessões ordinárias, que passaram de uma para três. Além disso, sessões especiais podem ser realizadas quando for solicitado por um dos países do conselho, com o apoio de 1/3 dos países-membros, o que constituiu um importante instrumento para tratar de situações em países específicos. As dificuldades advindas com as mudanças estão relacionadas à participação das várias ONGs, localizadas fora de Genebra, nessas sessões, tornando um desafio garantir o diálogo entre os Estados e as ONGs. O acompanhamento das sessões pela internet e a divulgação das informações debatidas pelo site da ONU, foram saídas encontradas pelas ONGs. A atuação de autoridades competentes nas 17 capitais e delegações em Genebra, buscando influenciar no posicionamento dos países, também foi adotada. Os mecanismos de Revisão Periódica Universal também sofreram mudanças. Com o objetivo de verificar quais Estados cumprem suas obrigações e comprometimentos em relação aos direitos humanos. Os países que integram o Conselho passaram a ser revisados durante seus mandatos, sendo o ciclo da revisão de 4 anos o que totaliza 48 países sendo revisados todos os anos. As ONGs, nesse processo, podem além de acompanhar, questionar os Estados acerca das medidas que serão tomadas para reverter eventuais problemas. Outra inovação ocorrida com a criação do Conselho foi a instauração de Procedimentos especiais, que instituiu a participação de relatores e representantes especiais, compostos por especialistas independentes e grupos de trabalho que monitoram e estabelecem relatórios acerca da situação dos direitos humanos em países específicos ou em relação a temas específicos. Para poder ocupar o cargo, o relator não pode permanecer mais do que seis anos no mandato e não deve acumular outros cargos na ONU ou em órgãos governamentais conflitantes com o cargo em seu país de origem. Também é exigida experiência no cargo ao qual o relator foi designado. Também foi criado um Comitê Consultivo do Conselho de Direitos Humanos, órgão “…subsidiário ao Conselho de Direitos Humanos que substituiu a antiga Sub-Comissão de Direitos Humanos (Sub-Comissão). Sua função é oferecer apoio consultivo temático ao Conselho…” (NADER, 2007, p. 20), devendo prover a Comissão de Direitos Humanos de expertise, de acordo com necessidades requeridas, focando sua ação em estudos e pesquisas. Não teria ocorrido, em relação a esse item, grandes inovações em relação ao período anterior. O Procedimento de denúncia, através do qual ONGs e indivíduos podem denunciar violações aos direitos humanos ocorridas em qualquer lugar do mundo e sob qualquer circunstância, foi instituído desde que: não tenha motivação política manifesta; seja especificado o direito que está sendo violado; não contenha linguagem abusiva; ser submetida por vítima ou grupo defensor da vítima; não ter como base unicamente relatórios divulgados pela mídia; não se tratar de um caso que já esteja sendo resolvido por órgãos ou procedimentos especiais da ONU; somente ser denunciado após os recursos internos terem sido ineficientes. 18 Todos os instrumentos citados são indícios da constituição de um sistema internacional de direitos humanos, que conta com a participação de uma série de países que, através de representantes, assumem a responsabilidade de promover os direitos humanos nos diferentes países. Diante disso, o pressuposto de que tais direitos são princípios responsáveis por garantir a todos os seres humanos uma vida digna não é considerado válido por muitos teóricos que discutiram a dimensão dos direitos humanos num contexto marcado pelo pluralismo cultural. O debate envolvendo o universalismo e o relativismo cultural aponta para os problemas relativos a ideia de universalização dos direitos humanos, oferecendo respostas na tentativa de solucionar este dilema. A proposição relacionada ao universalismo tem sua raiz teórica ligada ao pensamento liberal. De acordo com Morrice (2000, apud BRAGA, 2007, p. 144), o indivíduo teria uma essência, uma virtude que seria anterior à sociedade, o compreendendo como uma espécie de abstração, já que o desenvolvimento de seu ser não teria vínculo com o contexto histórico e social em que está inserido. Os liberais estimam o indivíduo em detrimento do social, do coletivo, atentando para a liberdade de cada um em relação as suas escolhas. Desse modo, o indivíduo é concebido como sendo anterior à sociedade e, independente do lugar em que ele se encontra, tendo em vista o princípio da igualdade, surge a necessidade de elaboração e defesa de princípios que sejam universalmente válidos. Já para os teóricos do relativismo cultural, a sociedade precede o indivíduo, não sendo possível conceber o homem como um “… ser abstrato, essencial, inexistente…”. Assim, de acordo com Morrice (2000, apud BRAGA, 2007, p.145), haveria a necessidade de considerar determinadas características que são parte da composição do indivíduo como a história, cultura, valores e princípios comuns construídos a partir de uma relação espacial e temporal. A existência do indivíduo, assim, não seria o resultado de atributos próprios a sua essência, mas o resultado da existência concreta de cada ser em relação ao contexto cultural, histórico, geográfico, ideológico e valorativo em que se encontra inserido. O relativismo cultural utiliza tais preceitos teóricos como referência, compreendendo as diferenças e negando a possibilidade de interferências que sejam externas a um determinado contexto sociocultural. Assim, quando tratamos dos direitos humanos, a possibilidade de existirem princípios, valores e normas com validade universal é posta em discussão. Conforme colocado por 19 Peixoto (2007), a