73 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Bem-me-quer, malmequer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar Well me either, me either ill: a review of care provided to elderly asylum Marina Coimbra Casadei Antonio Carlos Barbosa da Silva José Sterza Justo RESUMO: Este artigo retrata uma pesquisa realizada com o objetivo de observar se as condutas estabelecidas no Guia Prático do Cuidador (programa do Ministério da Saúde, implantado em 2008 para a melhoria do cuidado do idoso), estão sendo praticadas também em instituições asilares de cidades menores, tomando como referência uma cidade do interior paulista, com aproximadamente 100.000 habitantes, localizada no Oeste do Estado de São Paulo. Palavras-chave: Idosos; Cuidador; Guia Prático. ABSTRACT: This article aims to portray a survey in order to see whether the established in the Practical Guide Caregiver program (Ministry of Health, established in 2008 to improve the care for the elderly), are also affecting the nursing homes of smaller towns, with reference to a city in São Paulo State, with approximately 100,000 inhabitants located in western Sao Paulo State. Keywords: Elderly, Caregiver, Practical Guide. 74 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Introdução O processo de envelhecimento populacional constitui um dos maiores desafios para a saúde pública contemporânea, pois o envelhecimento da população mundial é crescente e veloz. Os censos demográficos têm apresentado, nas últimas décadas, o aumento da proporção da população idosa no Brasil (Lima-Costa, 2003). Estima-se que, por volta de 2025, o Brasil ultrapasse os 30 milhões de idosos. Assim, os Asilos de Velhos, ou as Instituições de Longa Permanência, continuam tendo uma presença importante no cenário social, posto que, apesar de avanços e conquistas ocorridas na longevidade e qualidade de vida da população em geral, o desamparo à velhice está longe de deixar de ser um problema a ser enfrentado. Neste artigo, utilizaremos indistintamente a denominação Asilo de Velhos ou Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) por considerar que o caráter asilar que consagrou esse nome como lugar de descanso e abandono ainda se mantém bastante presente. As principais causas do asilamento, segundo Berquó (1996), são os novos rearranjos familiares, tais como mulheres vivendo sozinhas, mães solteiras, casais separados ou sem filhos, e filhos que saem de casa cedo. Essas situações diminuem as possibilidades de envelhecer em ambiente familiar, pressionando a demanda por internação dos idosos em Asilos. Consequentemente, o acompanhamento das condições de vida nas instituições asilares, e a avaliação da qualidade do atendimento que é prestado aos usuários, passam a ser ainda mais necessários e tomados em consideração como objeto de estudo pela ciência, até porque as tradições das instituições de abrigo aos idosos trazem fortes registros de um lugar social destinado à reclusão e segregação social da velhice. Na Idade Média, o asilo era um local de assistência aos pobres, pessoas desabrigadas e desamparadas pelas famílias. Geralmente quem dava assistência a esses desamparados eram filantropos e caridosos, que buscavam a salvação da alma, tanto do pobre como a sua. Além de servir como expurgo de culpa, os asilos serviram para separar os indivíduos que representavam de alguma maneira, ameaça à população. (Herédia & Casara, 2000). Tais características ainda são evidentes em muitas instituições asilares, principalmente nas filantrópicas, mantidas por associações religiosas, com o predomínio da visão caritativa e de práticas que acentuam o isolamento, a dependência e a Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 75 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. invalidação (Faleiros & Justo, 2007). Segundo Mendonça (2006), as instituições privadas, até mesmo as clandestinas, que não oferecem condições mínimas aceitáveis de tratamento, acabam sendo verdadeiros depósitos de velhos. Etimologicamente a palavra asilo tem raízes no grego Àylos e no latim Asylu, significando casa de assistência social onde são recolhidas, para sustento ou também para educação, pessoas pobres e desamparadas, como mendigos, crianças abandonadas, órfãos