UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE Programa de Pós-Graduação em Geografia _____________________________________________ LARISSA TAVARES MORENO OS TRABALHADORES ARTESANAIS DO MAR EM UBATUBA/SP: A DINÂMICA TERRITORIAL DO CONFLITO E DA RESISTÊNCIA Presidente Prudente 2017 LARISSA TAVARES MORENO OS TRABALHADORES ARTESANAIS DO MAR EM UBATUBA/SP: A DINÂMICA TERRITORIAL DO CONFLITO E DA RESISTÊNCIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Geografia - Área de Concentração "Produção do Espaço Geográfico" - da FCT/UNESP, como requisito para a obtenção do Título de Mestra em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal Agência de fomento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Processo FAPESP nº 2014/01907-2 Grupo de Pesquisa Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGeT-UNESP) Presidente Prudente 2017 FICHA CATALOGRÁFICA Moreno, Larissa Tavares. C319t Os trabalhadores artesanais do mar em Ubatuba/SP : a dinâmica territorial do conflito e da resistência / Larissa Tavares Moreno. - Presidente Prudente : [s.n.], 2017 222 f. Orientador: Marcelo Dornelis Carvalhal Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Pescadores(as) artesanais. 2. Trabalho. 3. Território. 4. Conflitos. 5. Resistências I. Carvalhal, Marcelo Dornelis. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. DEDICATÓRIA Aos meus pais Valderez e Celso, obrigada pela força, amor e por estarem comigo sempre! As minhas irmãs Caroline e Nicole, pela amizade e por sempre se fazerem presentes. Ao Thiago, meu companheiro que com sua paciência e amor me incentivou nessa caminhada. Aos pescadores e pescadoras artesanais de Ubatuba, por compartilharem suas experiências, histórias e lutas, sem vocês essa pesquisa não seria possível! AGRADECIMENTOS A construção dessa dissertação de mestrado exigiu um esforço científico, compreendendo as dimensões teórica, trabalhos de campo e coletas de dados, mas também de relações sociais e familiares, sem as quais essa pesquisa também não se concretizaria. Afinal, nesses momentos são compartilhados conhecimentos, aprendizados e críticas que auxiliam no processo de desenvolvimento da pesquisa. Assim, inicio agradecendo aos meus familiares, em especial a minha mãe, meu pai, minhas irmãs, tios, tias, primos, primas, avôs e avós. Obrigada por sempre me incentivarem nesses anos de Universidade. Ao meu companheiro Thiago, pelo carinho, paciência, amor e pela horas de diálogo sobre a pesquisa. Ao Prof. Marcelo Dornelis Carvalhal, pela orientação e oportunidade de aprendizado e amizade. Aos colegas e amigos da rede CEGeT, pelos momentos de diálogo, aprendizagem e confraternizações. As amizades e parcerias construídas ao longo do mestrado: Sidney, Diógenes, Robinzon, Yolima, Male, Fernando, Guilherme, Soninha, Daiane, Daia, Silas, Cacá, Jane, Fran, Tássio, Jô, Hellen, Baiano, Núbia, Vivi, Julian e a senhora Tulia. Aos membros da banca de qualificação Antonio Thomaz Júnior e Eduardo Schiavone Cardoso pelas valiosas sugestões e contribuições. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP pelas aulas e conhecimentos compartilhados. Ao professor Juan Carlos Celis Ospina, colegas da UNAL e amigos/família colombiana pela ajuda, conhecimentos e experiências partilhadas durante o estágio na Colômbia. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, da Biblioteca e do Escritório de Pesquisa da FCT/UNESP pela atenção, paciência e ajuda nesse percurso do mestrado. Ao CNPq pelo financiamento inicial da pesquisa. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro (Processo FAPESP nº2014/01907-2) que possibilitou dedicação exclusiva a pesquisa e a oportunidade de estágio no exterior. À Jô, Diógenes, Sidney e Thiago pelas leituras e críticas que possibilitaram avanços da pesquisa. Aos pescadores e pescadoras artesanais entrevistados, pela confiança e diálogo durante os trabalhos de campo. A tod@s, meu muito obrigada! RESUMO O presente estudo geográfico tem como fulcro central a compreensão da trama de usos, disputas, conflitos e resistências que envolvem os pescadores e as pescadoras artesanais de Ubatuba, município localizado no Litoral Norte Paulista. Haja vista que, diante do processo de produção e reprodução do capital esses(as) trabalhadores(as) artesanais do mar têm passado por transformações do seu processo de trabalho e também em seus espaços/territórios. Aliás, desde os tempos remotos no Brasil, a pesca artesanal é um setor pouco incentivado no que tange às condições de trabalho, acesso a créditos e incentivos produtivos, baixa escolaridade e políticas específicas. O que desestimula significativamente a atividade pesqueira artesanal, que somado a outros entraves e conflitos acarreta um conjunto de fatores prejudiciais à perpetuação dessa atividade laboral tradicional. Decorrente disso, analisamos os processos ligados à vida e ao trabalho desses(as) pescadores(as), de maneira a verificar as mudanças técnicas, ambientais e mercadológicas produzidas pelo capital, em consonância com o Estado brasileiro e que rebatem sobre a identificação de ser pescador e pescadora. Sendo assim necessário refletir sobre a gestão e as políticas desenvolvidas pelo Estado e como se encontra a realidade da pesca, ou seja, do setor pesqueiro no Brasil. Mencionando ainda as resistências e alternativas emanadas pelos(as) trabalhadores(as) artesanais do mar, que cotidianamente lutam e enfrentam os conflitos e disputas, a fim de assegurar o seu direito ao trabalho, modo de vida e território. Palavras-chave: Pescadores(as) artesanais. Trabalho. Território. Conflitos. Resistências. RESUMEN El siguiente estudio geográfico tiene como eje central la comprensión de la trama de usos, disputas, conflictos y resistencias que envuelven a los pescadores y pescadoras artesanales de Ubatuba, municipio localizado en el Litoral Norte Paulista. En este sentido, frente al proceso de producción y reproducción del capital esos(as) trabajadores(as) artesanales del mar han pasado por transformaciones de su propio proceso de trabajo y también en sus espacios/territorios. Además, desde tiempos remotos en Brasil, la pesca artesanal es un sector poco incentivado en lo que concierne a las condiciones de trabajo, acceso a créditos e incentivos productivos, baja escolaridad y políticas específicas. Esto desestimula significativamente la actividad pesquera artesanal que, sumada a otras dificultades y conflictos, acarrea un conjunto de factores perjudiciales a la perpetuación de esa actividad laboral tradicional. En consecuencia, analizamos los procesos ligados a la vida y al trabajo de esos(as) pescadores(as) para, de esta forma, verificar los cambios técnicos, ambientales y mercadológicos producidos por el capital, en consonancia con el Estado brasileiro y que contradicen la identidad de ser pescador y pescadora. Siendo así, es necesario reflexionar sobre la gestión y las políticas desarrolladas por el Estado y cómo se encuentra la realidad de la pesca, o sea del sector pesquero en Brasil. Mencionando también las resistencias y alternativas emanadas de los(as) trabajadores(as) artesanales del mar, que cotidianamente luchan y enfrentan los conflictos y disputas, con el fin de asegurar su derecho al trabajo, modo de vida y territorio. Palabras clave: Pescadores(as) artesanales. Trabajo. Territorios. Conflictos. Resistencias. LISTA DE QUADROS Quadro 1: Distribuição dos pescadores profissionais inscritos/ativos no RGP até 25/03/2016, por unidade federativa e região do Brasil. ................................................................................ 35 Quadro 2: Produção nacional de pescados entre os anos 1960 a 2002................................... 123 Quadro 3: Produção nacional de pescados em toneladas. ...................................................... 124 Quadro 4: Crescimento demográfico de Ubatuba. ................................................................. 140 Quadro 5: Unidades de Conservação presentes em Ubatuba/SP. ........................................... 155 Quadro 6: Qualidade das praias em Ubatuba entre 2006 e 2015............................................ 176 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Relação de pescadores profissionais inscritos no RGP por categoria. .................... 36 Gráfico 2: Relação do emprego formal por setor de atividade em Ubatuba. .......................... 44 Gráfico 3: Grau de urbanização entre 1980 e 2014. ............................................................... 140 LISTA DE MAPAS Mapa 1: Localização do município de Ubatuba/SP. ................................................................ 43 Mapa 2: Localização do campo mexilhão, Bacia de Santos................................................... 147 Mapa 3: Empreendimentos da Petrobrás no Pré-Sal na Bacia de Santos. .............................. 148 Mapa 4: Área de influência do empreendimento.................................................................... 150 Mapa 5: Unidades de Conservação Marinha em Ubatuba/SP ............................................... 157 Mapa 6: A trama de usos e conflitos territoriais que envolvem os pescadores e as pescadoras artesanais de Ubatuba/SP........................................................................................................ 196 LISTAS DE FIGURAS Figura 1: Mulheres e jovens trabalhando no beneficiamento e comercialização do pescado no Mercado Municipal de Peixe. ................................................................................................... 53 Figura 2: Mulher trabalhando na preparação da rede para a lida pesqueira, no Rancho de Pescadores do Itaguá. ............................................................................................................... 53 Figura 3: Redes usadas para a pesca de corvina e pescada. ..................................................... 55 Figura 4: Técnica de arrasto para a captura de camarão. .......................................................... 55 Figura 5: No primeiro plano está uma embarcação usada para pescar camarão. ..................... 56 Figura 6: Embarcações de madeira usada para captura de peixes. ........................................... 56 Figura 7: Lancha a motor.......................................................................................................... 57 Figura 8: Canoas a remo. .......................................................................................................... 57 Figura 9: Charge Zumbi: contra as medidas que ameaçam os direitos e modo de vida dos pescadores artesanais brasileiros. ........................................................................................... 115 Figura 10: Disponibilidade de água doce e produção aquícola. ............................................. 129 Figura 11: Prédios e hospedagens de uso ocasional, Praia Grande em Ubatuba. ................... 141 Figura 12: Marina náutica localizada no Saco da Ribeira em Ubatuba.................................. 145 Figura 13: Descarregamento de pescaria industrial no píer do Saco da Ribeira. ................... 166 Figura 14: Mercado Municipal de Peixe, localizado na Ilha dos Pescadores......................... 169 Figura 15: Ponto de comercialização de pescados no Rancho de Pesca do Itaguá. ............... 171 Figura 16: Domicílios permanentes ocupados com rede de abastecimento de água. ............. 174 Figura 17: Ilha dos Pescadores. .............................................................................................. 175 Figura 18: Bomba de óleo do Programa de Subvenção ao Preço do Óleo Diesel Marítimo do Governo Federal. .................................................................................................................... 180 Figura 19: 92ª Festa de São Pedro Pescador em Ubatuba. ..................................................... 