UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS NATHÁLIA MOREIRA ALBINO A SAÚDE COMO MERCADORIA: O PROJETO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE EM MINAS GERAIS FRANCA-SP 2023 NATHÁLIA MOREIRA ALBINO A SAÚDE COMO MERCADORIA: O PROJETO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE EM MINAS GERAIS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Doutora em Serviço Social. Área de Concentração: Serviço Social – Trabalho e Sociedade. Orientadora: Profª. Dra. Andréia Aparecida Reis de Carvalho Liporoni. FRANCA-SP 2023 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. A336s Albino, Nathália Moreira A saúde como mercadoria: o projeto das Organizações Sociais de Saúde em Minas Gerais / Nathália Moreira Albino. -- Franca, 2023 243 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Andréia Aparecida Reis de Carvalho Liporoni 1. organizações sociais. 2. privatização. 3. sistema de saúde. 4. política de saúde pública. I. Título. 4 NATHÁLIA MOREIRA ALBINO A SAÚDE COMO MERCADORIA: O PROJETO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE EM MINAS GERAIS Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Doutor em Serviço Social. Área de Concentração: Trabalho e Sociedade BANCA EXAMINADORA Presidente:__________________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Andreia Aparecida Reis de Carvalho Liporoni FCHS/UNESP. 1ºExaminador:_______________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Maria Valéria Costa Correia – Universidade Federal de Alagoas- UFAL. 2ºExaminador:________________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Rosimar Alves Querino- Universidade Federal do Triângulo Mineiro- UFTM. 3ºExaminador:_____________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Edvânia Ângela de Souza Lourenço- FCHS/UNESP. 4º Examinador:_______________________________________________________ Prof (a). Dr (a). Fernanda de Oliveira Sarreta- FCHS/UNESP. Franca, 01 de setembro de 2023 Ao povo brasileiro, usuários do Sistema Único de Saúde, sentido maior deste trabalho. A todos que resistiram e resistem pela Reforma Sanitária Brasileira. AGRADECIMENTOS Ao iniciar nossa jornada, ora longa, ora complexa, por vezes desafiadora, damos conta de que a pergunta que nos instiga faz parte das sucessivas aproximações da realidade que escancara, submerge, de uma conjuntura que desespera e, sabemos que para que as respostas e os caminhos sejam construídos de forma sólida e coletiva, a travessia também o é. É chegada a hora de agradecer. Definitivamente, eu não ando só. Ao longo dessa minha travessia, tenho contado com muito afeto, acolhimento e muita gente que torce por mim, até mesmo quando eu duvido. São essas pessoas que me fortalecem, são elas que eu busco orgulhar e por elas eu tenho esperança que o mundo pode ser um lugar melhor. Agradeço aos meus pais, Conceição e Osvaldino, minha mãe cabelereira, meu pai mecânico de bicicleta, ambos marcados por histórias de vida muito duras e desiguais: por terem permitido e incentivado meus estudos. Mesmo com dores no corpo e mãos calejadas, por terem herdado aquilo que historicamente sempre os pertenceram, a força de trabalho a ser vendida barata, nunca deixaram de acreditar e lutar. Queria que tivesse sido mais fácil para vocês, mas como não é possível mudar o passado, desejo que as alegrias presentes e futuras façam valer todos os sacrifícios. É o amor de vocês que me sustenta sempre! Ao meu irmão Cássio, por sempre me encorajar e acreditar em mim. Penso que amar é sentir alegria por existir sabendo que você também existe. Aos meus amigos: Géssika, Ana Carolina, Raquel, Mari, Dani, Jorge, Aline, Thalita, Chandra, Pri, Kyara, por terem compartilhado essa fase comigo, acompanharam meu cansaço e renovaram muitas vezes minhas energias. Com vocês aprendi não só sobre luta, poesia e esperança, mas sobre abraçar, não ter medo de sonhar e compartilhar histórias. “Nessa terra, nesse chão de meu Deus, sou uma mas não sou só!” (Povoada, Sued Nunes) Ao Daniel, meu companheiro, pela troca diária, por todo carinho e pela paciência que dispôs nesta reta final da tese: muito obrigada! Amo você! À minha orientadora, Andreia Liporoni, que tornou o doutorado mais leve, me deu autonomia e sempre foi muito afetuosa. Admiro sua horizontalidade enquanto docente e pessoa. Agradeço por ter apostado nas minhas escolhas e por viabilizar este feito comigo! Às professoras que aceitaram compor a banca, desde a qualificação, Rosimar Querino e Fernanda Sarreta, sempre com contribuições respeitosas e valiosas, me ajudaram a dar um rumo certeiro e importante na pesquisa. Rosi, agradeço pelos cafés e trocas, você foi parte fundamental nessa trajetória, me acolheu quando minhas vistas pareciam turvas e me ensinou com humildade. Você é um ser humano gigante, uma docente incomparável e uma inspiração para mim! Também agradeço às professoras Valéria e Edvânia por aceitarem, gentilmente, o convite para participar da banca avaliativa desta tese. Vocês são referências potentes para o Serviço Social, para a luta em defesa da saúde e serão fundamentais para o aprofundamento do debate neste trabalho. Para mim, é uma alegria e uma honra! Ao meu grupo de estudos, Gepapos, por ter sido um espaço de troca, estudos, questionamentos que me manteve firme na direção que escolhi trilhar. Reunir com vocês foi sempre um alívio diante da dureza da realidade. Alegria e força que esquentou esse tempo estranho. Em especial, agradeço aos meus colegas Aline e Marco, pelas trocas constantes! Às minhas amigas e camaradas do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, por sempre caminharem de mãos dadas, mostrando que é possível fazer a disputa da consciência e levar a bandeira dos trabalhadores e trabalhadoras. Tenho um orgulho danado em ocupar as trincheiras de lutas ao lado de vocês. Agora é que somos, juntas. Feminismo classista, futuro socialista! Ao PCB: com vocês aprendi sobre organização e luta, sem o qual jamais poderia ter chegado aos desafios que me impulsionaram a este trabalho, e a cada camarada cujas marcas carrego na vida e na militância. “Tudo que me torna raso. Eu rasgo [...]. Tudo que me põe de luto. Eu luto. Tudo que me rasga o peito. Eu peito” (Clara Baccarin) À Frente Nacional contra a Privatização da Saúde por ser um marco e referência na minha jornada acadêmica e de militância, por reforçar que o caminho da luta não se restringe apenas à luta pela saúde e tampouco por uma única frente de luta. A resistência é constante e incansável contra os desmontes e ataques à saúde, às políticas sociais e à vida, que foi acirrado, sobretudo, no governo de morte de Bolsonaro e Mourão. Queriam os lucros acima da vida. Existiu um golpe em marcha, mas existiram também aqueles que não sucumbiram frente o massacre da classe trabalhadora desse país. “Quem escolhe a luta, não recusa a travessia” (Guimarães Rosa). À todas as vidas que foram ceifadas durante a pandemia do Coronavírus. Gabriel Garcia Márquez em Viver Para Contar, disse que “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. A história nesse período, foi falseada, mortes que poderiam ser evitadas, o lucro acima de tudo. Eu quero Viver Para Contar o passado com a esperança de que ele não se repita. Há muitas coisas para serem ditas. Há pessoas lutando, resistindo e dizendo. Penso que nossa tarefa é ampliar estas vozes. A resistência é compromisso diário. A reflexão também. E como a gente, pensamento é feito para voar... “Eles combinaram de nos matar, e nós combinamos de não morrer” escreveu Conceição Evaristo, autora e autoridade, com conhecimento de causa de quem nasceu no país que mais mata sua população jovem negra, sua população indígena, sua população trans, que mata os direitos do seu povo a sangue frio. Eles querem matar nossos sonhos, nossa alma, e nós combinamos de não morrer nem corpo, nem mente, nem alma. O tempo exige cuidado, de nós, do nosso direcionamento político, humano, social. O tempo atual, áspero e rígido, há de ceder e o sol há de brilhar mais uma vez. Por isso, caminhar ao lado daqueles que acreditam em novos horizontes e fortalecem a luta diária é combustível para ganhar fôlego e resistir. “O Brasil e o mundo que virão depois da pandemia serão os mesmos que deixamos lá atrás quando tudo isso começou: um país e um mundo que precisam de uma revolução” (Mauro Iasi). Que esta pesquisa seja alimento para a reflexão, a ação e a luta cotidiana. Que possamos seguir na defesa incansável da saúde pública, gratuita, de qualidade, socialmente referenciada e universal. Um novo tempo há de nascer! ALBINO, Nathália Moreira. A saúde como mercadoria: o projeto das Organizações Sociais de Saúde em Minas Gerais. 2023. 239 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. RESUMO Desde a criação do Sistema Único de Saúde, a saúde é considerada um direito universal e de responsabilidade do Estado. Todavia, o desfinanciamento das políticas de saúde tem sido acompanhado pelo avanço de um projeto societário neoliberal que disputa o fundo público de modo a favorecer a acumulação do capital. O terceiro setor tem ampliado seu espaço na gestão das políticas sociais. No âmbito de saúde, as organizações sociais (OS) tornaram-se o mecanismo predominante de participação do terceiro setor e estão conquistando cada vez mais espaço. Neste cenário, o objetivo geral desta tese é analisar o processo de expansão e consolidação das Organizações Sociais de Saúde no estado de Minas Gerais. Para empreender essa análise, nos fundamentamos, teórica e metodologicamente, no materialismo histórico dialético como abordagem capaz de avançar sobre a realidade e compreendê-la em sua totalidade. Utilizou-se a pesquisa bibliográfica para compreender a relação público-privado na saúde no contexto da crise estrutural do capital. Recorreu-se, também, à pesquisa documental tendo como fontes de dados os atos normativos das Organizações Sociais no Brasil e no estado de Minas Gerais: leis, portarias, normas, contratos de gestão, informações contidas nos sítios eletrônicos das Secretarias Municipais de Saúde, Relatórios de auditorias dos Tribunais de Contas, Controladoria Geral da União, portais de transparência, além de notícias em sites e jornais. Os resultados apontam que as políticas sociais são situadas na dinâmica de financeirização do capital, com ênfase nas contrarreformas do Estado. Governos de ultradireita e neoliberais em âmbito nacional e estadual representaram solo fértil para expansão das OS. A complementariedade da iniciativa privada tem sido acionada para justificar sua exclusividade em vários municípios. Em Minas Gerais, verificou-se a aplicação da legislação dos termos de parceria para realizar contratação de OS revelando, inclusive, as brechas institucionais da legislação. Os municípios mineiros têm transferido a gestão e recursos financeiros da saúde para as OSS. Enfatiza-se que a administração das unidades de saúde, sob a gestão dessas entidades tem trazido prejuízos ao erário, em vista de inúmeras irregularidades envolvendo desvios de dinheiro público, fraudes nos dados, não cumprimento de metas, dentre outros, como apontam as denúncias e apurações explicitadas ao longo deste trabalho. A análise permite afirmar que os contratos de gestão são utilizados para instrumentalizar o mecanismo de privatização dos serviços, enquanto os termos aditivos sedimentam e perpetuam esse processo. Assim, a pesquisa permitiu concluir que a gestão dos serviços públicos de saúde, por meio das OSS, é uma forma de expandir um modelo político-econômico, com foco na transformação da saúde em mercadoria. Palavras-chave: Organizações Sociais; Privatização; Sistema de Saúde; Políticas de Saúde Pública. ALBINO, Nathália Moreira. A saúde como mercadoria: o projeto das Organizações Sociais de Saúde em Minas Gerais. 