Alfa, São Paulo 29:101-110, 1985. O ESPAÇO E A E X P R E S S Ã O LINGUÍSTICA Sylvia Jorge de Almeida M A R T I N S * RESUMO: Retomando esclarecimentos de Herbert Clark a respeito da percepção que tem o homem do espaço em que se insere no mundo e tentando correlacionar essa percepção com a sua manifestação lingüística, este estudo analisa, em certas expressões, especialmente naquelas que denotam a localização do homem enquanto ser social, a maneira como se realiza, na língua portuguesa, a percepção desse es­ paço. UNITERMOS: Espaço; percepção; homem-ser social; manifestação linguistica do espaço social. I N T R O D U Ç Ã O A P E R C E P Ç Ã O DO ESPAÇO P E L O H O M E M Para Herbert Clark (2, p . 27-64), um físico ou geômelra responder iam, a quem lhes perguntasse, que localizar um obje to no espaço é descrever a sua posição em relação a outros objetos. Sua localização poderia ser demons t rada cm espaço tr idimensional , se­ gundo o sistema de coordenadas cartesianas, de eixos x, y, z, que to rnam as distâncias mais fáceis de definir e pos ter iormente de empregar . O gráfico que segue ilustra esse es­ quema: x Y z y Cada eixo estabelece que, em u m a direção, a partir de um pon to de referência neutro (zero), o valor positivo fica na direção oposta ao valor negativo. Posto isso, a localiza­ ção unidimensional é melhor definida através de uma distância direcionada a partir de um ponto zero de referência; em duas ou três dimensões esse tipo de especificação se generaliza de m o d o mais conveniente . Para bidimensionais empregam-se os eixos x e y; para tr idimensionais, inclui-se o eixo z (perspectiva, profundidade) . Pa ra representar tais posições empregam-se planos de referência que são combinações entre os eixos: plano x-y; p lano x-z; plano y-z: x y x z y z * D e p a r t a m e n l o d e L e t r a s Vernáculas e Clássicas — I n s t i t u t o d e B i o c i ê n c i a s , l e t r a s e C i ê n c i a s E x a t a s — U N U S P — 15100 — S ã o José d o R i o P r e t o , S P . 101 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão linguística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. As noções mais elementares de física na especificação da localização consistem em: 1.°) pontos , linhas e planos de referência; 2.°) direções de referência. Pela geometria simples, os pon tos , l inhas e planos de referência definem as direções de referência. U m a direção perpendicular a um certo p lano adquire valor positivo em um dos lados e negativo em seu ou t ro lado . Esses conhecimentos sobre pon tos , linhas e planos são básicos para a concei tuação da noção de espaço do h o m e m . Para fundamenta rmos esses p lanos , t omemos a Clark as considerações feitas, no artigo ci tado, sobre a gravidade da terra e o nível do solo, representando primeiramen­ te como planos verticais x-y e y-z e, em seguida, como p lano hor izonta l , o p lano x-z. O plano horizontal — nível do solo separa os objetos que lhe estão acima e aba ixo . Para Clark, é arbitrária a valor ização positiva da direção para cima ou para baixo, u m a vez que a gravidade puxa os objetos pa ra baixo, e não em sentido contrário; porém argu­ menta que biologicamente a par te de cima é considerada positiva e a de baixo, negati­ va. Posit iva, porque os objetos que se s i tuam em cima da terra são perceptíveis aos ór­ gãos dos sentidos, e os que se si tuam em baixo, não . Quan to aos p lanos verticais, q u a n d o um biólogo considera o h o m e m , ele nota que o corpo tem simetria bilateral: órgãos e membros se dis t r ibuem à direita e à esquerda de um eixo vertical imaginário que passa pelo centro do co rpo . Esta relação direi ta /es­ querda de um dos p lanos verticais é a única relação simétrica no h o m e m . Convém ob­ servar que, embora biologicamente não se valorize o lado direito nem o esquerdo como positivo ou negat ivo, u m a vez que são simétricos, cul turalmente se atr ibui valor positi­ vo ao lado dire i to . Já no b r inquedo infantil — o "passará" — que agrupa os bons no "céu" e os maus no " i n f e r n o " , o "céu", de valor posit ivo, fica