183 Figura 20: Corrida de canoas em Ubatuba. ............................................................................ 186 Figura 21: Reunião de diagnóstico da APAMLN com a comunidade pesqueira artesanal em Ubatuba. .................................................................................................................................. 188 Figura 22: Produção de mariscos na Barra Seca. ................................................................... 192 Figura 23: Gaiolas usadas para a produção de vieiras na Ilha das Couves. ........................... 193 Figura 24: "Pescador-lancheiro" fazendo transporte de turistas em Ubatuba. ....................... 194 LISTA DOS FLUXOGRAMAS Fluxograma 1: A dinâmica territorial do conflito em Ubatuba. ............................................. 138 Fluxograma 2: Cadeia produtiva da pesca em Ubatuba ......................................................... 173 LISTA DE SIGLAS ANP = Articulação Nacional das Pescadoras APAMLN = Área de Proteção Ambiental Marinha do Litoral Norte BNDES = Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BM = Banco Mundial BID = Banco Interamericano de Desenvolvimento CEAGESP = Companhia de Entreposto e Armazéns Gerais de São Paulo CEGeT = Centro de Estudos de Geografia do Trabalho CEP = Comissão Executiva da Pesca CETAS = Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde CF = Constituição Federal COMTUR = Companhia Municipal de Turismo de Ubatuba CONAPE = Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca CONDEPE = Conselho de Desenvolvimento da Pesca CONFREM = Comissão Nacional das RESEX Marinhas CONSEMA = Conselho Estadual do Meio Ambiente CPP = Conselho Pastoral dos Pescadores DCP = Divisão de Caça e Pesca DPA = Departamento de Pesca e Aquicultura EIA-RIMA = Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental FAO = Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura FAPESP = Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FMI = Fundo Monetário Internacional FUNDART = Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba GATT = Acordo Geral de Tarifas e Comércio GESPE = Grupo Executivo do Setor Pesqueiro IBAMA = Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis INCRA = Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INSS = Instituto Nacional do Seguro Social ITESP = Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo MAPA = Ministério da Agricultura, Abastecimento e Pecuária MDA = Ministério do Desenvolvimento Agrário MMA = Ministério do Meio Ambiente MONAPE = Movimento Nacional dos Pescadores MPA = Ministério da Pesca e Aquicultura MPP = Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil MST = Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra OIT = Organização Internacional do Trabalho OMC = Organização Mundial do Comércio ONU = Organização das Nações Unidas PAC = Programa de Aceleração do Crescimento PE = Parque Estadual PESM = Parque Estadual da Serra do Mar PNDPs = Planos Nacionais de Desenvolvimento da Pesca PNGC = Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro PNPCT = Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais PROBORDO = Programa Nacional de Observadores de Bordo da Frota Pesqueira PROFROTA = Programa Nacional de Financiamento da Ampliação e Modernização da Frota Pesqueira Nacional PRONAF = Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONERA = Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária PSDB = Partido da Social Democracia Brasileira PT = Partido dos Trabalhadores RESEXMar = Reservas Extrativistas Marinhas RGP = Registro Geral da Atividade Pesqueira RPPN = Reserva Particular de Patrimônio Público SABESP = Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo SEADE = Fundação Sistema Estadual de Análises de Dados SEAP/PR = Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República SEIF = Secretaria de Infraestrutura e Fomento da Pesca e Aquicultura SEMOC = Secretaria de Monitoramento e Controle da Pesca e Aquicultura SEPOA = Secretaria de Planejamento e Ordenamento da Aquicultura SEPOP = Secretaria de Planejamento e Ordenamento da Pesca S.I.F = Serviço de Inspeção Federal SINAU = Sistema de Informação das Autorizações de Uso das Águas de Domínio da União para fins de Aquicultura SNUC = Sistema Nacional de Unidade de Conservação da Natureza SUDEPE = Superintendência de Desenvolvimento da Pesca TEBAR = Terminal Almirante Barroso UCs = Unidades de Conservação UF = Unidade da Federação UFRRJ = Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UNESP = Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" UTGCA = Unidade de Tratamento de Gás Monteiro Lobato de Caraguatatuba ZEE = Zona Econômica Exclusiva SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 19 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21 CAPÍTULO 1: OS(AS) PESCADORES(AS) ARTESANAIS: PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SÓCIO-LABORAL E O CAPITAL ........................................................ 33 1.1 A pesca e o(a) pescador(a) artesanal: apontamentos iniciais ....................................... 33 1.2 O lócus e os sujeitos sociais da pesquisa ......................................................................... 42 1.2.1 Navegando pela história da pesca em Ubatuba .............................................................. 46 1.2.2 A produção e reprodução social dos(as) pescadores(as) artesanais ubatubanos .......... 52 1.3 Apropriação e expropriação da sociedade e da natureza: o trabalho sob o capital ... 59 CAPÍTULO 2: A TRAJETÓRIA DO SETOR PESQUEIRO NA HISTÓRIA DO BRASIL ................................................................................................................................... 69 2.1 Os primeiros interesses à pesca e aos pescadores: do período colonial ao imperial ... 69 2.2 A missão nacionalista à pesca: regulamentação e controle dos pescadores ................ 74 2.3 O papel da SUDEPE na pesca: caiu na rede é... modernização? ................................. 80 2.4 A atuação do IBAMA e do DPA: reflexos da década neoliberal no setor pesqueiro . 84 2.5 O período de atuação da SEAP/PR: uma reorganização institucional? ..................... 87 2.6 A curta história de um ministério: a atuação do MPA ................................................. 93 2.7 A luta por direitos dos pescadores e pescadoras artesanais: movimentos sociais de âmbito nacional ....................................................................................................................... 99 CAPÍTULO 3: A (DES)ESTRUTURAÇÃO DO DIREITO AO TRABALHO DOS(AS) PESCADORES(AS) ARTESANAIS ................................................................................... 104 3.1 O reconhecimento jurídico-legal da pesca artesanal no Brasil .................................. 104 3.2 A recente desestruturação do direito ao trabalho ....................................................... 110 3.3 A (in)sustentabilidade da pesca e do pescador artesanal: perspectivas futuras ....... 118 CAPÍTULO 4: OS CONFLITOS E AS RESISTÊNCIAS NO MAR E NA TERRA: O(S) TERRITÓRIO(S) DOS(AS) PESCADORES(AS) ARTESANAIS .................................. 133 4.1 Um mar de conflitos envolvem os(as) pescadores(as) artesanais de Ubatuba .......... 136 4.1.1 Os empreendimentos turísticos e imobiliários .............................................................. 139 4.1.2 Empreendimento petrolífero: o projeto Mexilhão ......................................................... 146 4.1.3 A questão ambiental e as tensões na/da gestão dos recursos e territórios tradicionais ................................................................................................................................................ 152 4.1.4 A cadeia produtiva da pesca ......................................................................................... 164 4.1.5 Saneamento ambiental ................................................................................................... 173 4.1.6 Direito do/ao trabalho ................................................................................................... 177 4.2 Tecendo alternativas e resistências ............................................................................... 182 4.2.1 Aspectos culturais .......................................................................................................... 182 4.2.2 O campo político ........................................................................................................... 187 4.2.3 A plasticidade laboral do(a) pescador(a) artesanal ..................................................... 191 4.3.4 A autonomia enquanto resistência: a permanência do/no trabalho e território ........... 194 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 199 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 204 19 APRESENTAÇÃO A presente dissertação dá continuidade às preocupações de pesquisa desenvolvidas na graduação em Geografia cursada na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Ourinhos, que trazia uma dupla inquietação. De um lado, uma necessidade de se investigar as histórias e estórias dos meus familiares maternos que tinham (e de certo modo ainda tem) uma íntima relação com a pesca artesanal, sendo a atividade essencial de sustento e realização da família, e por outro, a necessidade de se compreender as transformações dessa atividade laboral, os entraves e disputas que os sujeitos pescadores, suas famílias e comunidades vivenciaram ao longo dos anos em Ubatuba/SP. O processo de construção da pesquisa de iniciação científica, que depois se constituiu no Trabalho de Conclusão de Curso 1 desenvolveu-se, sobretudo, a partir de 2012 quando ingressamos ao Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGeT). O CEGeT é um grupo de pesquisa ligado ao curso de graduação e pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Presidente Prudente, sob coordenação geral do professor Antonio Thomaz Júnior, mas que possui núcleos de pesquisadores em outras universidades espalhadas por todo o Brasil. No ano de 2016, o CEGeT completou 20 anos de criação e desenvolvimento de inúmeras pesquisas em nível de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. As discussões e reuniões nesse coletivo nos possibilitaram ampliar o olhar de análise e compreensão do que é a Geografia, que não deve ser pensada pela fragmentação dicotômica entre a Geografia Física e a Geografia Humana, e mais, nos possibilitou compreender a Geografia constituída de sujeitos sociais, e esses com suas relações com a natureza, com a sociedade e o espaço - território, paisagem, lugar- e o tempo. Mas também nos possibilitou apreender que é fundamental, enquanto geógrafos, para além de nos atentarmos a definição e a episteme, selecionarmos um método de pesquisa pautado sob uma posição político- ideológico, de maneira a buscarmos uma intervenção/engajamento no mundo de tal forma que as pesquisas possam viabilizar, mediante a articulação com os sujeitos sociais, a superação e emancipação da ciência (unitária, classista) e também da sociedade. 1 A pesquisa de iniciação científica que resultou no Trabalho de Conclusão de Curso tem como título: "A territorialização do trabalho dos pescadores artesanais da Colônia Z10 “Ministro Fernando Costa” de Ubatuba- SP: nas tramas da água e as disputas pelo devir", e teve apoio financeiro da FAPESP (Processo nº 2012/12227- 7). 