partir do estabelecimento de um sistema internacional, que através de uma série de acordos e documentos criam normas e direitos de alcance universal, haveria a possibilidade de tais padrões éticos serem promovidos num mundo caracterizado pela pluralidade de culturas ou, por traz dos esforços de universalização dos direitos humanos, estaria o ocidente tentando impor suas próprias crenças? Uma crítica que geralmente é feita contra a adoção de princípios éticos universais recai na ideia de que tal processo levaria a uma “... nivelação inaceitável do comportamento social....” (ROCHA, 2000, p.60), já que deixaria de considerar dados importantes da realidade que são vivenciados por povos e culturas específicas. Outra crítica relaciona o universalismo a uma postura etnocêntrica, já que a eleição de normas e valores como sendo universais e verdadeiros desconsideraria a legitimidade de princípios éticos inerentes a determinados contextos culturais que, em muitos casos, considera os direitos e garantias presentes na Declaração Universal de 1948 como sendo incompreensíveis. Para Rocha (2000), contudo, o etnocentrismo se revelaria mais na postura do relativismo cultural e ético. O próprio Touraine (1995, apud ROCHA, 2000, p. 61) afirmara que a defesa de minorias e seus direitos, que poderia, a priori, ser semelhante a uma manifestação de multiculturalismo, pode conduzir a um comunitarismo fechado e indiferente à “coexistência com culturas diferentes” se aproximando, assim, do etnocentrismo. Sendo assim, o que estaria em questão não seria a existência de princípios éticos universais, mas se deve existir um único modelo de globalização que compreenda toda a humanidade. O contato entre diferentes culturas, que é um dos principais fatores responsáveis pela ocorrência de conflitos morais, seria o resultado de normas e valores característicos de determinados contextos sociais que teriam validade universal. Para o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas (1995), no contexto da globalização, os elementos de junção do Estado nacional seriam aqueles relacionados à nação dos cidadãos, que se estabeleceria através da vontade política e do direito positivo, expandindo sistemas de seguridade social e implementando políticas de igualdade de oportunidades. Outro elo a ser estabelecido, tem relação com o imaginário, a tradição, a língua e a história de um determinado povo, que poderia contribuir para a ampliação da cidadania. Habermas questiona se, diante do multiculturalismo, existiria um elemento de junção entre a nação dos cidadãos, que emana da 20 vontade política e do direito positivo, e a nação de um povo, que é relacionada ao imaginário, a tradição. Quanto ao modo como o republicanismo deveria compreender a questão da globalização e do multiculturalismo, o autor em questão aponta para um processo de integração nacional que seja compreendido como um processo democrático, que leve à integração nacional sem a presença de uma cultura dominadora. Assim, haveria a necessidade de se estabelecer uma espécie de cultura política. A coesão de uma sociedade multicultural21 se daria na medida em que todos os cidadãos pudessem vivenciar seus direitos de cidadania, que deveriam ser universais (compreender a totalidade dos indivíduos) e indivisíveis (considerar direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais com o mesmo grau de importância). No entanto, o que estaria em questão não seria o multiculturalismo, mas sim o interculturalismo, compreendido como “… um universalismo que respeite as particularidades e se baseie na interação, na troca, fazendo do diálogo intercultural o processo pelo qual se avançará ainda mais na proteção e efetividade dos direitos humanos …“(PEIXOTO, 2007, p.13). Valores típicos de uma determinada cultura não são capazes de constituírem um valor ético, de modo que quando o que está em questão é a elaboração de “… valores universais e unificadores da espécie humana, concerne diretamente uma ‘ética mínima’, isto é, um mínimo de valores transculturais…” (ROCHA, 2000, p. 62). O debate envolvendo o multiculturalismo remete ao passado. O comunitarismo, compreendido enquanto uma corrente que remonta à década de 1980, teria empreendido uma série de debates com o liberalismo e com o liberalismo igualitário. O recontro entre as duas posições, conforme colocado por Rocha (2000), retoma as posições já defendidas por Kant e Hegel. Kant atentava para a existência de proposições que seriam universais, ultrapassando preceitos inerentes a realidades culturais específicas. Hegel, em contrapartida, atribuía grande importância à integração do indivíduo no contexto comunitário em que ele está inserido. Somente assim poderia o indivíduo realizar-se plenamente enquanto ser humano. A referência teórica utilizada pelo comunitarismo, que inclui a fenomenologia 21Para Boaventura de Sousa Santos (1997) “… o multiculturalismo […] é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo ...” (SANTOS, 1997, p. 9) 21 hermenêutica, como a de Gadamer22 e de Heidegger23, assume o conhecimento como circular sendo que, o fenômeno da compreensão se desenvolve a partir de um processo retroativo, que assumiria a forma de um conhecimento em espiral. Nesse caso, a linguagem não seria somente o meio em que se dá a comunicação, seria também um instrumento de comunicação, que revela a pertença e o lugar onde está inserido o indivíduo no mundo. Em relação à tradição, esta não significaria a simples submissão em relação ao passado, mas sim, a possibilidade de reinventar o presente e o futuro com base no modo como “… cada cultura aplica à sua época a tradição que o constitui, por uma ‘fusão de horizontes (Horizontverschmelzung) entre cada uma das perspectivas…” (ROCHA, 2000). Quanto à demarcação dos “valores universais”, estes seriam constituídos com base na ideia de imparcialidade e consequências. O primeiro, através de um suposto estado de natureza ou de uma razão com validade universal, empreende uma busca dos princípios de justiça que pautariam elaborações direitos universais. Já a ideia de consequência coloca em questão a validade de certos valores, como os relacionados ao mundo ocidental, que atentam para o debate do progresso social enquanto algo a ser implementado. No entanto, tendo em vista o modo como o progresso foi concebido, como justificar duas guerras mundiais, a ameaça de armas de destruição em massa, os desastres ecológicos que estiveram e estão presentes no mundo ocidental? Desse modo, a ideia de progresso é ambígua, na medida em que pode ser compreendida de várias maneiras. O sentido do progresso não teria apenas implicações morais ou econômicas e técnicas. O fato de não concebermos a história como sendo teleológica e a possibilidade de conhecermos nosso passado, teria nos permitido negar a ideia de progresso e também rejeitar formas de relativismo radical, “… que torna impossível qualquer juízo de valor…” (ROCHA, 2000, p. 66). O comunitarismo, que prioriza a comunidade, a identidade história relacionada ao indivíduo, nega a existência de princípios morais que tenham validade universal. Para esta 22Hans-Georg Gadamer (1900-2002) foi um filósofo alemão considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica. Sua obra de maior impacto foi Verdade e Método, de 1960. 23“… MARTIN HEIDEGGER, filósofo alemão, nasceu em MessKirch (Grãoducado de Baden), em 1889 e morreu em maio de 1976, em Freiburg-im-Breisgau. Sua formação filosófica foi adquirida na Universidade de Freiburg-im-Breisgau, onde estudou com Edmund Husserl (1859-1938), criador do método fenomenológico, e com Heinrich Rickert (1863-1936), culturalista neokantiano que se preocupava com a fundamentação metodológica da história...” (CHAUÍ, 2005, p. 5). 22 corrente de pensamento, a comunidade exerce um papel essencial para o desenvolvimento pleno do indivíduo. Influenciada pelo romantismo e as filosofias da história24 do século XVIII, a teoria é uma das principais referências utilizadas para a discussão acerca dos direitos humanos e o princípio de universalidade, que desde 1948, ano em que foi decretada a Declaração Universal, se apresenta como ideal a ser cumprido. O princípio da universalidade dos direitos humanos, considerado inútil pelos comunitaristas, não serviria como base de união para a humanidade. Não haveria uma única razão humana – “… como queriam os Ilustrados –, mas tantas razões quantos projectos que ocorram; mais ainda: nenhuma cultura tem autoridade para se arrogar como garantia da verdade ou da razão; basta, pois, que haja projectos capazes de criar ‘comunidades’: a única ética então possível é a ‘comunitária’ …” (ROCHA, 2000, p.67). Assim, a noção de uma religião civil é apresentada como uma alternativa frente ao processo de privatização das crenças, da falta de ideologias consistentes e da secularização religiosa. Se a religião deixa de ser um aspecto cultural agregador, o estímulo a constituição de uma religião civil, resgatando uma ideia já apresentada por Jean Jacques Rousseau, é colocada como uma saída frente aos dilemas colocados em relação a proposta de universalização dos direitos humanos. Diante da possibilidade de grupos ou indivíduos que não compartilham um mesmo conjunto de valores professados pela maioria terem suas liberdades tolhidas, no contexto de uma determinada comunidade, é um aspecto geralmente levantado contra o comunitarismo. Contudo, deve-se ter em mente que, no contexto do multiculturalismo, estaria em questão não apenas distinções, mas direitos, sendo que a ideia de multiculturalismo atenta para a preservação da diversidade. Além disso, a preservação da cultura de uma sociedade tem relação com o bem-estar de seus membros, não significando simplesmente uma atividade que visa conservar e tornar a cultura um fóssil, voltado para a contemplação nostálgica e inútil para seus membros (ROCHA, 2000). Outro argumento em defesa do comunitarismo trata da relação dos valores morais com o contexto social e cultural onde é aplicado. O significado das concepções normativas é significativo para uma sociedade expressando um conceito de vida justa e de identidade 24ROCHA, Acílio da Silva Estanqueiro. Relativismo Cultural versus Universalismo Ético. 23 pessoal dos seres humanos, que mantêm relação com a “ética substancial” e com o “espírito objetivo” de uma determinada comunidade. Assim, certas regras, que seriam o resultado de uma autocompreensão ético-política de uma sociedade, quando aplicadas em realidades culturais diferentes, acabam se tornando irrelevantes. Uma crítica semelhante já havia sido feita por Hegel acerca do imperativo categórico kantiano, que, de acordo com o autor, expressaria um dever impotente e abstrato. Assim, a questão da universalidade dos direitos humanos traz à tona a discussão sobre o modo como é concebida a ideia de justiça. Uma importante contribuição nesse sentido foi a teoria desenvolvida por John Rawls que buscou, através da sua teoria, discorrer acerca do modo como podemos chegar a um entendimento comum sobre o que é justo. 