à direita, e o " infer­ n o " , de valor negat ivo, fica à esquerda . Um ou t ro p lano vertical no homem é definido pela relação assimétrica frente/trás, indicada pela posição dos órgãos dos sentidos da visão, da aud ição , o l fa to , que se pro­ jetam para a frente e não pa ra trás. Este fator da percepção também sugere como atri­ buir valores positivo e negativo às direções, a part ir dos dois planos de assimetr ia . Já que o que está à frente é visto, e o que está atrás não o é, atribui-se valor positivo ao primeiro e negativo ao segundo, assim c o m o se faz com a direção para cima, posit iva, e para baixo, negativa. Uma ou t ra característica impor tan te do homem é o fato de ser bípede (mantendo-se normalmente em posição ereta pa ra ver, ouvir , conversar e anda r ) . Esta posição ê de­ nominada canónica ou p a d r ã o . Neste caso, o vertical biológico coincide com o vertical geológico, e os dois planos verticais biológicos se fundem em um único vertical geológi­ co. O último fator biológico a ser discut ido, e este, pa ra nós, ganha aqui predominân­ cia, é que caracter is t icamente o homem se move em direção à frente, isto é, ele caminha para a direção que encara e não para trás, ou para o lado . Assim, a direção para a fren­ te terá valor posi t ivo; a direção pa ra trás, valor negat ivo, já que o movimento é normal na direção pa ra a frente e ano rma l para trás. Esquemat icamente temos que os planos biológicos do homem são: P L A N O D I R E Ç Ã O vertical 1: vertical 2: horizontal (para a) f rente / (para) trás (para a) d i re i ta / (para a) esquerda (para) cima / (para) baixo 102 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão lingüística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. Levando-se em con ta o p o n t o de vista psico-sociológico, o h o m e m é um animal so­ cial que não só desfruta da in teração social com out ras pessoas como por certo até ne­ cessite dela. Q u a n d o duas ou mais pessoas se encont ram para conversar , ambas se posi­ cionam normalmen te u m a de frente pa ra a ou t ra . Assim, na descrição que um ser faz de ou t ro , a Dosicão t o m a d a c o m o ótima é a que o põe de frente para ele (1). L O C A L I Z A Ç Ã O D O H O M E M N O ESPAÇO S O C I A L O p o n d o sociedade u r b a n a a comun idade rural , em que a primeira está para a se­ gunda assim como a cidade está para o c a m p o (sociedade u rbana : comunidade rural : cidade: campo) , e n q u a n t o e lemento da sociedade u rbana , o homem tem como espaço de localização a c idade. A descrição da cidade c o m o um todo faz-se aqui necessária para maiores esclareci­ mentos . Percebemo-la constituída de blocos, espaços limitados e privat ivos, e de ruas , espaços contínuos e públicos. As praças, por sua vez, se definem como espaços comple­ xos: si tuadas nos b locos , e não nas ruas , caracterizam-se, no en tan to , pelo aspecto pú­ blico de que se revestem. Já nas comunidades rurais não se dist inguem blocos, ruas , praças. A separar o cam­ po (propr iedade pr ivada) da es t rada (via pública), temos apenas os ba r rancos . Nos blocos ficam os prédios — espaços privados de diversas ordens : familiares, co­ merciais, insti tucionais (educacionais , instrutivos, recreativos e religiosos) e assisten­ ciais (sociais e de saúde). Os prédios const i tuem-se in ternamente de espaços mais ou menos pr ivados . Se alguns têm aposentos sociais, c o m o as salas-de-visita nas residên­ cias familiares e as salas-de-espera ou de a tend imento nos edifícios públicos, apresentam também out ros mais reservados e íntimos, como salas específicas para este ou aquele fim, dormitórios, banhe i ro , coz inha . . . E o acesso que o homem tem a este ou aquele cômodo, tan to num prédio familiar q u a n t o num prédio público, é regu lamentado por códigos sociais de h ierarquia e de ética que demons t ram a sua noção com respeito ao caráter pr ivado ou coletivo dos espaços que ocupa . Nas ruas , espaços livres, contínuos, não restri tos, nau pr ivados , e por isso a-sociais, por vezes até anti-sociais , dist inguem-se faixas