PATRÍCIA MUNHOZ HIBRIDISMO E CONFLITOS MORAIS em Narrativas Militares (1878), do Visconde de Taunay Orientadora: Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti ASSIS 2008 2 PATRÍCIA MUNHOZ HIBRIDISMO E CONFLITOS MORAIS em Narrativas Militares (1878), do Visconde de Taunay Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientadora: Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti ASSIS 2008 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Munhoz, Patrícia M966h Hibridismo e conflitos morais em Narrativas militares (1878), do Visconde de Taunay / Patrícia Munhoz. Assis, 2008 220 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Narrativa (Retórica). 2. Literatura brasileira – Séc. XIX. 3. Taunay, Alfredo d’ Escragnolle Taunay, Visconde de 1843- 1899. I. Título. CDD 808.3 869.93 4 AGRADECIMENTOS A Deus, pelo dom da vida. Ao meu pai, pelos braços fortes sempre a me sustentar. A minha mãe, pelo silêncio acolhedor. A minha querida irmã, pelo companheirismo. Ao meu irmãozinho, pelo amor prestativo. Ao Paulo, meu amor, pela presença. Aos amigos, pela fidelidade. Aos professores, por minha formação. À Daniela e ao Álvaro, pelas preciosas sugestões no Exame de Qualificação. Por fim, a minha querida Lídia, por você em minha vida e pelo Taunay em nossas vidas. 5 RESUMO Nossa dissertação se propõe a abordar as cinco narrativas que compõem o livro do Visconde de Taunay intitulado Narrativas militares: cenas e tipos, de 1878, tão esquecido pela crítica e pela historiografia literárias, a partir de alguns aspectos que justificariam a sua natureza transitiva. Tal transitividade se explica tanto pelo caráter “inorgânico” das narrativas (em sua mescla de vários gêneros), quanto pelo substrato histórico (o Brasil da guerra contra o Paraguai) que as viu nascer. Desse modo, além da reflexão sobre o hibridismo que conforma cada um dos textos – o que leva à análise do modo como os elementos narrativos se organizam e se conjugam, este trabalho se propõe também a refletir sobre a questão da guerra como pano de fundo histórico gerador das estórias e sobre os conflitos morais que, subjacentes a cada uma delas, apontam para as circunstâncias históricas do Brasil do fim do século XIX. Pretendemos também fazer uma edição comentada do livro, com a sua correspondente atualização ortográfica, com vistas a uma eventual publicação. PALAVRAS-CHAVE: Visconde de Taunay, Narrativas militares, Guerra do Paraguai, hibridismo, conflitos morais. 6 RÉSUMÉ Notre dissertation se propose à faire l’abordage des cinq récits qui composent le livre du vicomte de Taunay intitulé Narrativas militares: cenas e tipos, de 1878, tellement oublié par la critique et l’historiographie littéraires, à partir de quelques aspects qui justifieraient sa nature transitive. Telle “transitivité” s’explique tantôt par le profil “inorganique” des récits (dans leur mélange de plusieurs genres), tantôt par le cadre historique (le Brésil de la guerre contre le Paraguay) qui a vu leur naissance. Ainsi, outre la réflexion sur l’hybridité qui conforme chacun des textes narratifs – ce qui mène à la façon dont les éléments narratifs s’organisent et se conjuguent, ce travail se propose aussi à réfléchir sur la question de la guerre comme un arrière-fond historique générateur des récits et sur les conflits moraux qui, sous-jacents à chacun d’eux, nous font penser aux circonstances historiques du Brésil de la fin du XIXe siècle. Nous avons aussi l’intention de faire une édition commentée du livre, accompagnée d’une actualisation orthographique, ayant le but d’en faire une publication. MOTS-CLÉS: vicomte de Taunay, Narrativas militares, Guerre du Paraguay, hybridité, conflits moraux. 7 SUMÁRIO Introdução ....................................................................................................... 08 Capítulo primeiro: “Um Irmão”: um conto híbrido e bélico ........................................................ 27 Capítulo II: “A Vingança de um Recruta”: uma narrativa oral .......................................... 51 Capítulo III: “O Capitão Caipora”: um labirinto sem saída................................................. 66 Capítulo IV: Uma narrativa erótica: a propósito de “Um dia de Paixão”............................. 76 Capítulo V: “O Tio Hilário”: uma tradição militar ............................................................. 88 Considerações Finais ...................................................................................... 107 Referências ...................................................................................................... 109 Anexo: Narrativas militares: cenas e tipos (com a atualização ortográfica)............... 115 “Um Irmão”..................................................................................................... 116 “A Vingança de um Recruta”.......................................................................... 144 “O Capitão Caipora” ....................................................................................... 178 “Um Dia de Paixão” ....................................................................................... 192 “O Tio Hilário” ............................................................................................... 202 8 INTRODUÇÃO Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), mais conhecido como Visconde de Taunay, deixou-nos uma vasta produção literária representada por romances, livros de contos, peças de teatro, narrativas de guerra, narrativas de viagens, relatos memorialísticos, biografias, crítica literária, história, economia política e questões sociais. Assim confirmamos o que Arthur Mota e Alcides Bezerra chamam de “talento polimórfico” (Apud MARETTI, 2006, p.51) Descendente de uma família francesa com muitos talentos artísticos – filho e neto de pintores − o Visconde herdou uma sensibilidade musical peculiar e recebeu instrução artística de bom nível, o que pode ser constatado em suas obras, sobretudo na maneira como ele observa e descreve as paisagens em diversos textos, como veremos nos capítulos apresentados a seguir. Fazendo valer essa sensibilidade aguçada que sempre direcionou sua pena e suas atitudes, exerceu diversas funções. Foi jornalista, crítico de arte, historiador, musicista, pintor e romancista. Como militar, lutou na Guerra contra o Paraguai, tendo também lecionado história e língua no curso preparatório da Escola Militar, e mineralogia, geologia e botânica no curso superior. Por fim, acaba renunciando a uma exemplar carreira militar para dedicar-se à vida política. E como político, foi eleito deputado e senador (pelas então províncias de Goiás e Santa Catarina) e presidente das províncias do Paraná e de Santa Catarina, afastando-se desse projeto somente ao ser proclamada a República. Militante no Partido Conservador, foi um ferrenho defensor da Monarquia e de D. Pedro II, mas nem por isso atendia às exigências de seu partido: pelo contrário, defendia idéias bem mais adiantadas para seu tempo. Sua atuação política foi amplamente estudada por Odilon Nogueira de Matos, que afirma: (...) não só trazia em seu pensamento um corpo bem definido de idéias acerca dos mais diversos problemas que poderiam ocorrer a um homem político e homem público, como demonstrou o mais vivo interesse pelas duas províncias que presidiu – Santa Catarina e Paraná – nas quais seu nome, um século depois, continua lembrado sempre com o maior respeito (MATOS, 1993, p.11) 9 Dessa forma, esse “corpo bem definido de idéias” pode ser contemplado em alguns dos projetos defendidos por esse político bem engajado, pois ele defendeu o casamento civil, a secularização dos cemitérios, a abolição da escravatura, o imposto territorial e uma política imigratória justa. As suas obras mais conhecidas são Inocência (1872) e A Retirada da Laguna (1871), através das quais consagra-se como importante escritor em nossa literatura. O primeiro livro relata costumes, hábitos e cenários da vida do sertão (tão bem conhecidos pelo escritor durante as viagens que fez enquanto militar), com o principal objetivo de narrar uma história de amor impossível de ser concretizada, e tendo como desfecho a morte. O segundo, por sua vez, trata diretamente da participação do autor na Guerra do Paraguai. Por isso é uma obra de cunho memorialístico, na qual tenta resgatar os trinta e cinco dias vividos pelos soldados brasileiros, numa missão por muitos considerada de “dolorosa memória” (IANNONE, 2002, p.14). Sendo assim, pode-se afirmar que, direta ou indiretamente, alguns personagens do autor atuam num palco pleno de imagens bélicas, de forma a compor cenários em que questões morais podem ser objeto de questionamento, o que seria um dos resultados do contato pessoal do escritor com os espaços físicos descritos em suas obras. A esse respeito, Antonio Candido acentua a idéia de “experiência” como ingrediente decisivo para a produção literária do escritor: nem bacharel nem médico, mas militar, enfronhado em problemas práticos, é particularmente um caso raro na literatura do tempo, para a qual trouxe uma rica experiência de guerra e de sertão, depurada por sensibilidade e cultura nutridas de música e artes plásticas. Esta combinação de senso prático e refinamento estético fundamenta as suas boas obras e compõe o traçado geral da sua personalidade. (CANDIDO, 1975, p. 307) Portanto, é quase inevitável considerar o Visconde de Taunay e não remetê-lo à Guerra da Tríplice Aliança, já que o mesmo teve participação direta neste acontecimento histórico. Por isso sua obra representa cultural e literariamente este momento pelo qual passava o Brasil, não se configurando, como lembra Antonio Candido, como um simples relato, mas como o produto da combinação com a elegância, a arte, a sensibilidade e o bom senso. Sob estas mesmas circunstâncias pode ser encarada a obra, tão pouco conhecida do autor, Narrativas Militares: cenas e tipos, cuja primeira e última edição é de 1878. De acordo com a bibliografia consultada até o momento – aqui incluído o trabalho de coleta da crítica sobre o autor, feito até 1996 (e publicado em livro em 2006) por Maria Lídia L. Maretti, não 10 se conhece nenhum estudo sobre tal livro. Além disso, ele não foi incluído no projeto de reedição dos livros do Visconde, realizado entre 1920 e 1930, por seu filho Affonso d’Escragnolle Taunay. Diante da importância que a Guerra da Tríplice Aliança e o próprio Visconde tiveram para o país, é quase inexplicável que um livro como Narrativas, que engloba temas e soluções estéticas tão instigantes, não tenha ainda sido minimamente estudado. Isso talvez possa ser justificado, segundo Maretti (2006, p.122), pelo estigma de menoridade imputado ao autor pela crítica, já que ele é consagrado apenas com dois títulos de todo seu trabalho: A Retirada e Inocência. A autora ainda afirma que “há outros textos dignos de uma nota que, por não vibrar no mesmo acorde consagrado pela tradição teórico-literária, faz com que eles permaneçam esquecidos em suas primeiras e raríssimas edições.” (p.68). O seu primeiro romance, Mocidade de Trajano, publicado em 1871, só contou com uma nova edição 113 anos após sua data de publicação. O livro alvo de nossa pesquisa completa 130 anos sem outra publicação e sem qualquer resultado de uma reflexão mais aprofundada, pelo menos até o momento em que fizemos a última pesquisa a esse respeito. Não é por acaso a afirmação do consagrado Antonio Candido: “Faz falta, sobre ele, um estudo amplo, tanto biográfico quanto crítico”. (1975, p. 422). José Veríssimo também justifica a necessidade de se pesquisar obras que não foram selecionadas para fazerem parte do cânone: Com o aumento sempre crescente da produção literária, a posteridade não terá nem tempo, nem vagar, para ler toda a obra de cada escritor; e dos melhores lerá somente aquela que os tempos houveram escolhido. Do restante só se ocuparão os críticos, os filólogos, os eruditos. (1977, p. 148) Assim sendo, se dois consagrados estudiosos de nossa literatura fazem tais afirmações, justifica-se desse modo o estudo que propomos, para que possamos também compreender melhor o século XIX em sua perspectiva cultural. Trata-se de cinco narrativas, intituladas “Um Irmão”, “A