2.4 O conceito de justiça em John Rawls Pensando no modo como John Rawls concebe a constituição do Estado, haveria princípios que seriam firmados, conforme a ideia de contrato social elaborada por Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), entre os indivíduos. De acordo com o que fora estabelecido, no contexto da igualdade como equidade, todos, sob o véu da ignorância, decidiriam acerca dos princípios de justiça que serão a base para a elaboração da sociedade. Desse modo, ficaria “… excluído o conhecimento dessas contingências que criam disparidades entre os homens e permitem que eles se orientem pelos seus preconceitos. Desse modo chega-se ao véu da ignorância de maneira natural…” (RAWLS, 2000, p.21). Sob o véu da ignorância, as pessoas seriam impedidas de conhecerem determinados aspectos de suas próprias vidas, como sua posição social e seus talentos naturais. (BARRY25, 1992). Tal desconhecimento seria necessário na medida em que impediria aos indivíduos adotarem princípios em benefício próprio, o que tornaria a ideia de justiça como equidade insustentável no momento em que, através de um contrato social, seriam firmados os princípios e normas que serão a base constitutiva de uma determinada sociedade. 25BARRY, Brian. Derechos humanos, individualismo y escepticismo. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 11, p. 219-231, 1992. 24 Sob o véu da ignorância serão escolhidos quais princípios de justiça formarão uma concepção de justiça. Tal concepção de justiça conduzirá a constituição de uma determinada sociedade, com a elaboração de uma constituição feita sob os cuidados de um corpo legislativo, eleito pelos indivíduos. A estrutura básica da sociedade seria o “modo como as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social” (BUENO, 2010, p.667). Quanto às instituições políticas mais importantes, Rawls: […]remete à constituição política de uma sociedade, a qual deve ser alvo de atenção por parte das instituições, devendo estimular que os cidadãos reinterpretem continuamente suas concepções abrangentes de justiça à luz daquela concepção política de justiça já elaborada na posição original pelas partes deliberantes racionais. Esta constituição política mantém estritos laços com as principais instituições econômicas e sociais que regem a sociedade (BUENO, 2010, 677). Ao discorrer acerca dos princípios de justiça, Rawls faz de modo com que liberdade e igualdade caminhem juntas. Para o autor, a liberdade se consolidaria quando todos os membros da sociedade passem a tolerar o outro em prol de determinados princípios, que foram firmados sob o véu da ignorância. Desse modo, o indivíduo passaria a tolerar diferentes concepções de vida, desde que tal concepção não viole o conceito de justiça já estabelecido na posição inicial. Quanto a igualdade, os arranjos institucionais seriam os principais responsáveis em promovê-la. A igualdade envolve questões relacionadas às oportunidades proporcionadas pelas instituições que ficariam, de certo modo, responsáveis por combater todos os fatores que geram desigualdade em prol da igualdade equitativa de oportunidade, harmonizando igualdades com talentos e prevalecendo o justo sobre o bom sendo atributo das instituições sociais mais importantes distribuir direitos e deveres. 25 A justiça como equidade, compreendida com base na concepção da sociedade como sendo um sistema de cooperação envolvendo pessoas livres e iguais, prevê que cada sistema cooperativo tem uma concepção de justiça como base para a constituição de leis e normas. A coesão social – e o fato dos indivíduos serem leais às instituições que compõem uma sociedade – não significa que todos estejam de acordo com a concepção de bem estabelecida. Sendo assim, apesar de muitos membros da sociedade não concordarem com a concepção de bem vigente, todos concordaram e aceitaram previamente uma determinada concepção de justiça, que é a base a partir da qual derivam as concepções de bem que são possíveis que foram previamente escolhidas no momento em que fora firmado o contrato social rawlsiano. Cabe ressaltar, conforme nos lembrou Rocha (2000), que é a partir de uma estrutura básica justa, e de suas instituições fundamentais, que emanam as concepções do bem. O “… conceito de justiça é independente do conceito de bem, e anterior a ele, no sentido de que seus princípios limitam as concepções do bem que são permissíveis…” (RAWLS26, 1992, p. 56). Para o autor, a unidade social é possível tendo em vista as condições históricas de uma sociedade democrática, fazendo referência à ideia intuitiva básica acerca do modo como cooperação social é concebida. Tal ideia básica seria parte integrante da cultura política, que levaria a uma concepção pública de justiça com base na unidade do princípio cooperativo relativo às sociedades. (RAWLS, 1992). A possibilidade de uma concepção de justiça com validade universal, abrangendo um conjunto significativo de sociedades e suas respectivas culturas, torna-se possível com base na teoria de Rawls. Contudo, como conceber o caráter universal da justiça partindo do princípio teórico que concebe a elaboração de uma ordem jurídica e social independente de uma fundamentação filosófica que, através de um “consenso sobreponível”, conduziria a uma concepção de justiça que não deixa de estar relacionada com uma determinada fundamentação filosófica, pois, ao longo do processo do “consenso sobreponível”, posições inerentes aos indivíduos serão utilizadas como referência, lembrando que tais opiniões mantêm uma intensa relação com determinadas culturas. 26Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451992000100003&script=sci_arttext. Acesso em: 09 Fev de 2015. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451992000100003&script=sci_arttext 26 De acordo com os comunitaristas, haveria certas limitações na posição teórica defendida por Rawls. A primazia da justiça como ideal regulador de uma sociedade seria um dos pontos problemáticos, segundo Michael Sandel (apud ROCHA, 2000, p. 70), do liberalismo rawlsiano. Como comprovar que a justiça irá adquirir, no contexto da posição original, cujos indivíduos estarão cobertos pelo véu da ignorância, prioridade em detrimento de outros valores e virtudes que poderiam ser a base de constituição de uma determinada sociedade? Sandel também atenta para a preponderância do bom sobre o justo. Para o autor, o liberalismo, que enfatiza o justo sobre o bom, conduziria a posições nada reais. A centralidade relacionada à noção do “eu” apontaria para um indivíduo descontextualizado, supraempírico, puro de agir e de posses e débil (ROCHA, 2000, p. 71). Seria pouco provável se alcançar um “consenso sobreponível” quando a constituição deste consenso estiver relacionada a um contexto intercultural, a nível global. Rorty e Rawls, de acordo com Rocha (2000), são liberais que negam a presença de uma fundamentação filosófica da justiça intercultural. Ao tratar do “direito dos povos”, Rawls sustenta a possibilidade de “consenso sobreponível” intercultural desde que as diferentes sociedades sejam bem-ordenadas. Assim, independentemente de serem liberais ou não liberais, se as sociedades aceitarem três importantes requisitos podem, de acordo com o autor, ser consideradas “bem-ordenadas”. O primeiro requisito concebe que as sociedades devem ser pacíficas, sem pretensões expansionistas. Já o segundo requisito, trata da importância da comunidade conferir legitimidade ao seu sistema judiciário. O terceiro e último requisito atenta para a necessidade dos povos aceitarem os direitos humanos. Caso um país respeite e cumpra tais pré-requisitos é classificado como sendo bem-ordenado, conferindo a possibilidade de se estabelecer um consenso sobreponível intercultural, legitimando o caráter universal relacionado a determinados acordos e tratados internacionais, como os direitos humanos, por exemplo. No entanto, como atribuir um caráter justo a normas que envolvem diferentes culturas? Uma das respostas possíveis diz que se a norma for boa para todos os que são afetados por ela, pode ser considerada justa. Na busca de argumentos racionais, “… é dificilmente superável a asserção de que são justas as normas que favorecem interesses universalizáveis; se é difícil aferir que interesses são universalizáveis, o diálogo intercultural 27 torna-se uma exigência a priori da razão impura…” (ROCHA, 2000, p. 80). Assim, o mínimo de justiça que necessitamos é aquele que possibilita aos interlocutores dialogar enquanto iguais. As críticas que os comunitaristas realizam ao liberalismo atentam principalmente para os teóricos que defendem o liberalismo igualitário, tal como Rawls. Os comunitaristas atestam para os direitos do indivíduo, para a prioridade do “eu” sobre os fins, e para a prioridade do justo sobre o bom, demonstrando uma clara influência do filósofo moderno Immanuel Kant (1724-1804) no conjunto de suas afirmações. Já os partidários do liberalismo afirmam que o erro dos comunitaristas estaria relacionado ao modo como eles criticam a ideia relacionada às liberdades individuais, com foco no indivíduo. Aos comunitaristas acaba passando despercebido que, apesar de o foco estar no indivíduo, outras possibilidades e planos de vida possíveis estão presentes num projeto de sociedade liberal, sendo seus princípios implícitos e necessários para a realização de qualquer projeto de vida possível. A diversidade de culturas que compõe a humanidade acaba por conduzir ao questionamento relacionado à universalidade dos direitos humanos. Uma tentativa de resposta possível ressalta que haveria valores éticos universais assim como existem particularidades e idiossincrasias que merecem ser respeitados na medida em que são importantes para uma determinada cultura. Assim, haveria a necessidade de se precisar essa cobrança de universalidade (ROCHA, 2000, p. 80). Homens e mulheres, de uma determinada cultura, mantêm uma íntima relação com os valores éticos que lhes são ensinados ao longo do seu processo de socialização primária e secundária27. Através de um conjunto de normas e valores, será formado um indivíduo enquanto parte de uma determinada cultura. A criação de leis ocorreria em concordância com princípios e valores imanentes a essa cultura sendo que, devido ao caráter dinâmico de qualquer sociedade, são comuns situações em que se reivindicam mudanças em certas leis que compõem sua estrutura legal. Uma questão que se coloca tem relação com o estabelecimento de “absolutos éticos”. 27O conceito de socialização primária e socialização secundária são concebidos com base na interpretação realizadas por: BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas: “A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento”, trad. Floriano Fernandes, Rio de Janeiro, editora Vozes, 1978, 4ª edição, 247 pp 28 Quando está em questão a existência de um conjunto de leis, que tratam de direitos voltados a pessoas de todo o planeta, a questão ética assume importância na medida em que tem relação com a justiça, com os princípios, condições e conteúdos sujeitos a definir uma sociedade justa (ROCHA, 2000). O pressuposto de que a justiça é um bem transcultural é relevante na medida em que se reconhece seu papel de promover o respeito à dignidade e à integridade humana, atentando contra situações de dominação e de violência contra grupos e indivíduos. Direitos relacionados à dignidade humana foram estabelecidos ao longo da história, como direitos relativos à educação, à liberdade de expressão, à igualdade de oportunidades, à igualdade civil e à luta contra o preconceito racial e sexual, o direito das crianças e adolescentes, o direito dos