e velhos (Nascentes, 1967). Transmite a ideia de guarita, abrigo, proteção a quem esteja vivendo em estado de vulnerabilidade ou de desamparo em função de problemas sociais, políticos ou de uma condição de dependência física e/ou mental que exige cuidados especiais. Também surgiram outros termos para denominar locais de assistência a idosos, como por exemplo, abrigo, lar, casa de repouso, clínica geriátrica e ancionato. Mais recentemente surgiu a denominação “Instituições de Longa Permanência para Idosos” (ILPI), sendo definidas como estabelecimentos para o atendimento integral a idosos, dependentes ou não, sem condições familiares ou domiciliares para sua permanência na comunidade de origem. As ILPIs, reconhecidas e legitimadas pelas diretrizes de assistência do Estado, devem proporcionar serviços na área social, médica, psicológica, odontológica, de enfermagem, terapia ocupacional, entre outras, conforme necessidades desse segmento etário (São Paulo, 2003). A instituição asilar pode ser compreendida como uma instituição total. De acordo com Goffman (2001), as instituições totais são àquelas que dominam toda a vida do sujeito que a ela está submetido. Geralmente essas instituições de caráter total separam os sujeitos da sociedade e administram a saúde, higiene, alimentação, vestimentas, separam os sujeitos pelo sexo, sendo um local de confinamento do qual os sujeitos não podem sair. Com o surgimento do asilo, a velhice ganha um lugar, mas perde simbolicamente o seu lugar na vida. A localização da velhice no asilo parece não ser apenas geográfica, mas também representativa: o asilo pode ser visto como uma espécie de limbo, onde a velhice se encontra fora do tempo e do espaço, sacralizada, vista como degeneração, alienada do mundo (Cortelletti, Casara & Herédia, 2004: 39). 76 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. O modelo asilar brasileiro ainda tem muitas semelhanças com as chamadas instituições totais, funcionando como espaços de segregação e de administração integral da vida dos idosos dependentes, desvalidos, aposentados, pobres e rejeitados ou impossibilitados de viverem sozinhos ou com familiares. A prática institucional, além de separar e demarcar a velhice, acaba homogeneizando as formas do envelhecer. Os internos das instituições asilares são, em maioria, idosos sem condições financeiras para serem cuidados pela família, ou ainda aqueles que já apresentam alguma doença física ou mental, e a família já não consegue ou não quer cuidar dele. Dessa maneira, o idoso se apresenta como um sujeito afetado e modificado por um momento histórico e institucional que estabelece novos parâmetros de comportamentos para a idade mais avançada. Entretanto, o próprio processo de envelhecimento pode acontecer de maneira singular, traduzido na forma particular de cada individuo encarar e entender sua velhice. Assim existem dentro dos asilos várias experiências do envelhecimento. As restrições de contato externo que o institucionalizado enfrenta e as práticas de tutela representam uma grande ruptura na vida do idoso, com a perda de alguns papéis desempenhados, e contribuem para o desenvolvimento de dois mundos culturais e sociais diferentes: aquele existente no interior da instituição e o de fora (Faleiros & Justo, 2007). Esta visão é corroborada por Groisman (1999), ao abordar a questão da morte civil, na qual o indivíduo perde o direito à cidadania, pois o processo de institucionalização o desvincula da família, do trabalho, dos amigos, da cultura e das relações que o conectam com o mundo. A saída do círculo familiar, ou de outro nicho de vida pessoal e identitária, representa uma desfiguração do sujeito: o estranhamento de si mesmo no lugar onde passa a viver. A perda de vínculos, acarretada pela institucionalização, solidifica-se simbolicamente com a falta de autonomia, de direito de escolhas, de controle sobre seus pertences e de controle sobre seus proventos de aposentadoria e outras privações de sua potência de vida que se agravam ao ser institucionalizado. No asilo, o processo de invalidação ou de dessubjetivação se intensifica numa situação de maior fragilidade do idoso. Conforme apontam alguns estudos realizados, normalmente as regras