2023. 239 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. ABSTRACT Since the creation of the Unified Health System, health has been considered a universal right and the responsibility of the State. However, the underfunding of health policies has been accompanied by the advancement of a neoliberal societal project that competes for public funds in order to favor capital accumulation. The third sector has expanded its space in the management of social policies. In the field of health, social organizations (SO) have become the predominant mechanism for participation in the third sector and are gaining more and more space. In this scenario, the general objective of this thesis is to analyze the process of expansion and consolidation of Social Health Organizations in the state of Minas Gerais. To undertake this analysis, we base ourselves, theoretically and methodologically, on dialectical historical materialism as an approach capable of advancing over reality and understanding it in its entirety. Bibliographical research was used to understand the public-private relationship in health in the context of the structural crisis of capital. Documental research was also used, having as data sources the normative acts of Social Organizations in Brazil and in the state of Minas Gerais: laws, ordinances, norms, management contracts, information contained in the websites of the Municipal Health Secretariats, Audit reports from the Courts of Auditors, the Federal Comptroller's Office, transparency portals, in addition to news on websites and newspapers. The results indicate that social policies are situated in the dynamics of financialization of capital, with emphasis on State counter-reforms. Ultra-right and neoliberal governments at the national and state levels represented fertile soil for the expansion of OS. The complementarity of the private initiative has been used to justify its exclusivity in several municipalities. In Minas Gerais, it was verified the application of the legislation of the terms of partnership to carry out the contracting of OS, even revealing the institutional loopholes of the legislation. Minas Gerais municipalities have transferred health management and financial resources to the OSS. It is emphasized that the administration of health units, under the management of these entities, has brought losses to the treasury, in view of numerous irregularities involving embezzlement of public money, data fraud, non-compliance with goals, among others, as pointed out by the complaints and findings explained throughout this work. The analysis allows us to state that the management contracts are used to instrumentalize the service privatization mechanism, while the additive terms sediment and perpetuate this process. Thus, the research concluded that the management of public health services, through the OSS, is a way to expand a political-economic model, with a focus on transforming health into a commodity. Keywords: Social Organizations; Privatization; Health Sstem; Public Health Policies. ALBINO, Nathália Moreira. A saúde como mercadoria: o projeto das Organizações Sociais de Saúde em Minas Gerais. 2023. 239 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. RESUMEN Desde la creación del Sistema Único de Salud, la salud ha sido considerada un derecho universal y responsabilidad del Estado. Sin embargo, el desfinanciamiento de las políticas de salud ha estado acompañado por el avance de un proyecto social neoliberal que compite por los fondos públicos para favorecer la acumulación de capital. El tercer sector ha ampliado su espacio en la gestión de las políticas sociales. En el ámbito de la salud, las organizaciones sociales (OS) se han convertido en el mecanismo predominante de participación del tercer sector y ganan cada vez más espacio. En ese escenario, el objetivo general de esta tesis es analizar el proceso de expansión y consolidación de las Organizaciones Sociales de Salud en el estado de Minas Gerais. Para realizar este análisis nos basamos, teórica y metodológicamente, en el materialismo histórico dialéctico como un enfoque capaz de avanzar sobre la realidad y comprenderla en su totalidad. Se utilizó la investigación bibliográfica para comprender la relación público-privada en salud en el contexto de la crisis estructural del capital. También se utilizó la investigación documental, teniendo como fuentes de datos los actos normativos de las Organizaciones Sociales en Brasil y en el estado de Minas Gerais: leyes, ordenanzas, normas, contratos de gestión, informaciones contenidas en los sitios web de las Secretarías Municipales de Salud, Informes de Auditoría de las Tribunales de Cuentas, Contraloría Federal, portales de transparencia, además de noticias en sitios web y diarios. Los resultados indican que las políticas sociales se sitúan en la dinámica de financiarización del capital, con énfasis en las contrarreformas del Estado. Los gobiernos de ultraderecha y neoliberales a nivel nacional y estatal representaron un terreno fértil para la expansión de OS. La complementariedad de la iniciativa privada ha sido utilizada para justificar su exclusividad en varios municipios. En Minas Gerais, se verificó la aplicación de la legislación de los términos de asociación para realizar la contratación de OS, incluso revelando los vacíos institucionales de la legislación. Los municipios de Minas Gerais han transferido recursos financieros y de gestión de salud a la OSS. Se destaca que la administración de las unidades de salud, a cargo de estas entidades, ha traído perjuicios al erario, ante numerosas irregularidades que involucran malversación de dinero público, fraude de datos, incumplimiento de metas, entre otras, según señaló por las denuncias y hallazgos explicados a lo largo de este trabajo. El análisis permite afirmar que los contratos de gestión se utilizan para instrumentalizar el mecanismo de privatización del servicio, mientras que los términos aditivos sedimentan y perpetúan este proceso. Así, la investigación concluyó que la gestión de los servicios públicos de salud, a través del OSS, es una forma de expandir un modelo político-económico, con foco en la transformación de la salud en una mercancía. Palabras clave: Organizaciones Sociales; Privatización; Sistema de Salud; Políticas de Salud Pública. LISTA DE QUADROS QUADRO 1 - Municípios e Macrorregiões de atuação das OSS analisadas.......30 QUADRO 2 - Quadro comparativo da gestão pública estatal e da gestão por meio das OS ..................................................................................... 112 QUADRO 3 - Estados e número de municípios que possuem regulamentação com OS e número de OS por UF (BRASIL, 2018) ......................... 115 QUADRO 4 - Princípios do Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado (2019- 2030) ................................................................................................. 124 QUADRO 5 - Unidades de saúde gerenciadas pela SPDM ................................ 137 QUADRO 6 - Distritos Indígenas com Atuação da SPDM .................................. 138 QUADRO 7 - Termos aditivos dos distritos indígenas - 2013 a 2017 ................ 138 QUADRO 8 - Atuação da SPDM no Município de Uberlândia ............................ 145 QUADRO 9 - Unidades de saúde administradas pela Missão Sal da Terra no município de Uberlândia ................................................................. 153 QUADRO 10 - Unidades de saúde gerenciadas pela OS HMTJ ......................... 160 QUADRO 11 - Unidades de saúde gerenciadas pelo Instituto Social Saúde Resgate à Vida ............................................................................... 164 QUADRO 12 - Unidades de saúde gerenciadas pelo Instituto MedLife ............ 176 QUADRO 13 - Unidades de saúde gerenciadas pela INSAUDE ......................... 181 QUADRO 14 - Unidades de saúde gerenciadas pela INDSH .............................. 187 QUADRO 15 - Levantamento dos Repasses Públicos Constantes dos Contratos de Gestão e Aditivos das OS Analisadas .................................... 197 LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 – Estabelecimentos de Saúde Terceirizados.................................. 110 LISTA DE SIGLAS ABRAMGE Associação Brasileira de Medicina de Grupo ABRASCO Associação Brasileira de Saúde Coletiva ACP Ação Civil Pública ACSC Associação Congregação de Santa Catarina ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADUFU Associação dos Docentes da Universidade Federal de Uberlândia AEBES Associação Evangélica Beneficente Espírito-Santense AGIR Associação de Gestão, Inovação e Resultados em Saúde ALCA Acordo do Livre Comércio Americano ALMG Assembleia Legislativa de Minas Gerais AMA Assistência Médica Ambulatorial AME Ambulatório de Especialidade Médica ANADEM Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética ANDES Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior ANFIP Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil APS Atenção Primária à Saúde BM Banco Mundial BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento CAPS Centros de Atenção Psicossocial CDH Comissão de Direitos Humanos CEBES Centro Brasileiro de Estudo e Saúde CEIS Complexo Econômico Industrial da Saúde CEJAM Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim” CEME Central de Medicamentos CEMIG Companhia Energética de Minas Gerais CEPAI Centro Psíquico da Adolescência e Infância CF Constituição Federal CG Contrato de Gestão CGE Controladoria Geral do Estado CIMI Conselho Indigenista Missionário CMT Centro Mineiro de Toxicomania CNES Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica CFCAM Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro CODEMIG Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais CONASP Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária COPASA Companhia de Saneamento de Minas Gerais COSEMS-MG Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Minas Gerais CPI Comissão Parlamentar de Inquérito CRE Centrais Regionais de Emergência CRTEA Centro de Referência Transtorno de Espectro Autista CUT Central Única de Trabalhadores DRU Desvinculação das Receitas da União DSEI Distrito Sanitário Especial Indígena EBSERH Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares EC Emenda Constitucional EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais EPAMIG Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais EPI Equipamento de Proteção Individual EPM Escola Paulista de Medicina ESTADIC Pesquisa de Informações Básicas Estaduais EUA Estados Unidos da América FAMESP Fundação para o Desenvolvimento Médico Hospitalar FCMS/JF Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora FEDP Fundação Estatal de Direito Privado FEF Programa de Fiscalização em Entes Federativos FHC Fernando Henrique Cardoso FHEMIG Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais FHSFA Fundação Hospitalar São Francisco de Assis FIDI Fundação Instituto de pesquisa e Estudo de Diagnóstico por Imagem FMI Fundo Monetário Internacional FMMS Fundação Maçônica Manoel dos Santos FNCPS Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde FNS Fundo Nacional de Saúde FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação FUNED Fundação Ezequiel Dias GAECO Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado HCM