20 É nesse ínterim que a pesquisa de mestrado foi constituída, já que a pesquisa de iniciação científica nos abriu outras dúvidas, e a partir disso constatamos que ainda havia muito a ser analisado e discutido a respeito dos conflitos, desafios e problemáticas que envolviam os(as) pescadores(as) artesanais de Ubatuba. Por outro lado, também sentimos a necessidade de melhor compreender as formas de resistências que estes tem (re)criado para manterem-se em seus territórios. Sendo fundamental entender como esses sujeitos constroem e mantêm os seus territórios, os territórios dos(as) pescadores(as) artesanais. Em Ubatuba a atividade pesqueira é relevante, embora enfrente problemas e desafios diversos. Há no município, constatado pelos trabalhos de campo realizados, disputas e conflitos que envolvem a pesca e os(as) pescadores(as) artesanais ubatubanos (em terra ou na água), com o Poder Público e outras atividades econômicas (turismo, pesca industrial, etc.), o que implica em entraves a atividade e ao trabalho desses sujeitos. Como exemplo desses desafios e conflitos territoriais podemos citar: as políticas/legislações ambientais restritivas; a precária infraestrutura no trabalho (os barcos, entrepostos, ranchos, locais de comercialização e outros); a especulação imobiliária; o avanço do turismo; entre tantos outros entraves, que atualmente têm se perpetuado e inclusive em alguns casos são acentuados pela própria conjuntura política e econômica do país aliada aos ditames do capital. Destarte, esse processo atual, assim como o processo histórico que passaram o setor e os(as) pescadores(as) artesanais no Brasil merecem atenção, inclusive pela geografia, ciência que muito pouco esteve atenta a essa temática. Diante dessas questões, elaboramos o projeto de pesquisa em nível de mestrado iniciado no ano de 2014 junto a Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Presidente Prudente, com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 21 INTRODUÇÃO Essa pesquisa tem como objeto de análise os sujeitos, isso significa que o foco desta são os pescadores e as pescadoras artesanais. Então vocês devem estar se indagando, quem são e/ou o que é ser pescador e pescadora artesanal no Brasil? Ou ainda, o que essa temática tem a ver com a ciência geográfica? Existem inúmeras definições e enquadramentos que são dados aos pescadores e pescadoras artesanais. Dentre essas definições temos a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Lei de Pesca 11.959/2009, o antigo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), e também diversos estudos científicos como de Clauzet (2005), Maldonado (1986), Diegues (1983). Ou seja, existe uma diversidade de conceitos e definições, que de um modo ou outro tendem a caracterizar a pesca e o(a) pescador(a) artesanal conforme a quantidade de produção, o uso de equipamentos/aparelhos de baixa/pouca tecnologia, embarcações de pequeno e médio porte, emprego de força de trabalho familiar ou vizinhança e etc. Dessa maneira, partimos do pressuposto que o entendimento do que é ser ou não pescador(a) artesanal, certamente não deve ser aquele simples enquadramento feito pelas definições propostas pelos órgãos, instituições, leis e demais instrumentos normativos relacionados ao setor, nem muito menos termos científicos restritos. Ainda que os mesmos possibilitem um efeito prático considerável, no que tange direitos e deveres aos profissionais da atividade pesqueira, mas por outro lado acabam por negar ou mesmo legitimar certas situações ou problemáticas que afetam esses sujeitos que vivem da pesca. Nossa pretensão não é a de definir ou propor a definição mais correta/adequada do que seja pescador(a) artesanal. Afinal entendemos que esses sujeitos fundamentalmente se constituem em sua realidade vivida, sentida e percebida, são eles próprios que em seu cotidiano, com suas experiências de trabalho e vida social se constituem, formam e (re)definem constantemente o que é ser pescador e pescadora artesanal. Assim, coadunamos com a perspectiva de Cardoso (2001) de que "o pescador artesanal é um sujeito social em processo de redefinição de sua atuação, frente aos usos novos que se impõem ao seus espaços de morada, vida e trabalho". Também devemos ter como claro que, mediante o movimento do real, onde a reprodução e acumulação do capital se faz presente e atuante, veremos que os rebatimentos 22 desse modelo se dará de diferentes ordens e expressões nas comunidades 2 pesqueiras artesanais do país e, como tal, consideramos que os conceitos de pesca ou pescador(a) artesanal não conseguem compreender na totalidade as especificidades dessa atividade e desses sujeitos, sobretudo atualmente. Eis assim que propomos diante dessa pesquisa compreender os pescadores e as pescadoras enquanto pertencentes a classe trabalhadora, e como tais ainda que exercendo atividades artesanais de caráter mercantil estão no sistema capitalista de produção, e por sua vez, assim devem ser compreendidos diante de suas limitações, avanços, transformações e desafios. Esses sujeitos devem ser compreendidos conforme as suas particularidades e especificidades, da complexa dinâmica de elementos e fatores que os cercam, e consequentemente das contradições que os envolvem. É nesse contexto que a Geografia pode nos auxiliar a compreender esses sujeitos sociais. A proposta é transcender o reducionismo de definições e inclusive ir além do entendimento econômico dessa atividade e enxergar as dimensões sociais, políticas, culturais, ambientais, laborais e territoriais de maneira interligada e dialogada. Pois foi isso que os trabalhos de campo nos revelaram, o quanto o elemento identitário do/no/com o trabalho lhes possibilitam um diálogo (e interação) com a água, com a terra, com o ambiente, a família, a comunidade e um dado espaço geográfico. E mesmo diante de desafios, disputas e entraves a continuidade e perpetuação dessa atividade laboral tradicional, o sentimento de orgulho, satisfação e identificação os tornam resistentes ainda hoje. Atento a essa questão, a proposta dessa dissertação é trazer as contribuições da Geografia para compreender o universo da pesca artesanal em Ubatuba, tendo os sujeitos, isto é, os(as) trabalhadores(as) pescadores(as) artesanais como elemento central da investigação. Logo, esses trabalhadores são sujeitos sociais de produção do seu espaço, que da interface entre natureza e sociedade, e organizados são movidos por uma identidade de luta e resistência, visando o seu próprio território. Mas estando sob o metabolismo social do capital essa lógica é de um lado negada e de outro mantida por meio do controle e a subordinação. É, pois, caminhando pela ótica das relações de trabalho que queremos trazer a nossa contribuição 2 "A comunidade é, portanto, um 'espaço de vida'. O que caracteriza a essência de cada comunidade são os sujeitos e as relações que se estabelecem entre eles e com a natureza" (SOUZA; BRANDÃO, 2012, p.111). Sendo assim, de acordo com esses autores, a constituição de uma dada comunidade depende das inter-relações sociais estabelecidas num território comum, território este dinâmica e que perde os limites e fronteiras geográficas, já que tem como referência a vida das pessoas que a compõem. 23 de pesquisa sobre o pescador e a pescadora artesanal de Ubatuba/SP, e para isso, sendo necessário ampliar o conceito teórico e empírico de classe trabalhadora. Entendemos como necessário se transcender o estereótipo tradicional de classe trabalhadora, como a exclusivamente composta pelo trabalhador operário, masculino, branco e urbano (NEGRO; GOMES, 2006), de modo a incluir aqueles sujeitos negligenciados historicamente no Brasil: mulheres, negros, indígenas, camponeses, ribeirinhos, pescadores, trabalhadores informais e etc. É preciso (re)examinar e (re)discutir a clássica visão de classe trabalhadora no Brasil. Pensando-se numa desmistificação, é necessário nos remetermos a obra de Thompson (1998), onde o autor sem deixar o marxismo buscou relacionar esta questão diretamente com a percepção da cultura enquanto uma importante dimensão de luta e resistência. Do mesmo modo, este teórico se preocupou em enfatizar a história dos plebeus (as massas – os trabalhadores) “que não tinham voz”, revelando que estes são sujeitos ativos, desmistificando aquela ideia de passividade, o que conceitualmente pode servir como paralelo a discussão no que diz respeito à história de vida, trabalho e luta dos pescadores artesanais brasileiros, que sempre foram vistos como passivos, vagabundos e marginalizados pela sociedade, mas a partir da história contada por esses sujeitos encontramos informações que nos revelam justamente o contrário, houve e há resistências, assim como o choque com o controle imposto pelo Estado e o capital. A partir do livro de Thompson (1998), percebemos que os(as) trabalhadores(as), são sujeitos ativos, que não podem ser compreendidos apenas naquela visão de que se sujeitam e aceitam as imposições que lhes são dadas, mas que também resistem no seu cotidiano, com seus costumes. Isto nos remete a ideia de que devemos ir além das relações econômicas, compreendendo esses sujeitos que compõem a classe trabalhadora também através da sua vivência cotidiana, já que no cotidiano se estabelecem importantes formas de lutas. Acredito que neste sentido, não teríamos a ideia de luta de classes sem classes, como apontam alguns teóricos, mas sim, o fato de que devemos enxergar a diversidade que constitui a classe trabalhadora, não que isto remeta a não existência de uma classe social, mas que é algo mais complexo e que como tal merece atenção e cuidado ao ser estudado. Entendemos que é preciso compreender a classe trabalhadora numa perspectiva ampliada, de maneira a apreender as diversidades na identidade dos trabalhadores. Nesta perspectiva, Thomaz Júnior (2002), propõe um repensar sobre a classe trabalhadora, de tal modo que 24 [...] atribuir o termo classe a um grupo privado de consciência de classe, ou de cultura de classe, e que não atue nessa direção é um posicionamento vazio de sentido e de significado. Até porque a classe se delineia de acordo como os homens e as mulheres experimentam relações de produção e segundo as situações determinadas no interior das relações sociais e como se apropriaram dessas experiências em nível cultural. (THOMAZ JÚNIOR, 2002, p.164) É preciso que estejamos atentos as diferentes formas de expressão do trabalho que transcendem essas demarcações predefinidas ou as teorias ortodoxas. Logo, não devemos enxergar a história do trabalho e dos trabalhadores no Brasil sob um prisma estático, linear ou ortodoxo. Afinal a realidade é construída e (re)feita dia-a-dia por sujeitos sociais, que dão dinamicidade, fluidez e movimento a sociedade. O que estamos propondo é olhar para a realidade, que é dinâmica e se movimenta constantemente, que muitas vezes não se encaixa a teoria pré-formulada, e que por sua vez precisa ser revitalizada. Como questiona Thomaz Júnior (2006) se assalariado e operário a identidade de classe trabalhadora se consuma, mas e quando é camponês, autônomo, subcontratado, ou mesmo pescador? Ou ainda quando se confere ao camponês (assim como ao pescador artesanal) uma segunda ordem de importância no papel de luta de classes, sendo um dos motivos o fato de ser proprietário da terra (ou dos seus meios de produção) e assim "não lhe possibilita consciência crítica em relação à superação da propriedade privada" (THOMAZ JÚNIOR, 2006, p.152). Ou seja, muitas vezes as definições pré-concebidas acabam, segundo o autor supracitado, por não "compreender os fenômenos que estão na base das mudanças da estrutura de classe, tampouco os novos enfrentamentos e desafios para a construção de referenciais anticapital, ou a espacialidade dos novos territórios em conflito." (THOMAZ JÚNIOR, 2006, p.151 - grifos do autor). Eis, então, que a Geografia do Trabalho em movimento e em processo de formação nos possibilita apreender essa questão e está nos oferecendo fundamental contribuição neste sentido (THOMAZ JÚNIOR, 2009; BEZERRA, 2012; HECK, 2013; PERPETUA, 2016). A Geografia do Trabalho mostra como é urgente o entendimento do trabalho enquanto relação metabólica do sujeito com a natureza, portanto, comprometida não só com os