institucionais oferecem um tipo de atendimento despersonalizado, o que pode contribuir para a perda gradativa de autonomia, uma vez que, os horários são estabelecidos para Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 77 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. cada atividade diária específica. Este modo atende às exigências institucionais, mas não às individuais, o que faz o idoso seguir as novas imposições (Herédia & Casara, 2000). A ociosidade característica destas instituições contribui para a inatividade dos idosos, a perda da autonomia e a retirada do controle sobre seus objetos de uso pessoal e de pertences tais como cartões magnéticos e documentos pessoais (Dias, 2007). Esta condição vivenciada pelos idosos é oposta à da vida laborativa anterior ao asilamento, permeada por trabalhos que exigiam disposição física: roçar, costurar ou cuidar de casa, dentre tantos outros (Faleiros & Justo, 2007). A estrutura de atendimento asilar no Brasil está distante do que seria necessário para responder adequadamente às próprias políticas públicas ensejadas nessa área. Muitas ILPIs enfrentam dificuldades de todo o tipo, sobretudo quanto aos seus recursos financeiros, segundo alegam comumente seus gestores. De acordo com os dirigentes, o custo dos idosos asilares é alto por conta da demanda de serviços, como os da área de saúde, pois muitos dos idosos sofrem doenças crônicas degenerativas e demenciais. Os serviços de saúde, ainda de acordo com os gestores, não são contemplados pela Política Nacional do Idoso (PNI), que considera demasiadamente centrada na assistência social estrito senso. Fato é que o discurso da sobrecarga financeira dos asilos procura justificar o tipo de atendimento e tratamento dispensado aos idosos internos. Mesmo quando a condição de instituição asilar é reconhecida como precária, ainda assim, é comum ser celebrada como uma dádiva sem a qual os idosos estariam em pior situação. O Estatuto do Idoso, no parágrafo VII, do Artigo 54, capítulo II, determina que as entidades de atendimento ao idoso propiciem atividades educacionais, esportivas, culturais e de lazer (Lei 10.741/2003). A realidade que nos deparamos em diversas instituições são monótonas no dia a dia, não valorizando as atividades diárias, até mesmo a interação entre eles. É um cotidiano regido pelo horário das refeições, e de “ociosidade”, que traz sensação de abandono e tristeza, marasmo e desesperança de ter um final de vida mais saudável e alegre (Herédia & Casara, 2000). Geralmente, o idoso institucionalizado não consegue desenvolver o sentimento de “pertencimento” ao grupo no qual vive, o que reforça as imagens e atitudes de desvalorização de si e de estigmatização. O idoso acaba interiorizando e aceitando as marcas que os outros lhe impõem. Tal processo de estigmatização não está ao alcance do olhar rotineiro dos funcionários da instituição, mas é explicitado pela conduta dos 78 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. idosos, muitas vezes, exibindo atitudes de passividade, prostração e sentimentos de impotência, incapacidade, inutilidade e até o desejo de morrer (Pimentel, 2001). Cabe salientar que os próprios funcionários também estão submetidos às regras da instituição que agem como um poder capilarizado. Os agentes de uma instituição asilar atendem a regras que emergem de fonte desconhecida, porém, fortemente incrustadas nas diretrizes da organização, gerando consequências na prática de atenção ao idoso. Priorizam o atendimento de necessidades fisiológicas tais como alimentação, higienização do corpo, sono, medicação, dentre outras. São relegadas a um segundo plano ou completamente ignoradas as demandas sociais, afetivas, sexuais ou qualquer outra que possa surgir das singularidades. A instituição asilar não estimula a ação do idoso e nem se preocupa em desenvolver projetos que ofereçam possibilidades de ressignificação. Também é raro o vínculo entre os funcionários e os idosos, uma vez que a relação entre eles se dá por práticas burocráticas específicas e monitoradas pelos horários fixos (Ximenes & Côrte, 2007). A própria nomenclatura dada aos funcionários das ILPIs - “Cuidador” - é uma forma de estipular e denotar certo poder àquele que tem sobre sua