Hospital Cristiano Machado HF Hospital Florianópolis HMFG Hospital Municipal Frei Gabriel HMPB Hospital Municipal Pimentas- Bonsucesso HMTJ Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus HRAD Hospital Antônio Dias HRJP Hospital Regional João Penido HSP Hospital São Paulo HU Hospital Universitário IBDS Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBRAPP Instituto Brasileiro de Políticas Públicas IBROSS Instituto Brasileiro de Organizações Sociais da Saúde ICIPE Instituto do Câncer Infantil e Pediatria Especializada IDEAS Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde IEP Instituto de Ensino e Pesquisa IESG Instituto de Ensino da Saúde e Gestão IGH Instituto de Gestão e Humanização IGPP Instituto de Gestão de Políticas Públicas IMIP Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica INDSH Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano INPS Instituto Nacional de Previdência Social INSAUDE Instituto Nacional de Pesquisa e Gestão de Saúde IRPF Imposto de Renda da Pessoa Física IRPJ Imposto de Renda da Pessoa Jurídica ISGH Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar ISMS Instituto Social Mais Saúde ISSRV Instituto Social Saúde Resgate à Vida LGBTT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais LOA Lei Orçamentária Anual LRF Lei de Responsabilidade Fiscal MARE Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado MDB Movimento Democrático Brasileiro MG Minas Gerais MPAS Ministério da Previdência e Assistência Social MPC Ministério Público de Contas MPC/PR Ministério Público de Contas do Estado do Paraná MPE Ministério Público Estadual MPF Ministério Público Federal MPMG Ministério Público de Minas Gerais MPT Ministério Público do Trabalho MS Ministério da Saúde NEPE Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão NESP/PUCMINAS Núcleo de Estudos Sociopolíticos OCDE Organização para a Cooperação Econômica Europeia OMC Organização Mundial do Comércio ONG Organização Não Governamental OS Organização Social OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público OSID Obras Sociais Irmã Dulce OSS Organização Social de Saúde PAC Programa de Aceleração do Crescimento PCB Partido Comunista Brasileiro PDRAE Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado PDRE Plano de Reforma do Aparelho de Estado PDT Partido Democrático Trabalhista PEC Proposta de Emenda à Constituição PF Polícia Federal PIB Produto Interno Bruto PL Partido Liberal PL Projeto de Lei PMDI Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado PMU Prefeitura Municipal de Uberlândia PNP Programa Nacional de Publicização PPAG Plano Plurianual de Ação Governamental PPP Parcerias Público-Privada PROS Partido Republicano da Ordem Social PSC Partido Social Cristão PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PT Partido dos Trabalhadores PTC Partido Trabalhista Cristão RH Recursos Humanos SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SPDM Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina SECONCI Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo SEMSA Secretaria Municipal de Saúde SEPLAG Secretaria de Planejamento e Gestão de Minas Gerais SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena SIA/SUS Sistema de Informação Ambulatorial SIATE Sistema Integrado de Atendimento a Traumas e Emergências SIGEO Sistema de Gerenciamento da Execução Orçamentária do Estado de São Paulo SIH/SUS Sistema de Informação Hospitalar SINMED Sindicato dos Médicos de Minas Gerais SIMESP Sindicato Médico de São Paulo SINDHOSFIL Sindicato das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Estado de São Paulo SINDIFISCO Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Estadual de Minas Gerais SINDSAUDE Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde SMS Secretaria Municipal de Saúde SP São Paulo SPCC Sociedade Pernambucana de Combate ao Câncer STF Supremo Tribunal Federal SUPREMA Sociedade Universitária para o Ensino Médico Assistencial SUS Sistema Único de Saúde TAC Termo de Ajustamento de Conduta TCM Tribunal de Contas do Município TCU Tribunal de Contas da União TP Termo de Parceria TRT Tribunal Regional do Trabalho UAI Unidades de Atendimento Integrado UAPSF Unidade de Atendimento Primário à Saúde da Família UBSF Unidades Básicas de Saúde da Família UEMG Universidade do Estado de Minas Gerais UF Unidade da Federação UFES Universidade Federal do Espírito Santo UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro UNIFESP Universidade Federal de São Paulo UPA Unidade de Pronto Atendimento US Unidade de Serviço USA Unidades de Suporte Avançado UTI Unidade de Terapia Intensiva VIR Veículos de Intervenção Rápida SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 19 2 CAPITALISMO TARDIO, ESTADO E FUNDO PÚBLICO: A INDISSOCIABILIDADE ENTRE FUNÇÕES ECONÔMICAS E POLÍTICAS PARA CAPTURAR A SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL .................................. 33 2.1 A dicotomia na relação público-privada: contradições viscerais da sociedade capitalista .................................................................................... 33 2.2 A ofensiva neoliberal e a contrarreforma do Estado: crise do capital no Brasil .............................................................................................................. 45 2.3 A centralidade do Fundo Público no processo de expansão e acumulação do capital ................................................................................. 54 3 A POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA E A PRIVATIZAÇÃO EM CURSO .... 67 3.1 Política de Saúde no Brasil: da medicina previdenciária à construção do Sistema Único de Saúde (SUS) ................................................................... 67 3.2 As tendências da política de saúde nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2014) ................................................................... 77 3.3 O desfinanciamento do SUS para sustentar o mercado privado de saúde: a intensificação desse processo no governo Temer e Bolsonaro .............. 88 4 A PRIVATIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL VIA ORGANIZAÇÕES SOCIAIS: ........................................................................ 100 4.1 As Organizações Sociais de Saúde no Brasil: asfixia do SUS em bases sólidas ......................................................................................................... 100 4.2 A mercantilização do SUS no Estado de Minas Gerais ........................... 116 4.3 A guinada jurídica para a legalização das Organizações Sociais de Saúde no Estado de Minas Gerais ............................................................ 122 5 PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE NO ESTADO DE MINAS GERAIS POR MEIO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS ................................................................ 130 5.1 Metodologia da Pesquisa ........................................................................... 130 5.2 As Organizações Sociais de Saúde analisadas ....................................... 134 5.2.1 Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina .......................... 135 5.2.2 Missão Sal da Terra ...................................................................................... 149 5.2.3 Hospital Maternidade Santa Therezinha de Jesus ....................................... 157 5.2.4 Instituto Social Saúde Resgate à Vida .......................................................... 162 5.2.5 Instituto Social Mais Saúde ........................................................................... 168 5.2.6 Instituto Brasileiro de Políticas Públicas ....................................................... 173 5.2.7 Instituto MedLife ........................................................................................... 175 5.2.8 Instituto Nacional de Pesquisa e Gestão de Saúde ...................................... 179 5.2.9 Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano ............................. 186 5.3 Os Contratos de Gestão como Instrumento de Privatização e Mercantilização do SUS ............................................................................. 191 5.4 Teia de Enganos: sem informações, não há transparência! ................... 201 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 207 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 214 19 1 INTRODUÇÃO O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso. [...] Sou eternamente náufraga, mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam. Uma paixão profunda é a bóia que me emerge. Sei que o mistério subsiste além das águas. (Conceição Evaristo). Refletir sobre o cotidiano é tarefa desafiadora, sobretudo por este carregar contradições inerentes às relações sociais capitalistas. Nesse sentido, a melhor direção é aquela que extrai do próprio cotidiano os elementos para construir um arcabouço teórico, conceitual e prático do objeto de investigação. As inquietações acerca da privatização da saúde advêm das minhas experiências, principalmente pela vinculação orgânica com o tema e a militância política na área. A formação em Serviço Social permitiu aprofundar o debate acerca das políticas sociais, dos espaços de participação popular, bem como das lutas e resistência no âmbito da formação histórica brasileira. Durante a realização do estágio no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e, posteriormente, o ingresso na Residência Integrada Multiprofissional em Saúde no mesmo hospital, foi possível identificar como a política de saúde se materializa de forma contraditória, disputada pela racionalidade hegemônica, atravessada por práticas hierárquicas e mercadológicas que afrontam e negam o direito à saúde. Na Residência, o projeto de pesquisa buscou investigar a perspectiva dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) acerca da política de saúde e a participação nos espaços de controle social no município de Uberaba-MG. Para isso, foram utilizados diferentes recursos metodológicos: a busca por documentos da área da saúde (federais e municipais), entrevista semiestruturada com diversos moradores do município e experiências tidas no campo por meio do cotidiano de formação e trabalho profissional. Como um labirinto, minha questão de pesquisa na Residência requeria aprofundamento. Assim, na dissertação desenvolvida no Programa de Política Social da UFES, focalizei os pontos desconhecidos de maior mobilização pessoal e coletiva, resultantes do processo de pesquisa anterior: qual papel os conselhos municipais de 20 saúde têm desempenhado no processo de privatização da política de saúde? Como os conselhos são envolvidos na definição dos contratos de gestão das organizações sociais para as unidades e equipamentos de saúde, se existem ou não resistências contra a privatização? Quais atores são favoráveis, quais se opõem, se buscam mecanismos e estratégias de enfrentamento com outros movimentos sociais, como se articulam? Qual o posicionamento dos conselheiros que representam os usuários? O projeto privatista apresenta-se como o projeto hegemônico entre os conselheiros? O estudo revelou, dentre outros aspectos, que a acentuação do processo contra reformista da política de saúde no município de Uberaba-MG, está pautada na sua racionalização e visa privilegiar os interesses do setor privado a partir das parcerias público-privado, desrespeitando as instâncias de controle social. Entretanto, o conselho se apresentou como um dos espaços que pode resistir a esse processo (ALBINO, 2018). Tendo esse cenário em mãos, foi possível compreender que as estratégias contra reformistas extrapolam o cenário uberabense, pois, a tentativa de “racionalizar” a saúde está inserida no projeto mais amplo de privilegiar os ideários neoliberais no Brasil. Para não contrariar a lógica da acumulação financeira, aposta em ajustes econômicos e estruturais para beneficiar o setor privado e filantrópico. Ao finalizar o mestrado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e retornar para Uberaba, me inseri no Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro (CFCAM), que é um espaço de construção coletiva cuja práxis tem como direção a mudança da realidade e a construção de um projeto político de transformação da sociedade. A luta do Coletivo vai além de romper com o machismo e o patriarcado, mas colocar em evidência a contradição entre capital e trabalho que vem vilipendiando cada vez mais a vida das mulheres e da classe trabalhadora. A militância na compreensão classista é algo construído continuamente, na atuação da luta de classes em diversos âmbitos. Adentrar esse espaço cuja perspectiva é um horizonte de revolução e poder popular é um trabalho árduo e um comprometimento para toda vida. Foi a partir das formações e das ações políticas deste coletivo que as indagações sobre essa pesquisa reverberaram ainda mais. Em 2020 me integrei na Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, sobretudo pela relação dos questionamentos, da luta diária nos espaços não institucionalizados e da necessidade de organizar o Fórum de Saúde de Uberaba para compor as frentes mais amplas de luta em defesa da saúde pública. 