objetos, mas principalmente com os sujeitos. [...] se não existe diferença em relação ao objeto, é na ação do sujeito que as atenções se voltam. Isto é, em sua expressão geográfica o trabalho pode ser entendido tanto em nível da relação metabólica homem-meio, quanto na dimensão da regulação sociedade-espaço, nas suas diferentes manifestações (assalariado, autônomo, informal, domiciliar, terceirizado, etc.). Isso implica, pois, necessariamente, na discussão das localizações, que, não se limitam ao imediato, ao visível. As categorias de base da Geografia (paisagem, território e espaço) farão as 25 mediações necessárias, atendendo os desafios postos pelo sujeito, que no esforço contínuo de teorização para a concreção de uma Geografia do Trabalho. (THOMAZ JÚNIOR, 2002, p.1) Diante disso, compartilhamos da ideia exposta por Thomaz Júnior (2002) de que o trabalho não pode estar, portanto, (des)situado geograficamente, isto é, alienado do processo social de produção em que está inserido. Já que Com as atenções voltadas, então, para a dialética do processo social, o trabalho sob o enfoque geográfico, é compreendido por nós, pois, como expressão de uma relação metabólica entre o ser social e a natureza, sendo que nesse seu ir sendo ou em seu vir a ser está inscrita a intenção ontologicamente ligada ao processo de humanização do homem. A dupla linha de ação entre a ideação, a previsibilidade (a finalidade), enfim a teleologia (inexistente na natureza), e a materialidade fundante (causalidade), formam uma conexão interativa que solda a práxis ontológica do trabalho diante do agir societal. (THOMAZ JÚNIOR, 2002, p.4) O trabalho passa a ser entendido como o “[...] resultado de um pôr teleológico através do qual o ser social cria e renova as próprias condições da sua reprodução. O trabalho enquanto fonte primária da articulação entre causalidade e teleologia é um processo entre atividade humana e natureza que se sintetiza na célula do ser social.” (THOMAZ JÚNIOR, 2002, p.4). Mas, para além disso, é primordial que entendamos que sendo [...] o trabalho enquanto ato teleológico redefine constante e contraditoriamente o processo social e o espaço geográfico. Entendemos que a Geografia do trabalho deve chamar para si a tarefa de apreender o mundo do trabalho através do espaço geográfico, entendido, pois, como uma das características do fenômeno, e da rede de relações categoriais/teóricas/escalares, ou seja, a paisagem, o território e o lugar de existência dos fenômenos, num vai e vem de múltiplas determinações. (THOMAZ JÚNIOR, 2002, p.5) Deste modo verifica-se como é fundamental discutir uma grande variedade de elementos e fatores que circundam o universo do(a) pescador(a) artesanal, para então elucidar aquilo que acreditamos dar conta do que é o trabalho destes sujeitos sociais. Diante dessa complexa rede de relações e dinâmicas, buscamos revelar também neste estudo a importância para a espacialidade na qual se reproduzem todos essas processualidades. Mesmo porque, a partir destes vários elementos, de suas combinações e contradições inerentes à própria sociedade do capital, constatamos características e expressões variadas das territorialidades. Em outros termos, devemos estar atentos as conflitualidades e contradições presentes nos desdobramentos do mundo do trabalho, na qual os pescadores e as pescadoras também se encontram. 26 E, conforme salienta Marx (2010) é importante analisar as relações sociais estabelecidas entre os trabalhadores e as condições em que participam do conjunto da produção, assim como entender como é feita a produção destes, afinal Na produção, os homens não agem apenas sobre a natureza, mas também uns sobre os outros. Eles somente produzem colaborando entre si de um modo determinado e trocando entre si as suas atividades. Para produzirem, contraem determinadas ligações e relações mútuas, e é somente no interior desses vínculos e relações sociais que se efetua a sua ação sobre a natureza, isto é, que se realiza a produção. (MARX, 2010, p.45) Sabemos que a natureza oferece ao ser social um meio de existência e reprodução. Sendo que a interação do(a) pescador(a) com o meio ambiente se dá através da mediação do trabalho. Este trabalho, por sua vez, atua sobre a natureza transformando-a, e ao mesmo tempo este ser social que trabalha é transformado por seu trabalho, produzindo-se assim uma relação dialética. Nesta perspectiva, devemos salientar que ao se realizar um estudo quanto à centralidade da dimensão do trabalho e o universo dos(as) pescadores(as), de suas implicações e desdobramentos, acreditamos que ao se tomar as categorias de análise e os conceitos da Geografia e ao relacioná-los a este estudo do trabalho teremos a possibilidade de discutir criticamente os fatos envolvidos no mesmo. Logicamente que isto não quer dizer que teremos diante de nós uma situação fácil e simplificada, afinal esse universo está repleto de complexidades e singularidades próprias, o que certamente nos coloca diante de uma difícil empreitada. No entanto, mediante o método dialético e histórico adotado, visamos apreender a essência das conflitualidades e processualidades inerentes ao estudo em questão. Em outras palavras, o que buscamos neste estudo é destacar, o que explica Tomaz Júnior (2011), a complexa e dinâmica trama de relações que devem ser consideradas no estudo espacial do mundo do trabalho, para o entendimento das contradições que marcam a processualidade social inscritas no território e mediadas pelo trabalho. A presente pesquisa visa apreender o que está ocorrendo no universo pesqueiro em Ubatuba, isto é, as relações que envolvem a pesca e os(as) pescadores(as), perpassando por uma discussão que envolve as experiências laborais e de vida desses sujeitos. Ainda em que esses sujeitos vivenciem constantes processos de disputas e conflitos, é preciso apreender e destacar as formas que esses sujeitos buscam para confrontar/disputar com as práticas capitalistas, ou seja, como se dá a identificação laboral, as experiências de vida e de resistências desses sujeitos. E nesse debate, estando atento a plasticidade do trabalho 27 (THOMAZ JÚNIOR, 2009), conceito que nos auxilia a compreender as variadas expressões geográficas do trabalho que exercem e manifestam os trabalhadores e as trabalhadoras, tendo em vista a luta e resistência ao capital. *** Como objetivo geral, a dissertação visa revelar o território dos(as) pescadores(as) artesanais de Ubatuba/SP, considerando-se as complexas tramas dos usos, disputas, conflitos territoriais e as formas de resistências (re)criadas pelos(as) pescadores(as). Quanto aos objetivos específicos pretendeu-se: i) verificar o quanto as mudanças técnicas, ambientais e mercadológicas produzidas pelo capital, em consonância com o Estado brasileiro, através de suas políticas de desenvolvimento, alteram a condição do trabalho e a identidade do sujeito pescador e pescadora artesanal; ii) averiguar como subsiste a pesca artesanal no país e em Ubatuba, diante dessas ofensivas que influem na subjetividade, reprodutividade da vida e na organização política desses sujeitos; iii) examinar os processos de modernização da pesca e aquicultura, principalmente quanto aos impactos aos pescadores e pescadoras artesanais; iv) verificar as resistências e organizações político-sociais frente a todo este aparato. *** A metodologia para a realização da pesquisa consistiu nos seguintes procedimentos. Levantamento bibliográfico em livros, teses, dissertações, monografias, textos publicados em periódicos e textos técnicos que tratavam do universo pesqueiro. Vale mencionar que não nos restringimos aos referenciais da Geografia, mesmo porque essa temática ainda é muito pouco estudada por essa ciência, assim buscamos apoio nas áreas da antropologia, sociologia, filosofia, história, desenvolvimento rural, local e meio ambiente, entre outras. Também é preciso dizer que por ser um assunto recente estudado pela Geografia, além do constante diálogo com a bibliografia priorizamos a interlocução com os trabalhos de campo e as entrevistas realizadas, de maneira a nos possibilitar compreender/refletir/analisar as tramas e particularidades que envolvem os(as) pescadores(as) ubatubanos. Articulado a esse procedimento bibliográfico, coletamos os dados oficiais disponibilizados em instituições, órgãos e entidades relacionadas ao foco da pesquisa, tais como: o Instituto de Pesca em Ubatuba, Fundação Florestal, Secretarias do Município 28 (Turismo e Agricultura, Pesca e Abastecimento), Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba, a Companhia Municipal de Turismo, Ministério da Pesca e Aquicultura, Ministério do Trabalho, Ministério da Agricultura, Secretaria de Estado do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Fundação Sistema Estadual de Análises de Dados (Seade), com Movimentos Sociais ligados aos pescadores como Fórum de Comunidades Tradicionais (Angra/Paraty/Ubatuba), o Conselho Pastoral dos Pescadores e a Colônia de Pescadores Z10 "Ministro Fernando Costa" de Ubatuba. Também realizamos trabalhos de campo, pois entendemos o campo como um momento essencial, a fim de nos aproximarmos da realidade vivida pelos sujeitos da pesquisa. Desse modo, os procedimentos usados para ir à campo foram: elaboração de um roteiro de perguntas para serem usadas durante a entrevista semiestruturada, anotação das informações e conversas observadas/escutadas em cadernos de notas, fotografias e gravações de algumas entrevistas. A seguir descrevemos os campos realizados:  Do dia 25 de janeiro a 09 de fevereiro de 2015 realizamos nossa primeira pesquisa de campo no município de Ubatuba. Durante esse período realizamos uma entrevista com representante do Instituto de Pesca a fim de compreender o papel e as ações realizadas pelo Instituto em relação ao setor pesqueiro, também conseguimos coletar alguns dados e materiais divulgados pelo Instituto. Entrevistamos também uma monitora da Área de Proteção Ambiental Marinha do Litoral Norte (APAMLN) - vinculada a Fundação Florestal/ Secretaria Estadual de Meio Ambiente/SP, com o propósito de obter informações sobre o que é a APAMLN, sua finalidade, etapas de execução e suas atuações em relação à pesca e aos pescadores locais, sobretudo a fim de compreender a rede de conflitos e disputas entre a dimensão ambiental/ecológica/preservacionista versus as práticas realizadas pelos(as) pescadores(as) artesanais locais. Na ocasião também coletamos dados/materiais/mapas referente a APAMLN. Outra entrevista foi com a Diretora de Fomento a Pesca e Maricultura da Secretaria de Agricultura, Pesca e Abastecimento do município com o intuito de apreender as ações, programas e projetos desenvolvidos pela Secretaria em relação à pesca e aos pescadores locais. Além disso, fizemos observações e conversas informais com pescadores artesanais locais. 29  Em março de 2015, entre os dias 19 e 29, realizamos outro trabalho de campo. Percorremos as praias do Perequê-açú (no Centro do município) e Saco da Ribeira (ao Sul) para fotografar e observar os empreendimentos do turismo náutico/marinas, isto é, a sua dinâmica funcional e possíveis problemas com os pescadores artesanais locais. Realizamos ainda entrevistas com pescadores na praia do Itaguá (no Centro do município). Fizemos uma entrevista com um representante da Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba (FUNDART) para saber informações da atuação da instituição em relação à cultura e importância dos pescadores artesanais e das comunidades tradicionais e caiçaras presentes em Ubatuba. Visitamos a sede da Secretaria de Turismo do município onde nos forneceram materiais/folders e também informações respondidas por um representante da Secretaria. Ainda estabelecemos contato com um representante da Fundação Florestal que nos forneceu materiais/documentos/informações referente ao Parque Estadual da Ilha Anchieta localizada no município, e que por sua vez representa um importante aspecto/elemento de análise e discussão no que tange aos conflitos territoriais que envolvem a pesca e os pescadores artesanais locais.  