Vingança de um Recruta”, “O Capitão Caipora”, “Um dia de Paixão” e “O Tio Hilário”. Todas se passam em meio ao ambiente militar no qual o autor esteve inserido (direta ou indiretamente), experiência que o habilita a extrair as circunstâncias conflituosas vividas pelas personagens, frente aos vários dilemas morais com que elas se deparam. O que teríamos a dizer por ora é que, mesmo que se possa afirmar que tais narrativas possuem unidade de ação, Taunay não se concentra imediatamente nos fatos principais já 11 que, por um lado, retoma, em movimentos retrospectivos, momentos que lhe são anteriores, de modo a atribuir-lhes uma função na economia textual, e por outro realiza a “irrupção da temática metalingüística”, produzindo “a contaminação da prosa de ficção pela do ensaio crítico”, abalando “o dogma da ‘pureza’ dos gêneros” (CAMPOS, 1977, p. 42). Desse modo, as Narrativas acabam por configurar textos em que o hibridismo genérico é uma constante, revelando mais uma vez a tendência do escritor à digressão por veredas que não são propriamente as literárias e configurando um expediente narrativo a partir do qual o autor não deixa de transmitir sua própria opinião. Nesse sentido, cabe lembrar uma consideração teórica sobre este expediente textual: fala-se em digressão sempre que a dinâmica da narrativa é interrompida para que o narrador formule asserções, comentários ou reflexões normalmente de teor genérico e transcendendo o concreto dos eventos relatados; por isso a digressão corresponde, em princípio, a uma suspensão momentânea da velocidade da narrativa adotada. (REIS & LOPES, 1988, p.237) Durante a leitura desses textos, percebe-se claramente essa “quebra” da velocidade adotada na narrativa, já que o narrador se distancia por várias vezes de seu propósito inicial. Tem-se a impressão de que ele deseja não perder nenhum detalhe que lhe surge, o que resulta em capítulos que poderiam ser facilmente descartados do texto, sem que o seu entendimento fosse prejudicado. Isso se justifica talvez pelo viés enciclopédico que caracteriza a sua obra, bem como por sua vontade de abrangência, principalmente quando se trata de trazer à luz momentos minuciosos do cotidiano desses personagens inseridos em conflitos bélicos. Em muitos momentos os narradores retomam seu objetivo, que muitas vezes se perde nas lembranças que lhes surgem e são intercaladas na “história principal”. E consciente desse movimento, eles vão cortando e costurando seu relato, sem perder o fio narrativo. Daí o fato de surgirem trechos significativos como este: “Mas... com a breca! Se vou assim cortando e recortando a minha história, não há mais como acabá-la: levo dias, semanas e meses, que palavra puxa palavra e a guerra do Paraguai durou cinco anos contadinhos.”(p.129) Além desse trecho, outras frases “servem de linha e agulha” para costurar os retalhos, sem, contudo, perder a totalidade da peça. Percebemos esse texto cosido principalmente quando o narrador parece nos contar um “causo”, o que o leva a sempre retomar o assunto: “Vamos, porém, adiante” (p.90); “Mas – como ia contando –” (p. 95); “Tornando, porém, à nossa história” (p.103) ou ainda “Aí esturrei e já lhes conto como o caso foi. Mas me deixem antes tirar uma fumaça.” (p.113). 12 Em outros momentos, ele aproveita esses fragmentos originados a partir de movimentos erráticos, para manifestar suas impressões e opiniões. Torna-se, portanto, intruso e incapaz de pretender a neutralidade e a imparcialidade. São as “vozes” que surgem no texto, e que podem ser ouvidas em vários recortes marcadamente ideológicos, como, por exemplo, no trecho: Outros, desgrenhados e sujos, enrolados em alguns sobretudos e casacões velhos, oravam quase no mesmo sentido, aproveitando a vasa para pedirem que voltássemos da guerra republicanos. Ora, essa só lembra o diabo! Se íamos dar a vida pelo Império... (p.91) Nessa passagem, constatamos a voz desse narrador que defende a Monarquia até as últimas conseqüências. Sabe-se, como também mostraremos nas análises, que Taunay lutou até o fim de sua vida pela manutenção desse sistema governamental, além de defender e apreciar a figura do Imperador, D. Pedro II, que também aparece em suas obras. Poderemos perceber, em vários momentos dessa obra, como ele deixa ecoar sua voz e, consequentemente, sua opinião acerca de muitos assuntos; daí podermos registrar como característica marcante, nesses textos de Taunay, o narrador intrusivo. A Guerra e o mundo militar são o pano de fundo destas narrativas, nas quais o autor se detém no cotidiano vivido por seus integrantes, recriando detalhes de uma rotina muitas vezes presente apenas na memória daqueles que viveram em meio ao conflito e conseguiram sobreviver, e na daqueles que seguiram carreira no Exército brasileiro do século XIX. O autor do livro escolhe o espaço por meio do qual podemos conhecer mais intensamente regiões tão pouco exploradas no Brasil da época e uma instituição como o Exército, encarregada da defesa da nação recém-emancipada, atualizando uma vez mais aquilo que afirma Antônio Dimas, ao se deter na reflexão sobre a construção do espaço romanesco: “o romancista brasileiro como que toma para si a incumbência de vasculhar o país, em sua geografia, sua história e suas instituições”. (1985, p.16). Quanto aos epílogos de cada uma das narrativas, o Visconde os constrói de uma maneira que a princípio poderia ser associada à lógica da fábula, mas que revela na verdade os conflitos morais advindos desse momento de crise que foi o da Guerra contra o Paraguai. Se a fábula, enquanto gênero, se propõe a transmitir valores morais pretensamente universais e atemporais, essas Narrativas se incumbem de representar os dilemas morais que determinadas circunstâncias históricas impõem aos homens. 13 Passado mais de um século, fica evidente a necessidade de uma pesquisa sobre Narrativas, tendo em vista o grande número de livros escritos por Taunay e o correspondente estudo que tem sido feito sobre alguns deles. Estudar os conflitos presentes no livro significa resgatar a experiência de vida de um grande escritor que, além de contribuir diretamente para a literatura do país, também ajudou a construir histórica e culturalmente um momento pelo qual o país passou. Seria injusto que tais narrativas ficassem guardadas nas páginas amareladas de um livro que, se não receber a devida atenção da crítica especializada, tende a ficar restrito aos poucos que têm o privilégio de tê-lo ou, ao menos, de lê-lo. Nossa pesquisa se propõe, em função do exposto, a abordar as cinco narrativas que compõem o longínquo e esquecido livro do Visconde de Taunay intitulado Narrativas militares: cenas e tipos, de 1878, a partir de alguns aspectos que justificariam a sua natureza transitiva. Tal transitividade se explica tanto pelo caráter “inorgânico” das narrativas (em sua mescla de vários gêneros), quanto pelo substrato histórico (o Brasil da guerra contra o Paraguai) que as viu nascer, e que também é concebido como um momento de transição. Desse modo, além da reflexão sobre o hibridismo que conforma cada um dos textos – o que leva à análise do modo como os elementos narrativos se organizam e se conjugam, este trabalho se detém também na reflexão sobre a questão da guerra como pano de fundo histórico gerador das estórias e sobre os conflitos morais que, subjacentes a cada uma delas, apontam para as circunstâncias históricas do Brasil da época. Além disso, também propomos a análise das descrições, sobretudo de paisagens, como traço característico das obras do Visconde de Taunay. Olegário Paz (2007) afirma que, a partir do Romantismo, o papel da descrição altera-se, ganhando um estatuto que se pode dizer indissociável da narrativa, diferentemente da postura adotada pelos clássicos – de Horacio a Boileau – que viam a descrição “como serva ou criada que ornamenta o discurso, mas, ao retardar a ação (catálise, no dizer de Roland Barthes), obriga o leitor a uma pausa desmotivadora”. Citando Helena Buescu, continua: Verifica-se (...) que o que aparecia como um «luxo» pode afinal ser entendido como o irremediavelmente textual, engendrado pela própria constituição daquele texto enquanto tal, e também irremediavelmente ligado ao modo de representação que o enforma. A descrição deixará então de ser um produto «paratextual» que se pode indiferentemente acrescentar ou retirar do texto, para fazer parte indissolúvel do real criado nele e por ele. (Apud PAZ, 2007) 14 Desse modo, demonstraremos como as descrições nas Narrativas são de suma importância para a compreensão da obra e da maneira pela qual foi elaborada. Como objetivo final do trabalho, propomos uma edição comentada do livro, com a sua correspondente atualização ortográfica, com vistas a uma eventual publicação. Transitando pela história Ao encarar a obra de Taunay, não podemos deixar de traçar um paralelo com o período histórico no qual ele esteve inserido, já que seus trabalhos refletem muitos acontecimentos da época em que viveu. Nosso objetivo aqui não é fazer um estudo minucioso acerca do que acontecia no país, apenas trazer à memória do leitor o quadro dos principais acontecimentos que antecedem o grande marco do Segundo Reinado: A Guerra contra o Paraguai. No Período Regencial, ocorreram várias manifestações políticas disputando o controle do governo e gerando também diversas revoltas espalhadas pelas várias províncias de nosso território. O Estado, em vias de consolidação, era formado por uma elite dividida em dois partidos: os liberais e os conservadores, que lutavam entre si pela disputa do poder. Embora houvesse divergências entre essas duas facções, os seus adeptos conseguiam somar forças e desfazer as diferenças quando o assunto era a maioria da população menos favorecida e distante de qualquer participação política. Essa elite defendia os interesses dos grandes proprietários e se unia contra o povo que, excluído de seus direitos, questionava o privilégio que era concedido a essa pequena parcela da população. Surgem, portanto, várias rebeliões e movimentos populares, como, por exemplo, a Cabanagem (Pará, 1835-1840), a Sabinada (Bahia, 1837-1838), a Balaiada (Maranhão, 1838- 1841) e a Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835-1845). Apesar de dez anos intensos de movimentos populares e esparsos, essas rebeliões foram sufocadas e não conquistaram resistência suficiente para provocar qualquer mudança na estrutura do poder. Frente a tal situação, o período regencial se encerra, fortalecendo o caminho para a consolidação do poder nas mãos da aristocracia rural. Ainda sob o domínio de D. Pedro II, que assume o trono como segundo imperador do Brasil em 1840 – lembrando que sua maioridade foi antecipada por questões políticas − a 15 base econômica e social do país permanece fundamentada no latifúndio e no privilégio aristocrático. O Segundo Reinado, que durou 49 anos (1840-1889), foi considerado o “apogeu” do Império brasileiro, uma vez que foi marcado por importantes acontecimentos, dos quais se destaca, sobretudo, a Guerra da Tríplice Aliança. Pois, como afirma Ricardo Salles (1990), O final da Guerra do Paraguai coincide com o começo dos anos 70, a partir dos quais se inicia todo um processo de transformações econômicas, sociais, políticas que vão culminar com a queda do Império. Entretanto, em determinado sentido, a guerra do Paraguai é justamente o último grande acontecimento do período anterior, de apogeu do Império. (p.39) Esse “auge do Império” caracterizou-se pelo pleno desenvolvimento da sociedade escravista brasileira. A base da nossa economia agrária e exportadora era a produção de café, o que nos garantia posição de liderança nas exportações do produto e permitia maior integração com o mercado mundial. Para isso, segundo um certo ponto de vista histórico, continuava a necessidade de manter os grandes latifúndios dependentes da mão-de-obra escrava. Além do mais, a produção cafeeira trouxe inovações importantes como, por exemplo, a construção de ferrovias, a instalação de companhias e linhas de navegação, o surgimento de fundições, estaleiros, manufaturas e fábricas. O processo de urbanização é acelerado com o crescimento das cidades, bem como das camadas médias urbanas. Esse dado inovador comprova que o Brasil se modernizava segundo a visão do capitalismo imperialista. Ainda sob essa óptica, o país outrora completamente dependente da mão-de-obra escrava, influenciado pelos interesses da coroa inglesa, promulga, no dia 4 de setembro de 1850, a lei Eusébio de Queirós, pela qual ficava proibido o tráfico de escravos entre o Brasil e a África. A conseqüência imediata dessa decisão forçada foi o aumento significativo nos preços de escravos, o que levou os grandes proprietários a optar pela mão-de-obra livre dos imigrantes. O Brasil também abre seus portos e passa a integrar com mais vigor o mundo capitalista, transmitindo a idéia de um progresso falso, já que sua frágil economia estava amparada pelos empréstimos externos, o que se prolongou até o advento da República. 