21 A chegada ao doutorado trazia como proposta inicial um estudo sobre o avanço das Organizações Sociais na gestão de instituições públicas de saúde e a sedimentação da lógica do capital no SUS no trabalho dos profissionais e na atenção à saúde de Uberlândia-MG. Assim, o intuito era compreender as contradições entre os sistemas públicos e a iniciativa privada de saúde no município, tendo como lócus de pesquisa a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e como participantes da pesquisa, os trabalhadores das Unidades geridas pela OSS. Porém, a entidade rejeitou o projeto de pesquisa - como já antecipado pela banca no momento da qualificação - uma vez que o estudo realiza críticas à gestão privada e os rebatimentos aos trabalhadores e à saúde pública. Nesse sentido, foi reavaliado a metodologia e objetivos estabelecidos anteriormente. Redirecionar o caminho metodológico e os objetivos da pesquisa foi fundamental e necessário no sentido de garantir o ineditismo da tese e tomar como rumo uma investigação ampliada da expansão das OSS em Minas Gerais. Assim, chegamos ao cerne da questão: a gestão de serviços públicos de saúde por meio das OSS é uma forma de expandir um modelo econômico que visa transformar a saúde em mercadoria. O recorte da privatização da saúde para o Estado de Minas Gerais se deu a partir da constatação de que, outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, já se encontravam em um processo avançado de privatização por meio da OSS e são apresentados como ideal para o resto do país, culminando em um avanço do modelo em Minas Gerais. Investigar o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil exige observar a relação intrínseca entre os mecanismos de oferta de serviços públicos e o mercado privado de saúde. Esta relação é orgânica, dinâmica e extremamente complexa. Como exemplo, pode-se observar que, desde a criação do SUS como política pública, já constava em seu histórico o entrelaçamento do setor privado com o público. O Artigo 1991 da Constituição Federal, ao abrir brechas para a entrada da iniciativa privada na assistência à saúde, representou a presença do mercado na política pública de saúde brasileira (BRASIL, 1988). 1 Art. 199 da CF/88: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos [...]. (BRASIL, 1988). 22 Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que criou-se um sistema público, fruto do ideário de estatização do Movimento pela Reforma Sanitária, também beneficiou o setor privado. Ao abrir o SUS para o mercado em caráter complementar, com prioridade para instituições filantrópicas e sem fins lucrativos, o Estado passa a assumir mínimas responsabilidades, transferindo-as para a iniciativa privada, lucrativa ou filantrópica, obedecendo aos interesses do capital. Esses sinais e transformações configuram a estrutura central desta tese, sobretudo o movimento de criação das Organizações Sociais (OS) como instrumento para privatização da saúde pública brasileira, ancorado na ideia da “Nova Gestão Pública” (NGP) (BRESSER-PEREIRA, 2010). Diversas pesquisas e estudos, dentro e fora do Serviço Social (CORREIA, 2007; BEHRING, 2008; SOARES, 2013), foram realizadas a fim de analisar os efeitos perversos da Reforma do Estado para as políticas sociais. No que diz respeito às OS, desde sua criação, o propósito difundido foi o de permitir e incentivar a produção não lucrativa pela sociedade de bens e serviços públicos não exclusivos do Estado. O aumento de atividades sociais pelo chamado “terceiro setor” tem sido recorrente no processo de Reforma do Estado nas democracias contemporâneas. No Brasil, é evidente que tais entidades do terceiro setor têm buscado escamotear seus nítidos interesses econômicos, que se materializam por meio de isenções de impostos, subsídios estatais, além da possibilidade de remunerar com altos salários seus diretores e sucatear as condições dos trabalhadores. Com os ideários neoliberais, a contrarreforma do Estado instituiu uma nova modalidade de apropriação do fundo público para entidades sem fins lucrativos, denominados de “novos modelos de gestão”. O Estado entrega a administração do patrimônio público a essas instituições, terceiriza a contratação de força de trabalho e repassa o fundo público para financiar as ações (ANDREAZZI; BRAVO, 2014; CISLAGHI, 2015). A certificação de OSS é uma autorização concedida pelo poder público para que entidades privadas, sem fins lucrativos, formalizem contratos de gestão com a administração pública. Essa autorização foi criada pela Lei Federal 9.637/1998 (BRASIL, 1998a) e regulamentada pelo Decreto nº 9.190/2017 (BRASIL, 2017) como uma das medidas para “descentralizar”, “desburocratizar” e “flexibilizar” a governança pública. Todavia, desde a sua criação, diversos debates foram travados acerca da 23 legitimidade dessa decisão e o Supremo Tribunal Federal (STF) levou 17 anos para julgar a constitucionalidade da lei que criou as OS. As OS se configuram como uma nova categoria de pessoa jurídica, de direito privado, sem fins lucrativos (BRASIL, 1998a) que podem celebrar contratos para prestar serviços com entes públicos, incluindo os serviços de saúde. As OSS, operam dentro do modelo neoliberal, que ganhou forma e hegemonia no Brasil nos últimos 30 anos, no sentido que todas as suas guinadas - ainda que por vezes veladas e não declaradas - estão voltadas para servir o mercado. A gestão da saúde pelas OSS é uma forma de expandir um modelo econômico com foco na transformação da saúde em mercadoria. Logo, as OSS concretizam a tendência crescente de transferência da gestão e prestação de serviços públicos para entidades privadas, classificadas legalmente como entidades sem fins lucrativos. De outro modo, estudos reforçam que essas entidades possuem superávit financeiro (TURINO; SODRÉ; BAHIA, 2018). Para Morais et al. (2018), a atribuição de não-lucratividade das entidades do terceiro setor não pode ocultar seus interesses econômicos que são materializados por meio de isenção de impostos e subsídios estatais, bem como a possibilidade de altos salários aos seus corpos diretivos. Além disso, as autoras ressaltam as vantagens das OS sobre formas de organizações estatais. Por adquirirem a condição de direito privado, gozam de uma autonomia administrativa mais ampla do que aquela possível por dentro do Estado, expressando entre outras vantagens, a possibilidade de contratar funcionários nas condições do mercado, elaborar normas próprias para compras, contratos e flexibilidade na execução orçamentária. Ao instituir essas entidades, o Estado busca apresentar soluções a fim de aumentar a eficiência das políticas sociais, diminuir os gastos públicos e adquirir maior autonomia gerencial. No entanto, a privatização é fruto dos desdobramentos das reformas neoliberais e tem por objetivo viabilizar e impulsionar um nicho lucrativo para o mercado. O capital busca espaços para sua valorização e expansão, que é a razão de sua existência e, para isso, se direciona para novas esferas de valorização como, por exemplo, as políticas de saúde, educação e previdência, expressando o processo mais profundo de supercapitalização (MANDEL, 1982). Assim, capitais em excesso migram para a oferta de serviços privados em saúde e para o setor suplementar, como planos e seguros de saúde, pois, são capitais que não conseguem possibilidades de acumulação na esfera produtiva e buscam no 24 setor de serviços chances de valorização. O Estado, via saúde pública, é o grande indutor desse processo. A gestão privada ameaça o SUS e o acesso universal e integral aos serviços de saúde e não cumpre com os objetivos de melhoria da assistência à saúde da população. Ao contrário, destrói um conjunto de direitos sociais, ao flexibilizar os direitos dos trabalhadores, ao transferir a execução das políticas sociais de saúde e educação para entidades de direito privado ou filantrópicas, inviabiliza o controle social e submete a produção de conhecimento e a formação de trabalhadores da saúde aos interesses mercantis em prejuízo das reais necessidades da população. As OSS são resultado da contrarreforma do Estado que combina redução de direitos sociais com fortes tentativas de anular as possibilidades de luta e organização política da classe trabalhadora. A saúde move uma ampla quantidade de capital em toda a rede de serviços ou indústrias, o que permite afirmar a existência de um complexo econômico industrial da saúde, e, todavia, “[...] o terceiro setor demonstra que não está fora desta rede de tessitura complexa.” (SODRÉ; BUSSINGUER, 2018, p. 39). As OSS disputam os contratos de gestão dos serviços públicos, em que se insere também a gestão da infraestrutura estatal, ofertados pelos três níveis da federação: municípios, estados e União. Nesta direção, pressupõe-se que há um sistema de serviços públicos financiados com recursos públicos, onde essas entidades atuarão. Convém pontuar um dos pressupostos mais importantes para a substituição da gestão estatal direta pela gestão privada: a ineficiência do setor público na prestação desse tipo de serviço. Tal concepção, além de simplificar o problema da eficácia do serviço público, não expressa os parâmetros e critérios utilizados para afirmar a ineficiência da gestão direta sobre a publicização via OSS. Conforme sinalizou Monte- Cardoso e Andrieta (2018), na medida em que não se fortalecem parâmetros próprios de avaliação da efetividade do serviço público, sua gestão passa a incorporar acriticamente medidas típicas do setor privado, o que não necessariamente condiz com sua função. Quase vinte cinco anos após a institucionalização das organizações sociais, a experiência concreta de gestores, trabalhadores, usuários e estudiosos aponta que essa forma de gestão está longe de expressar as virtudes propaladas por seus defensores. Nesse sentido, a pesquisa permitiu descrever, qualificar e revelar 25 aspectos sobre a realidade dessas organizações no estado