Entre os dias 24 e 29 de junho de 2015 participamos durante a tradicional Festa de São Pedro Pescador que já ocorre há 92 anos. Presenciamos um importante momento social, cultural e religioso que envolve parte dos pescadores artesanais ubatubanos durante a festa do padroeiro deles. Apreendemos aspectos interessantes como: solidariedade, simbologias, rituais, culinária, música, enfim territorialidades tradicionais dessas comunidades. Nesse período também realizamos observações e entrevistas com pescadores artesanais na praia da Maranduba (ao Sul do município).  Entre os dias 08 e 13 de agosto de 2015 realizamos outro trabalho de campo. Na ocasião realizamos algumas conversas e entrevistas com pescadores e presenciamos a corrida de canoas realizada na Praia da Picinguaba (Norte do município), que representa uma importante tradição caiçara.  Entre os dias 27 e 30 de dezembro de 2015 e 5 a 18 de janeiro de 2016 realizamos observações e visitas no Mercado Municipal de Peixe (local de comercialização de pescados frescos), na Barra Seca e na Ilha dos Pescadores em Ubatuba. Nesses mesmos locais, realizamos algumas conversas e entrevistas com pescadores e comerciantes/feirantes. 30 Também realizamos observações e fotografias de áreas turísticas na cidade, período favorável devido a alta temporada.  Em fevereiro de 2016, entre os dias 21 e 25, realizamos entrevistas com pescadores artesanais da praia da Enseada, Ilha dos Pescadores e da Ilha das Couves. Também realizamos uma entrevista com o presidente da Colônia de Pescadores Z10 "Ministro Fernando Costa".  Entre os dias 26 de julho a 02 de agosto de 2016, realizamos algumas observações de campo e entrevistas com pescadores artesanais ubatubanos de maneira a verificar formas alternativas de produção e renda desses trabalhadores frente ao processo de desestruturação e negação a perpetuação na/da atividade artesanal pesqueira. Também tivemos a possibilidade de acompanhar discussões locais a respeito da atualização do zoneamento ecológico econômico costeiro do município. No total realizamos 30 entrevistas semiestruturadas com pescadores e pescadoras (26 homens e 4 mulheres) artesanais em Ubatuba, além de diversas conversas informais, as quais fundamentalmente qualificaram as análises e formas de compreensão da pesquisa em desenvolvimento. Sobretudo porque sem esse diálogo, as observações e vivências com vários desses sujeitos sociais não seria possível o desenvolvimento e realização desta dissertação, que apesar da importância teórico-conceitual, essa pesquisa se fez substancialmente ligada ao aspecto empírico, ainda que não tenhamos nos preocupado a um número x de amostragem de entrevistados em relação ao universo total de pescadores e pescadoras em Ubatuba. Mesmo porque entendemos que a entrevista semiestruturada nos possibilita ganhos qualitativos, para além dos termos quantitativos, pois a relação dialogada com os sujeitos também viabiliza não só estar atento aos objetivos da pesquisa em questão, mas também ao que os sujeitos querem transmitir, questionar, criticar e expor sobre a temática em estudo. E por ser um estudo que trata com sujeitos sociais, que vivem essa realidade de conflitos e resistências cotidianamente, isto é, por se tratar de questões vivas, do presente, são passíveis de transformação e alterações, por isso ainda que tentamos ao longo do estudo demonstrar o mais fiel do ponto de vista dos acontecimentos verificados durante nossos trabalhos de campo entre 2014 e 2016, esses casos podem estar em vigor ou alguns perderam força ou ainda ganharam novos contornos. Tendo em vista que o estudo compreende sujeitos sociais ativos, de permanente redefinição de sua atuação, usos, desafios e resistências. 31 Vale mencionar ainda que também realizamos um período de estágio (de agosto a novembro de 2015) na Colômbia, junto ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas, da Universidad Nacional de Colombia - sede Bogotá, onde tivemos como supervisor da investigação o Prof. Dr. Juan Carlos Celis Ospina, e apoio financeiro da Fapesp (Processo/Número: 2015/10547-2). O objetivo da investigação de intercâmbio foi o de analisar as formas de organização social e política dos pescadores artesanais para resistir em seus territórios. A partir disso construindo diálogos com a realidade de conflitos e resistências dos pescadores artesanais brasileiros. Durante o estágio participamos de eventos, de reuniões do Grupo de Sociologia do Trabalho e da Rede de Estudos do Trabalho na Colômbia, assistimos aulas na disciplina de Sociologia do Trabalho, visitamos a sede da Escola Nacional Sindical da Colômbia e realizamos trabalhos de campo à fim de conhecer a realidade pesqueira Colômbia. Enfim, a experiência vivenciada e aprendida durante esse período de estágio na Colômbia foi fantástico e riquíssimo, pessoal e academicamente, o que sem dúvidas ampliou o nosso olhar e entendimento para a realidade estudada no Brasil. *** O texto a seguir estrutura-se em quatro capítulos. No primeiro "Os(as) pescadores(as) artesanais: produção e reprodução sócio-laboral e o capital" apresentamos inicialmente dados sobre a realidade atual da pesca e dos pescadores artesanais no país. Adentramos também no lócus da pesquisa e destacamos os sujeitos, o histórico da trajetória da pesca e sua importância, assim como destacamos a relevância da produção, reprodução social dos sujeitos pescadores e pescadoras artesanais ubatubanos. Ainda nesse primeiro capítulo trazemos uma discussão teórica a respeito da apropriação e expropriação da sociedade e da natureza, tendo como eixo central a categoria trabalho. No segundo capítulo "A trajetória do setor pesqueiro na história do Brasil" situamos a trajetória da gestão/atuação de cada uma das instituições/órgãos do país em relação ao ser pescador(a) artesanal e o setor pesqueiro, a fim de possibilitar argumentos e fatos sobre a realidade atual em que se encontra a atividade e o trabalho dos pescadores e pescadoras artesanais. Partindo-se das discussões anteriormente realizadas, o capítulo três "A (des)estruturação do direito ao trabalho dos(as) pescadores(as) artesanais" é tecido por 32 apontamentos sobre os direitos sociais e o reconhecimento jurídico-legal que foram conquistados por muita luta dos pescadores e pescadoras artesanais no país, ao mesmo tempo indicando os recentes processos de negação e desestruturação desses direitos a favor de um modelo de desenvolvimento posto em prática nos últimos anos, e que infelizmente o setor pesqueiro e os(as) trabalhadores(as) na/da pesca não estão alheios. No quarto capítulo "Os conflitos e as resistências no mar e na terra: o(s) território(s) dos(as) pescadores(as) artesanais" identificamos e problematizamos a respeito dos problemas, impactos e conflitos em relação à reprodução do modo de vida, trabalho e dos usos dos territórios dos(as) pescadores(as) artesanais, mas também destacando as resistências e alternativas de lutas emanadas por esses sujeitos. E por fim, apresentamos as conclusões e discussões finais possibilitadas pelas análises, reflexões e os trabalhos de campo realizados ao longo dessa pesquisa. 33 CAPÍTULO 1: OS(AS) PESCADORES(AS) ARTESANAIS: PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SÓCIO-LABORAL E O CAPITAL Abordamos nesse capítulo um panorama da situação atual do setor pesqueiro no Brasil. Além disso, adentramos na realidade de Ubatuba, de modo a apresentar os sujeitos sociais da pesquisa. 1.1 A pesca e o(a) pescador(a) artesanal: apontamentos iniciais O trabalho na pesca é uma atividade milenar e de considerável importância mundial para as comunidades envolvidas e para a população em geral. No Brasil a pesca possui origem indígena, portuguesa e espanhola de navegar, pescar e produzir suas redes e de elaborar embarcações. Somada a presença negra escrava e liberta no exercício do ofício pesqueiro (RAMALHO, 2008). Há quem diga que a pesca é uma atividade anterior à agricultura, sendo assim talvez o trabalho mais antigo praticado no país. Contudo, a pesca ainda é um setor pouquíssimo incentivado, sobretudo a pesca artesanal. Por outro lado, essa atividade é uma importante base alimentar e geradora de emprego e renda ao país. Estima-se que nos últimos anos cerca de 45 milhões de pessoas estão envolvidas com a atividade de captura/cultivo de produtos pesqueiros no mundo todo (FAO, 2009 apud CENTRO DE EXCELÊNCIA PARA O MAR BRASILEIRO 2012). Em 2014, a produção pesqueira mundial totalizou 167,2 milhões de toneladas, sendo que 93,4 milhões são provenientes da pesca extrativista e 73,8 milhões da aquicultura (FAO, 2016). A título de informação vale dizer que a China é o maior produtor e exportador de pescados, sendo a Noruega o segundo maior exportador do mundo. Na América do Sul 3 , destacam-se como os principais produtores de pescados marinhos o Chile e o Peru. 3 Lembramos que durante a realização do estágio na Colômbia foi possível apreendermos elementos fundamentais a respeito da produção pesqueira do país, que inclusive apresenta um lugar estratégico em termos de recursos hídricos, que lhe possibilita grande diversidade de espécies pesqueiras com alto valor comercial, ainda que ocupe apenas a 81ª posição no ranking mundial. Ademais, é preciso dizer que na Colômbia, assim como no Brasil, os pescadores e pescadoras artesanais estão/são afetados cotidianamente (e historicamente) em suas condições e relações de trabalho e vida, mesmo que esse seja um setor que muito tem contribuído para a segurança alimentar nacional e mundial. 34 No tocante ao Brasil, sabe-se que o setor pesqueiro compreende atualmente a pesca extrativista e a aquicultura, em suas dimensões marinhas e continentais, regulados pela Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Vale dizer que, a pesca extrativista marinha é a principal fonte de produção do pescado nacional, sendo responsável por 38,7% do total pescado, seguido da aquicultura 4 continental com 38%, a pesca extrativista continental com 17,4% e a aquicultura marinha com aproximadamente 6% em 2011 (BRASIL, 2013) 5 . Nota-se que a Região Nordeste, em 2011, era a maior produtora de pescado do país, com 31,7% da produção nacional, a Sul 23,5%, a Norte 22,8%, a Sudeste com 15,8% e a Centro-Oeste 6,2%, contudo essas estatísticas não podem ser analisadas como dados absolutos e precisos para caracterizar a realidade da pesca no país, como por exemplo, se considerarmos a pesca por Unidade de Federação (UF) Santa Catarina é a maior UF produtora com 13,6%, seguida do Pará com 10,7%, e do Maranhão com 7,2% (BRASIL, 2013). Aliás, esses dados também devem ser pensados em relação à distribuição/quantidades de pescadores profissionais por região e municípios do país, conforme pode ser observado pela Quadro 1. Vale dizer que o pescador profissional é "a pessoa física, brasileira ou estrangeira residente no País que, licenciada pelo órgão público competente 6 , exerce a pesca com fins comerciais, atendidos os critérios estabelecidos em legislação específica." (BRASIL, 2009a, s/p). Nessa definição estão compreendidos os pescadores comerciais, seja os industriais (com vínculo empregatício que exercem a atividade em embarcações de propriedade de pessoas física ou jurídicas) ou os artesanais (donos de seus meios de produção e que atuam individualmente, em regime familiar ou com auxílio de parceiros, sem vínculo empregatício), ambos com direitos a aposentadoria, seguro desemprego, e auxílio doença e por acidente de trabalho. Diferentemente desses estão os pescadores amadores ou esportivos (que necessitam 4 Aquicultura significa a criação/cultivo de organismos aquáticos como peixes (psicicultura), crustáceos (a carcinicultura que cultiva camarão), moluscos (malacocultura), algas (algicultura) ou outros organismo, geralmente em espaços confinados/controlados seja em água doce (aquicultura continental) ou em água salgada (aquicultura marinha/maricultura). 