responsabilidade alguém que necessita de “cuidados”. O asilar está sempre à mercê das resoluções do “Cuidador”. O ato de cuidar abrange uma variedade de tarefas e responsabilidades; porém, é cerceado quando resvala nas tarefas de responsabilidade técnica exclusivas de profissionais legalmente habilitados, como enfermeiros, médicos e dentistas (Norma de Manual Técnico, 2008). Podemos definir o cuidador de idosos como aquele funcionário que compõe a equipe da instituição e que se relaciona diretamente com os internos em ocasiões tais como as de higiene, alimentação, condução dos cadeirantes e outras atividades da rotina. A função de cuidador está descrita na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho (CBO) sob o código 5162, que define o cuidador como alguém que cuida zelando pelo bem-estar, saúde, alimentação, higiene pessoal, educação, cultura, recreação e lazer da pessoa assistida. O cuidador pode ser também uma pessoa da família ou da comunidade, com ou sem remuneração, que presta serviços à outra pessoa de qualquer idade, que esteja necessitando de cuidados por estar acamada, com limitações físicas ou mentais. Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 79 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Existem duas classes de cuidadores: os cuidadores formais e os cuidadores informais. Os cuidadores formais são profissionais, normalmente da área da saúde, como enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e outros. Já os cuidadores informais são pessoas que auxiliam a equipe de profissionais, oferecendo auxílio na higiene, alimentação, locomoção e outras tarefas na instituição. Tem sido comum nas ILPIs, a remuneração aos cuidadores informais, que até então eram apenas voluntários. Embora o cuidador seja um prestador de relevantes serviços aos idosos, o seu trabalho não é reconhecido como uma profissão e sim como ocupação, pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) (Grison, 2009). Nesta pesquisa, dirigimos nossas observações para esses dois tipos de cuidadores, devendo ambos seguir os padrões de cuidado do Estatuto do Idoso e do Guia Prático do Cuidador. De acordo com a pesquisa realizada por Reis e Ceolim (2007), a situação atual do Brasil é de praticamente total falta de qualificação para o atendimento adequado ao idoso, seja em âmbito domiciliar, hospitalar ou institucional. Para melhoria do cuidado aos asilares, o Ministério da Saúde, em 5 de maio de 2009, informou que está disponibilizando o Guia Prático do Cuidador para as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, nas capitais e nas cidades com mais de 500 mil habitantes, em Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (SUS) e Organizações não Governamentais (ONGs) (Ministério da Saúde, 2008). Assim, foi lançado o Programa Nacional de Formação de Cuidadores de Pessoas Idosas Dependentes, na Rede de Escolas Técnicas do SUS, por meio de iniciativas-piloto, entre novembro de 2007 e julho de 2008. A meta é a formação de 65.000 cuidadores de idosos até 2011. A execução e a coordenação desse programa, nos estados e municípios, são feitas pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, que recebem as diretrizes e os recursos materiais do Ministério da Saúde. Esta é uma iniciativa pioneira de maior visibilidade no cumprimento do Estatuto do Idoso, no que se refere à formação de cuidadores de idosos. Esse Programa prevê que os asilos também sejam beneficiados e demonstra o amplo reconhecimento científico e social da importância do investimento na preparação de cuidadores de idosos (Carvalho, 2011). O cuidado referido neste artigo é o cuidado assistencial prestado ao idoso institucionalizado em asilo, quando da inexistência do grupo familiar ou do abandono e falta de recursos financeiros próprios ou da família. O bom cuidador não é aquele que faz pelo outro, mas aquele que ajuda uma pessoa quando ela não consegue cuidar de si 80 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. sozinha, incentivando sua autonomia. No entanto, o estímulo à autonomia do idoso exige paciência e tempo. Cabe ao cuidador fazer para o idoso apenas as atividades que ele não consegue desempenhar sozinho. Não fazem parte da rotina do cuidador técnicas e procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas, particularmente na área de enfermagem. (Guia Prático do Cuidador, 2008) O cuidador, ainda segundo o Guia, deve escutar a pessoa idosa, estar atento a ela e lhe ser solidário; auxiliar nos cuidados de higiene; estimular e cooperar para o idoso ter uma alimentação saudável; ajudar na locomoção e nas atividades físicas tais como: andar, tomar sol e fazer exercícios; estimular atividades de lazer e ocupacionais, realizar mudanças de posição na cama e na cadeira; fazer massagens de conforto; administrar as medicações, conforme a prescrição e orientação da equipe de saúde; comunicar à equipe de saúde sobre mudanças no estado de saúde da pessoa cuidada. Assim, para que seja alcançado algum diferencial na rotina da instituição, as ações de cuidado são bem-vindas, pois são elas que estão na base da instituição. Por isso, é importante que o cuidador tenha conhecimento das necessidades, possibilidades e limitações do outro e tenha adquirido capacitações para dar conta do cuidado integral e humanizado junto aos idosos. Tal preparação ou formação do cuidador requer treinamentos e cursos de capacitação que respeitem também os critérios previstos legalmente no que se refere ao conteúdo pragmático estipulado para a formação do cuidador. Esses cursos precisam passar pela supervisão do Conselho do Idoso, órgão responsável pelo controle de ações voltadas ao atendimento dos idosos, conforme previsto no Estatuto do Idoso. Diante disso, nossa pesquisa tem como objetivo observar se as condutas estabelecidas no Guia Prático do Cuidador (Programa do Ministério da Saúde, implantado em 2008 para a melhoria do cuidado do idoso) são utilizadas numa instituição asilar de uma cidade do interior paulista. Implicações metodológicas Tipo de pesquisa: Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 81 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. A pesquisa atendeu aos princípios éticos elementares necessários à condução de uma investigação científica. Dessa forma, procuramos garantir o anonimato da instituição analisada, assim como o anonimato de quaisquer pessoas observadas que fizeram parte da pesquisa. Efetuamos um estudo de campo, no qual procuramos observar fatos relacionais, entre idosos e cuidadores, tal como ocorrem na instituição. Não tivemos a intenção de isolar e controlar as variáveis que pudessem interferir no estudo, mas visamos a perceber e estudar as relações que eram estabelecidas entre o cuidador e o asilar. Quanto ao objeto da pesquisa, o consideramos descritivo, por estarmos observando fatos, registros e, ao mesmo tempo, classificando e analisando-os. As observações foram realizadas, mediante registros cursivos sistemáticos, ao longo de observações dois meses, em dias e horários pré-estabelecidos. População-Amostra Trata-se de um Asilo ou ILPI de uma cidade do interior paulista, com aproximadamente 90.000 habitantes. Acolhe 40 internos, de ambos os sexos, sendo a maioria aposentados. É uma instituição filantrópica que dispõe de 15 funcionários fixos, sendo uma assistente social, 6 cuidadores, 4 responsáveis pelos serviços gerais, 2 cozinheiras, 2 motoristas e mais 50 voluntários que fazem vários serviços fora da instituição, tais como: confecção de fraldas geriátricas, arrecadação de contribuições financeiras em igrejas, mercados, quitandas, ou ainda realizando doações beneficientes. Segundo as normas e rotina da instituição, compete aos cuidadores acompanhar os idosos nas refeições, auxiliar na alimentação, locomoção e higiene corporal. Em cada turno, ficam três cuidadores. Cabe ressaltar que, nesta instituição, todos os funcionários realizaram um curso de formação de cuidadores, apesar de nem todos se considerarem cuidadores efetivamente. Conforme faculta o Estatuto do Idoso, a Instituição possui a tutela legal de todos os idosos, recolhendo 70% do valor de suas aposentadorias. Alguns, considerados incapazes ou dispendiosos, são obrigados a contribuir com 100% dos seus proventos de aposentadoria. A rotina diária básica envolve a higiene matinal, com a ajuda dos cuidadores, as refeições (café da manhã, lanche, almoço, café da tarde e jantar) e o recolhimento aos 82 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. dormitórios