de Minas Gerais e no Brasil. Existem indagações que perpassam o processo investigativo desta tese, tais como: qual o papel das Organizações Sociais enquanto “novas” gestoras privadas dos programas e serviços de saúde na região do Triângulo Mineiro? Qual o perfil dessas Organizações Sociais? Quais unidades de saúde estão sob gestão das referida OSS? Qual é o caráter econômico e político dessas instituições? Quanto, em termos de fundo público da saúde, tem sido repassado para as OSS no estado de Minas Gerais? O que consideramos inovador é o trajeto empreendido na pesquisa, recorrendo a fontes documentais: leis, normas, portarias, contratos de gestão, relatórios de auditoria dos Tribunais de Contas, portais de transparência, além de notícias recentes na imprensa escrita e eletrônica em geral, perscrutando o pano de fundo das OSS no âmbito dos serviços públicos de saúde. A nossa hipótese é de que as Organizações Sociais de Saúde estão se expandindo e se consolidando no processo de gestão e prestação de serviços de saúde de forma progressiva, sobretudo em Minas Gerais, através de um projeto político que se intensificou com os governos de ultradireita que assumiram o poder em 2018. As OS estão inseridas no contexto de acumulação de capital no setor saúde para garantir sua permanente valorização e expansão via captura do fundo público. A partir da compreensão de que governar de forma indireta aos instrumentos de gestão tem sido uma tendência mundial, e, no Brasil, essa adoção a estadual vêm sendo intensificada, sobretudo no que concerne às políticas de saúde, o objetivo geral da pesquisa é analisar o processo de expansão e consolidação das Organizações Sociais de Saúde, no estado de Minas Gerais. Como objetivos específicos da pesquisa, temos: ● Analisar a relação público-privada no contexto da crise do capital, em específico, por meio do modelo de gestão das Organizações Sociais em Saúde no estado de Minas Gerais; ● Descrever o processo de privatização por meio da transferência da gestão e oferta de serviços públicos de saúde para as Organizações Sociais de Saúde; 26 ● Identificar as Organizações Sociais que atuam no Estado de Minas Gerais: quem são, quando foram formadas, em quais regiões do país estão e como atuam. ● Analisar o uso de contratos de gestão (CG) e de termos aditivos (TA) como instrumentos que viabilizam a privatização do SUS. O objeto de estudo se configura como um fenômeno complexo que possui historicidade e se insere na realidade do modo de produção capitalista. Foram realizadas inúmeras buscas para se aproximar do objeto de pesquisa. Mobilizamos diversos sítios e base de dados de produções científicas, tais como: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); plataformas Scielo, Redalyc, Google Acadêmico (Scholar), trabalhos nas áreas de gestão em saúde, enfermagem, direito e saúde coletiva, que tratam da questão das Organizações Sociais de Saúde. Nas bases e bancos nacionais de teses, dissertações e artigos (BDTD, Scielo e periódicos Capes), utilizamos as palavras-chave: Organizações Sociais de Saúde, Organizações Sociais de Saúde- Minas Gerais, privatização da saúde, terceirização da saúde. Nenhum deles tratava diretamente do objeto que propusemos nesta pesquisa. Nas pesquisas nos sites da Redalyc, Scielo e Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, identificamos artigos que tratavam sobre a terceirização dos serviços de saúde, avaliação das OSS, o controle social na terceirização dos serviços de saúde, as contra reformas na política de saúde, bem como as tendências de mercantilização do SUS em outros estados como São Paulo, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro (CISLAGHI, 2015; MORAIS et al., 2018; DUARTE et al., 2020; MONTE-CARDOSO; ANDRIETTA, 2018; BUSSINGUER; SALLES, 2018; LIMA, 2017; BRAVO; PELAEZ; PINHEIRO, 2018; MENDES; CARNUT, 2020). Os trabalhos oriundos desta busca contribuiu para uma maior aproximação ao objeto do nosso estudo. Os debates e problematizações trazidas pelas(os) diferentes autores (as), permitiram constatar que o tema das Organizações Sociais de Saúde continua atual e permeado pelas contradições do sistema capitalista, exigindo a continuidade de pesquisas e aprofundamento dos estudos. No entanto, os trabalhos levantados não tratavam da privatização da saúde via Organizações Sociais, no estado de Minas Gerais. 27 Essa temática se apresenta como relevante e de grande interesse no âmbito da pesquisa em Serviço Social e no campo das políticas sociais, pelo fato de a política de saúde ser um alvo com potencial político e estratégico para garantir os interesses da classe trabalhadora. Ao Serviço Social, tal discussão importa e deve ser realizada por tratar de um direito assegurado em lei, mas que tende a não ser efetivado na realidade dos serviços. Importa, também, à profissão porque envolve a discussão sobre a importância da articulação com os movimentos da categoria profissional e movimentos sociais, especificamente aqueles que defendem uma saúde pública, universal e socialmente referenciada. Assim, pode-se considerar delineada a relevância científica do estudo presente. A relevância social deste trabalho reside no fato de que a gestão privada do SUS está na contramão da consolidação do seu arcabouço legal e afronta o direito à saúde pública, universal e de qualidade, enquanto direito de milhares de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS. Além disso, esta pesquisa se coloca como uma denúncia frente às tentativas de transformar a política de saúde em mercadoria e fonte de lucro. Discutir o tema da privatização da política de saúde, via OSS, importa a toda sociedade, devido a sua implicação na vida das pessoas, no que diz respeito à consciência sanitária, que consiste na ampliação do conhecimento da população sobre a saúde e suas determinações e, sobretudo, a possibilidade de ampliar mobilizações coletivas voltadas para mudar essas determinações estruturais, isto é, a estrutura social e as relações sociais que produzem desigualdades, que rebatem nas condições de vida e trabalho e vão contra a produção de saúde em sua concepção ampliada. Desvelar as contradições existentes no âmbito dessa política pública, permite que a população construa formas de luta e resistência para fortalecer os princípios públicos e universais. Os espaços de luta também devem ser tensionados e ocupados por sujeitos que disputam propostas para dar nova direção à política de saúde, contra as tentativas de privatizar o SUS. Este tema levanta diversos questionamentos e as reflexões acerca da temática não se esgotam, podendo desencadear muitas outras pesquisas e fomentar debates necessários sobre a política de saúde. A metodologia de pesquisa adotada para a construção dessa análise foi a pesquisa documental e exploratória, fundamentada em fontes documentais e em 28 dados secundários de domínio público. Inicialmente buscamos analisar a história e trajetória de cada OSS qualificada para atuar no Estado de Minas Gerais, bem como pontuar os processos de irregularidades em que as mesmas estão envolvidas. Foi um processo complexo e problemático, visto que não há transparência nas informações referentes a essas instituições, notadamente no período 2018-2022, em que não houve o cumprimento e/ou observância à Lei de Acesso à Informação, por parte dos agentes públicos. A escolha temporal do período de 2018 a 2022, se deu em razão do nítido aprofundamento da privatização assumidos pelo governo federal (Bolsonaro/Mourão), e a nível estadual (Zema), sobretudo no âmbito da terceirização da política de saúde. O ponto de partida foi o mapeamento das Regiões Ampliadas de Saúde de Minas Gerais. Nesse caso, a premissa orientadora da escolha dos municípios, foram aqueles que possuem a economia mais dinâmica e, portanto, com o PIB mais elevado, uma vez que as OSS instaladas nesses municípios movimentariam os maiores volumes de recursos financeiros. Posteriormente, foi realizada a busca nos sítios eletrônicos de cada OS, a fim de identificar em quais Municípios e Estados brasileiros as mesmas atuam ou já atuaram, e em quais unidades de saúde passaram a gerir. Ao aprofundar a pesquisa, identificou-se que a presença das OSS no Estado de Minas Gerais, não se limitam e não estão majoritariamente nos municípios de grande porte, mas ao contrário, vêm se alastrando, sobretudo, nos municípios menores, dada a sua maior dificuldade no que tange à avaliação, monitoramento e fortalecimento das instâncias de participação e controle social. Nos sites das OSS selecionadas para a pesquisa, foram coletadas informações sobre a natureza jurídica, o histórico das entidades que lhes deram origem, bem como sua expansão geográfica em Minas Gerais e no Brasil. As OSS de maior porte têm essas informações razoavelmente organizadas em suas páginas eletrônicas, como por exemplo, a divulgação de boletim de serviços e outras atividades assistenciais desenvolvidas por elas, como uma vitrine da empresa, num claro marketing de suas ações, ou melhor, de seus cases de sucesso. Por outro lado, as OSS de menor porte, como ISSRV e IBRAPP, praticamente não inserem informações em seus portais, dificultando o acesso aos instrumentos contratuais, unidades geridas, plano de trabalho, relatórios, entre outros. 29 Com a lista dos municípios que atuam as referidas OSS, a segunda fonte de dados passou a ser as Secretarias Municipais de Saúde, Tribunais de Contas (TCE e TCM), Portal da Transparência, além de notícias na imprensa escrita e eletrônica em geral. Essa fase foi complexa, pois, a maioria dos Municípios/Secretarias, não alimenta seus sítios de forma satisfatória, quando não existente. Contudo, foi possível encontrar dados das OSS estudadas através do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais e da Controladoria Geral da União, no que concerne às informações sobre irregularidades cometidas pelas entidades e municípios mineiros. Observou-se em praticamente todos os municípios, ausência da publicação na íntegra dos Contratos de Gestão e Termos Aditivos celebrados com as OSS, o que impossibilitou traçar uma trajetória dos contratos com as referidas OSS nos municípios onde as mesmas atuam ou já atuaram. Além disso, cabe destacar que não foi objetivo deste trabalho se debruçar sobre os recursos financeiros destinados às entidades, tampouco comparar a proporção do volume de recursos financeiros destinados às unidades públicas geridas por OSS, em relação aos geridos diretamente pelo estado ou município, o que exigiria aprofundar a análise acerca dos serviços prestados, área de abrangência, extensão geográfica dos municípios, destinação específica de cada verba, cruzamento de dados, demonstrativos contábeis, prestação de contas, dentre outros. Ressalta-se a complexidade, e até mesmo a impossibilidade de análise sobre tais questões, uma vez que a pesquisa evidenciou que as informações disponíveis em domínios públicos são insuficientes ou quase nenhuma sobre o processo de celebração e parcerias das OSS com os municípios. Desse modo, as informações relativas aos Contratos assinados foram adquiridas a partir de relatórios do Tribunal de Contas, Ministério Público e denúncias da mídia, como acima frisado. No sítio do ‘Portal das OSS’ foi possível encontrar diversas OSS que possuem contratos vigentes com municípios mineiros, ainda que as informações não estivessem disponíveis na página eletrônica da entidade ou do município, quer seja por falta de atualização ou falta de transparência na divulgação dos dados. O momento seguinte foi o de sistematização dos dados encontrados. Primeiramente, as OSS foram caracterizadas pela sua origem institucional, natureza jurídica, expansão pelo Estado de Minas Gerais e outros Estados brasileiros, suas trajetórias, perfil assistencial, bem como as irregularidades e escândalos nos quais estão envolvidas. 