5 Esse boletim estatístico referente ao ano de 2011 foi o último lançada pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). 6 Os pescadores profissionais devem realizar o seu Registro Geral de Pesca junto as Colônias de Pescadores ou aos Sindicatos da categoria (ou também podem fazer uma declaração atestada por dois pescadores que já tenham esse RGP) que fornecerão o atestado do exercício da atividade para a instância máxima que regula o setor pesqueiro no país, que até o ano de 2015 era o Ministério da Pesca e Aquicultura e atualmente é o Ministério da Agricultura. 35 de uma licença específica) e realizam a atividade pesqueira sem fins comerciais e, consequentemente, não sendo considerados profissionais da pesca. Quadro 1: Distribuição dos pescadores profissionais inscritos/ativos no RGP até 25/03/2016, por unidade federativa e região do Brasil. Estado/Região Quantitativo de Pescadores Profissionais Porcentagem NORTE 413.586 37,57% Acre 14.967 1,30% Amapá 17.889 1,60% Amazônia 94.514 8,60% Pará 263.536 24,00% Rondônia 8.125 0,73% Roraima 6.421 0,60% Tocantins 8.134 0,74% CENTRO-OESTE 21.947 2,03% Distrito Federal 408 0,03% Goiás 3.248 0,30% Mato Grosso 10.311 1,00% Mato Grosso do Sul 7.980 0,70% NORDESTE 514.595 47,00% Alagoas 25.537 2,30% Bahia 132.655 12,00% Ceará 23.647 2,20% Maranhão 187.265 17,00% Paraíba 32.167 3,00% Pernanbuco 13.689 1,30% Piauí 41.595 3,80% Rio Grande do Norte 25.912 2,40% Sergipe 32.128 3,00% SUDESTE 84.971 7,80% Espírito Santo 14.335 1,30% Minas Gerais 28.863 2,60% Rio de Janeiro 13.832 1,30% São Paulo 27.941 2,60% SUL 62.285 5,70% Paraná 8.850 0,80% Rio Grande do Sul 16.886 1,50% Santa Catarina 36.549 3,40% BRASIL/Total 1.097.384 100,00% Fonte: BRASIL (2016a), adaptado pela autora (2016). Atualmente estão registrados 1.097.384 pescadores profissionais no país, sendo que o Nordeste é a região com maior número de pescadores, seguido das regiões Norte, Sudeste, Sul e Centro-Oeste (QUADRO 1). Juntas as regiões Nordeste e Norte representam 85% do universo de pescadores no país. Sendo que os quatro estados com maior número de 36 pescadores são: Pará, Maranhão, Bahia e Amazônia, que se somados totalizam 677.970 pescadores, isto é, cerca de 60% do total. Do total de pescadores profissionais sabe-se que praticamente todos realizam a atividade de maneira artesanal, e apenas 1% do total são industriais (GRÁFICO 1). Gráfico 1: Relação de pescadores profissionais inscritos no RGP por categoria. Fonte: BRASIL (2016a), adaptado pela autora (2016). Vale mencionar que, conforme Brasil (2016a), a maior concentração de pescadores industriais ocorre nas regiões Sul e Sudeste; o estado de SC conta com 5.982 pescadores e SP com 1.031 profissionais. A partir desses dados apresentados podemos compreender melhor o universo da pesca no país. Notamos muitas particularidades e espacialidades diferenciadas não só quanto ao tipo de produção, se pesca extrativista marinha ou continental, se aquicultura marinha ou continental, mas também da distribuição de pescadores em cada estado/região. Ainda que por si só esses dados quantitativos não consigam explicar a realidade da situação atual da pesca no Brasil, principalmente no que tange à pesca e aos pescadores e pescadoras artesanais, sobretudo porque ainda faltam outros dados específicos, há falta de políticas/programas e falta de estudos que contemplem a abrangência total da realidade do país. 37 Por outro lado é a partir desses mesmos dados que podemos atestar algumas questões a favor do segmento artesanal. Inclusive porque o fato de ser divulgado por Brasil (2014) que apenas 45% da produção nacional de pescados seja da pesca artesanal é no mínimo controverso. Será possível que 99% dos pescadores brasileiros que são artesanais pesquem menos da metade dos pescados nacionais? Isso revela um cenário complicado, não só das estatísticas, como também o olhar direcionado, por parte do Estado, a apenas um segmento do setor pesqueiro nacional, a pesca industrial. Na contramão dessa perspectiva compartilhamos dos dados propostos pelos movimentos sociais ligados aos pescadores e pescadoras artesanais, os quais atestam que o total da produção artesanal representa quase 70% do que é produzido no país (ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES NACIONAL, 2015a). Partimos do entendimento que a atividade artesanal (seja no mar ou no continente) compreende atualmente, assim como há anos (salvos curtos períodos - como apontaremos no decorrer da pesquisa), a maior parte do que vem sendo produzido no país. Sendo a pesca artesanal marinha a mais expressiva, que por sinal liga-se ao lócus de nossa pesquisa, onde a atividade se realiza no ambiente marinho (Ubatuba - litoral norte do estado de São Paulo). Os pescadores e pescadoras artesanais, normalmente, são os donos dos seus meios de produção (o barco, a rede, os apetrechos e a técnica de pescar) e realizam a extração dos pescados ou em outros casos realizam coleta de mariscos e caranguejos, além de também realizarem a comercialização no mercado local, ou em alguns casos, para a venda em setores atacadistas (SILVA, 2011). Entretanto, é difícil fazermos uma descrição e definição fechada sobre o que compreende e seja o(a) pescador(a) artesanal, afinal a pesca não é homogênea, existem especificidades e diversidades pelas regiões brasileiras. As diferenças se devem aos habitats, ecossistemas, as espécies pescadas, os tipos de embarcações e artes de pesca, assim como o modo de vida das comunidades pesqueiras (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, s/d). "Apesar de atender a uma autodenominação comum, os pescadores constroem suas trajetórias e identidades sociais de forma muito heterogênea." (ROMERO, 2014, s/p). Dentre as diversas populações pesqueiras identificadas no Brasil, têm-se os caiçaras na região sudeste (DIEGUES, 1995), os jangadeiros no nordeste (SILVA, 1993), os pantaneiros na região centro-oeste e os caboclos na região amazônica. Todas com 38 características peculiares, mas tendo a captura de pescado como atividade comum. (SILVA, 2014, p.15) Além disso, essas comunidades pesqueiras vivenciam diferentes processos, desafios, conflitos e tramas em seus espaços e territórios em terra e na água. Isto é, a territorialidade que envolve os pescadores e pescadoras artesanais e suas comunidades são diferentes e dinâmicas, o que impossibilita uma conceituação precisa. Devido essa heterogeneidade e diversidade existente entre as comunidades pesqueiras artesanais espalhadas pelo Brasil, nota-se a complexidade e o comprometimento que as estatísticas, estudos e levantamentos de dados devem abranger. Até mesmo para criar políticas públicas para o setor, de modo a respeitar as especificidades e a priorizar determinadas necessidades em cada região/comunidade. Mas não é isso que observamos por meio da pesquisa, dos dados primários e secundários, isto é, há escassez de estudos/estatísticas por parte do poder público, aliado às políticas que surgem muitas vezes sem respaldo de estudos detalhados e atualizados sobre a realidade do setor e das necessidades dos pescadores e suas comunidades. Somado a esse cenário, ainda que apontado o destaque e a importância do setor, principalmente da pesca artesanal, existem conflitos, problemáticas e desafios que o setor e os pescadores vivenciam há séculos. Uma questão muito discutida por teóricos do tema é sobre a crise do setor pesqueiro no país. Quanto a isto, compartilhamos da seguinte opinião: a crise do setor se refere ao aspecto produtivo (a queda da produção e da produtividade da pesca extrativista), afinal teve-se um processo de aumento na pressão sobre os estoques pesqueiros o que gerou situações de sobrepesca 7 (CARDOSO, 2001). Pode-se falar em uma crise do setor pesqueiro, que se manifesta mais precisamente em uma crise de um modelo de desenvolvimento da pesca baseado no uso intensivo de capital e tecnologia e que atinge não só o sub-setor industrial, mas também os produtores pesqueiros artesanais. (CARDOSO, 2001, p.30) Essa caracterização da crise, não diz respeito ao fim da pesca ou do pescador, pois isso seria negar a concretude do setor, seria ignorar uma parcela importante da sociedade brasileira (CARDOSO, 2001), e mais, seria negar esses pescadores enquanto trabalhadores e cidadãos. Mas como veremos a seguir neste estudo, essa negação dos direitos é (e foi) justamente o que historicamente foi praticado. 7 A sobrepesca, é a pesca excessiva, isto é, significa que a pesca de uma espécie ou de uma região está sendo realizada acima das quotas/limites estabelecidos, o que causa efeitos prejudiciais ao ecossistema. 39 Portanto, a crise é da produção e de um modelo de desenvolvimento de pesca, mas não significa uma crise ou o fim da pesca ou do pescador. Até porque, mesmo afetados e desafiados, os pescadores artesanais no século XXI são os produtores da maior parte da produção de pescados nacionais, e, além disso, sempre resistem e se organizam pelos seus direitos e interesses, ainda que esses sempre tenham sido renegados e marginalizados. Em outras palavras, a crise em que está inserido esse tipo de produção e modelo de desenvolvimento é um reflexo do próprio processo de crise estrutural do capital, amalgamada pela histórica inserção precária dos(as) trabalhadores(as) no sistema produtivo nacional, conformando uma trajetória dos(as) pescadores(as) artesanais enquanto elos subordinados da cadeia produtiva pesqueira. Partindo-se do referencial teórico consultado, percebemos também como a pesca e os pescadores e as pescadoras artesanais, ao longo da história brasileira, vivenciaram processos de invisibilidade social e política e de vulnerabilidade social e ambiental. A invisibilidade social e política são, segundo a literatura, perceptíveis historicamente pela marginalização dessa categoria de trabalhadores, que eram subjugados pelo discurso de que deveriam "ser civilizados e educados", mas também organizados em Colônias a fim de servirem como reserva naval e aos interesses do Estado e da Marinha de Guerra Brasileira. Assim como os casos de conflitos com as Unidades de Conservação (UCs) e a não importância dada a essas comunidades, afinal esse tipo de intervenção contribuiu para a desarticulação dos grupos e a marginalização do pescador (MALDONADO, 1986). A falta de informação e estatísticas atualizadas sobre a pesca refletem na falta de atenção para com o setor e os sujeitos envolvidos (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, s/d). Assim como diante das políticas públicas do Estado que se não vislumbram o fortalecimento e reconhecimento dos direitos desses trabalhadores, por outro lado, incentivam a lógica de interesse das classes dominantes e do capital, que por sua vez, promove expropriações, conflitos e limites à valorização (social, política e cultural) e a reprodução de vida e do trabalho desses sujeitos. Quanto a vulnerabilidade social e ambiental, nota-se a já debatida crise dos estoques pesqueiros, isto é, a sobrepesca e degradação costeira (DIAS-NETO, 2010a; AZEVEDO, 2012; VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, s/d). A privatização das águas e da natureza, favorecida pelo Estado e a despeito dos anseios do capital, a exemplo da ideologia aquícola (RAMALHO, 2014). A estrutura e os subsídios do Governo para com o setor pesqueiro, 40 sobretudo no que diz respeito à pesca artesanal e aos pescadores(as) artesanais que como observamos, não conseguiu (e não consegue) de fato realizar ações para beneficiar este segmento (AZEVEDO, PIERRI, 2014). A