16 Assim traçamos uma visão genérica das transformações e crises da sociedade imperial que resultaram em dois importantes acontecimentos: a abolição da escravidão e, um ano após, a proclamação da República, da qual participaram efetivamente os militares. Por isso é impossível tratar desse período de transição do escravismo ao capitalismo sem nos remeter à Guerra do Paraguai, evento decisivo na formação não só de um Exército, mas de uma nova classe capaz de interferir na vida econômica e política do país. A Guerra Após quase cento e cinqüenta anos do término da Guerra mais conhecida como “Guerra do Paraguai” ou “Guerra da Tríplice Aliança”, que envolveu os países vizinhos, Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil, constatamos que ainda são exploradas diferentes versões sobre esse conflito. Rosendo Fraga (2004, p. 42-44) – diretor do Centro de Estudos Nueva Mayoria, na Argentina − realizou uma pesquisa sobre as diversas abordagens que ainda se fazem sobre a guerra nos quatro países envolvidos. O que ele constata acerca dos manuais utilizados nesses países nos últimos anos são as diferenças certamente causadas pelos efeitos distintos sentidos por cada país envolvido. Mesmo tratando somente do Brasil, entre os próprios historiadores brasileiros percebemos que surgem vertentes diferenciadas para tentar explicar e justificar o conflito bélico em questão. Ricardo Salles (1990) aponta algumas considerações acerca dos estudos tradicionais e das versões revisionistas da história do conflito. Se, para ele, no primeiro caso, há um excesso de oficialismo e factualismo, enfatizando o ataque feito pelo Paraguai ao Brasil e menosprezando a intervenção brasileira no Uruguai, por outro lado, no segundo caso, há uma tendência a simplificações e nem sempre, para isso, são realizadas investigações mais profundas. Em artigo publicado na Revista Nossa História (2004, p.18-24), Francisco Doratioto também questiona e coloca por terra a versão imperialista, que surge e ganha força a partir da década de 70, a qual justifica a causa dos conflitos pelas pressões externas dos ingleses. Essa interpretação perde força quando novos estudos, realizados a partir de 1980, revelam um novo panorama, ou seja, as origens do conflito se encontram no processo de construção e consolidação dos Estados Nacionais no Rio da Prata. Nosso objetivo, porém, não é discutir o assunto a fundo; apenas mostrar como esse acontecimento foi um divisor de águas na história brasileira, gerando até hoje questões 17 polêmicas sobre as origens, o número de voluntários envolvidos, o número de escravos combatentes, a quantidade de mortos, dentre outros questionamentos. O intuito dessa reflexão é de tão somente abordar a Guerra enquanto evento histórico, para daí extrair informações essenciais a fim de compreender como ela se torna cenário tanto das mudanças pelas quais o país passava quanto das Narrativas, objeto de nosso estudo. Hoje, após análise de documentos inéditos, especialistas abandonam essa visão mais imperialista e “dividem a culpa” desse horrível episódio da história sul-americana entre os envolvidos. O Paraguai desejava cada vez mais inserir-se no mercado mundial, exportando seus produtos primários, mas, para isso, necessitava de um porto marítimo a fim de escoar seus produtos. Os paraguaios sabiam que o de Buenos Aires não estaria disponível, já que os argentinos não concederiam facilidades comerciais à nação vizinha. Não havendo outra alternativa, recorreram ao porto de Montevidéu. E é importante refletir sobre a situação política no Uruguai para compreender o desenrolar da Guerra. O governo blanco uruguaio procurava apoio paraguaio contra o Império do Brasil e a Argentina, que incentivavam a revolta armada do general Venâncio Flores, representante do partido colorado. Este desejava derrubar o governo nacionalista de seu país, que não concordava em dar vantagens aos criadores de gado brasileiros que operavam em seu território. Portanto, de um lado estavam o Paraguai, o Uruguai e as províncias de Corrientes e Entre Rios, ambas em oposição ao governo unitarista de Bartolomeu Mitre em Buenos Aires; de outro, o Brasil e a Argentina, que apoiavam os colorados. Diante dessa situação conflituosa, tropas imperiais brasileiras invadem o Uruguai em 1864. Em resposta, López manda aprisionar o vapor Marquês de Olinda e invade o Mato Grosso, ocupando território em disputa com o Brasil. O ditador paraguaio sabia do abandono dessa província brasileira, bem como da fraqueza militar do Império. Ele só não contava que o colorado Venâncio Flores chegasse ao poder, tampouco que fosse assinado em 1865 o Tratado da Tríplice Aliança, entre a Argentina, o Brasil e o Uruguai. Acreditava-se que o conflito seria breve, mas não foi. Após pequenos combates, López invade Corrientes e declara guerra à Argentina. Porém, inesperadamente, na batalha naval de Riachuelo, a Marinha paraguaia é aniquilada. Mesmo após essa derrota, os paraguaios, contando com um forte sistema terrestre, conseguem intimidar e imobilizar a contra-ofensiva aliada. Em 1865, invadem o Rio Grande do Sul, mas são surpreendidos e 18 cercados pelos aliados, resultando na rendição do comandante guarani na cidade de Uruguaiana. A partir desse momento, liderados por Mitre, os participantes da Tríplice Aliança invertem a situação, ou seja, tomam a iniciativa nos combates e invadem o território inimigo com o objetivo de tomar Humaitá, reduto do sistema defensivo paraguaio. Para isso, no início de 1866, trava-se uma grande batalha campal em Tuiuti, onde grande parte do exército paraguaio é derrotado ao atacar o exército inimigo acampado diante das fortificações de Humaitá. Apesar dessa situação favorável, os aliados permanecem paralisados na ofensiva por mais de um ano. Após esse período atacam as forças paraguaias em Curupaiti, o que lhes resulta em uma terrível derrota. A fortaleza paraguaia só será tomada no ano seguinte, em 1868. Por problemas políticos internos, o governo argentino se vê obrigado a abandonar a liderança nos combates, bem como a reduzir o número de seus soldados na frente de operações. Assim, a guerra já estava praticamente nas mãos das tropas brasileiras lideradas por Caxias, que procura reestruturar o exército para se adaptar às condições de uma guerra que tomava grandes proporções. Mesmo com boa parte do exército guarani dizimado, Solano López foi capaz de reorganizar uma nova linha de defesa para enfrentar uma nova série de combates. Em dezembro de 1868, os paraguaios são derrotados nas batalhas de Itororó, Avaí e Lomas Valentinas, mais conhecida como a campanha da Dezembrada, culminando na tomada de Assunção em janeiro de 1869. Nessa altura, Caxias estava cansado e considerava inútil o prosseguimento da guerra; ele deseja então a paz, mas é afastado de seu posto, sendo substituído pelo Conde d’Eu, nobre francês e esposo da princesa Isabel. O ditador paraguaio não se dá por vencido e organiza, no norte do país, longe das margens do rio Paraguai, um novo exército composto em sua maioria por velhos e crianças, o qual sucumbiu na batalha de Campo Grande (1869). Esse seria o fim dos combates, mas ainda assim López foge com alguns de seus seguidores. Finalmente, em março de 1870, o exército brasileiro persegue e cerca o pequeno acampamento do ditador, que é morto para pôr fim à guerra que durara mais de cinco anos. 19 As Conseqüências Finalmente a trágica Guerra do Paraguai é encerrada com a morte do ditador Solano López. Mas as marcas desse conflito bélico ainda hoje estão presentes em documentos, fotografias, telas, livros, na política e na economia dos países envolvidos e, sobretudo, na memória daqueles que perderam seus parentes. Há divergências sobre o número de envolvidos nas batalhas, desde o número de mortos e combatentes – sejam eles escravos ou livres − até em termos de desperdício de recursos materiais e humanos. Além disso, sempre surgem novos estudos fazendo surpreendentes revelações sobre o cotidiano desses guerreiros. E, mesmo diante de toda essa polêmica, todos os pesquisadores chegam a uma única conclusão: a Guerra do Paraguai foi o mais sangrento conflito do continente. Segundo o historiador e pesquisador Ricardo Salles (1990), no final do conflito, 95% da população masculina do Paraguai havia desaparecido, sem contar o exército de crianças e velhos dizimado no combate de Campo Grande (1869). Por sua vez, Ricardo Bonalume Neto (2004) apresenta, de acordo com análise de documentos inéditos de um censo populacional feito em 1870, a afirmação de que 70% da população desse país morreram na guerra. As perdas uruguaias são consideradas irrelevantes se comparadas com o contingente populacional do país. Os argentinos, de acordo com Leon Pomer (Apud, SALLES, 1990, p. 11), perderam 18 mil soldados no conflito, para uma população estimada em 1.500.000 habitantes. Por fim, em relação ao Brasil, não há um consenso entre os historiadores, seja sobre o número da população à época, seja sobre o número de perdas militares. O pesquisador André Toreal (1999, p. 32-41), afirma que estimativas de 1870 apontavam para um número de 23.000 vítimas, mas acredita-se que o número poderia ter sido forjado para amenizar a tragédia. Já o Visconde de Ouro Preto, ministro da marinha na época, falou em 50.000 mortos. A maior estimativa é de Dionísio Cerqueira, que confirma 100.000 mortos. (Apud SALLES, 1990, p.12) Mesmo diante de tantos dados estatísticos discrepantes, Ricardo Salles considera as estimativas mais baixas em termos de população paraguaia para chegar a aproximadamente 600.000 mortos. Esses números permitem imaginar a dimensão desse trágico conflito. 20 Ainda que não se alcance um número preciso, sabe-se que essas perdas não se deram somente em combate, mas também pelas péssimas condições das tropas em campanha. O fardamento, por exemplo, era variado e não atendia às condições climáticas nas quais os soldados estavam inseridos. Muitos até combatiam praticamente nus e apenas munidos de lança1. Além do vestuário, a alimentação nos acampamentos também era precária e não respeitava os soldados oriundos de diversas partes do país, por isso acostumados a diferentes regimes alimentares. André Toreal (1999) tece um comentário sobre esse assunto: A alimentação – carne de gado e farinha − enjoava a maioria. Era comida de gaúcho. Para empurrar, o chimarrão, ao qual rapidamente se habituaram soldados de todas as partes do país. Às vezes, faziam um pirão com farinha mofada, o chamado “engasga gato”. Raramente recebiam arroz e bolachas, tão duras que diziam poder servir como munição. (p.37) Como podemos observar, os soldados não podiam reclamar do que recebiam e tinham de se contentar com o que lhes era dado, como se fosse um favor concedido. Acampavam em terrenos quase sempre alagados pela forte chuva que sobrevinha e dormiam em barracas precárias e improvisadas. Também enfrentavam fome, frio e, muitas vezes, calor excessivo. Ricardo Salles (1990) discorre sobre os dois anos de acampamento em Tuiuti e o cerco de Humaitá, para nos dar uma idéia de como era o cotidiano dos combatentes: Foram dois anos de acampamento, amontoando milhares de seres humanos em uma faixa relativamente estreita de terreno, sob fogo de artilharia inimiga, enfrentando escaramuças e pequenos combates de fricção, em terreno alagadiço e insalubre, com péssimas condições de higiene, com alimentação deficiente, sujeitos a uma administração militar ineficaz e muitas vezes corrupta. (p. 126) Além do mais, a ineficácia dessa administração pode ser constatada também pela precariedade no atendimento médico. Dionísio Cerqueira (apud SALLES, 1990, p. 129) afirma que muitos soldados, sofrendo de cólera, preferiam tratar-se ingerindo uma infusão de pólvora a ir aos hospitais. E é justamente sob essas condições de terrenos alagados, 1 Esse assunto será retomado com maior profundidade em uma das análises das cinco narrativas abordadas. 