para dormir, no início da noite. No período da tarde, são realizados os atendimentos de saúde (consultas médicas, odontológicas, sessões de fisioterapia e outros tratamentos) na própria instituição ou em serviços públicos da cidade, para onde são transportados. As visitas médicas acontecem uma vez por semana e os tratamentos individuais acompanham a necessidade de cada caso. Procedimentos para coleta dos dados: observações Foram objeto da nossa observação as interações entre os cuidadores e os idosos, tanto aquelas deflagradas pela rotina de cuidado estabelecida, como aquelas deflagradas espontaneamente ou por acontecimentos do cotidiano. Para cobrir as rotinas e acontecimentos em diferentes dias e horários, as observações foram realizadas em sessões de duas horas nos horários das atividades programadas e nos intervalos entre elas (horários livres). Conforme o levantamento feito da rotina diária, as observações abrangeram os seguintes horários: HORÁRIO ATIVIDADE 7:00 às 9:00 hs Despertar matinal, café da manhã e banho 9:00 às 11:00 hs Período livre e lanche da manhã 11:00 às 13:00 hs Horário de almoço 13:00 hs Troca de fraldas 14:30 hs Café da tarde 15:00 às 17:00 hs Horário livre 17:30 hs Horário do jantar 19:00 hs Troca de turno dos funcionários A observação foi realizada três vezes por semana, ao longo de dois meses, em horários intercalados, ou seja, distribuídos de acordo com os horários acima mostrados (ver tabela acima). Este modo de distribuição do horário não prejudicou a coleta de dados para as finalidades da pesquisa porque, ainda que eventos episódicos possam ser Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 83 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. contemplados pelo investigador, o mapeamento do padrão de interação foi assegurado pela diversificação de dias e horários das observações, mesmo sendo descontínuos. Roteiro de observação O roteiro de observação foi desenvolvido baseado no Guia Prático do Cuidador, tendo sido privilegiados, na observação, aspectos da interação do cuidador com o idoso, que são considerados importantes pelo Guia Prático do Cuidador (2008): 1- O contexto onde ocorre o relacionamento do cuidador com os idosos, desde aspectos físicos como: iluminação, disposição dos móveis, ventilação, cores utilizadas e assim por diante, até a organização da instituição, quanto aos papéis e funções atribuídas aos cuidadores; 2- Os recursos tecnológicos existentes e aqueles que de fato são utilizados; 3- As atitudes e condutas dos cuidadores quanto ao estímulo à autonomia dos idosos; 4- A postura profissional dos cuidadores, de acordo com as orientações que recebem dos gestores da instituição; 5- As expressões não verbais dos cuidadores e dos idosos, durante a interação; 6- Atitudes e condutas dos cuidadores quando não estão desempenhando suas tarefas de cuidado; 7- Condutas de estimulo à autonomia do idoso, como incentivá-lo a realizar alguma atividade, desde uma caminhada até a desempenharem autonomia na higiene pessoal ou alimentação; 8- Atenção básica dos cuidadores para com os idosos mais dependentes, tal como: mudança de posição do idoso que fica no leito, mudança de local dos cadeirantes, atender aos chamados e assim por diante; 9- Os conteúdos e sentidos dos diálogos com os idosos; 10- A receptividade dos idosos aos cuidados do cuidador.. 84 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Tratamento de dados: Procedimentos analíticos Para a análise dos dados, foi utilizado o recurso da análise interpretativa. Este tipo de análise permite ao pesquisador confrontar o material coletado com a bibliografia estudada ao longo da pesquisa, possibilitando a compreensão dos sentidos daquilo que foi observado e o exame da coerência da parte com o todo, visando ao enriquecimento do conhecimento cientifico que se pretende produzir (Severino, 2002). Esta análise de interpretação se dá a partir da ligação dos dados obtidos com os conhecimentos significativos, originados de pesquisas empíricas ou de teorias bem estabelecidas (Gil, 1991). Dessa forma, o pesquisador deve adotar uma visão critica de todo o material, mediante uma análise minuciosa de juízo sobre o raciocínio de todo o material coletado. Isso