pauperização dessas comunidades (AZEVEDO, PIERRI, 2014) via a exploração imobiliária (OLIVEIRA; SILVA, 2012), intensas e desordenadas atividades urbano-industriais, empreendimentos turísticos-hoteleiros e condomínios de luxo em muitas localidades brasileiras. Sem falar nas expropriações crescentes das terras e praias dos pescadores, aliadas à poluição urbano-industrial (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, s/d). Portanto, o que temos constatado, diante da pesquisa bibliográfica e empírica, é a situação de precariedade, mas para além da atividade em si, isto é, do setor pesqueiro como argumenta Silva (2013). Constatamos a precariedade do ser que trabalha, isto é, a precarização do ser pescador(a). Não que seja recente, pois é uma constatação e um processo que vem se dando nos últimos anos. Pelo contrário, ao longo dessa dissertação trazemos elementos e argumentos que nos ajudam a entender como esses(as) trabalhadores(as) e a sua atividade laboral já ao longo da trajetória constitutiva de formação no Brasil, foram marcados por um processo de precarização do trabalho e, sobretudo, do ser que trabalha. Desde o período colonial brasileiro até os dias atuais, os sujeitos pescadores(as) são/estão precarizados devido a sua histórica invisibilidade social e política, vulnerabilidade social e ambiental, os conflitos que os permeiam e a própria negação e desestruturação dos seus direitos sociais, laborais e territoriais. Ou seja, ao centrarmos nossa abordagem nos sujeitos, verificamos que estes são afetados no seu trabalho e modo de vida. Sua sobrevivência e condições dignas de trabalho estão sendo constantemente ameaçados por um modelo capitalista expropriador, manipulador e degradante, que se utiliza de todos os mecanismos possíveis para sujeitar/dominar/controlar a pesca e os pescadores, inclusive com consentimento do Estado. Neste sentido, nos últimos anos é disseminado um projeto com vistas ao futuro do crescimento ao setor: a aquicultura, na qual os pescadores e pescadoras artesanais (vistos como entraves a essa realização) se transformariam em aquicultores, em mão-de-obra fácil e barata ao grande capital. 8 8 Sobre esse dito potencial aquícola, aliado a ideia de possibilidade de apoio e alternativa aos pescadores artesanais, nota-se a atuação do Estado brasileiro via MPA e o agronegócio com discursos coesos em incentivar 41 A ideologia aquícola é um sólido projeto societário e parte de um movimento historicamente determinado do capitalismo global, de feição totalizante, que se espalhou por vários países e que conseguiu transformar fundamentalmente organismos aquáticos em mercadorias a serem comercializadas no planeta, conectando poderosos centros consumidores (EUA, UE, Japão) às regiões produtoras de países em desenvolvimento (Brasil, Chile, Índia). Grandes empresas (algumas transnacionais) e estruturas poderosas de mercado e produtivas oferecem suportes necessários ao desenvolvimento do setor no mundo (pesquisa, planejamento, equipamentos tecnológicos, rações, máquinas, insumos químicos, transportes, antibióticos, mão-de-obra especializada, design, propaganda, etc.), objetivando grandes lucros e formando o que se pode classificar de um mercado globalizado de alimentos pesqueiros, uma espécie de aguabusiness, por meio de um processo pós-fordista de produção e consumo (acumulação flexível) e sua renovada divisão social do trabalho. (RAMALHO, s/d, p.2) Nota-se a ânsia do capital em se expandir cada vez mais, e para isto, por exemplo, mediante as políticas públicas que vão se estruturando nacionalmente pelo Estado brasileiro - mas que na realidade são idealizadas por organismos/instituições internacionais como Banco Mundial, Banco Internacional de Desenvolvimento, Fundo Monetário Internacional, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (PÉREZ, 2012). Logo, as políticas públicas incidem sobre a pesca e os pescadores e pescadoras, e naturalmente à natureza e aos demais elementos envolvidos no setor, conforme as necessidades e interesses desses grupos econômicos ligados ao grande capital. É perceptível a construção e domínio da ordem sócio-metabólica do capital (MÉSZÁROS, 2007) na produção pesqueira que pressupõe outra lógica à natureza e às relações humanas, afinal o capital busca novas estratégias de atuação, penetração e expansão nos espaços e territórios pesqueiros, ou melhor, nos territórios dos pescadores e pescadoras artesanais. Essa lógica é perversa 9 , há casos em que os pescadores são desterritorializados de maneira a eliminar sua tradicional atividade laboral e modo de vida, passando a ser o objeto nas mãos do capitalista; ou são forçados a viverem marginalmente dentro deste modelo de desenvolvimento sendo inseridos consequentemente na lógica e implicações das políticas públicas de modernização da pesca e aquicultura. a expansão dessa atividade. Como exemplo claro disso, segue o link do vídeo onde o atual ministro do MPA comenta sobre a aquicultura em relação a bovinicultura: https://www.youtube.com/watch?v=84jj6dx6y1I. 9 Vale mencionar que também verificamos na realidade colombiana, uma dura e cruel realidade que vivenciam os pescadores e pescadoras artesanais, como por exemplo, as disputas com os grandes empreendimentos promovidos pelo Estado colombiano que influência no acesso aos recursos pesqueiros; o turismo e as áreas de proteção ambiental; a falta de incentivo ao setor e os atravessadores que atuam no setor, implicando numa subordinação e dominação ao capital; o narcotráfico e o conflito armado; os conflitos com a pesca industrial; a falta de políticas públicas adequadas e de uma instituição centralizada e focada ao setor; entre outros fatores. 42 Por outro lado, esse cenário não são aceitos ou "assistidos" de maneira passiva, muito pelo contrário, as reivindicações, lutas e organizações 10 sempre aconteceram, ainda que muito tenha sido abafado, esses(as) trabalhadores(as) sempre lutaram por seus direitos. É preciso mencionar que não temos a visão romântica de caracterizar a atual situação da pesca e dos pescadores artesanais apenas em seu caráter de vulnerabilidade, numa perspectiva de "coitados" e "passivos", mesmo porque desde o período colonial até a atualidade essas dinâmicas sempre foram conflitantes, rejeitadas e contestadas pelos(as) pescadores(as). Eis o que apontamos ao longo desse estudo, buscando mostrar não só o caráter conflitivo e precarizante por que passaram e vivem atualmente, mas também descrevendo as contradições, as lutas e resistências expressadas e emanadas pelos sujeitos sociais em questão: os pescadores e as pescadoras artesanais. 1.2 O lócus e os sujeitos sociais da pesquisa A presente pesquisa teve como lócus de estudo o município de Ubatuba, que pertence ao estado de São Paulo (MAPA 1), mais precisamente está localizado no Litoral Norte (juntamente com Caraguatatuba, São Sebastião e Ilhabela), entre o Oceano Atlântico e a Serra do Mar, apresentando cerca de 100 km de extensão costeira, com mais de 723 km² de território, uma população estimada em 86.392 habitantes, com densidade demográfica de 108.08 habitantes/km² (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2015a). O município conta com mais de 100 praias, mais de 20 ilhas e algumas cachoeiras, é formado por Floresta Tropical Atlântica nas encostas dos morros, e por restinga na baixada litorânea. Cerca de 80% do seu território está inserido em Unidades de Conservação, isto é, Ubatuba está dentro de uma área de parque de preservação ambiental. Atualmente o município possui duas aldeias indígenas (Renascer e Boa Vista), quatro comunidades quilombolas (Caçandoca, Camburi, Fazenda, Sertão do Itamambuca) e as comunidades de pescadores artesanais, também conhecidos como caiçaras (FUNDART, 2014a). 10 Não podemos deixar de falar que os pescadores e pescadoras artesanais colombianos também realizam diferentes formas de luta e resistência. Além da resistência em se manter e resistir cotidianamente na lida pesqueira, esses sujeitos, por exemplo se organizam em associações/sindicatos, como é o caso Asociación de Acuicultores de la Ciénaga, que é uma associação da comunidade de palafíticos de Nueva Venecia que fica na Cienága Grande, criada em 2013; e a Corporación de Pescadores Chinchorreros de Taganga criada há mais de 250 anos na praia de Taganga em Santa Marta. 43 Mapa 1: Localização do Município de Ubatuba/SP. 44 Em 1637 foi oficializada a vila de Ubatuba, em 1885 foi elevada à categoria de cidade, e em 1872 passou a ser comarca (MARTINS; KOK, 2015). Sendo que em 1967 é elevada a categoria de Estância Balneária e após a década de 1970 o turismo "deslancha" como a maior fonte de renda local. Em 2013, já se registrava como a maior parte da riqueza do município o setor terciário, com 82,81%, sendo que 16,13% correspondiam ao setor industrial e 1,06% ao agropecuário (SEADE, 2016). O setor terciário emprega formalmente 53,9% no setor de serviços turísticos e 27,9% no comércio em geral (GRÁFICO 2). Vale pontuar que, segundo mencionado por um representante da Secretaria Municipal de Turismo (2015) 11 , o turismo local se refere ao chamado turismo de sol e praia e do turismo de secunda residência, o qual ocorre sazonalmente sobretudo nos períodos de férias de verão (dezembro a fevereiro) e feriados prolongados (como Carnaval, Páscoa e etc). Gráfico 2: Relação do emprego formal por setor de atividade em Ubatuba. Fonte: RAIS/MTPS (2014), adaptado pela autora (2016). 11 Informações obtidas durante trabalho de campo em março de 2015. 45 Em relação ao Gráfico 2, nota-se que não são contabilizados ou compreendem especificamente a quantidade da população vinculada a atividade pesqueira no município. Em 2008 foram registrados 1.162 pescadores(as) artesanais em Ubatuba (SEAP/PR, 2008 apud SILVA; LOPES, 2010). Atualmente, segundo dados do Brasil (2016a), a quantidade de inscritos e ativos no RGP em Ubatuba é de 790 pessoas (685 homens e 105 mulheres). Desse total de inscritos 760 realizam a atividade artesanal (656 homens e 104 mulheres). É importante pontuar que 10 pescadores(as) tiveram seus registros suspensos e 433 foram cancelados 12 . Enfim, esses dados apontam que recentemente o município possui no mínimo mais de 1.200 (mais de 1,4% da população total) pescadores(as), que em sua grande maioria são artesanais, ainda que formalmente não estejam todos com cadastro e/ou registro ativo no RGP 13 . A respeito disso, os dados apresentados pelo RAIS/MTPS (2014) de que apenas 0,3% são empregados no setor agropecuário, obviamente não abarca a totalidade das ocupações existentes em Ubatuba, apenas identifica o emprego formal. É preciso, inclusive, mencionar que boa parte da população que atua no setor de serviços e do comércio em geral, já exerceu ou em determinados períodos do ano exerce a atividade da pesca 14 , o que reforça a relevância da atividade pesqueira artesanal, desde a origem até o processo de constituição atual do município. Soma-se a isso a Lei Municipal nº 3640 de 28 de maio de 2013, que declara a pesca artesanal e a maricultura 15 como de relevante interesse social, econômico, histórico, cultural e ambiental ao município. Ainda que sabidamente outras iniciativas/ações não tenham se concretizado a partir dessa lei em benefício à melhoria e atenção as necessidades/direitos/interesses dos pescadores artesanais locais, institucionalizou ao menos formalmente o reconhecimento histórico dessa atividade extrativista artesanal local, logicamente faltando um aspecto de primordial reconhecimento que se refere a dimensão territorial. 12 Os motivos das suspensões e cancelamento não são informadas. 13 O estado de São Paulo como um todo, conta com a 10ª posição (5,4% do total) em relação ao que é produzido nacionalmente em pescados. Atualmente possui 27.941 pescadores ativos registrados no RGP. 14 Informações obtidas durante conversas e entrevistas informais nos trabalhos de campo realizados. 