21 aglomeração de pessoas e deploráveis condições higiênicas que vão se desenvolver epidemias, principalmente o cólera-morbo, responsável pela morte de boa parte dos soldados. O próprio autor do livro analisado neste trabalho, o Visconde de Taunay, em seu consagrado A Retirada da Laguna (1871), narra parte desse desastre causado por essa epidemia, com uma riqueza de detalhes sem igual: Por mais silenciosos e tristes houvessem sido os preparativos, não foi sem gritos e ruídos estranhos ao ouvido e cuja causa assombrava o espírito, que chegou o momento do abandono. A todos nós foi intolerável. Deixávamos entregues ao inimigo mais de cento e trinta coléricos, sob a proteção de um simples apelo à sua generosidade, por intermédio destas palavras escritas, em letras grandes, sobre um cartaz pregado num tronco de árvore: “Compaixão para com os coléricos”. (p.114) Portanto, fatos lamentáveis como os citados acima muitas vezes não estão na história oficial, mas, graças à investigação séria que se faz de diversos documentos, pode-se restituir, cada vez com mais precisão, o dia-a-dia desses soldados. Julio Chiavenato (1979) critica os historiadores que passam superficialmente pelos acontecimentos e destaca os livros que, segundo ele, testemunham o que “realmente” aconteceu, escritos por homens que participaram efetivamente da guerra. Um dos exemplos citados é o autor de Inocência: Há, porém, que ter o cuidado de não condenar nessa safra de historiadores alienados livros que testemunham a guerra em si, escritos por homens que participaram militarmente da campanha. Como Taunay, para citar um dos clássicos mais populares. (CHIAVENATO, 1979, p. 11). Fora os autores que dão um testemunho pessoal, porque participaram dos acontecimentos militares, cujos livros são relativamente verdadeiros e importantes para se conhecerem as condições em que se fez a Campanha do Paraguai, pouco há que se salvar. (idem, ibidem, p. 12) O próprio Visconde sabia da importância de seus livros, principalmente quando abordavam o conflito bélico balizador da história do país. Muitos detalhes seriam desprezados pela historiografia oficial, ou por falta de registros ou, na maioria das vezes, com a intenção de mascarar e minimizar as conseqüências desse desastroso acontecimento da história sul-americana. 22 Ele, como escritor e participante da Guerra, faz sua pena correr a fim de trazer o cotidiano dos soldados ao dia-a-dia do restante da população brasileira que estava muito longe de tudo o que acontecia nos acampamentos militares. Francisco Alambert (In BETHELL, 1995, p. 83-96) tece uma reflexão sobre “a geração de 1870”, da qual participavam Euclides da Cunha, Machado de Assis e o próprio Taunay, dentre outros, dizendo que são esses homens os responsáveis pela reflexão sobre essa fase de transição na história do país, ou seja, sobre as ambigüidades no processo de reconstrução do nacionalismo a partir da guerra contra o Paraguai. Nesse ensaio, Alambert afirma que “escritores como Machado eram de fundamental importância para o ‘espírito’ de guerra. Eles literalmente formavam opiniões, eram legitimadores do espírito bélico.” (p. 87-88). E ele ainda afirma que o desempenho da “função social” do escritor nesse período é notável. Assim, escritores como o Visconde foram capazes de vasculhar sua mémoria para trazer aos homens de sua geração e de gerações futuras as imagens bélicas vistas e revistas pelo olhar do próprio artista. Daí constatarmos a consciência que ele tinha desse movimento de reflexão e de seleção dos vestígios de uma guerra que literalmente abalou o país. Portanto, Narrativas são um convite para percebermos, através dos “olhos de Taunay”, como se misturam as imagens e as paisagens de um conflito que desestrutura não só a política e a economia do país, mas também o interior daqueles homens combatentes, gerando, dessa forma, verdadeiros conflitos morais. Talvez tenhamos a mesma sensação do narrador da crônica “Veteranos do Paraguai”, de Monteiro Lobato (1979, p.36), que dizia sentir “folhear” um soldado experiente: “Mas um velho soldado é sempre um livro interessante, rico de incidentes, pitoresco e não-heróico.” Por isso, Taunay sabia que seus dedos hábeis seriam capazes de driblar o tempo e livrar do esquecimento as imagens de uma guerra que modificara a estrutura da nação: Nestes dois documentos [o Relatório Geral da Comissão de Engenheiros e A Retirada da Laguna], e em diversas partes das Histórias Brasileiras e Narrativas Militares, encontram-se todas as informações, já sistematizadas, já escritas ao correr da pena e do capricho, a respeito daquelas forças de Mato Grosso que tanto e tão inutilmente sofreram e de cujas aventuras dramáticas e até trágicas não restaria hoje o mais leve sinal, a mais apagada lembrança, se eu as não tivesse – talvez para sempre! − livrado do esquecimento. (TAUNAY, apud MARETTI, 2006, p. 273). 23 Não é por menos que Francisco Alambert seleciona duas palavras-chave para se compreender o melhor da obra de Taunay: “experiência e vivência”. São elas responsáveis por permitir que o leitor da época, e também o dos dias atuais, seja capaz de inserir-se nesse “espírito bélico”, a fim de refletir sobre esse importante acontecimento histórico. Dessa maneira, é sob esse cenário bélico que Taunay compõe as cinco narrativas da sua esquecida obra Narrativas Militares (1878). Daí o nosso objetivo de resgatá-las, refletindo, principalmente, sobre os dilemas morais pelos quais passam os diferentes “tipos” de personagens, o hibridismo que conforma cada um dos textos e as descrições, como traço característico de suas obras. Às voltas com os conceitos A questão do hibridismo Entende-se aqui por hibridismo o resultado textual proveniente da mistura de vozes de naturezas diversas em um texto que se propõe narrativo. Os estudos etimológico e semântico do termo mostram que, se primeiramente ele foi utilizado somente em biologia, em seguida passou para a terminologia lingüística. Em certos contextos, ele adquire uma conotação pejorativa, como acontece em suas primeiras ocorrências em crítica literária. Neste contexto, uma obra híbrida “participa de gêneros, de estilos diferentes feitos de elementos mal harmonizados, anormalmente reunidos” (MONTRÉAL, 1988, tradução nossa). Esta crítica do híbrido parece ligada a uma valorização da “pureza” dos gêneros, dos estilos ou da língua. Por outro lado, o uso contemporâneo do termo em crítica literária comporta freqüentemente uma conotação positiva que reflete um gosto moderno pelo heterogêneo, uma rejeição das categorias e da regra clássica da separação dos gêneros. Vários escritores colocam em questão as grandes divisões genéricas da retórica, programando sistematicamente a abolição das fronteiras entre os gêneros. A obra híbrida é digna de interesse porque ela não se conforma a um gênero pré-determinado. Ela permanece, entretanto, nesse sentido, tributária da identificação pelo leitor dos gêneros que ela subverte. O enunciado híbrido é um procedimento de articulação de discursos diferentes pelo qual o romancista pode criar a polifonia no seio do texto aparentemente unitário de seu romance. Bakhtin (1990, p. 110) designa como construção híbrida “o enunciado que, 24 segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde, na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas”. Este processo de “hibridação” não corresponde à antiga noção da mistura dos gêneros (que tem sua origem no Romantismo), mas a esta troca intertextual e interdiscursiva tensional no interior de um romance que faz com que toda obra autêntica seja polifônica e dialógica. Os conflitos morais As narrativas a serem analisadas fundamentam-se em evidentes conflitos morais suscitados pelas circunstâncias bélicas em que as personagens se vêem imersas. Desse modo, as soluções para os dilemas se valem sempre de transgressões várias da moralidade convencional, impondo uma outra ordem moral. Lucien Arreat nos ajuda a compreender tal circunstância: la regla de conducta es allí (no ambiente bélico) extremadamente difícil de fijar. El individuo puede encontrarse colocado entre dos deberes contradictorios, uno de autoridad y otro de sentimiento; se interrogará, dudará entre el respeto del ciudadano y la rebelión del hombre interior. Surgen entonces conflictos de otro género, verdaderos conflictos morales, en los que es preciso decidirse, aunque la voluntad carezca de certeza.2 (ARREAT, 1903, p. 69-70, os grifos são nossos) Tais conflitos se colocam invariavelmente nas mesmas bases de um “conflito corneliano”, ou seja, aquele no qual o personagem se vê dividido entre dois valores antagônicos diante dos quais ele deve decidir por um deles. A guerra, nesse contexto, gera situações em que tais valores se colocam em choque, determinando a necessidade da escolha. Critérios para o estabelecimento do texto Considerando que, até onde sabemos, as narrativas estudadas tiveram uma única edição em livro, a de 1878, é apenas ela a fonte para o estabelecimento do texto. Diante de tal constatação, verificamos a importância de recuperar essa obra tão esquecida do Visconde, 2 A regra de conduta é ali (no ambiente bélico) extremamente difícil de fixar. O indivíduo pode se ver entre dois deveres contraditórios, um de autoridade outro de sentimento; interrogar-se-á, oscilará entre o respeito do 25 procurando manter sempre a integridade e a identidade das Narrativas. Assim, procedemos à atualização a partir de alguns critérios que estabelecemos a seguir. Para a atualização ortográfica, levamos em consideração o processo de evolução da língua portuguesa, desde o final do século XIX até os dias atuais. Tivemos o cuidado de manter todos os grifos feitos pelo autor, ou seja, tudo aquilo que aparece originalmente em itálico para representar as marcas de regionalismo ou ainda para manter algum vocábulo a que ele concede destaque. Associadas a esse recurso tipográfico, estão as notas de rodapé, colocadas pelo autor no final de algumas páginas, as quais também mantivemos, porém, identificando-as por “N.A.”, ou seja, notas do autor. Acrescentamos, mas sem pretender a exaustão, outras notas de rodapé, a fim de facilitar a leitura, já que muitas vezes é usado um vocabulário muito específico. Dessa forma, para a atualização ortográfica e gramatical, selecionamos e consultamos uma bibliografia básica, ou seja, as versões eletrônicas dos dicionários Aurélio e Houaiss e as respectivas versões impressas (Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1986) e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001)), a Nova Gramática do Português Contemporâneo (2001) de Celso Cunha e Lindley Cintra, o Novo Guia Ortográfico (1979) de Celso Pedro Luft, o Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos (1974), de R. Magalhães Junior, entre outros. Assim, o procedimento adotado aqui foi o de fazer a atualização dos vocábulos levando em consideração as regras ortográficas e de acentuação estabelecidas a partir das normas atuais vigentes. Além da atualização ortográfica, corrigimos alguns erros tipográficos evidentes. Para a fluência e a clareza do texto, também fizemos a inclusão ou a retirada de vírgulas, já que, em alguns casos, elas comprometiam claramente o ritmo da leitura. Ao consultarmos um verbete e constatarmos que ele poderia ser escrito de duas formas, sendo, porém, uma delas mais utilizada, preferimos optar por ela. Quanto ao uso do “y” em termos relativos a espécies animais, decidimos grafar como apresenta o dicionário, ou seja, com a letra “i”: “jataí e manduri”, no lugar de “jatay e mandury”. Ainda esclarecemos que, por não termos encontrado a nomenclatura dada para um determinado inseto mencionado, preferimos deixar