amplas , para a circulação constante de veículos, e faixas mais restr i tas , para a travessia ocasional de pedestres. Po r sua vez, os veículos que t rans i tam nesse espaço livre das ruas ora se caracter izam como espaços privados (part iculares) , o ra c o m o coletivos (públicos). A calçada, por situar-se n u m a posição intermediária entre a rua e os blocos, e em nível superior ao da rua , define-se como um espaço semi-coletivo e semi-pr ivado. Na calçada, por exemplo , os abr igos representam espaços pr ivados , c o m o o espaço enco­ berto por um guarda-chuva representa , para o seu possuidor , um espaço part icular . . D a d a a sua localização entre os blocos e a rua, a calçada ganha um dup lo significa­ do: o seu lado vo l tado para den t ro , pa ra os blocos, reveste-se de um aspecto posi t ivo, de resguardo e p ro teção , e n q u a n t o que o lado vol tado para fora, para a rua, reveste-se de um aspecto negat ivo, sujeito ao con ta to com todo e qualquer nível social, até mes­ mo a-social ou anti-social , e, pois, per igoso, a r r i scado. Isso é facilmente perceptível no valor alcançado por certos c o m p o r t a m e n t o s sociais: q u a n d o a c o m p a n h a u m a mulher , se quer demons t ra r cons ideração por ela, o homem volta-a para o lado de den t ro ; se não, permite que ela siga vol tada pa ra o lado de fora. Já os mais jovens , em sinal de respeito, permitem aos mais velhos passagem pelo lado que se volta para os prédios. Também quem caminha pela calçada coloca-se n u m nível superior e mais seguro do 103 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão lingüística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. que quem caminha pelas ruas . A sarjeta, por sua vez, vai representar o espaço limítrofe entre a calçada e a rua . Essas noções todas vão se refletir na l inguagem, como passaremos a anal isar . O ESPAÇO E A L G U M A S DAS S U A S M A N I F E S T A Ç Õ E S E M E X P R E S S Õ E S DA LÍNGUA P O R T U G U E S A A percepção d o espaço pelo h o m e m reflete-se nas suas expressões lingüísticas de ca­ da dia. Assim observamos que, d a n d o valor posit ivo ao que está acima do nível ele­ mentar d o solo e valor negat ivo ao que está aba ixo desse nível, o falante da língua por­ tuguesa usa, em sentido f igurado, expressões c o m o estar ou ficar por c ima, estar ou fi­ car por ba ixo , ir aba ixo , ir po r água aba ixo . . . Expl iquemo-las . Estar por cima — em sentido d e n o t a d o , esta expressão significa o fato de encontrar-se um ser sobre ou t ro , como em: A capa estava por cima do p i ano . Em sentido c o n o t a d o , por cima reflete a superior idade mora l da pos ição . Ex. : Neste c a m p e o n a t o , é o Cor in th ians que está por cima. O mesmo vai ocorrer com ficar por cima, expressão que tem possibil idade de em­ prego em nível referencial ou f igurado. N o pr imeiro serve de exemplo a frase: O coco ra lado fica por cima d o bo lo . N o segundo: O seu t ime ficou por cima este a n o . P o r ci­ ma implica aqui super ior idade de competência esport iva. Estar por baixo — c o m o nos casos anter iores , t an to podemos usar estar por baixo em nível d e n o t a d o , q u a n t o em nvel c o n o t a d o . N o pr imeiro caso um exemplo poder ia ser: A mala estava por baixo do banco , na rodoviária — querendo dizer que a mala estava, em posição espacial , abaixo da posição do assento do b a n c o . N o segundo caso: a sua tu rma desta vez está pôr baixo — temos a indicação de u m a posição inferior, do p o n t o de vista mora l ou social. C o m ficar por baixo podemos exprimir posição espacial inferior ao nível elementar d o solo, como no exemplo : na confusão , o car regador ficou por baixo das malas . E m sentido fi­ gurado essa expressão significa " q u e d a r em si tuação social ou mora l de infer ior idade, deixar-se a b a t e r " . Serve de exemplo a este último sentido a frase: Na concorrência , a Fi rma X fica por baixo. Nas expressões anal isadas , o nível de super ior idade — inferioridade carrega, res­ pect ivamente, seu valor posit ivo — negat