idosos etc. Vários acordos e tratados internacionais foram firmados com o propósito de tornar tais leis parte integrante das mais diversas constituições elaboradas pelos países. No Brasil, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) é um exemplo da tentativa de promover direitos com base em uma série de acordos e tratados internacionais com os quais o Brasil é signatário. Com base na ideia de universalismo cultural, a manutenção de uma determinada cultura terá aceitação ética desde que não confronte princípios inerentes ao conceito de justiça previamente estabelecido. Desse modo, uma cultura que promova o desrespeito em relação às mulheres, aos idosos, ou a qualquer grupo específico, não seria digna de reconhecimento de nações, povos e indivíduos. “… Uma coisa é justiça ou a dignidade da pessoa, que não podem construir-se sem respeitar certos princípios universais, e outra os costumes que respondem a necessidades, interesses ou circunstâncias múltiplas não universalizáveis …” (ROCHA, 2000, p. 82). Torna-se importante a distinção entre bens que são universalizáveis e bens relativos a contextos culturais específicos. Governos tiranos e a fome, por exemplo, devem ser combatidos independentemente do local onde se encontram; já aqueles bens, que não atentam contra os direitos fundamentais de homens e mulheres, e que visam à felicidade individual, podem ser promovidos sem restrições. Apesar do estabelecimento de critérios que estipulam uma noção de justiça, que possa ser aplicada universalmente, posições relativistas encaram com restrições a eficácia de tais pressupostos. O estabelecimento de uma demarcação entre justiça e felicidade não seria tão 29 preciso quanto supõe a teoria de viés universalista. Além disso, a concepção do que é justo teria passado por um processo de ampliação ao longo da história. O terceiro aspecto envolve a prioridade da justiça e as possibilidades de promovê-la com base na preservação de peculiaridades culturais. Ao se estipular os direitos que seriam primordiais para o indivíduo, qualquer tentativa de restringi-los se configura como sendo ilegítima, já que contradiz o próprio conceito de justiça. Às autoridades nacionais, caberia proporcionar a todos aqueles direitos considerados essenciais, sendo este um dever de homogeneização. Sendo assim, uma sociedade cuja população não tem acesso aos direitos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, passa a ser considerada uma sociedade que não é bem-ordenada. No caso de comunidades, como as indígenas, por exemplo, seus representantes ficariam incumbidos de informar a todos os membros acerca do princípio da homogeneidade, cabendo a eles aceitar este princípio ou aderir ao “imperativo da dinamização”, que seria aspirar “… a uma reiteração obsoleta de formas de vida que dificultam a participação no desenvolvimento geral da humanidade. A posição comunitarista, se é coerente, conduz fatalmente à defesa do status quo – qualquer que este seja – e é, portanto, conservadora por definição…” (ROCHA, 2000, p. 83). É importante ressaltar que, diante da possibilidade de homogeneização e do imperativo da dinamização, problemas não deixarão de estar presentes. Certas obrigações, imanentes ao princípio de homogeneização, podem levar a imposição de determinados preceitos que contrarie decisões pessoais ou familiares. As revoluções democráticas, ocorridas em vários países do ocidente, levaram a transformações de sociedades e seus diversos regimes legais. Estas sociedades, com base na ideia de igualdade dos cidadãos em relação a um conjunto de direitos, tornaram-se mais racionais. No entanto, o princípio de homogeneização não significaria um processo de assimilação, entendido como sendo o “… desaparecimento total da cultura de origem de um grupo e na interiorização completa da cultura do grupo dominante… “(CUCHE, 1999, p. 116), mas sim um processo em que os membros de uma sociedade têm acesso a um conjunto de direitos e garantias relacionadas à satisfação de suas necessidades básicas, como nos atesta Rocha (2000). Desse modo, o princípio da homogeneização seria equivalente com diversidade 30 de culturas. Ao se aplicar o princípio de homogeneização todos os membros de uma determinada sociedade passariam a contar com um conjunto de bens básicos. Mesmo os grupos étnicos, na medida em que aceitam tal princípio ético, devem estar dispostos a abrir mão de regras ou comportamentos que possam contribuir para aumentar sua vulnerabilidade. Assim, é importante trazer à discussão a questão relacionada aos limites que são eticamente impostos. A proposta relativa ao universalismo cultural conta com três princípios básicos: 1. Rejeitar o relativismo cultural e aceitar o pressuposto de que existem direitos com validade universal; 2. Aceitar o valor do indivíduo enquanto agente moral e rejeição do comunitarismo; 3. Negação do caráter sagrado das formas de vida comunitárias, abrindo a possibilidade de superação com base numa atitude crítica em relação ao conjunto de normas e comportamentos vigentes em uma comunidade. O universalismo defende também os seguintes pontos: os diferentes valores só podem ser realizados no contexto de uma determinada cultura; além do direito positivo, as culturas também contam com uma moral crítica; o fato das culturas estabelecerem uma comunicação sugere a existência de preceitos racionais; o fato de haver comunicação entre diferentes culturas oferece condições para o surgimento de valores transculturais, que seriam reconhecidos e aceitos por diferentes culturas. Diante das duas posições, tanto o relativismo cultural quanto o universalismo, caso sejam levados ao extremo, teriam consequências