como foi encontrado no texto, ou seja, “sangue-sedentos”. cidadão e a rebelião do homem interior. Surgem então conflitos de outro gênero, verdadeiros conflitos morais, diante dos quais é preciso decidir-se, ainda que a vontade careça de certeza. (tradução nossa) 26 Também percebemos uma oscilação evidente entre parágrafos longos e curtos. Porém, nós os mantivemos para não alterar o estilo do texto, pois esse é quase um traço característico dessa obra do Visconde. Além disso, uniformizamos o uso do discurso direto, pois não havia uma padronização. Consultando várias obras do mesmo período literário, verificamos que não há um estabelecimento que funcione como regra geral. Por isso, de acordo com Othon M. Garcia, decidimos optar pelo que é mais usado atualmente, ou seja, separar a fala por meio de travessões, “para evitar, como acontece com freqüência, que se confundam as palavras do autor com as da personagem”. (2006, p.162). Ele ainda cita um trecho para exemplificar: “— Obrigado. Não quero fumar — replicou, olhos caídos na mesa e guardando o cigarro que ia levar aos lábios. — Dê-me o problema. Não foi para isso que me chamou?” (p.162). Procedemos também às correções relacionadas na Errata final do livro (p. 271), já efetuando as alterações ali sugeridas. Desse modo, tentamos fazer uma breve explicação dos critérios utilizados ao longo da atualização, ressaltando, mais uma vez, o cuidado para manter a idéia original do texto, respeitando a condução que Taunay decidiu dar à sua pena, ao fazer determinadas escolhas, sejam lexicais ou de qualquer outra natureza. Cabe assinalar também que as referências bibliográficas correspondentes aos trechos das narrativas citados nos capítulos desta dissertação são feitas a partir dos dados da primeira e única edição, não seguindo portanto a paginação da atualização constante em anexo. 27 CAPÍTULO PRIMEIRO “Um irmão”: um conto híbrido e bélico “Razão ainda mais forte que o dever militar a isso o havia levado.” (Visconde de Taunay, “Um irmão”) A narrativa é composta por 21 capítulos, sendo que o primeiro deles é dedicado longa e exclusivamente à apresentação de um tipo social um tanto idealizado pelo autor: o “Camarada”, o que pode ser comprovado no trecho abaixo: Um camarada, enérgico e inteligente, traquejado nas labutações da vida do deserto, observador cuidadoso das menores particularidades da natureza, é quem substitui, embora em esfera limitada, as regalias que a comunhão social e civilizada proporciona ao homem nos centros de população. Dele quase unicamente depende esse bem-estar relativo que o viajante pode e busca com a prática conseguir em jornadas tão dilatadas e, senão rodeadas de perigo, cheias pelo menos de canseiras e necessidades, como são as que se fazem pelas vastas terras do interior. (TAUNAY, 1878, p. 9-103) Sendo assim, logo no primeiro capítulo é possível constatar o caráter inorgânico das narrativas (em sua mescla de gêneros), já que o autor inicia o texto fazendo uma dissertação de cunho sociológico, de maneira a delinear o perfil profissional do “Camarada”, o que é estilisticamente comprovável pelo uso dos verbos no presente do indicativo. A narração propriamente dita – a história de “Um irmão”, contada a partir de verbos no pretérito – só será iniciada, como veremos a seguir, no capítulo VI, quase vinte páginas depois. Dessa forma, Taunay cria um narrador que se comporta do mesmo modo que em outras de suas obras, como, por exemplo, em Inocência, visto que, aqui também, há uma “preparação” do “cenário” no qual acontecerá o enredo pré-anunciado. Em outras palavras, ele parte do que é mais genérico – o “tipo social” do Camarada – até chegar ao mais específico – as personagens da narrativa. Tal traço do narrador criado por Taunay já havia sido descrito por Maria Lídia L. Maretti, nos seguintes termos, a propósito do primeiro capítulo de Inocência: 3 Doravante só serão mencionadas as páginas referentes aos trechos citados. 28 O título do capítulo – "O sertão e o sertanejo" – já introduz, em sua generalidade, essa idéia de composição do cenário. Aqui, Taunay não se movimenta mais do detalhe ao detalhe como nas obras iniciais, mas do geral ao particular: do sertanista enquanto um tipo regional às personagens romanescas singulares, que o vão representar na narrativa que se desenvolve a seguir. Na economia do romance, o capítulo se coloca, apesar de descartável, como as protofonias, as ouvertures das grandes óperas, destinadas a introduzir o espectador na atmosfera da obra que é executada a seguir. (2006, p. 236) Tanto o primeiro capítulo, “O Camarada”, das Narrativas, quanto "O sertão e o sertanejo", de Inocência, são incluídos na primeira parte de um outro livro de Taunay, intitulado Céus e Terras do Brasil, de 1882, onde ele faz uma antologia de textos descritivos. Essa primeira parte o Visconde classifica como “Cenas e Tipos”, o que comprova a sua preocupação em revelar dimensões de um Brasil ainda desconhecido pela maior parte da população que estava voltada para o que acontecia na capital, ou seja, no Rio de Janeiro. Portanto, em toda a sua obra é constante o movimento que ele faz de suspensão do relato para descrever “cenas” e “tipos”, a fim de compor a imagem do interior de um país “pouco vasculhado” não só nas paisagens, mas também nos habitantes e seus costumes. Como vimos, o narrador apresenta-nos o personagem principal do texto apenas no capítulo VI, cerca de vinte páginas após o início da narrativa. É ele o camarada Alexandre, um “sertanejo por índole e educação” (p.30), cujo perfil é pouco comum em obras desse mesmo período. É estranho, para os padrões da época, ver como “herói” da narrativa um homem com a cor da pele “chocolate carregado”, além de ser mestiço, resultado da mistura de duas raças ainda discriminadas em nossa sociedade. Observemos, então, a descrição física minuciosa que ele faz desse sertanejo: Era caburé, isto é, mestiço de negro com índia e um magnífico tipo do cruzamento destas duas raças. Alto, bem proporcionado, de musculatura enérgica e elegante, tinha cor de chocolate carregado. Cabelos negros, mais crespos que encarapinhados, olhos grandes e meigos, nariz fino, quase aquilino, boca um tanto rasgada, dentes excelentes e mento acentuado, formavam um todo fisionômico agradável e sobretudo muito característico.(p.30) O narrador não se detém apenas nos traços físicos; pelo contrário, transmite ao leitor uma visão ampla desse sertanejo que tão bem conhece os “fundos” do Mato Grosso, onde se passa a história. Além de Alexandre, descreve também seu irmão Martinho. Este, “com força de trabalho, robustez e indomável constituição”; aquele, “com seu atilamento e vivacidade de 29 espírito para de tudo tirar recursos” (p. 31). São eles que conduzem os dois homens escolhidos da Comissão de Engenheiros (o narrador do texto e Lago, conforme capítulo III), para transpor os terríveis pantanais até o rio Aquidauana. Os dois camaradas eram capazes de, desde reconhecer a presença de homens pelo canto de quero-queros à beira do rio, até decidir se as pisadas deixadas pelo tortuoso caminho eram de indígenas da região. Além de descrever o sertanejo, por várias vezes também cita os índios terena: “índios mansos, amigos, aliados nossos” (p.35), bem como os índios da tribo guaná, que também lhes demonstram uma boa receptividade: O recebimento que, minutos depois, tivemos na aldeia da Piranhinha foi de verdadeiro entusiasmo. Aqueles nossos amigos, vestidos muitos deles só com sua pele cor de cobre vermelho, pasmavam, embora índios, de nos verem para cá dos pantanais. Se de seu lado nos olhavam com respeitosa admiração, por nossa parte não menos estranheza nos causavam aqueles grupos de homens, cuja epiderme cor de telha queimada, se não repugna as vistas, pelo menos as impressiona singularmente. Eram com efeito os primeiros índios que víamos assim em liberdade nas matas e sertões do Brasil.(p.36) A guerra permite a Taunay conhecer esses povos, para, a partir desse contato, relatar seus hábitos e costumes, transformando assim a imagem do indígena que havia sido construída dentro de um ideário romântico. Até mesmo uma de suas preocupações filológicas foi fazer um pequeno vocabulário da língua guaná ou chané, publicado em Cenas de Viagem (1923). Não é por menos que Francisco Foot Hardman afirma: mesmo em Taunay, a filologia e a lingüística (sobretudo a lingüística indígena) despontavam como ciências indiciárias, ocupando posição destacada no rol das disciplinas “arqueológicas”, na qualidade de ramos esclarecedores das histórias natural, universal e nacional. (1992, p.300) Isso só realça, mais uma vez, a sua experiência do sertão, refletida nos personagens que revelam a nova imagem do Brasil criada a partir da guerra. Além do caráter dissertativo, a narrativa em estudo faz ecoar a voz de um narrador que interrompe os fatos e assume o discurso laudatório ao “serviço de tão elevadas conseqüências” que não fora ainda “devidamente reconhecido e aquilatado pela nação” (p.16), de forma a transmitir um “desabafo de patriotismo”, revelando sentimentos repentinos e “inconvenientes”, de seu interior: 30 E viam-se pelo acampamento soldados imundos, andrajosos, mendigando... sim, mendigando de seus oficiais alguma roupa com que se cobrirem – alguma coisa que comer! A disciplina cedia o passo à compaixão, mas, que gente aquela da expedição de Mato Grosso!... Bastava um mês de abundância, um mês de descanso e alegria, e todas as desgraças há pouco suportadas eram esquecidas, eliminadas do pensamento; retemperava-se a fibra patriótica, e os projetos mais ambiciosos, de mais difícil realização, de pronto nasciam naqueles homens, que a mão da desgraça nunca pôde de todo acurvar e abater. Honra a esses brasileiros! Honra aos filhos de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso! (p. 51) Por outro lado, ele se dirige também ao narratário, uma vez que o convida a imaginar a região onde as cenas acontecem. A perspectiva é, além de nitidamente geográfica, com vários detalhes dos acidentes físicos, conscientemente metaficcional, ou seja, há um movimento metalingüístico e auto-reflexivo apontando para as circunstâncias da enunciação, o que é, aliás, um traço das narrativas pós-modernas (HUTCHEON, 1991). Esse “diálogo” pretendido pelo narrador com o seu leitor sem dúvida acrescenta mais um aspecto no que diz respeito à questão do hibridismo: Imagine o leitor uma região larga e baixa que se estende desde as margens do Taquari até os campos do Aquidauana, confluente do Miranda, região de cinqüenta léguas em quadro, limitada a Oeste pelo rio Paraguai, a Leste pela serra de Maracajú e que, anualmente, do mês de dezembro a princípios de maio, é em toda a extensão alagada pelo transbordamento do gigantesco caudal e dos seus menores tributários. Então o caminho que a corta, ligando o ponto do Coxim à vila de Miranda, seco e de bom trânsito no tempo frio, desaparece todo, submergido que é pela formidável inundação. (p.17-18) Além desse diálogo podemos lembrar um outro momento na narrativa em que ele pretende estabelecer essa “conversa” direta com o narratário. Isso se dá quando a comissão designada para chegar ao Aquidauana é surpreendida por uma nuvem de mosquitos e pernilongos, dos quais tenta escapar a noite inteira, subindo em galhos extremos das árvores: “Imagine-se agora a luta para resistirmos ao sono, e ali mesmo, naquele elevado abrigo, nos defendermos dos ousados e malditos insetos?!” (p.26) Por meio desses dois trechos percebemos a estratégia consciente da qual o narrador se vale para cativar o interlocutor e introduzi-lo de maneira mais profunda nas cenas narradas. Com tal movimento, ele parece inserir o narratário no universo experimentado por ele, pois, desse modo, fica mais fácil imaginar e sentir as dificuldades de ambas as situações. Um outro 31 trecho merecedor de destaque é o episódio em que o narrador se dirige a uma onça – no capítulo intitulado “Uma onça beneficente” (p. 26-28), elegendo-a como sua interlocutora e louvando-a por ter “deixado” um pedaço de carne dura – “era carne de touro” (p. 28), que ela desprezara. De maneira irônica, o narrador considera-a “um tanto mais civilizada” (p. 28), o que supõe implicitamente uma