30 Na sequência, foram analisados os contratos de gestão, e ainda que na prática os mecanismos de transparência - quanto aos serviços prestados e aos recursos repassados - fossem precários, os valores transferidos eram significativos. Além disso, foi possível analisar os objetos contratuais e os termos aditivos, os quais apontaram para uma discricionariedade na gestão e na falta de transparência nas parcerias estabelecidas. Algumas OSS, como é o caso da SPDM e HMTJ, têm destacadamente mais informações em relação às demais OSS citadas nesse trabalho, dada a sua trajetória, estrutura e abrangência na área da saúde. Em contrapartida, outras como MedLife e IBRAPP, foram analisadas de forma mais pontual, devido às dificuldades, já referidas, para extrair informações. No quadro a seguir, constam os municípios, macrorregiões e OSS, analisadas neste trabalho: QUADRO 1 - Municípios e Macrorregiões de atuação das OSS analisadas Organização Social Município Macrorregião Prefeitura Missão Sal da Terra Araguari Triângulo do Norte https://www.araguari.mg.gov.br/ Instituto Social Mais Saúde Barão de Cocais Centro https://www.baraodecocais.mg.gov.br/ Hospital Maternidade Santa Therezinha de Jesus (HMTJ) Betim Centro https://www.betim.mg.gov.br/ Instituto Social Saúde Resgate à Vida (ISSRV) Borda da Mata Sul https://bordadamata.mg.gov.br/ Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano (INDSH) Campina Verde Triângulo do Norte https://www.campinaverde.mg.gov.br/ Instituto Social Saúde Resgate à Vida (ISSRV) Contagem Centro https://www.portal.contagem.mg.gov.br/ Instituto Brasileiro de Divinópolis Oeste https://www.divinopolis.mg.gov.br/ 31 Políticas Públicas (IBRAPP) Instituto MedLife Frutal Triângulo do Sul https://www.frutal.mg.gov.br/ Instituto Social Saúde Resgate à Vida (ISSRV) e Instituto Social Mais Saúde Ibirité Centro https://www.ibirite.mg.gov.br/ Instituto Social Saúde Resgate à Vida (ISSRV) Iturama Triângulo do Sul https://www.iturama.mg.gov.br/ Instituto Social Saúde Resgate à Vida (ISSRV) Jacutinga Sul https://www.jacutinga.mg.gov.br/ Hospital Maternidade Santa Therezinha de Jesus (HMTJ) Juiz de Fora Sudeste https://www.pjf.mg.gov.br/ Instituto Nacional de Pesquisa e Gestão de Saúde (INSAUDE) Muriaé Sudeste https://muriae.mg.gov.br/ Hospital Maternidade Santa Therezinha de Jesus (HMTJ) Nova Serrana Oeste https://www.novaserrana.mg.gov.br/ Instituto Nacional de Desenvolvimento Social e Humano (INDSH) Pedro Leopoldo Centro http://pedroleopoldo.mg.gov.br/ Instituto Social Mais Saúde Rio Acima Centro https://www.prefeiturarioacima.mg.gov. br/ Hospital Maternidade Santa Therezinha de Jesus (HMTJ) Timóteo Vale do Aço https://www.timoteo.mg.gov.br/ Instituto Social Saúde Resgate à Vida (ISSRV) Teófilo Otoni Nordeste https://teofilootoni.mg.gov.br/ Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina Uberlândi a Triângulo do Norte https://www.uberlandia.mg.gov.br/ 32 (SPDM) e Missão Sal da Terra Fonte: Elaborado por Nathalia Moreira, com base nas informações do Governo de Minas e Prefeituras analisadas, 2023. Nossa metodologia assumiu um complexo labirinto, num percurso fundamentado na teoria social crítica, a partir do materialismo histórico dialético. O método marxista parte da realidade concreta e objetiva, entendendo-a como dinâmica, complexa e contraditória, e, portanto, compreendendo os fenômenos e a realidade em movimento. A perspectiva teórico-metodológica aqui adotada corresponde ao arcabouço marxiano, que compreende os seguintes aspectos: reconhecimento da sociabilidade burguesa como ordem social complexa e em permanente mutação; investigação da realidade tendo em perspectiva a categoria da totalidade, representando o todo orgânico e articulado, desvelando as aparências e buscando a essência das mediações sociais. Na Introdução à crítica da economia política, Marx (2008), defende a necessidade de que o pensamento deve elevar-se do abstrato ao concreto. Nesse sentido, considera que apropriar-se da realidade empírica, imediata, faz-se necessário, porém, não é suficiente para a apreensão do real. O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação [...]. (MARX, 2008, p. 258). O cenário de privatização, em específico da saúde, é apenas uma das expressões de desmonte das políticas e serviços públicos e alternativas do Estado neoliberal para fortalecer o capital nacional e internacional. A política de saúde está inserida no contexto contraditório da dinâmica do modo de produção capitalista, e por isso, a investigação presente levará em conta suas determinações específicas, bem como estabelecerá sua vinculação com a totalidade das relações sociais, desvelando as mediações entre essência e aparência na qual se insere a saúde pública brasileira. 33 O método aponta os principais valores que direcionam a pesquisa e o modo como se apreende e decifra a realidade. A metodologia, por sua vez, se constitui no caminho escolhido pela pesquisadora para realizar o estudo. Procurando respostas ao problema enunciado e partindo do estranhamento da realidade, nosso trabalho envolveu a pesquisa documental em uma abordagem qualitativa (MINAYO, 1992). Nesta pesquisa, os documentos analisados são diversificados em razão da não disponibilidade e confiabilidade de dados acerca das Organizações Sociais de Saúde, no estado de Minas Gerais. Não existem fontes que sistematizam as informações necessárias para responder aos vários questionamentos do objeto de estudo, tais como: como se dá o processo de transferência da gestão e oferta de serviços públicos de saúde para as OSS em Minas Gerais; quem são e como atuam no estado e nas regiões do país; de que forma os contratos de gestão são utilizados enquanto instrumento jurídico para viabilizar a privatização. Assim, nosso corpus empírico se constitui por fontes primárias, secundárias e de domínio público, tais como: leis, normas, portarias, relatórios de auditoria dos Tribunais de Contas sobre as OSS atuantes no estado de Minas Gerais, site da Secretarias Municipais de Saúde, portais de transparências, além de reportagens e notícias na imprensa escrita e eletrônica. Para a investigação dos dados, utilizamos a análise de conteúdo. Segundo Bardin (1977, p. 42), tal análise é um [...] conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. As fases da análise de conteúdo, para Bardin (1977), organizam-se em torno de três polos: a pré-análise; a análise do material; o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. A pré-análise, é a fase de organizar e sistematizar as ideias iniciais; a exploração do material consiste em analisar o texto sistematicamente a partir das outras categorias; e por fim o tratamento dos resultados e interpretação que é a utilização das categorias e unidades de análise que serão submetidas a reflexão, de forma que estas possam ressaltar as informações obtidas. 34 Realizamos análise de conteúdo do tipo categorial e temática (BARDIN, 1977). A análise de conteúdo temática compreende um feixe de relações e pode ser apresentada por meio de uma palavra, uma frase, um resumo: “[...] o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura [...]” (BARDIN, 1977, p. 105). A análise temática “[...] consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido.” (BARDIN, 1977, p. 105). Na categoria central de sentido, Organizações Sociais de Saúde e Sistema Único de Saúde, buscamos as unidades de análise. Exploramos as mais diversas possibilidades de “núcleos de sentido” (BARDIN, 1977). A análise buscou identificar: o surgimento, atuação, expansão das OSS; os fundamentos econômicos e políticos que subjazem a inserção dessas entidades na saúde pública; os instrumentos utilizados como os contratos de gestão e termos aditivos e a (falta) transparência dos dados e informações. Para fins de exposição dos resultados, esses foram discutidos ao longo do trabalho e organizados em quadros apresentados ao longo do Capítulo 5. Ademais, devemos mencionar que em todas as etapas da tese observamos cuidados éticos, como: a) Não negligenciar autores lidos, buscando compreendê-los dentro da lógica que se inscreve a sua produção, respeitando a sua propriedade intelectual; b) Inscrever a reflexão sobre os documentos analisados dentro do contexto histórico em que foram produzidos; c) Por fim, nos comprometemos em realizar a divulgação da tese por meio de diferentes meios e, sobretudo, proceder com a divulgação em espaços de discussão sobre o SUS, juntos aos mais diferenciados sujeitos que o compõem. Para a perspectiva dialética a ampla discussão e publicização dos dados é imprescindível e para o Serviço Social torna-se um compromisso ético. No caso em pauta, essa pesquisa se coloca como denúncia, ao evidenciar as profundas e pulsantes contradições da privatização da saúde pública, especialmente em Minas Gerais. Por isso, esse trabalho perpassa o campo da luta e organização política, com 35 vistas a construir uma nova hegemonia na saúde: junto à classe trabalhadora desse país. A tese se estrutura em cinco seções, incluindo esta Introdução. Na segunda analisamos os significados históricos dos conceitos do público e do privado, e sua relação na formação da sociedade capitalista. Destacou-se a formação e organização do capital portador de juros e suas expressões no capitalismo contemporâneo, apontando o papel do Estado e do fundo público, para garantir a reprodução e valorização desta forma fetichizada do capital. Foram analisadas, ainda, as consequências da ofensiva neoliberal no Brasil e os desdobramentos na contrarreforma do Estado e nas privatizações das políticas sociais, especificamente o SUS. Na terceira seção, analisamos as tendências de desmonte da política de saúde brasileira na atualidade. Tendo como ponto de partida o processo de constituição da política de saúde no Brasil, cujo desenvolvimento foi marcado pela disputa da racionalidade privada e da racionalidade pública (hegemônica e contra hegemônica), debatemos a processualidade histórica do SUS nos governos do Partido dos Trabalhadores e a intensificação do seu desfinancimento, nos governos Temer e Bolsonaro, para sustentar o mercado privado. A partir disso, apontamos os efeitos da política de austeridade sobre a saúde. Na quarta, apontamos a tensão entre o público e o privado dentro do SUS, expondo os princípios neoliberais que justificaram a flexibilização e a transferência da gestão de serviços públicos de saúde para Organizações Sociais de Saúde. Para tal, em um primeiro momento, evidenciamos o avanço das OS a partir da “Reforma” do Estado e sua consolidação pelas forças conservadoras na gestão das políticas sociais. Posteriormente, resgatamos a relação público-privada, que desencadeou a mercantilização da saúde em Minas Gerais e fortaleceu a guinada jurídica para legalizar as OSS, no estado. Na quinta, realizamos a análise de cada OSS investigada neste trabalho. O ponto de partida foi a caracterização dessas entidades, traçando seu perfil na gestão pública de saúde de diversos municípios mineiros, além das irregularidades em que estão envolvidas. A partir disso, buscamos compreender de que forma os contratos de gestão e termos aditivos são utilizados na gestão dos serviços de saúde, bem como os recursos financeiros públicos consideráveis para essas organizações privadas, 36 sem fins econômicos. Ao final, evidenciamos a falta de transparência para acesso público sobre as OSS e suas parcerias com os entes públicos. Nas Considerações Finais, retomamos a tese que propusemos ao início da pesquisa, bem como aos elementos que nos guiaram durante o processo de estudo. Concluímos que, as OSS têm assumido a gestão dos serviços públicos de saúde no Brasil como uma “reinvenção” da privatização e continua se expandindo pelo país com o discurso da eficiência - entregar mais com menos - e com isso, abocanham os recursos públicos do SUS e sucateiam o direito à saúde, herança do povo brasileiro. Por fim, essa tese busca auxiliar nos processos de reflexão, luta e estratégias contra hegemônicas, que dialoguem com a defesa do SUS, pensadas e defendidas originalmente pelo Movimento da Reforma Sanitária. 