ivo. Ir abaixo — n o seu sentido próprio, esta expressão geralmente é usada c o m u m subs­ tant ivo de permeio , como : " i r escada a b a i x o " , " i r m o r r o a b a i x o " , o que significa res­ pect ivamente " r o l a r pela escada em direção ao c h ã o " , " r o l a r ou seguir m o r r o em dire­ ção ao s o l o " . Em sentido f igurado passa a significar " p e r d e r o v a l o r " , "de ixa r de vi­ g o r a r " , c o m o em: Essa lei já foi abaixo ( = perdeu o valor, deixou de vigorar) . Se no pr imeiro sent ido " a b a i x o " d e n o t a mov imen to em direção ao solo, pela força da gravi­ dade , no segundo cono ta queda mora l ou social, r eba ixamento , cons ideração inferiori­ zada . Ir por água abaixo — em seu sent ido próprio, a expressão significa " r o l a r pela correnteza da água que de nível mais a l to se precipita a nível mais b a i x o " . Ex . : O bar­ qu inho de papel foi por água abaixo. E m sentido f igurado, ir por água abaixo significa " a r r u i n a r - s e " , c o m o em: A F i rma X, com as especulações que fez, foi por água abaixo — isto é, a r ru inou-se . Se o nível superior tem um valor posi t ivo, o inferior ganha aqu i , com o seu valor negat ivo, u m sentido de d iminuição social. Também, en tendendo c o m o posit iva a direção pa ra a frente e negativa a direção pa­ ra trás, utiliza o h o m e m , em nível c o n o t a d o , as expressões: ser pra frente, mandar pra frente ser pra trás, ser pra lá de, ir longe... Vejamos: 104 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão lingüística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. Ser pra ftente — c o m o o h o m e m caminha na tu ra lmente pa ra a frente, a expressão ser p ra frente ganha o sentido de "definir-se posi t ivamente c o m o avançado, m o d e r n o , a t u a l i z a d o " , c o m o n o exemplo: Os pais de hoje têm de ser pra frente. Interessante é no ta r que a expressão " p r a f r en te" vem registrada no Dicionário de Gíria Brasileira (3 , p . 164), c o m o : " p r a t o f e i t o " . O exemplo é: " M a n d a um prafrente , com urgência. Senão eu desmaio agora m e s m o . O garção n ã o entendeu: — Q u e prafrente b esse, meu moço? — O r a meu chapa , é o p ra to f e i t o ! " (O Jornal, Rio , 5 / 0 2 / 7 0 , p . 1, 2.° cad . ) . Talvez esse significado se adap t e às circunstâncias da agi tação da vida a tual : tem-se sempre t an ta pressa na c a m i n h a d a que o " p r a t o f e i t o " nos res taurantes populares seria algo avançado, " p r a f r en t e " , que permite seguir logo, prosseguir rápido na marcha d o dia-a-dia. Mandar pra frente — esta expressão, constituída agora com um verbo de movimen­ to, em sentido referencial significa " o r d e n a r a alguém que se dirija à f r en t e " , c o m o em: Os soldados foram m a n d a d o s pra frente do pe lo tão . E m sentido f igurado, a ex­ pressão ganha o significado de " r o u b a r " , c o m o podemos ver no dicionário de gíria já c i tado: " . . . Os puxadores de carangos m a n d a r a m pra frente o Ae ro Willys d o Felinto Meireles das C h a g a s " . . . (Alf. Degani , Última Hora, São P a u l o , 2 1 / 0 1 / 7 0 , p . 15). Tal­ vez a l igação entre u m sentido e o u t r o esteja na direção que assume o que é a fas tado de um certo p o n t o , desl igando-se dele pela distância. Ser pra trás — em opos ição a ser pra frente, a expressão ser pra trás implica definir- se alguém c o m o " a t r a s a d o em relação aos avanços da ciência e d o c o m p o r t a m e n t o so­ c i a l " . Serve de exemplo a frase: O Jorge? N ã o conte com ele pa ra esta s i tuação: aquele sujeito é pra trás, está ainda n u m o u t r o século! Ser pra lá de— também esta expressão tem um sentido metafórico, na definição de alguém c o m o p o r t a d o r de certa qua l idade em intensificado grau . U m exemplo disso pode ser: José é pra lá de b o m . O " p r a lá d e " indica mov imen to em direção à frente, ao além, a o que vem depois de um de te rminado p o n t o de referência, ao que ul t rapassa esse p o n t o . P o r isso talvez ser pra lá de significa u