problemáticas. No caso do relativismo cultural, o isolamento de uma cultura impediria sua comunicação com outros povos, o que conduziria a uma espécie de obscurantismo. Quanto ao universalismo, todas as culturas, segundo Rocha (2000), tendem a um ideal universalista. Contudo, tal universalização, se não for pautada por uma “índole democrática”, partindo de um modelo de “universalização dialética”, pode levar, como as guerras e os totalitarismos do século XX, “aos desvios mais monstruosos”. O estabelecimento de um “diálogo intercultural” é apresentado como possibilidade para tratar da questão relacionada ao constante contato entre diferentes culturas que ocorre no 31 contexto da globalização. Compreender uma cultura diferente pode nos conduzir a uma postura etnocêntrica, ou seja, a uma postura na qual avaliamos outros povos a partir da nossa própria cultura. O etnocentrismo seria a crença da superioridade de uma cultura em detrimento de outras. No entanto, não existiria incompatibilidade em julgarmos outra cultura com base em nossos valores e razões. Compreender o outro envolve considerá-lo como sendo parte de um mundo distinto do nosso, que contêm suas próprias regras, normas e preceitos. Assim, desde que o outro seja respeitado enquanto sujeito de sua própria cultura, e que não lhe seja imposto nenhum preceito moral que não seja condizente com sua noção de mundo, abriremos a possibilidade de estabelecermos um diálogo intercultural. O relativismo cultural, que compreende a moral de uma cultura como sendo seus usos e costumes, estabelecidos socialmente através da educação e das tradições, parece não considerar que seus membros, em diversas situações, negam elementos que compõe o repertório moral de uma determinada cultura. A presença de uma crítica moral aponta para a ideia de que toda “… cultura apresenta uma tensão constante entre os ideais projectados não realizados e os valores reiterados dia após dia …” (ROCHA, 2000, p. 87). De acordo com as teorias que tratam da ética discursiva, quando se tenta convencer alguém, argumentos são utilizados para entre dois ou mais sujeitos. Desse modo, para que possa haver diálogo, há a necessidade de existir uma base comum mínima que seja compartilhada entre aqueles que estão dialogando. O filósofo canadense Charles Taylor, expoente do comunitarismo, afirma que uma sociedade caracterizada pelo seu caráter coletivo, pode ser liberal. Na medida em que aqueles membros que discordam dos ideais vigentes na comunidade sejam considerados como membros desta, e que seus direitos e garantias fundamentais sejam promovidos, teremos, de acordo com o autor, uma sociedade com traços liberais. Diante do debate que envolve a comunidade, o coletivo em detrimento dos valores focados no indivíduo e na sua liberdade, são cabíveis algumas considerações. Apesar do foco no indivíduo, a ideia kantiana, que propunha que a ação do homem deve ter como base a humanidade, não como sendo um meio, mas como um fim em si mesmo, pressupõe a existência de preceitos éticos relacionados à dignidade humana. Tais preceitos, ao contrário do 32 que supõe Habermas, que atenta para a ideia de que estes preceitos são constituídos a partir de um consenso, obtido mediante um diálogo racional, seriam aqueles que contrariem valores relacionados à dignidade humana. Assim, ao contrário do relativismo cultural, a ideia de pluralismo cultural pressupõe a existência de várias culturas sendo que, cada uma adiciona um elemento que contribui para enriquecer o conjunto da humanidade. O pluralismo cultural também concebe a ideia de coexistência pacífica entre as diferentes culturas sendo que, mesmo diante de tentativas de se estabelecer uma cultura de massa, homogeneizando usos e costumes, haveria, de acordo com Rocha (2000), um conjunto de povos que reivindicam autonomia e reconhecimento de suas particularidades buscando unir o global e o local de modo que não ocorra a exclusão de indivíduos. Além dos autores considerados, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos tem empreendido diversas reflexões acerca do multiculturalismo e dos direitos humanos. Será considerada, no item a seguir, uma breve exposição de sua concepção acerca do assunto. 2.5 Boaventura de Sousa Santos e a concepção multicultural dos direitos humanos O potencial emancipador dos direitos humanos é analisado por Boaventura de Sousa Santos como sendo a chave para compreendermos a crise com que se defronta atualmente a modernidade ocidental. Elaborado para ser parte integrante da política da guerra fria, os direitos humanos foram descartados pelas forças progressistas, que preferiam a revolução visando instaurar o socialismo como sendo o melhor caminho para a superação das desigualdades sociais. No entanto, com a crise do socialismo enquanto caminho para a emancipação humana, aquelas mesmas forças progressistas, que outrora negavam os direitos humanos enquanto via de emancipação, agora recorrem a tais direitos para “reinventar a linguagem da emancipação”. Assim, os direitos humanos e seu papel enquanto ideal emancipador serão considerados, pelo autor em questão, como um elemento-chave para compreendermos o paradigma da modernidade. O paradigma da modernidade contaria com três tensões dialéticas: 33 1. A tensão entre regulação social e emancipação social: a possibilidade de uma revolução socialista no contexto da guerra fria era uma alternativa ao Estado regulador. “…as crises de regulação social suscitavam o fortalecimento das políticas emancipatórias…” (SANTOS, 1997, p. 106). No entanto, a crise das políticas emancipatórias e a crise do Estado regulador, representada pela desconstrução do Estado regulador do Estado Providência, são “…simultâneas e alimentam-se uma na outra…” (SANTOS, 1997, p. 106). Os direitos humanos estariam amarrados a uma dupla crise: a da política emancipadora e a da política reguladora. 