reflexão de natureza comparativa com os homens, que se consideram tão civilizados mas que, na verdade, não são capazes muitas vezes de dividir o que possuem em situações de penúria: Sim, abençoada onça!... única na tua espécie! O que, graças a ti, se devorou naquelas horas, o que se devorou durante a noite toda, apesar de teres mais que razão quanto à qualidade da carne, apesar do alvoroço e da sanha das muriçocas, passa os limites da imaginação da tua raça e com tal sofreguidão que o alimento apenas ingerido era logo rejeitado pelo enfraquecido estômago e naquele instante mesmo substituído por pedaços cada vez maiores. Era de enjoar uma onça um tanto mais civilizada. Embora!... comia-se... comia-se! (p. 28) Em contrapartida, são inúmeros os momentos nos quais ele descreve também as situações de penúria durante a Guerra, principalmente no que diz respeito à alimentação. Relata que as forças sofriam enquanto os carros de mantimentos vinham “com o vagar do passo do boi” (p.16) e, além disso, o que lhes chegava não era nenhum “banquete dos deuses”; pelo contrário, era “carne enegrecida que espumava ao fogo” (p.17) e com a qual haviam de se contentar. Outras vezes tinham de chupar miolo de palmeiras macaúbas “tão visguento e desaçucarado” (p.25), para não desfalecerem pelo caminho. E é a natureza providente quem lhes concede a sobrevivência, como na vez em que 3.000 pessoas foram alimentadas, durante “oito tremendos e intermináveis dias” (p.49), com cocos e jatobás: Assim como faz com o capítulo dedicado à onça, também consagra o capítulo VIII, “Uma galinha com arroz aparece e desaparece”, como se fosse um parêntesis na narrativa. Tal movimento digressivo é utilizado para relatar uma situação bélica específica, o que o narrador afirma ter experimentado, mesmo ressalvando que talvez a medicina não assinale o fato – trata-se dos momentos de fome e penúria, nos quais o único assunto de conversação é a alimentação, como podemos comprovar no seguinte trecho: 32 Pensar e falar de contínuo em manjares delicados, em suntuosos banquetes e profusas refeições, é uma das curiosas alucinações daquele que, alquebrado de forças pela fome, sente aos poucos a imaginação ir desvairando. O fenômeno que se dá em sonho, quando dormimos em jejum, reproduz-se com vivaz intensidade em quem, embora acordado, se sinta desfalecer por falta de alimentação. (p.37) Após discorrer sobre tal fenômeno, relata que Lago havia imaginado uma galinha inteira metida no arroz, e ele, naquela situação de fome, dizia bastar-lhe apenas o cereal cozido simplesmente na água com um pouco de açúcar. Depois desse episódio, quando chegam à Piranhinha, vêem uma grande quantidade de galinhas que lhes trazem à memória o assunto da conversação de outrora. E encerra o capítulo registrando que a canja ingerida lhes fez bastante mal. Até o momento observamos que esses “parêntesis” presentes no texto sugerem um ritmo de intercalação com a proposta narrativa inicial, de modo que o narrador se aproveita deles para inserir comentários intrusivos. É por meio deles que critica a ineficaz administração militar do período, ao citar, por exemplo, a má alimentação nos acampamentos. Mas surgem outras críticas ferrenhas ao sistema militar do período, principalmente quando são escolhidos os dois homens que deveriam explorar o caminho até o rio Aquidauana, onde talvez estivesse o inimigo. Diante da designação, surge não só a voz de alguém que foi destinado para a missão, mas a voz de um cidadão já indignado com os deveres e exigências militares, cuja crítica fica ainda mais acentuada pela enumeração de questões exaustivamente perfiladas: Pois era possível, naquele tempo de chuvas diárias, no rigor da quadra das águas, expor assim dois homens, dois oficiais, atirá-los para a frente da coluna, a esmo, sem rumo, quando havia ignorância total da posição, dos recursos e vigilância dos paraguaios? E aquele pantanal medonho, abismo de vasa, imenso lodaçal nunca revolvido? E aquela serra bravia, ínvia, como transpô-la, como estudá-la, sem guia, sem rota? Com que víveres far-se-ia uma exploração de 50 léguas? Onde os animais, quando a peste os aniquilara todos? Que força de proteção para acompanhar os infelizes exploradores? (p.19) E logo em seguida encontra a resposta para as perguntas transcritas acima, ou seja, o dever rigoroso deve sempre ser obedecido – “era a disciplina militar com suas inquebrantáveis exigências” (p.20) –, assunto sobre o qual trataremos mais adiante. Assim, 33 essa voz intrusiva de um narrador que se revolta contra tais imperiosas ordens e instruções é freqüente no decorrer do texto. Ele critica a tarefa atribuída à Comissão de Engenheiros de escolher dois responsáveis (com alguns outros ajudantes, dentre eles os camaradas) por achar passagem em lugares aparentemente intransponíveis. E para a realização de tal tarefa, ele vai descrever minuciosamente o longo caminho de sofrimento que são obrigados a trilhar. Além do itinerário desconhecido, também têm de enfrentar os obstáculos naturais, constantes e traiçoeiros: “(...) caímos no pantanal; perdemo-nos em breve, e patinhando dias inteiros no lodo ou dentro de água (...) caminhamos durante quase três semanas à toa, sem rumo, desanimados e sem esperança de salvação.” (p.25) Mesmo esses escolhidos desbravando o percurso desconhecido e facilitando o caminho para a força que viria atrás, esta é surpreendida por outras desgraças imprevisíveis. Seguindo os passos dos designados, as pessoas que compõem a força (inclusive mulheres e crianças) são surpreendidas por alguns obstáculos advindos da própria natureza e de uma administração que possuía poucas estratégias de conquista, já que ignorava até o próprio lugar em que pisavam. Passaram por chuvas torrenciais que os colocaram presos, uma vez que as águas subiam e os pantanais conseqüentemente também. Por tal motivo, como tão bem explicita o narrador, “o que ali sofreram de fome, desespero, prostração, ansiedade, moléstias e terror não pode ser imaginado” (p.49). Na tentativa de avançar, mais uma vez, mais de uma centena de vítimas são devoradas pelo lodaçal, no qual ficaram atoladas até o pescoço sem de lá poderem sair. Além do mais, talvez o pior dos males fosse o cólera-morbo, que derrubou outras centenas de pessoas que ficaram pelo caminho, sem nenhuma assistência. Por isso ressurge a voz intrusiva do narrador contra a má administração militar: “Que violência! Que sofrer desesperador! E onde os remédios?! Onde os lenitivos para tamanhas dores?!” (p.66). A situação era desesperadora por verem aumentar o pesado fardo, sem que surgisse qualquer solução a não ser levar aquela “carga”: Atopetados de doentes, agonizantes e mortos iam os carros de artilharia; a cada instante caía gente atacada; não havia mais como levá-la, e entretanto para cima de cem padiolas formavam uma lúgubre procissão que marchava ao som do tiroteio, dos gemidos e lamentações. (p.66) Assim sendo, veremos que o discurso assumido pelo narrador, como alguém que critica as péssimas condições sob as quais estavam submetidas as tropas que lutavam na 34 Guerra contra o Paraguai, vai ao encontro daquilo que Ricardo Salles (1990) denuncia nas importantes páginas que escreveu sobre a formação do exército brasileiro. O historiador também fala de uma administração militar ineficaz, e até mesmo corrupta, já que por falta de estratégia deixou sucumbir uma enorme quantidade de combatentes. Ele relata que os soldados tinham de combater muitas vezes praticamente nus, sem armamentos e abrigados, quando isso acontecia, em precárias barracas, em terreno plano, sujeito a inundações pelas chuvas fortes que sempre vinham. Portanto, diante de todos esses recortes que o narrador faz, sem necessariamente iniciar o assunto a ser propriamente tratado na narrativa, observamos os detalhes que ele tenta resgatar, e como se perde neles (ou deixa-se perder) sem necessariamente partir para o conflito que gera a “história principal”. Daí Afrânio Coutinho afirmar que Taunay sabe conduzir bem a intriga e movimentar personagens, mas que quase sempre se perde nas descrições da Natureza ou nas anotações de costumes, o que manifesta sua excessiva preocupação de fidelidade (2002). Assim, essa mistura de gêneros, bem como o modo como a narrativa se configura, de maneira “entrecortada” e quase errática, parecem causar um certo estranhamento em alguns leitores. Trata-se, talvez, da “esquisitice” apontada por Stalloni (2001, p. 179) como característica de algumas obras-primas da modernidade. Os adjetivos “entrecortada” e “errática” encontram novamente seu fundamento quando se verifica que o narrador começa a narrativa anunciada no título somente no capítulo VI (p. 28): Dera esta grata notícia [a de que não estavam mais perdidos] um homem que nos havia prestado, como camarada, durante os dias angustiosos daquela custosa exploração os mais assinalados serviços (...) Chamava-se Alexandre de Campos Leite, sertanejo por índole e educação, mas soldado do corpo de cavalaria de Mato Grosso (...) É que nessas forças servia também um irmão, seu irmão mais velho Martinho, que, depois de debandado o corpo da cavalaria, por circunstâncias talvez alheias a sua vontade, acompanhara o comandante e a bandeira até Santana do Paranaíba, na fronteira do Mato Grosso, seguindo dali para Uberaba, onde se reunira à coluna expedicionária que marchava em direção ao norte do distrito de Miranda. Pela primeira vez se achavam aqueles dois homens separados. (p.29-31) Porém, se no capítulo VI inicia o assunto anunciado no título, mais uma vez ele acaba enveredando pelos caminhos digressivos, voltando aos irmãos só no capítulo XIII, cujo título é “Reaparecem os irmãos Campos Leite”. Há momentos em que o autor “coincide” com o narrador, já que, em primeira pessoa, menciona outras obras escritas por ele, as quais contêm 35 assuntos similares. É o caso do que se constata nos trechos a seguir, numa espécie de “intertextualidade explícita”: Encetava-se então essa anábase gloriosa e lúgubre que em outro estilo, em condições e circunstâncias diferentes, deixei já narrada e que, sob o título de Retirada da Laguna, será pela história registrada entre os feitos de coragem e resignação que honram a humanidade. (p. 59) Começou então para nós um período de padecimentos que descrevi minuciosamente num livro [que é identificado em nota de rodapé como Cenas de Viagem – exploração entre os rios Taquari e Aquidauana, no distrito de Miranda. Rio de Janeiro, 1868], e que, justificando as temerosas previsões do nosso conselho do Coxim, toma hoje, apagado em parte pelos anos, certos visos de inverosimilhança. (p. 24-25) Tal atribuição de inverossimilhança talvez seja devida ao fato de uma afirmação deste tipo ter representado, posteriormente à publicação de Cenas de viagem (exatos dez anos depois), uma afronta a uma instituição que se queria “preservada” já que, de alguma forma, representa a nação. Nesse sentido, podemos lembrar a suposição feita por Jean Soublin na introdução da publicação de 1995, em francês, do livro A Retirada da Laguna, nos seguintes termos: Ora, Taunay provou em seus outros livros que manejava o português do Brasil com elegância. Por que então ter escolhido uma língua que ele não dominava tão bem? As peripécias da publicação nos dão uma pista. No fim de 1867, de retorno ao Rio, ele financia a publicação da narração de um reconhecimento de um mês feito no ano anterior nos pantanais de Mato Grosso: um relato de viagem, ilustrado com numerosos desenhos, alguns dos quais serão utilizados por Elisée Reclus. Este pequeno texto, escrito em português, não tem nenhum sucesso. Por insistência de seu pai, redige então, em três semanas, A Retirada da Laguna. Ele publica os cinco primeiros capítulos e os dedica ao Imperador. Por que em francês e por que esta edição truncada? (A tradução para o português completa não aparecerá senão dois anos depois do fim das hostilidades). Pode-se pensar em uma hipótese: a guerra estava longe de terminar e, tendo em vista o militarismo reinante, o jovem oficial julgou prudente limitar o círculo de seus leitores a uma pequena elite civil e francófona, principalmente ao Imperador (que detestava os militares) e ao Conde d’Eu, que andava