l t rapassar certos limites, certos pon­ tos de referência. Ir longe — esta expressão t an to pode ser usada denota t ivamente q u a n t o conota t iva­ mente . N o pr imei ro aspecto significa " c a m i n h a r pa ra um local a fas tado de um cer to p o n t o de referência, c o m o em: O navio já ia longe do p o r t o . N o segundo significa " f a ­ zer p rog res sos" , c o m o em: Este a luno vai longe nos e s t u d o s . . . " A o que n ã o está à frente e é pos to de u m de seus lados , em relação à posição dian­ teira, o h o m e m desvaloriza, c o m o podemos ver pelas expressões: mandar pra longe, sair pela tangente. Mandar pra lateral— esta expressão, usada em sentido d e n o t a d o , significa " o r d e ­ nar a alguém que se dirija pa ra um p o n t o ou u m a di reção lateral , em relação a um cen­ t r o " . Assim, pode-se dizer: O técnico mandou o cen t roavante pra lateral. E m sentido cono tado , porém, significa "marg ina l i za r alguém", ou "fugi r de certo assun to , des­ conversando d e l e " . D o pr imei ro sentido p o d e m o s citar c o m o exemplo: M a n d e esse ca­ m a r a d a pra lateral: ele já está par t i c ipando demais da sua vida. D o segundo sent ido, damos c o m o exemplo o c i tado à página 131 do Dicionário da Gíria Brasileira, ao qual já fizemos referência: " . . . Cr ioula , a gente assim abre falência. 105 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão linguística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. Mandei pra lateral: — Que nada , Neném! Bota essa boca p ra l o n g e " . (Elza Soares, Minha vida com Mané, p . 120.) Convém considerar aqui que o conhec imento dos valores de posição nesse esporte popula r — o futebol — talvez prevaleça sobre a própria noção do h o m e m acerca do es­ paço em si m e s m o . Sair pela tangente — a expressão aparece , em sentido f igurado, com o valor de " e squ iva r - s e " . C i t amos o exemplo do Dicionário da Gíria Brasileira, à p . 178: " . . . — Estou te a chando es t r anho . Algum prob lema? Sílvio sai pela tangente. — Sei lá..." (Antônio Conten te , Última Hora, S .P . , 2 4 / 1 2 / 6 9 , p . 14). Significando " t a n g e n t e " a l inha que toca o u t r a l inha ou superfície n u m só p o n t o , a percepção desse leve con ta to faz com que o homem use a expressão sair pela tangente como quem se apoia nessa l inha, nesse p o n t o , para poder , tão sut i lmente q u a n t o a pró­ pria tangente , escapar-se de u m a certa s i tuação, de um certo c o m p r o m e t i m e n t o . C o m ju lgamentos associados a valores respect ivamente posit ivos e negativos d o que está dent ro e fora, manifesta o falante expressões lingüísticas c o m o : dar uma dentro, dar um fora, estar por dentro, estar por fora, mandar pra dentro, sumir do mapa... E m b o r a variem aqui as bases significativas verbais , a lexia espacial é sempre a mesma . Dar uma dentro — esta locução, assim es t ru turada , tem significado f igurado e quer dizer "ag i r com a c e r t o " . Ex . : " . . . Defini t ivamente os editores deste jo rna l n ã o dão umadentro." (Mare . Fern . , O P a s q u i m , . . . 2 9 / 0 9 / 7 0 , p . 3 1 , apud Silva, p . 65). Dar um fora — em oposição à expressão anter ior , temos dar um fora, ins inuando: "desfazer um compromisso a m o r o s o " , ou a inda " p r o n u n c i a r coisas inconvenientes à s i t u a ç ã o " , c o m o nos exemplos: Jorge deu um fora comentadíssimo na noiva; Puxa , mas você on tem m e envergonhou , com os foras que deu na reun ião! Estar por dentro— o valor pr imeiro , referencial, desta expressão deno ta um ser lo­ calizado no interior de o u t r o . Ex . : O recheio está por dentro do bo lo ; A seiva está por dentro dos r a m o s . O sentido segundo, f igurado, cono ta "e s t a r a par de u m a s i tuação, estar a t u a l i z a d o . " Ex . : " V i um documentário sobre isso: estou por dentro." ( P a u l o Mendes C a m p o s , Manche te , 2 7 / 0 9 / 6 9 , p . 134, apud Dicionário da Gíria Brasileira, p . 