2. A dialética entre o Estado e a sociedade civil: a ideia do Estado moderno como mínimo é contestada pelo autor. O Estado moderno seria maximalista já que, através da criação de leis e regulamentações, criaria seu outro, ou seja, a sociedade civil. Os direitos humanos civis e políticos foram reivindicados no sentido de proteger o indivíduo das violações de direitos cometidas pelo Estado. Os direitos sociais, culturais e econômicos atribuem ao Estado a função de garanti-los. 3. A tensão entre Estado-nação e globalização: as relações entre Estados foram historicamente pautadas por regras sutis, anárquicas. Com a globalização a dúvida que surge está relacionada a pretensão de conceber os direitos humanos, ou até mesmo a emancipação social, considerados numa perspectiva global. Os direitos humanos, que não deixam de ser uma política cultural, teriam a capacidade de serem globais e locais? O fenômeno da globalização, definido como globalizações “… são, de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização…” (SANTOS, 1997, p.107). Assim, a globalização seria um processo que ocorre quando um elemento local passa a estender sua influência em âmbito global. A ideia de que no contexto da globalização os fenômenos são difundidos rapidamente ao redor do globo, a compressão espaço-tempo não pode ser analisada de forma independente às formas de poder que tratam da mobilidade espacial e temporal. A compressão tempo- espaço é realizada principalmente pelas grandes empresas capitalistas transnacionais, que têm o poder de realizá-la a seu favor. Trabalhadores migrantes e refugiados estariam entre os que não exercem qualquer controle sobre a compressão tempo-espaço. Os turistas, situados entre 34 os executivos das transnacionais e os trabalhadores migrantes, representariam uma terceira forma de compressão tempo-espaço. O termo globalizações, desse modo, expressaria melhor as assimetrias inerentes ao conceito de globalização. Quanto aos diferentes modos de produção da globalização, Boaventura de Sousa Santos (1997) ressalta quatro formas: o localismo globalizado, o globalismo localizado, o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade. O primeiro faz referência a um fenômeno local que é globalizado com sucesso, como o fast food americano e sua música popular. O segundo faz referência ao impacto de práticas transnacionais no âmbito local, tais como o desflorestamento e o impacto da agricultura de exportação sobre a agricultura de subsistência. A terceira forma envolve grupos que se organizam em prol de interesses comuns no âmbito transnacional, como o movimento feminista ou o de defesa dos direitos humanos. O quarto e último item está relacionado à preservação da natureza, do meio ambiente e a importância que temas como a camada de ozônio ou o aumento da temperatura global exercem no contexto global. Quanto aos direitos humanos, eles podem ser expressos pela ideia de globalização hegemônica e globalização contra-hegemônica. Para o autor, os direitos humanos como sendo direitos universais operam no sentido de um localismo globalizado, de cima para baixo, de forma hegemônica. Para que os direitos humanos possam ser estabelecidos como cosmopolitismo ou como globalização contra-hegemônica, de baixo para cima, deve-se considerá-los numa perspectiva multicultural. Para o sociólogo português, a ideia de hermenêutica diatópica: … baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem [...] O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, apliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. (SANTOS, 1997, p. 116). 35 Assim, o estabelecimento de um diálogo entre as culturas e o estabelecimento de uma “hermenêutica diatópica” seriam pré-condição para promover a relação entre o global e o local, considerando a “competência global” e a “legitimidade local”. Os direitos humanos e sua pretensão de ser universal esbarram, muitas vezes, com a lógica de determinadas culturas. Todas as culturas, segundo o autor, tendem a considerar seus valores como sendo superiores, mas somente a cultura ocidental os formulam de modo universal. Outro ponto é que os direitos humanos, no período após a Segunda Guerra Mundial, buscavam atender aos interesses econômicos e geopolíticos dos países capitalistas hegemônicos. No ano de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada sem a participação da maioria dos povos. Direitos como a autodeterminação dos povos foram restringidos aos países subordinados ao colonialismo europeu. Atualmente, em contrapartida, muitas pessoas, grupos, ONGs ao redor do mundo lutam tendo como referência os direitos humanos, buscando questionar as desigualdades inerentes ao modo de produção capitalista sendo, portanto, um movimento contra hegemônico. Deve-se ressaltar que um dos pontos essenciais da política emancipatória de nosso tempo consiste em transformar o discurso e a prática dos direitos humanos num projeto multicultural, cosmopolita em detrimento do localismo globalizado, de uma globalização hegemônica. As principais premissas para empreender tal transformação envolvem a superação do debate universalismo e relativismo cultural: mesmo sendo relativas, as culturas aspiram valores universais. Sobre o universalismo, deve-se dar ênfase ao diálogo entre culturas em relação a questões e problemas em comum às diferentes culturas. O segundo ponto trata da ideia de que todas as culturas possuem uma noção acerca da dignidade humana, mas não as formula em termos d