37 2 CAPITALISMO TARDIO, ESTADO E FUNDO PÚBLICO: A INDISSOCIABILIDADE ENTRE FUNÇÕES ECONÔMICAS E POLÍTICAS PARA CAPTURAR A SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL Neste capítulo buscamos considerar os elementos teórico-metodológicos que consideramos fundamentais para a análise da dinâmica da acumulação capitalista, da crise estrutural do capital, bem como a presença do Estado nesse processo. O fundo público exerce um papel fundamental na articulação das políticas sociais e na sua relação com o movimento de reprodução do capital. As investidas neoliberais se materializam nas contrarreformas do Estado, especificamente na saúde, enquanto política social, transformada em mercadoria e fonte de lucro para os grandes grupos capitalistas. 2.1 A dicotomia na relação público-privada: contradições viscerais da sociedade capitalista Para compreender as contradições entre as categorias público e privado na sociedade capitalista contemporânea, faz-se necessário a retomada do processo através do qual se constituiu historicamente a diferença entre tais esferas. Em determinado momento histórico, as categorias assumem concepções antagônicas e em outros períodos se interligam em uma relação de apropriação e dependência de um espaço sobre o outro. A dicotomia histórica de significados entre o público e o privado adquire novas características na formação da sociedade capitalista e expressa traços de apropriação do espaço privado sobre o público. Essa relação ganha novas configurações a partir do contexto atual de crise do capitalismo e se estabelece no interior da disputa de projetos societários em confronto, expressão da luta de classes no âmbito do Estado, e altera, por sua vez, a dinâmica da política social. A relação público-privada se desenvolveu ainda mais expressivamente com a formação da sociedade burguesa no final do século XVIII, ganhando novos traços no contexto sócio histórico. Na concepção teórica de Marx (2002, p. 28), o entendimento da relação público-privada não se restringe e se fundamenta em uma definição limitada de seus significados, mas situa essa relação a partir da análise dos processos históricos, das 38 contradições e do movimento do real, como está caracterizado brevemente no prefácio à segunda edição do primeiro livro de O capital: “[...] a investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, de perquirir a conexão íntima que há entre elas.” É importante observar que Marx não se deteve explicitamente ao estudo da relação público-privada. No entanto, trouxe formulações e aproximações a partir de seu método de análise da realidade histórica - expressamente materialista - elementos que permitem compreender essa dinâmica e suas determinações. Debater os conceitos de público e privado exige compreender as relações sociais e o modo de produção capitalista que necessariamente expõe os antagonismos de classe e a exploração da classe trabalhadora. Marx (2010) aborda as aproximações e conceito sobre o público-privado, posicionando o Estado, a sociedade civil e os interesses particulares. O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é a organização da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura situá-las no âmbito das leis, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que é dependente dele [...] Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. (MARX, 1844). Nessa relação público-privado, Marx aponta considerações sobre a contradição existente entre o Estado e a sociedade civil, e o papel do Estado na garantia de condições para o processo de reprodução social. Ele realiza o movimento de submeter qualquer interesse distinto na sociedade civil aos limites das leis da propriedade privada, convertendo os interesses de classes, na maioria das vezes, antagônicos e contraditórios, e transformando os interesses privados da burguesia, em interesses universais. O Estado cumpre a tarefa de submeter as diferentes vontades da sociedade civil ao império da propriedade privada. Marx pontua sobre a ilusão em relação ao poder político do Estado perante a propriedade privada, pois se apresenta como legitimador capaz de regular os conflitos sociais resultantes do avanço e domínio da propriedade privada sobre a vida dos trabalhadores, quando na verdade não é o Estado quem determina a propriedade privada, mas é ela quem o domina. Nesse sentido, Marx (2010, p. 116), questiona: 39 Qual é, então, o poder do Estado político sobre a propriedade privada? O próprio poder da propriedade privada, sua essência trazida à existência. O que resta ao Estado político, em oposição a essa essência? A ilusão de que ele determina, onde ele é determinado. A manutenção da propriedade privada é intrínseca nessa relação público privada. Em O Capital, ao abordar a discussão sobre o fenômeno da acumulação do capital, mais especificamente no capítulo XXII, é possível identificar elementos da analítica marxiana que indicam as determinações da propriedade privada, que a transformam em expropriação de mais-valia. Para Marx (2013, p. 831): “[...] a propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista.” A propriedade privada é resultante, portanto, de um processo de expropriação, da transformação dos meios de produção individuais e dispersos, por meio de produção socialmente concentrados, isto é, “[...] a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos.” (MARX, 2013, p. 831). De acordo com o autor, a acumulação primitiva permitiu ampliar as bases técnicas e as transformações sociais na instauração do processo econômico capitalista. Esse conceito, segundo ele, é importante para compreender a ampliação da base dominadora produtiva, política e ideológica burguesa. A acumulação primitiva modifica e reconfigura os conceitos de público e privado no âmbito da acumulação de capital, na forma de possuir os meios de produção e dominação sobre a força de trabalho. Marx (2013, p. 787), ao trazer o debate acerca do processo de formação da sociedade capitalista, afirma que: “[...] grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres.” Para Harvey (2005), essas mudanças estruturais e de relações sociais de produção, remetem à uma trajetória contínua da história pré-capitalista que ele nomeou de “acumulação por espoliação”. Segundo ele, a teoria desenvolvida por Marx (2013), sobre acumulação primitiva, é a essência do capitalismo. A realidade é que, sem a acumulação primitiva ou por espoliação, o capital não pode acumular. A matriz dos estudos que interligam as ideias de acumulação primitiva também estão presentes nos trabalhos de Rosa Luxemburgo. Para ela, a acumulação de 40 capital deve ser dividida em dois aspectos distintos. Um, é por meio da produção de mais-valia, processo feito entre o capitalista que detém os meios de produção e o trabalhador assalariado. O outro, se produz através das relações não capitalistas, que se constituem por métodos de políticas coloniais, empréstimos internacionais e guerras. De acordo com Rosa Luxemburgo (1985, p. 86), o domínio econômico do capital é um “terreno da violência ruidosa do capital”, pois, na realidade: A violência política é apenas o veículo do processo econômico; ambos os aspectos da reprodução do capital encontram-se interligados organicamente, resultando dessa união a trajetória histórica do capital. Este não vem à luz apenas ‘gotejando por todos os poros sangue e imundície’, mas vai-se impondo dessa forma, preparando, em meio a convulsões cada vez mais violentas, a própria ruína. A partir da fase de acumulação primitiva do capital, o conceito de espaço privado ganha novas configurações, podendo ser definida como a separação do trabalhador das condições de realizar seu trabalho de forma autônoma. De acordo com Marx (2013, p. 786): “[...] a assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação ente produtor e meio de produção.” As práticas de violência e corrosão de territórios e trabalhadores, que marcaram a fase da acumulação primitiva, não se findam historicamente e fazem parte do processo contínuo do desenvolvimento da sociedade capitalista. Para Lencioni (2012), a reprodução do capital está vinculada aos procedimentos que visam o lucro, por meio da sujeição da posse e domínio da propriedade privada. Convém destacar que, assim como os modos de produção precedentes, o capitalismo é regido pela exploração do trabalho regulada pelo Estado com vistas a assegurar o controle da propriedade privada pelos representantes do capital2. Não obstante, ele se configurou sob o aprofundamento da relação contraditória entre trabalho e forças produtivas, na medida em que estas se desenvolvem em razão das necessidades de acumulação de capital. 2 É justamente a transformação das relações sociais de propriedade sob o capitalismo, que situa essa nova forma de sujeitar o trabalhador ao mercado, exigindo a apropriação massiva dos trabalhadores das condições de realizar seu trabalho e a reprodução de sua existência (MARX, 2013). 41 Essa dimensão expansionista do capital subordina todos os indivíduos às relações mercantis (e forçosamente explora trabalhadores, destituem-nos de seus meios de produção e condições de subsistência, ou seja, exclui do seu caminho qualquer barreira que impede o seu crescimento). Segundo Ellen Wood (2001, p. 16): [...] no modo de produção capitalista, a vida material e a reprodução social são universalmente mediadas pelo mercado, de forma que, de um modo ou de outro, todos os indivíduos devem fazer parte das relações de mercado para obter acesso aos meios de subsistência. Ainda, segundo os ditames do mercado capitalista – seus imperativos de competição, acumulação, maximização dos lucros e crescente produtividade do trabalho – acompanhados da mediação de outros processos, garantem não apenas todas as transações econômicas, mas as relações sociais em geral. Os imperativos do mercado neste estágio, já apontavam para o rompimento de qualquer possibilidade de sobrevivência do trabalhador fora da órbita do capital e sua tendência de mercantilizar tudo. A trajetória sócio histórica do desenvolvimento da relação público privada nas sociedades precedentes ao capitalismo são relevantes e determinantes no processo do desenvolvimento econômico e social. Para tanto, neste trabalho, situaremos a investigação da relação público-privada sob a égide do sistema do capital, cuja forma de sociabilidade é conhecida como capitalismo. Sob a crescente necessidade de acumulação e expansão do capital, estabelecem-se também novas formas de opressão e, consequentemente, novas classes sociais3 se constituem: burguesia e proletariado. Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. (MARX; ENGELS, 2010, p. 40). 3 Sobre o debate das múltiplas determinações de classe social, Lênin sintetizou da seguinte forma: “chama-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõe. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado de economia social.” (LENIN, 2004, p. 150). 42 Marx (2010, p. 156), em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, aponta que “[...] o proletariado está apenas começando a se formar, como resultado do movimento industrial”, isto é, coloca o proletariado como produto do desenvolvimento histórico. A industrialização capitalista trouxe não apenas a prosperidade econômica, mas sobretudo e contraditoriamente, a miséria social, ao transformar todas as relações sociais à lógica do mercado, em que o homem transforma sua força de trabalho em mercadoria ao vender para o capitalista como fonte única de sobrevivência. O Estado cumpre o papel de manter as contradições entre as classes sociais e garantir a propriedade privada fundamentado no “bem público”, ao mesmo tempo que legitima o acúmulo de riquezas, intensificando a exploração dos trabalhadores. É possível perceber a predominância do âmbito privado em detrimento do público, quando o Estado moderno - moldado pela forma de vida capitalista -atende os anseios da sociedade burguesa para construir um Estado especificamente burguês. A transição das fases concorrencial para a monopolista, marcou fortemente a formação da sociedade capitalista, pois, para efetivar-se com êxito, o capital necessitou de mecanismos de intervenção extra econômicos e o Estado foi a instância responsável por tal intervenção, onde as suas funções políticas estavam interligadas organicamente com as econômicas (PAULO NETTO, 2005). Para o autor, o Estado assume uma multiplicidade de funções. No plano econômico ele opera no sentido de favorecer as condições necessárias para a acumulação e valorização do capital, ao passo que no plano político, ele se legitima incorporando outros protagonistas sócio-políticos, por meio da generalização e institucionalização dos direitos sociais, o que contribui para a dinâmica favorável ao capital. Tal movimento reforça a afirmação de Marx e Engels (2010) de que o executivo do Estado moderno não é, senão, um comitê executivo para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. Para Mandel (1982), o Estado com suas funções de repressão, integração e promoção das condições gerais da produção, garante a hegemonia da classe dominante, seja no âmbito da superestrutura, como também na esfera da produção. As funções ora se entrelaçam e ora se distinguem ao garantir os requisitos gerais, técnicos e sociais do processo de produção e quando viabilizam a “[...] reprodução 43 contínua daquelas formas de trabalho intelectual que são indispensáveis à produção econômica.” (MANDEL, 1982, p. 334). Nessa direção, o Estado vai redefinindo as suas funções de modo a atender os interesses da classe burguesa e, o capital, passa a desenvolver mecanismos de controle e influência sobre o Estado, que vão desde aspectos burocráticos, às “formas de influência privada”, no sentido de promover a valorização do capital. Mandel (1982) reforça o caráter conservador do Estado, o qual só permite reformas no seu interior visando a preservação da ordem social e política do capitalismo. Para o autor, essa combinação de concorrência e monopólio aumenta a concentração e centralização do capital, controlando a política econômica e externa dos Estados nacionais. A partir dessa combinação e manipulação é que são gerados os superlucros e reproduzidos os traços de “exploração, alienação e transitoriedade histórica” (PAULO NETTO, 2005, p. 19), característicos do capitalismo em sua fase imperialista. A idade do monopólio altera significativamente a dinâmica inteira da sociedade burguesa: ao mesmo tempo em que potência as contradições fundamentais do capitalismo já explicitadas no estágio concorrencial e as combina com novas contradições e antagonismos, deflagra complexos processos que jogam no sentido de contrarrestar a ponderação dos vetores negativos e críticos que detona. Com efeito, o ingresso do capitalismo no estágio imperialista assinala uma inflexão em que a totalidade concreta que é a sociedade burguesa ascende à sua maturidade histórica, realizando as possibilidades de desenvolvimento que, objetivadas, tomam mais amplos e complicados os sistemas de mediação que garantem a sua dinâmica. (PAULO NETTO, 2005, p. 19-20). As novas características do Estado redefinem também os espaços, as relações e a perspectiva de público e privado. Paulo Netto (2005), destaca que essa relação público-privada se altera conforme a necessidade de expansão do modo de produção capitalista e o Estado se vê obrigado a dar respostas às expressões da questão social4, evidenciadas pela denúncia acerca do agravamento das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. 4 Para Iamamoto e Carvalho (2009, p. 77), a “questão social” é a expressão “[...] do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão.” 44 As estratégias de classes implementadas pelo Estado burguês envolvem diferencialmente as perspectivas5 “pública” e “privada” para lidar com as sequelas da questão social. Para o autor Paulo Netto (2005, p. 37): Tudo indica que parece correto afirmar que se verifica uma visível dominância da perspectiva “pública” quando se trata de refrações da “questão social” tornadas flagrantemente massivas e especialmente em conjunturas nas quais se constata uma curva ascendente do desenvolvimento econômico; a proeminência da perspectiva “privada” parece dar-se sobretudo em momentos imediatamente anteriores e posteriores à emergência de conjunturas críticas. Na mesma perspectiva, Bonfim (2010) destaca que o Estado burguês assume a responsabilidade no enfrentamento da questão social a partir da fusão, cada vez maior, entre público e privado, sugerindo alternativas que “privilegiam” a “perspectiva privada” na garantia de “mínimos sociais”, reforçando a ideia de que esta seria a única alternativa viável para responder à conjuntura. A dinâmica do capitalismo apresenta uma tendência em legitimar “novas” formas privadas de atenção as manifestações da questão social por meio de “velhas” práticas, ou seja, reafirma a manutenção das relações de exploração e desigualdade. Nessa relação de coexistência constituída entre o público e o privado, o Estado moderno, ao comando político do capital, exerce a função essencial de remediar os defeitos estruturais6 de controle do sistema por meio daquilo que Mészáros (2011) denominou como ações corretivas. Estado e capital se envolvem de maneira direta para perpetuar o ordenamento do sociometabolismo, assim: “[...] se ergue sobre a base deste metabolismo socioeconômico que a tudo engole, e o complementa de forma indispensável (e não apenas servindo-o) em alguns aspectos essenciais.” (MÉSZÁROS, 2011, p. 98). No Estado capitalista não existe exclusão entre público ou privado, mas sim uma correlação entre eles. As ilusões de total disjunção entre o público e o privado, entre interesses de classe e direito burguês, interesse econômico e interesse político, 5 Marx (1844) afirma que o Estado se funda na contradição entre o público e a vida privada, entre o interesse geral e o particular, constituindo-se como produto das contradições políticas de interesses de classe. 6 De acordo com Mészáros (2011), o capital se constitui como um sistema incontrolável, que ele denominou de sociometabolismo. O capital, desconsidera as necessidades humanas, colocando à frente as necessidades de expansão e acumulação do capital. Para continuar reproduzindo riqueza em forma de capital, ele subordina todas as esferas da vida social aos imperativos reprodutivos do capital, porém, existem defeitos do capital que são estruturais, são fraturas entre produção e controle, produção e consumo e entre produção e circulação. 45 apenas reproduzem pensamentos unilaterais de distinção das esferas sociais. Ora, como se fosse possível separar economia e política, ou como se estivessem suspensas em espaços distintos e funcionassem de forma isolada. Convém lembrar que este tipo de análise se torna perigosa para aqueles que almejam realizar uma oposição possível ao capital, uma vez que, ao propor alternativas de enfrentamento às contradições sociais, recai em intervenções isoladas em apenas uma das esferas da totalidade social, alcançando resultados parciais e obviamente inalcançável para a superação do capital. Para a tradição teórica materialista, histórica e dialética, é na dinâmica do capitalismo que se insere a questão social e suas expressões contemporâneas. Não obstante, a relação público-privado se molda às necessidades de constituição da sociedade capitalista, onde o caráter público da questão social necessariamente se conecta à lógica privada do capitalismo monopolista que legitima a ordem burguesa (PAULO NETTO, 2001). As expressões da questão social estão estruturalmente inscritas na ordem econômico-social capitalista, consubstanciada na relação entre capital-trabalho, nas relações entre as classes sociais. A perspectiva público-privado também está localizada nesse terreno de confronto entre o processo organizativo da classe trabalhadora e o anseio da burguesia em manter seu poder, sustentado pelo Estado, este por sua vez, burguês e conservador. Diferente do pensamento conservador e seus princípios de que é possível resolver e erradicar a questão social sem alterar as instituições e base da sociedade capitalista, a análise marxiana permite “[...] situar com radicalidade histórica a ‘questão social’, isto é, distingui-la das expressões sociais derivadas da escassez nas sociedades que precederam a ordem burguesa.” (PAULO NETTO, 2012a, p. 206). O debate acerca da gênese da desigualdade social no capitalismo está na base do trabalho teórico presente na crítica da economia política desenvolvida por Marx com as contribuições de Engels. A configuração da desigualdade tem relação com a exploração dos trabalhadores, as respostas engendradas pelas classes sociais e seus segmentos e se apresenta na realidade de forma multifacetada por meio da questão social (BEHRING; BOSCHETTI, 2006). Para as autoras, as políticas sociais e os padrões de proteção social são respostas, fragmentadas e setorializadas, às expressões da questão social no capitalismo, que tem seu fundamento na contradição entre capital e trabalho. Por isso, 46 a análise das políticas sociais deve considerar sua múltipla causalidade, manifestações e dimensões que se desenvolve no âmbito histórico, econômico, político e cultural. A gênese da política social está relacionada às expressões da questão social, demarcando a dimensão histórica, que é a sua relação com a dinâmica econômica e os efeitos na produção. Já a reprodução da classe trabalhadora, expressa a dimensão econômica. A identificação e reconhecimento dos confrontos entre projetos societários e interesses de classes, demarcam a dimensão político cultural. A crise de 1929-1932, período conhecido também como o da Grande Depressão, demarcou a maior crise econômica mundial do capitalismo até aquele momento, com desemprego em massa e também com legitimidade política do capitalismo. As políticas sociais se multiplicaram lentamente ao longo do período depressivo (1914 a 1939) e se expandiram no pós segunda guerra mundial, na passagem do imperialismo clássico (LENIN, 1985) para o capitalismo tardio (MANDEL, 1982), juntamente com as novas configurações da relação público-privado. Mandel desenvolve sua análise acerca da fase de decadência do modo de produção capitalista ou a fase de crise do capitalismo, termo que ele cunhou de “capitalismo tardio” para designar