91). A interiorização de um elemento fá-Io par te intrínseca do co rpo em que pene t ra , enriquece-o. Estar por fora — A expressão designa o "encon t ra r - se um ser na pa r te externa de um ou t ro ser, t o m a d o c o m o p o n t o de re fe rênc ia" . Ex. : A camisa estava por fora das calças. Em sent ido f igurado, porém, estar por fora ganha o significado de " e s t a r desa­ t u a l i z a d o " , ignorar de te rminado assunto ou s i t u a ç ã o . " Ex . : Aquele médico está por fora do progresso d a Medic ina . Mandar pra dentro — no exemplo: A m ã e m a n d o u o filho pra dentro, quer dizer que a mãe o rdenou ao filho que entrasse, que se interiorizasse na casa . N a frase " . . . Fa lando Boa Vista, o agente César J. Pa iva m a n d o u o traf icante José Gonçalves d a Sil­ va pra dentro, com dez p a c a u s . " (in R a m ã o Gomes P o r t ã o , Notícias Populares, S. Pau lo , 2 9 / 0 1 / 7 0 , p . 11, apud Dicionário da Gíria Brasileira, p . 131) — o sentido da ex­ pressão ê " p r e n d e r " . E " p r e n d e r " está ligado a " in ter ior izar em ce l a " . T a n t o pa ra a mãe , interessada em resguardar o filho, q u a n t o pa ra o policial, interessado em resguar­ dar a sociedade dos marginais , " m a n d a r p ra d e n t r o " é assegurar esse resguardo , a inda que com perspectivas diferentes. Também encon t r amos a expressão com o sentido de " e n g o l i r " , como no caso: Ele m a n d o u o c o n h a q u e pra dentro, a fim de reconfor tar-se . Sair fora— a expressão, em seu sentido próprio, é p leonasmo vulgar: Ele saiu fora, 106 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão linguística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. para ver a noite — significando "dir igir-se pa ra o exterior de um de te rminado l o c a l . " Em seu sentido metafórico, implica "esquivar-se de u m a certa s i t u a ç ã o " , como no exemplo: N a hora do acer to de contas , Jorge saiu fora: disse que não se responsabiliza­ va pela dívida, po rque n ã o au tor iza ra certas compras . E n q u a n t o o espaço interior parece envolver um certo compromet imen to com a família ou os superiores , com a sociedade em geral, o espaço exterior oferece u m a certa l iberdade e desl igamento de possíveis compromissos familiares ou sociais. Isso permite que a expressão sair fora ganhe o sentido acima i lus t rado. Sumir do mapa — Se se diz: De t ão ant igos , os traços já estão sumindo do mapa — quer-se dizer: os traços "es tão-se a p a g a n d o " . Mas , no exemplo: " . . . Depois dessa — que a gente n ã o pode e não deve con ta r p ra ninguém — o melhor mesmo é sumir um pouco do m a p a . . . " ( R a m ã o Gomes P o r t ã o , " E u sou o s a p o n g a " , p . 6 1 , apud Dicionário da Gíria Brasileira, p . 183) —a expressão alcança o sen t idode"desapa rece r evadir-se, ocultar-se, sair dos l imi te s" . Conf igurando o m a p a as l inhas limítrofes e de- marcadoras de certos espaços políticos e geográficos, sumir do m a p a significa evadir-se desses limites, buscar u m a certa l iberdade, um certo desconhecimento de registros. É a l iberdade espacial e social que se logra fora dos âmbitos de comun idade ou g rupo . Intessa-nos, porém, sobremane i ra , neste es tudo que fazemos, o espaço social u rba­ no em que vive o h o m e m . P a s s a m o s en tão ao exame de certas expressões que , enquan­ to deno tam esse espaço, podem em de te rminados contextos , cono ta r u m a posição so­ cial decorrente dele, ou m e s m o um es tado psíquico ou u m a si tuação mora l a ele asso­ ciados. O pr imeiro exemplo que nos vem à mente , dadas as considerações feitas sobre o po ­ s ic ionamento d o h o m e m e n q u a n t o ser social, é o da expressão estar na sarjeta. Estas palavras t an to podem significar, denota t ivamente , "pos ic ionar -se no espaço que fica entre a rua e a calçada", c o m o , conota t ivamente , "encon t ra r - se em má si tuação mora l ou soc ia l " . D o pr imei ro caso serve c o m o exemplo: O andar i lho estava ali, na sarjeta, indeciso em seguir r u m o à calçada, ou r u m o à rua . Do segundo caso, a frase: P o b r e J o ã o , está na sarjeta! D a d a a falência da firma e