15 A maricultura é a produção artificial de seres aquáticos de água salgada, induzida e controlada pelos pescadores e pescadoras. 46 Conforme o panorama geral apresentado é perceptível a relevância da atividade pesqueira artesanal no município, mas principalmente dos sujeitos que praticam essa atividade: os(as) pescadores(as) artesanais ubatubanos, foco da presente pesquisa. 1.2.1 Navegando pela história da pesca em Ubatuba Os primeiros habitantes de Ubatuba 16 foram os indígenas Tupinambás, que eram excelentes canoeiros 17 e viviam em paz com os indígenas Tupiniquins (FUNDART, 2014b). Os Tupinambás praticavam a pesca, a caça e agricultura como forma de subsistência, mas também praticavam habilidosamente o manejo do arco e flecha (OLIVEIRA, 1977). No entanto, com a chegada dos franceses e portugueses à região, estes com o objetivo de escravizar os indígenas, alteraram a dinâmica local. Entre 1550 a 1570, ocorreu a Confederação dos Tamoios (reunindo indígenas do Litoral Norte Paulista e Sul Fluminense) uma importante revolta dos índios Tupinambás e outras tribos indígenas que se aliaram contra os portugueses diante da sua tentativa de escravizá-los, mas infelizmente culminou com a chamada "Paz de Iperoig", um acordo "de paz" realizado na aldeia Iperoig (atual Ubatuba), paz que durou pouco, pois continuou-se as formas de abuso, exploração, opressão e extermínios dos indígenas. Na época da colonização portuguesa no país, Iperoig pertencia à capitania de São Vicente (MARTINS; KOK, 2015). Segundo os autores, em 1637 a aldeia passou à condição de Vila Nova da Exaltação à Santa Cruz de Salvador de Ubatuba. Devido sua posição estratégica e as condições do seu porto, Ubatuba teve sua economia baseada em produtos destinados à exportação, primeiramente com o açúcar durante o século XVIII, período que também passou a abastecer o mercado mineiro, com pescados 16 "O nome Ubatuba é de origem tupi e tem duas interpretações possíveis: ubá significa 'canoa', e ú ubás, 'cana- do-rio', 'caniços de flecha' - utilizados na confecção das flechas indígenas. Como tyba quer dizer 'ajuntamento', Ubatuba pode ter significado originalmente 'ajuntamento de caniços' ou 'ajuntamento de canoas'." (MARTINS; KOK, 2015, p.128). 17 A região de Ubatuba possuía boas madeiras para embarcações e seus habilidosos canoeiros indígenas construíam grandes canoas, "De enormes embiruçus, cedros ou guapuruvus - árvores que, muitas delas, quatro ou cinco homens de mãos dadas não conseguiam circundar seus troncos - construíram igaras, canoas de lotação para até vinte ou mais pessoas, com as quais singravam os mares na labuta pesqueira, ou nas constantes viagens que faziam de praia em praia, em intercâmbio amistoso com as tribos vizinhas." (OLIVEIRA, 1977, p.21-22). 47 (sobretudo, a tainha) e mercadorias importadas da Europa (DIEGUES, 1973; MARTINS; KOK, 2015). Situação que se manteve até 1787 quando se obriga as embarcações à exportação a descarregarem no porto de Santos, e assim todas as vilas do Litoral Norte Paulista entram num recesso comercial (MARTINS; KOK, 2015). Com a abertura dos portos em 1808, Ubatuba passou a ter um novo ciclo, passou a exportar o café, então produzido no Vale do Paraíba. "Em 1836, por exemplo, foi exportado através do porto de Ubatuba 229.373 arrobas de café, contra 76.336 arrobas do mesmo produto exportados pelo porto de Santos." (SILVA, 1993, p. 25). Entretanto, com o esgotamento do solo na região do Vale do Paraíba, o deslocamento do eixo cafeeiro para outras localidades, sobretudo ao Oeste de São Paulo, e a construção da estrada de ferro que liga Santos à Jundiaí em 1867, Ubatuba entra em estagnação (DIEGUES, 1973). Conforme o autor, até fins do século XIX a atividade pesqueira era secundária na região devido às outras economias priorizadas para a exportação. A pesca era um complemento alimentar e uma atividade ocasional, sendo inclusive muito comum a salga dos pescados locais para posterior comercialização com pessoas do interior, como de São Luís de Paraitinga (DIEGUES, 1983). Entretanto principalmente a partir de 1910 facilitou-se a persistência da pesca enquanto atividade econômica importante, em termos comerciais para a população local da região. Até então se fazia presente e comum o chamado pescador-lavrador ou lavrador-pescador (DIEGUES, 1983), isto é, a população ubatubana na época ainda alternava suas atividades entre a agricultura/lavoura/roça e a pesca. Vale mencionar que essa população local foi constituída da miscigenação genética e cultural do indígena do litoral com o colonizador português e, em menor grau, com os negros- africanos, constituindo-se assim o chamado caiçara (SILVA, 1993; DIEGUES et.al., 1999). A partir dos anos de 1920 e 1930, no entanto, passou-se a incorporar novas técnicas à pesca e mudanças na dinâmica local, o que segundo Diegues (1983) levou a desestruturação da pequena produção mercantil simples da pesca (os pescadores-lavradores). A exemplo, a técnica dos cercos flutuantes, trazidas ao Litoral Norte Paulista pelos japoneses, o que alterou a forma de captura e comercialização do pescado (BEGOSSI, 2001). Iniciou-se também a pesca através das "traineiras", que se utiliza das técnicas de redes para capturar na forma de 48 "arrastão" grande quantidade de pescados (DIEGUES, 1973; LUCHIARI, 1999). Durante esse período também vinham barcos de Santos para comprar peixes da região. Por volta dos anos 1930 teve-se também a fase da captura da sardinha, espécie abundante no local. Devido a exigência de equipamentos mais caros, poucos pescadores artesanais locais se destinavam a essa pescaria, sendo esta realizada em grande parte pelos barcos vindos de Santos, de equipamentos mais modernos, que além de pescarem, também compravam os pescados dos pescadores locais para revendê-los em Santos (MUSSOLINI, 1945 apud DIEGUES, 1973). Além disso, segundo o autor, o que se passava era que alguns desses barcos faziam uso de uma tripulação para o barco e uma tripulação da rede, usando para esta última mão-de-obra local. Foi então que alguns pescadores ubatubanos participaram dessa pescaria 18 . Na década seguinte teve a construção do entreposto de pescados em Ubatuba, isso possibilitou certa estabilidade à atividade, principalmente pela fabricação de gelo, porém por sua localização e estrutura de atracação privilegiava apenas a pesca industrial, alijando de suas benesses os pescadores artesanais (DIEGUES, 1973; 1983). Ainda nos anos 1940, de acordo com Luchiari (1999), surgem os "atravessadores da pesca", que compravam os excedentes de peixes dos pescadores locais, aliado a isso a tecnologia pesqueira desenvolveu-se, como o barco a motor, as linhas de nylon, o que por outro lado os colocou em concorrência direta com a pesca industrial capitalista, seja pelo direito ao uso dos territórios, pelos recursos e/ou do mercado. "Constata-se assim o processo de transformações nas relações de trabalho na pesca, além de interferir no seu sistema econômico e organizacional dos sujeitos que vivem dessa atividade" (MORENO, 2014, p.85). Soma-se a esse processo de mudanças, nos fins da década de 40, a expansão da rede rodoviária, a SP-55, que possibilitou a interligação das cidades do Litoral Norte Paulista (DIEGUES, 1973). Outro fator ocorrido foi a construção do mercado de peixes local, por volta de 1954, que ao invés de trazer maior autonomia aos pescadores locais os manteve ainda na "dependência de um ou de outro 'atravessador' que monopolizava o mercado, pagando preços irrisórios pelo pescado capturado caiçara." (DIEGUES, 1973, p.96). 18 Conforme mencionado em entrevista informal com uma pescadora de 86 anos, o seu falecido esposo, que foi pescador artesanal tradicional, chegou a trabalhar nesses barcos por um período entre os anos 1950, a fim de melhorar a renda familiar devido as dificuldades enfrentadas na época, mas posteriormente retornou a lida artesanal. 49 Há ainda uma evasão das atividades agrícolas à pesca, por um lado marcado por problemas com o solo ou pragas, ou devido à desorganização da pequena agricultura litorânea, e em outros casos, marcado pelo afastamento dessas populações de suas terras tradicionais, devido a crescente especulação imobiliária na região (DIEGUES, 1983). Com o favorecimento ao avanço do turismo e a especulação imobiliária na região, se inicia também a pesca do camarão, que apesar do grande investimento a ser realizado nas aparelhagens, fornece aos pescadores um retorno financeiro considerável nas safras de capturas dessa espécie (CLAUZET, 2008). Esse segmento tem também crescimento significativo entre os anos 60-70, sobretudo pela crescente introdução dos motores nas embarcações de pesca. E assim seguiam as interferências e mudanças na atividade pesqueira e a população local, marcado pelo mercado turístico e imobiliário, a introdução tecnológica, as alterações ambientais nos recursos naturais marinhos, devido ao crescimento da pesca industrial na região. Esse cenário se intensificou com a construção da rodovia BR-101 (Rodovia Rio- Santos) nos anos 1970, também conhecida como a "rodovia do turismo nacional", pois foi o marco da dinâmica de ampliação da especulação imobiliária, da urbanização e o turismo crescente na região. E também durante a década de 1970, ocorreu a implantação de UCs no município de Ubatuba. Ainda que preocupadas em controlar a especulação imobiliária e as crescentes expropriações de terras das populações e trabalhadores locais, ocasionou por outro lado de forma dura a desapropriação e desterritorialização dessas populações. Desta forma, os(as) pescadores(as) que antes alternavam entre a atividade agrícola e a pesca, ao serem desterritorializados, afastados de suas casas e terras tradicionais, foram interrompidos de manter a sua forma de produção, trabalho e modo de vida tradicionais, o que os levou a especialização e a (quase 19 ) exclusividade à atividade pesqueira (ou em outros casos ao afastamento total da atividade pesqueira, passando a exercer outras atividades). 19 Destacamos entre parênteses a palavra quase, pois nos referimos as observações de campo, onde constatou-se que esses trabalhadores não se dedicam apenas/exclusivamente a lida diária pesqueira, tendo em vista as dificuldades e as condições atuais de expropriação e negação dos direitos dos pescadores e pescadoras, tendo que realizar outras atividades como necessidade de manter a família. 50 Houve então a passagem do oficio do pescador-lavrador (produção mercantil simples) para o pescador artesanal (pequena produção mercantil ampliada) 20 , isto é, o pescador passa a viver e a se reproduzir exclusiva, ou quase que exclusivamente, da sua produção da pesca destinada ao consumo familiar e ao comércio (DIEGUES, 1983). Com isso, o autor destaca que, os pescadores artesanais passam a ser obrigados a repor diariamente uma parte do capital em seus instrumentos de trabalho para que eles funcionem e possibilitem ir à busca de sua produção e reposição dos meios de subsistência. Aliás, é importante mencionar que a partir desse período há a relação contraditória do turismo-pesca. Localmente os(as) pescadores(as) artesanais ubatubanos passaram a ter além da safra da tainha, a pesca da lula, a pesca do camarão, a pesca de uma determinada espécie que está abundante em um determinando período do ano, a ter uma espécie de "safra da pesca do turismo". Isso quer dizer que, os(as) pescadores(as) tiveram a organização e desenvolvimento da sua atividade pesqueira reordenada pela lógica do turismo, do tempo da temporada de verão (de dezembro a fevereiro, incluindo a comemoração do Carnaval), afinal conforme constatamos pela observação em campo e em entrevistas realizadas (entre 2015 e 2016), os(as) pescadores(as) locais tendem neste período capturar grandes quanti