com intrigas para se fazer nomear Comandante em chefe. A precaução, aliás, foi inútil. Desde a sua volta, Taunay tinha publicado na imprensa um longo resumo da Retirada. O artigo, muito citado, tinha sido comentado na Câmara. Com a ênfase do tempo, um deputado evocou um novo Plutarco. Mas era um deputado da oposição liberal. Quanto aos militares, olhavam torto para isso. O ministério da guerra recusou subvencionar o relato de viagem e, apesar de todos os títulos que podia 36 fazer valer, o jovem lugar-tenente teve que esperar por muito tempo sua promoção a capitão. Ele protestou toda a sua vida contra esta injustiça e acabou por abandonar o exército cinco anos mais tarde.” (SOUBLIN, 1995, p. 14-15, tradução de Maria Lídia L. Maretti) Se ele cita Cenas de viagem e Retirada da Laguna, textos anteriormente publicados e já conhecidos do público, é justamente porque sabe que “é apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância.” (HUTCHEON, 1991, p. 166). E já aqui contemplamos um dos momentos de digressão onde se manifestam os projetos pessoais do escritor Taunay que, no caso acima, se confunde com o narrador. Além desse, ele coloca em nota de rodapé (p.15) um outro projeto que, segundo o que se sabe, não foi concretizado. Ele afirma que será assunto de uma narrativa contar como o corpo de artilharia do Amazonas foi parar em Mato Grosso e o destino que teve. Seria interessante pensar em como se daria isso, até mesmo porque, na bibliografia consultada, não se fala em tropas amazonenses. Ao comentar seu livro Retirada, ele diz que seu plano era vasto: “salvar da niilificação do esquecimento atos de heroísmo praticados por brasileiros”; já quando inicia a história propriamente anunciada de “Um Irmão”, lança sua proposta, ou seja, apresentar àqueles que o lêem,“e poucos serão sem dúvida”, um episódio “verídico em todas as suas partes, mas sem pretensão histórica, antes desataviada narrativa.”(p.59). É interessante perceber como Taunay tinha claros os objetivos de seus projetos literários e tinha consciência de quais seriam lidos por um público maior. Ao discorrer sobre Narrativas em suas Memórias e sobre alguns outros livros que tratam do mesmo assunto, ele afirma, neste trecho já citado anteriormente, que nesses livros encontram-se todas as informações, já sistematizadas, já escritas ao correr da pena e do capricho, a respeito daquelas forças de Mato Grosso que tanto e tão inutilmente sofreram e de cujas aventuras dramáticas e até trágicas não restaria hoje o mais leve sinal, a mais apagada lembrança, se eu as não tivesse – talvez para sempre! – livrado do esquecimento. (TAUNAY, 1960) Dessa forma, o que foi registrado – ou o que era projetado para sê-lo – tem um objetivo claro, ou seja, registrar o cotidiano desses combatentes que derramaram sangue por uma causa cujo alcance muitas vezes lhes era desconhecido. Daí a necessidade de abrangência e a justificativa da digressão para inserir comentários e reflexões sobre aquilo que ele consegue resgatar de sua memória. 37 Uma outra voz que aparece no texto é a do político que se insurge explicitamente contra os burocratas de gabinete, a fim de questionar a alusão à morosidade da coluna expedicionária em meio aos terrenos pantanosos. O fragmento abaixo denuncia tal tomada de partido do narrador: Mas como, senhores do gabinete, cujos olhos se prendem unicamente às enganosas facilidades da contemplação de um bonito e bem colorido mapa geográfico, como mover uma força pelo deserto adentro, sem municiamento de boca, sem linhas de abastecimento, sem depósitos à retaguarda?! Como metê-la em pantanais de dar medo numa época de chuvas constantes e torrenciais?! Como romper através de obstáculos quase insuperáveis, até para o homem escoteiro, por muitas e muitas dezenas de léguas?! (p.17) E esse trecho poderíamos considerar como parte dos inúmeros discursos que Taunay pronunciou em vários momentos e circunstâncias de sua vida, principalmente quando se indispunha com decisões tomadas pelo partido que representava. Tal voz de “político engajado” aparece em outros momentos das Narrativas, por não aceitar que “os generais e politicões” de Cuiabá e do Rio de Janeiro cobrassem rapidez e agilidade da coluna, sem lhes dar o mínimo de recursos para que isso acontecesse de fato. Uma outra característica marcante dos textos de Taunay é a sensibilidade com que conduz sua pena ao descrever as paisagens do interior do país, com as quais se depara enquanto participa da Guerra. Se, como vimos, ele tão bem descreve os obstáculos pelos quais os combatentes tiveram de passar, é com o mesmo olhar observador que parece flagrar o instante mágico da natureza como pano de fundo de tudo o que acontecia. Aqui cabe o comentário de Jean-François de Sainte-Lambert (1716-1803) sobre o contraste que deve ser usado nas descrições para agradar o leitor. É o que acontece nesse texto, pois, após descrever o lado obscuro da guerra, sempre o intercala com as belíssimas paisagens do interior do país: Il faut ménager des contrastes; ils feront un plaisir extrême s’ils sont bien placés. Peignez des eaux, une forêt fraîche et sombre, après avoir peint l’excès de la chaleur; le Lecteur vous suivra volontiers sous vos ombrages; il sera charmé de se dérober avec vous au feu du soleil brûlant et à l’aridité de la terre. Vos contrastes plairont lorsqu’ils donneront au Lecteur un sentiment nouveau, une sensation nouvelle dans le moment où il les demandait.4 (Apud HAMON, 1991, p. 70) 4 É preciso lidar bem com os contrastes; eles darão um prazer extremo se forem bem colocados. Descreva águas, uma floresta fresca e sombria, depois de ter pintado o excesso de calor; com prazer, o Leitor o seguirá sob sua 38 Desse modo, ele faz valer a veia artística herdada de seu avô, que era pintor, e as aulas de artes recebidas de seu pai, tornando nítido o traço “viajante-com-olhos-de-pintor” (MARETTI, 2006, p.86) do narrador, que parece compor telas ora sobre os terrores da guerra ora sobre as deslumbrantes paisagens. Ele mesmo afirma a atenção dispensada sobre esses aspectos naturais: Com a educação artística que recebera de meu pai, acostumado desde pequeno a vê-lo extasiar-se diante dos esplendores da natureza brasileira, era eu o único dos companheiros, e portanto de toda força expedicionária, que ia olhando para os encantos dos grandes quadros naturais e lhes dando o devido apreço. (TAUNAY, 1960, p. 131) Porém, essa natureza diante da qual ele vibra é a mesma que causará tantas desgraças para os combatentes. Daí podermos afirmar as duas perspectivas que ele tem sobre um mesmo espetáculo natural, pois, como afirma Antonio Candido, “A paisagem deixou de ser, para ele, um espetáculo: integrou-se na sua mais vivida experiência de homem” (1975, p. 276). E é justamente esse “sentimento de paisagem”, sobre o qual fala Sílvio Romero, que conduzia Taunay em certo sentido além de Machado e Alencar. Uma paisagem, como ressalta Francisco Alambert, “em que a Guerra e as misérias humanas se confundem e combinam com o lado obscuro e desconhecido da Natureza e com a natureza básica dos homens, primitivos, selvagens e guerreiros.” (1995, p.90). O que muitos faziam com o pincel, nosso exímio escritor fazia com a pena. O modo como constrói seu texto é tão bem manejado, podendo ser comparado com o procedimento tomado pelo pintor ao escolher as cores para compor sua tela. No trecho abaixo, percebemos a escolha lexical que ele faz para nos transmitir o que os seus “olhos de pintor” eram capazes de contemplar. Vale destacar o uso que faz das cores, através dos vocábulos “verdura”, “branco” e “negra”: Paisagens lindíssimas, umas dilatadas, outras mais restritas, nos esclarecia a meiga luz de serena tarde; ora quebradas de montanhas que deixavam os olhos prolongar-se por sobre ricos dosséis de verdura, pelos declives além; ora cristalinas águas que, escapando de entre grossos matacões, se despenhavam aqui, ali, borbulhantes cascatas riscando de branco a negra pedra, sumindo-se em escuras fendas ou sem mais ruído caindo de imensa altura, como se devoradas pelo abismo. (p. 39-40) sombra; ele ficará encantado por poder esquivar-se com você do calor do sol escaldante e da aridez da terra. Seus contrastes agradarão enquanto derem ao Leitor um sentimento novo, uma sensação nova, no momento em que ele pedir. (tradução nossa) 39 Assim, percebemos como o escritor utiliza determinados mecanismos lingüísticos para aproximar sua descrição de uma tela elaborada a partir de algumas técnicas específicas da pintura. Paule Richard fala de um “modo de escritura pictural”, ao afirmar que La peinture de paysage propose à la littérature au début du XIXe siècle, le modèle d’un langage de la nature. “Écrire comme on peindrait la nature” pourrait être le mot d’ordre qui préside à l’invention d’un nouveau mode d’écriture chez les plus “romantiques” de nos écrivains.5 (RICHARD, 1988, p. 141) E ao longo do texto podemos constatar essa “linguagem pictural” nas descrições de paisagens feitas por Taunay. No último trecho transcrito, por exemplo, observamos o ritmo que ele confere ao seu texto, como se fossem pinceladas, ao utilizar alguns advérbios como “aqui” e “ali”, ou ainda pelos verbos que indicam esse movimento: “riscar”, “despenhar” e “cair”. Também destacamos sua sensibilidade ao captar a “meiguice” da luz que se projeta com mais intensidade para determinados pontos da “tela” e destaca, dessa forma, as cores trabalhadas por ele, ou seja, o branco das cascatas em contraste com as negras pedras, bem como a predominância da cor verde, com suas nuanças, representada no texto pelo vocábulo “verdura”. E todo esse espetáculo da natureza é cuidadosamente “enquadrado” pelo escritor, principalmente por trabalhar com a oposição entre as palavras “dilatadas” e “restritas”. Nesse sentido, um dos recursos apontados por Paule Richard é o uso das metáforas, o que ele faz ao descrever os “ricos dosséis de verdura”, pois deseja nos transmitir essa imagem de cobertura protetora dada pela copa das árvores, sendo que ele conclui a descrição com a comparação de efeito grandiloqüente do trecho “como se devoradas pelo abismo.” Outro aspecto característico das artes plásticas é a questão da perspectiva, também explorada por Taunay em suas extensas descrições. No capítulo X, por exemplo, que se dedica a descrever longa e exclusivamente as belezas do rio Aquidauana, ele afirma existirem “perspectivas de uma novidade de aspecto encantadora” (p.43). E desse modo conduz à constituição de diferentes painéis a partir de uma mesma paisagem. A primeira tela, se assim podemos chamá-la, parece captar o momento em que a Natureza adquire um ritmo mais cadenciado, retratando, dessa maneira, seu aspecto 5 A pintura de paisagem propõe à literatura, no começo do século XIX, o modelo de uma linguagem da natureza. “Escrever como se pintasse a natureza” poderia ser a palavra de ordem que preside à invenção de um novo modo de escritura nos mais “românticos” de nossos escritores. (tradução nossa) 40 momentâneo. É o que podemos comprovar em alguns trechos retirados desse capítulo, na alternância do “ora (...) ora” e na enumeração dos elementos que compõem o cenário: Ora a brisa geme na delicada folhagem dos taquaruçus e brinca sobre as águas; ora é o vento que, vergando os flexíveis colmos, aviva aquela cena com harmonias mais grandiosas. (p.43) Então no alto da escarpada borda estremeciam as árvores aos embates de forte sopro: as flexuosas canas enroscavam-se umas nas outras; emaranhavam-se; torciam-se frementes, levando às vezes os topos às copas das macaúbas, outras abatendo-os ao chão. (p.43) Perturbado em sua serenidade, de quando em quando refletia o lago o sombrio das nuvens que orlavam o azul celeste das abertas por onde o sol estirava raios destacados e de brilho ofuscador. (p.43-44) Aqui a proximidade com a poesia é flagrante nas aliterações que se percebem no [v] do primeiro trecho (em “vento”, “vergando” e “aviva”), no [f] do segundo (em “forte”, “flexuosas” e “frementes”) e no [l] do terceiro (em “refletia”, “lago”, “orlavam” e “celeste”), entre outras ocorrências de extração poética, como as sibilantes e as assonâncias. Em contrapartida, na segunda tela, agora sob uma outra