a idade que tem, dificilmente poderá refaser-se. . . Aqui , o que se quer dizer é que esse h o m e m encontra-se em péssimas con­ dições econômico-sociais. A sarjeta, entre a rua e a calçada, evoca o lugar por onde passa a água da chuva , por onde corre a enxur rada , o lugar onde a t i ram papéis e coisas sem mais serventia, o lugar onde a inda se a t i r am, desprendidos de certos valores, os bê­ bados e os marginais . Tal espaço serve, assim, pa ra a significação f igurada daquele que é marginal izado pela inut i l idade ou desvalor. E n q u a n t o nos blocos da calçada se fir­ m a m as famílias e as instituições sociais, devidamente asseguradas , e no espaço livre das ruas passam os homens mais desprendidos das ligações cul turais , a sarjeta, entre um e ou t ro espaço, cono ta a s i tuação c o m p r o m e t e d o r a daquele que , a inda l igado a princípios e preconcei tos sociais, se vê tocado pela p rox imidade d o que significa cair no desconhecido da rua , no obscuran t i smo a que estaria sujeito por entre a mul t idão , na desconsideração que cerca o marg ina l izado . Há out ras expressões deno tadoras de espaço e cono tado ra s de situações sociais, al­ gumas vezes também de envolvimentos psíquicos e éticos: Estar em maus lençóis — e m b o r a referencialmente esta expressão seja perfei tamente compreensível como d e n o t a d o r a de quem se encont ra em lençóis de má qual idade , ab­ solu tamente é ut i l izada em tal sent ido. Desliza pa ra o nível da cono tação . Estar em maus lençóis indica a dif iculdade da s i tuação mora l em que se vê aquele que n ã o encon­ tra solução pa ra os p rob lemas por que se deixou envolver. "Lençóis P a u l i s t a " evoca 107 MARTINS, S. J. de A. — O espaço e a expressão lingüística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. espaços que d ã o para os fundos dos blocos residenciais, pa ra trás dos prédios, e, pois , mais reservados e íntimos. Também convém afi rmar que essas fossas têm ligação com o serviço de esgoto que passa , em geral , sob as sarjetas. C o m se vê, o espaço des t inado às fossas tem, por sua na tureza e local ização, um valor socialmente subes t imado . E es­ tar na fossa, no aspecto afetivo, também subest ima o es tado de espírito de quem assim se sente. Estar no lixo — a lguma coisa pode encontrar-se no depósito de lixo de u m local e dela se diz: "está no l i x o " . E m sentido f igurado, no en tan to , a expressão significa " e s ­ tar no baixo meretrício", associando-se o espaço reservado a imundícies de na tureza física ao espaço des t inado a "imundícies" de o rdem mora l . Cair na zona — em sentido próprio, esta expressão acompanha-se gera lmente de um adjet ivo, c o m o no exemplo : O avião caiu na zona p ro ib ida . Mas cair na zona, as­ sim es t ru turada , ganha sent ido f igurado: " z o n a " passa a ser o perímetro u r b a n o confi­ nado às mulheres de vida livre, e, pois , u m espaço de na tureza complexa, também, u m a vez que , c o m o bloco, é algo pr ivado ao público, próprio de todos . E m Mar ie ta caiu na zona, que remos af i rmar que Mar ie ta decidiu-se por u m a vida mora l livre, não sujeita aos rígidos padrões morais prescri tos pela sociedade. Cair no mundo — esta expressão, em sentido próprio, pode ser usada assim, por exemplo: J o ã o caiu no mundo por acaso , ou seja, J o ã o veio ao m u n d o sem que fosse esperado, p lane jado , sem in tencional idades . . . Em sentido f igurado, porém, significa "deixar-se levar a esmo, sem dest ino, c o m o quem quer anular-se em meio à mul t idão , confundindo-se com e l a " . O " m u n d o " seria o espaço sem limites, o contínuo, o infini­ to , a l iberdade sem restrições. Entrar (ou sair) pelo cano — apl icada esta fo rma a u m ser h u m a n o qua lquer , ganha sentido c o n o t a d o , u m a vez que esse e lemento (espécie de t ubo gera lmente subterrâneo que permite o escoamento de líquidos ou gases ou dejetos) t an to não c o m p o r t a o volu­ me de um h o m e m q u a n t o n ã o se dest ina a ele. Entrar pelo cano (ou ent rar pela tubula­ ção) significa, pois , metafor icamente , enfiar-se o h o m e m n u m a si tuação tão difícil que não lhe seja permi t ido safar-se dela. O espaço, por estreito que é, re la t ivamente ao ser h u m a n o , n ã o lhe concede passagem, n ã o lhe permite saídas, d o n d e o sair pelo cano significa igualmente "sa i r -se m a l " . Ex. N o torneio de xadrez, Joca entrou (ou saiu)pe­ lo cano. Ficar na rua, ou ir pra rua — q u a n t o a estas expressões, têm alta freqüência, t an to no sentido denota t ivo q u a n t o no sentido cono ta t ivo . N o pr imeiro , representam o "deixar-se estar na rua ou ir pa ra aquele espaço contínuo e livre, descompromissado soc ia lmen te" . N o segundo, p o d e m ganhar a acepção de " se r d e m i t i d o " , ou seja, de " se r o h o m e m pos to fora do lugar onde desempenhava certa função social e, pois , à margem do seu papel de e lemento in tegrado n u m g rupo de t r a b a l h o " . E x . ' C o m a dis­ pensa de empregados , J o ã o ficou na rua (ou foi para a rua). Também pode a expressão " i r p ra r u a " significar " se r d e s p e j a d o " : Ele não pagou os aluguéis; logo, foi pra rua. C o m o vemos, o espaço físico pode estar cono t adamen te l igado à s i tuação social . Ser da paróquia — no sentido c o m u m , a expressão quer dizer "per tencer à comuni ­ dade religiosa de um de te rminado ba i r ro ou l o c a l " ; n o sent ido metafórico, "per tencer a um de te rminado g r u p o social, a u m a certa t u r m a com de te rminados c o m p o r t a m e n t o s e princípios". C o m o exemplo d o pr imeiro sent ido, temos: C o m o José é da paróquia de Santo Antônio, casar-se-á ali. C o m o exemplo do segundo sent ido, temos: O Jorge? Ele não é da paróquia: vai es t ranhar nossa reação . 109 MARTINS, S.J. de A. — O espaço e a expressão lingüística. Alfa, São Paulo, 29:101-110, 1985. C O N C L U S Ã O Talvez pudéssemos estender exaust ivamente a relação de expressões de tal t ipo . Acredi tamos, porém, que é suficiente o l evan tamento feito. P o r ele vemos que o ho ­ mem relaciona es t re i tamente a percepção espacial que tem d o m u n d o que o cerca com as expressões lingüísticas que utiliza pa ra definir as manei ras c o m o nele se s i tua. Freqüentemente usadas em expressões de gíria, as locuções vistas, e m e s m o alguns vocábulos, revelam o domínio lingüístico que tem a massa popula r sobre a percepção espacial, sobre a mane i ra de ver e de sentir o m u n d o em que se insere. Esse re lac ionamento da percepção d o espaço com a sua manifes tação na língua tem apoio nas af i rmações feitas por Clark , n o ar t igo c i tado . P a r a o es tudioso, d o t a d a bio­ logicamente pa ra observar o que a rodeia , a criança tem possibil idade de percepção es­ pacial e essa percepção é preservada nos te rmos lingüísticos que na tu ra lmen te vai ad­ qui r indo e d o m i n a n d o . Assim mantém u m a correlação entre o espaço perceptual e o es­ paço lingüístico. E , desenvolvendo-se, n ã o só resguarda, como falante, essa correla­ ção, q u a n t o vai tecendo associações mais complexas e r icas. MARTINS, S.J. de A. — The space and its linguistic expression. Alfa, Sao Paulo, 29:101-110, 1985. ABSTRACT: Retaking Herbert Clark's explanations concerning the man's perception of the uni­ verse he is included, and trying to relate this perception with his linguistic manifestation, this study analyses the manner the perception of this space is performed in the Portuguese language; certain ex­ pressions, especially those indicating man's place as a social being are considered. KE Y- WORDS: Space; perception; man-social being; linguistic manifestation of the social space. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. ARRAIS, T .C . — Apontamentos de aulas dadas no Curso sobre Semântica Portuguesa. Arara- quara, ILCSE, UNESP, 1979. 2. CLARK, H . H . — Space, Time, Semantics, and the Child. Im MOORE, T. ed. — Cognitive de­ velopment and the acquisition of language, New York, Academic Press, 1973. p . 27-64. 3. SILVA, E .C . — Dicionário da Gíria Brasileira, Rio de Janeiro, Bloch Ed. , 1973. 110