perspectiva, ele descreve o mesmo lugar, porém, em um outro momento apreendido pelos olhos do escritor-pintor. Aqui, a Natureza tranqüila parece corresponder aos sentimentos daqueles homens que finalmente haviam alcançado o sossego depois de tantas tribulações. É por isso que o narrador afirma descrever a mesma bacia “debaixo de um novo aspecto” (p.44), no qual o fonema [m] (representando o mutismo?] se contrapõe às ocorrências anteriores. Se na primeira “tela” observamos o movimento advindo da predominância do vento na paisagem, na segunda, o destaque é para a luz e para as cores, sendo que a ausência de movimento – o mutismo – é o que ganha relevo: Tudo era calma, tudo silêncio: as águas não se moviam; as árvores não se mexiam. Luz deslumbrante penetrava tudo; calor abrasador abatia e enervava as forças. Iluminada em seus mais sombrios recantos, não tinha a mataria mistérios; no lago as areias reluziam como que em imensa taça de esmeraldina linfa, que cardumes de dourados e prateados peixes – símbolo do mutismo – cortavam dum lado e doutro. (p.44) 41 Portanto, podemos caracterizar esse movimento do narrador como um movimento à la Monet, pois nos traz à memória algumas técnicas utilizadas pelo pintor impressionista. Como se sabe, o impressionismo foi um movimento artístico que revolucionou profundamente a pintura e deu início às grandes tendências da arte do século XX, tendo como uma de suas características a preocupação em captar o instante da apreensão visual do objeto. Assim, o artista francês pinta várias vezes a mesma paisagem, em diferentes horas do dia e diferentes épocas do ano. Em seguida, temos o exemplo de três quadros nos quais se vêem os prédios do parlamento inglês, em diferentes momentos, o que pode ser observado pelas cores e pela posição do sol: (Claude Monet, Le Parlement) Além da tentativa de compor “telas” com a pena, ele também descreve e desenha algumas paisagens. Uma delas, citada em “Um Irmão”, é o Portão de Roma: “De vez em quando víamos uma ou outra bonita perspectiva: o portão de Roma, por exemplo, grandiosa aberta numa linha de montanhas já bastante empinadas (...).” (p. 24). Com o mesmo lápis que descreveu tal paisagem também desenhou essa beleza natural. Por tal motivo Antonio Candido afirma: “Viajava de lápis na mão, registrando as cenas de viagem em desenhos de ‘ingênuo paisagista’, como se qualifica.” (1975, p.275). Tanto herdara a sensibilidade artística quanto a musical, como ele mesmo relata em suas Memórias: “(...) minha mãe nos guiava no ensino do piano” (TAUNAY, 1960, p. 19). Por isso seus ouvidos eram atentos para captar e organizar, como numa orquestra, os sons emitidos pela natureza: “Tudo aquilo gritava, tudo aquilo piava, unindo mil vozes diversas, produzindo mil sons diferentes que, combinados, davam ao quadro a animação e vida só próprias dos painéis saídos das mãos do Supremo Artista” (p. 44). Outra referência importante que faz é à mitologia, exatamente após transcorrerem enormes dificuldades na viagem empreendida. Ele fala da incerteza do que poderiam 42 encontrar pelo caminho, das chuvas torrenciais e dos pantanais que tinham de atravessar, por isso “tudo era triste” (p.34), formando um “compacto e melancólico grupo” que experimentava a cada dia “inquietação e tristura”. Assim, o cenário torna-se escuro, pesado e melancólico, o que é representado alegoricamente pelo aparecimento de uma coruja: Depois de uma hora talvez dessa cruel expectação, em que o peito se nos apertava de inquietação e tristura, ouvimos um grito prolongado de agonia... e depois uma gargalhada estridente. E um corujão dos pantanais passou por cima de nossas cabeças. Acredito que naquele instante todos sentiram frio na medula dos ossos. (p. 34) Se por um lado essa alegoria evoca um certo pensamento supersticioso, mensageira de mau agouro, alguns parágrafos adiante, para dissolver a imagem da terrível noite, surge o raiar da aurora como consoladora compensação. E agora, para representar momento tão especial, é usada a figura mitológica de Eos: “Os róseos e decantados dedos de Eos de par em par abriram as portas à esperança agora fundada, agora quase certa, de vermos terminados os trabalhos da nossa terrível comissão.” (p.35) Essa deusa grega personifica o amanhecer e normalmente é citada como de longos cabelos louros e unhas tingidas de rosa com uma carruagem puxada por cavalos alados, encarregada de abrir o dia tingindo o céu com seus róseos dedos. Desse modo, as figuras da coruja e de Eos são oportunas para pintar os terrores e os alívios que surgem no espírito daqueles que se dispõem a lutar pela pátria. O gênero poético também é verificado nesta narrativa, sobretudo na descrição do espaço, ou seja, em tudo o que diz respeito à natureza. Não só no livro em estudo, como em outros (em Inocência, por exemplo), é poética a maneira pela qual o autor descreve acontecimentos da natureza, até mesmo os mais banais. As palavras são combinadas como em uma partitura, de modo a compor um certo ritmo, uma certa melodia nos parágrafos construídos, que se valem de recursos tais como a aliteração, a assonância, a rima, etc. No caso de Narrativas, isso é percebido na descrição de alguns lugares dotados de belezas naturais: Centenas de pássaros esvoaçavam; uns tocados pelo vento com as asas meio encolhidas; outros cortando com vôo firme os revoltos ares. Brincavam muitas marrequinhas n’água, sobre a qual velozes deslizavam-se brancas garças, ao passo que lontras faziam reluzir ao sol o lustroso pêlo, mergulhando de contínuo e nadando com ligeireza. (p. 44) 43 Nesse trecho, por exemplo, é evidente a aliteração do [v] nos vocábulos: “esvoaçavam, vento, vôo, revoltosos”, como se transmitisse o ruído do “bater das asas” dos pássaros, pois o [v] também remete ao som do vento. Da mesma forma acontece com o fonema [z], o que pode ser comprovado pela seguinte escolha lexical: “velozes, deslizavam, faziam, reluzir, lustroso, ligeireza”. Aqui, esse recurso pode também ser associado à idéia de “movimento deslizante” dos outros animais citados sobre a água, proporcionando um ritmo mais acelerado à descrição. Portanto, os recursos poéticos são empregados de maneira a conferir ao texto um efeito de animação, a fim de não transmitir uma paisagem estática. Os mesmos recursos poéticos são acionados na descrição de desastres ecológicos, como na de um temporal que passou pela tropa e destruiu quase tudo, numa manifestação de sensibilidade pictórica que enfatiza formas, volumes e cores: Expandindo-se e ganhando espaço, quais temerosas falanges a se prepararem para a luta, não tardou que por trás delas [das nuvens] se ocultasse o sol, cuja luz radiosa fimbriava de cores rutilantes as bordas recortadas daquele monstruoso véu. Contraste grandioso! Ao oriente, o azul puríssimo, esse azul que deixa o olhar como que perscrutar o infinito; ao ocidente uma cordilheira negrejante de contornos arredondados, que se erguia, empolava, bojava com sinistra lentidão, a ocupar toda a abóbada celeste. (p. 55) Aqui, o narrador anuncia a aproximação dessa tempestade a partir de uma metáfora muito interessante: as nuvens aproximam-se como “falanges a se prepararem para a luta”, lembrando, portanto, um movimento militar. Dessa maneira, pela descrição feita por Taunay, a natureza parece sentir o que acontecia ali, refletindo, então, os sentimentos daquele agrupamento. Na realidade, o Visconde parece compor um quadro a partir da combinação de cores que vai desde o “azul puríssimo” até o “negrejante”, bem como os “contornos arredondados”, ou ainda, definindo uma espécie de “moldura” produzida pelo efeito do sol atrás das nuvens, pois a luz resplandecente “fimbriava de cores rutilantes as bordas recortadas daquele monstruoso véu”. A poeticidade também se manifesta em alguns outros momentos, além dos descritivos, nos quais o narrador aponta em detalhe, enumerando-os, os elementos da solenidade apontada no primeiro parágrafo: 44 Os momentos são solenes. O hino nacional que retumba como voz ingente da pátria; as bandeiras desfraldadas, os tambores e cornetas que ferem os ares com agudo estrugido; a pólvora que embriaga; o exemplo dos companheiros; o orgulho em sentir no peito coragem, quando a vida depende de um pedacinho de chumbo e milhares deles voam por todos os lados, tudo forma um conjunto que de modo indelével impressiona a quem entra pela primeira vez em fogo e recebe o batismo de sangue. (p. 63) O que se percebe neste trecho é a acumulação de frases que mais parecem versos, culminando na abrangência de um “conjunto” que caracteriza o “batismo de sangue” iniciático da guerra. Os verbos empregados no presente do indicativo demonstram que não se trata de uma narração; pelo contrário, há uma “presentificação” do momento iniciático, aproximando-o do leitor. Além disso, a seqüenciação das frases imprime ao texto um ritmo denso e fragmentado que traz como efeito a mesma impressão de “quem entra pela primeira vez em fogo”. Todos os vários gêneros que se misturam garantem o caráter híbrido do texto e a inserção de aspectos gerais da guerra como pano de fundo para a narrativa da “história” a ser contada. O autor cria uma expectativa através de seus “recortes” até chegar à história propriamente dita, que conteria finalmente aspectos genéricos do conto, como a brevidade. Benedeto Croce afirma o seguinte sobre essa questão: “Toda autêntica obra-prima viola a lei de um gênero constituído e, assim, semeia a desordem no espírito dos críticos, imediatamente impelidos, assim, a ampliarem a noção de gênero.” (CROCE, apud STALLONI, 2001, p. 177) A guerra como pano de fundo A construção do cenário bélico é primordial não somente para contextualizar a narrativa, mas também para inserir o leitor em um ambiente com o objetivo de prepará-lo para o conflito moral presente na história. Um dos primeiros aspectos explorados pelo narrador, como já citamos em outro momento, é a obediência cega que rege todos os princípios militares: A todas as interrogações contrapunha-se inflexível resposta: era a urgência de cumprir as determinações do comandante em chefe; era a disciplina militar com todas as suas inquebrantáveis exigências. Manda quem pode, obedece quem deve, diz o soldado, e esta regra é a base, a força de um exército. (p.20) 45 Ricardo Salles (1990) afirma que no Exército havia uma preocupação grande em cumprir normas e um dos critérios mais salientados era o da bravura. Não é por menos que a citação “manda quem pode, obedece quem deve” vem da boca de um soldado, o que mais sentia a questão do dever como força que movimenta os fundamentos militares. Aliás, o historiador salienta alguns princípios que conduziam os combatentes, ou seja, “a nobreza de espírito, o desprendimento moral, o culto à bravura e a dedicação à Pátria” (p. 133). E a exaltação da bravura tendia ainda fortemente à valorização da coragem com honra e tradição. Em contrapartida, o narrador agora inicia realmente a narrativa anunciada no começo, quando descreveu o camarada-tipo, justamente para especificar a cumplicidade que havia entre os dois irmãos, alçados à categoria de camaradas-personagens: Alexandre e Martinho Campos Leite. Também logo que Alexandre, por um índio que fora ter ao Coxim, soube da chegada do irmão, sopitou o desejo de continuar a viver livre e independente na qualidade de extraviado e, reunindo quatro ou cinco companheiros nas suas condições, veio espontaneamente oferecer o corpo ao jugo da disciplina e tomar novamente lugar na fileira ao lado do querido Martinho. (p. 31) Como de costume, caminhava Alexandre na frente, Martinho logo atrás. (p.33) Vale ressaltar que Alexandre havia se ocultado entre os índios terena, após a dissolução do corpo a que pertencia. E decidiu apresentar-se às forças brasileiras então acampadas no Coxim por “razão ainda mais forte que o dever militar”, como justifica o narrador. E aqui ele já aponta características importantes para o desfecho da obra. Ao longo da narrativa, após elencar as muitas dificuldades enfrentadas por quem já lutou em uma guerra, como por exemplo a cena de um paraguaio ferido, o autor narra também um dilema enfrentado pelo coronel Camisão, então responsável pela companhia: abandonar ou continuar com a pesada e nume