pode conduzir o pesquisador a detectar a real relevância e a importância do estudo para o tema, como também a dimensão da real contribuição do material como diferencial teórico do trabalho científico. Uma possível discussão: nossos idosos são benquistos? Entre os itens observados do roteiro aqueles que mais nos chamaram a atenção serão objeto de reflexão a seguir. O ambiente do asilo no qual foi realizada a pesquisa consiste fisicamente num local amplo, com iluminação solar escassa dentro dos ambientes principais, tais como sala, cozinha e dormitórios, exceto na parte externa onde há luz solar em abundância, pois este local é uma grande área gramada. Entretanto, nesse espaço não há possibilidade de o idoso realizar caminhadas, pois o terreno não é totalmente plano e os que necessitam de cadeiras de rodas ou andador ficam impossibilitados de andar sobre a grama. Percebemos, infelizmente, que há uma ruptura da história de vida do idoso ao este entrar no asilo. Aí, nada lembra sua história. Há um mundo novo, sem objetos que evoquem a memória, que lembrem as passagens de sua história. Começar uma vida nova é extremamente penoso a uma pessoa idosa. Para produzir novos processos de subjetivação, necessita-se de investimento não só nas condições físicas, mas especialmente nas emocionais. Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 85 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Descobrir os benefícios da velhice, prolongar a juventude e envelhecer com boa qualidade de vida têm trazido certa ansiedade ao ser humano no instante em que este percebe o aumento da necessidade de conviver, de amar e existir, evidenciando o grande desafio da atualidade. Boa qualidade de vida é aquela que oferece o mínimo de condição para que os indivíduos possam desenvolver o máximo de suas potencialidades, resguardados, evidentemente, os limites individuais. Portanto, o envelhecimento saudável não se limita a aspectos biológicos. Duarte (1998) enfatiza que envelhecer de maneira saudável significa fundamentalmente que, além da manutenção de um bom estado de saúde física, as pessoas necessitam de reconhecimento, respeito, segurança e sentirem-se participantes de sua comunidade. No caso da instituição aqui analisada, vê-se, em sua sala principal, um aparelho de televisão destinada a todos os internos, com algumas cadeiras e sofás dispostos no local. No entanto, as cores são frias em todo o interior da casa, passando uma impressão “gélida”, predominando nesse ambiente institucional a cor cinzenta, além da sujeira que se mistura com as paredes já desgastadas, exigindo reforma. Pelo menos um enfermeiro em cada período, um auxiliar de enfermagem e um ajudante, auxiliam na locomoção e na higiene dos internos. Pelas manhãs das terças e quintas-feiras, a instituição recebe estagiários de fisioterapia de uma faculdade da cidade. Apesar de ser a mais ampla e que abriga o maior número de idosos na cidade, a instituição dispõe de parcos recursos materiais e tecnológicos de saúde, lazer e/ou locomoção. Há poucos aparelhos para medir pressão arterial, uma cadeira de rodas para uma eventual emergência, pouquíssimos ventiladores para atender a demanda de tantas pessoas e apenas a citada televisão. Assim, este último equipamento parece ser o objeto de mediação (ainda que de forma virtual) entre a vida asilar e o mundo real externo. O cuidador é uma pessoa envolvida no processo de “cuidar do outro” com quem vivencia uma experiência contínua de aprendizagem e que resulta na descoberta de potencialidades mútuas (Born, 2006). É nesta relação íntima e humana que se revelam potenciais, muitas vezes encobertos, do idoso e do cuidador; sendo dessa forma auxiliado, o idoso pode sentir-se capaz do autocuidado e, assim, reconhecer suas reais capacidades (Born, 2006). Estudos recentes demonstram os efeitos positivos, no estado e na saúde de idosos institucionalizados, ao se aumentar o sentido de responsabilidade e de controle de suas próprias vidas, afirmando-se que os problemas ligados ao processo 86 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. de envelhecimento podem estar na falta desse controle, problemas quase sempre agravados pela institucionalização (Freire Júnior & Tavares, 2005). Quem cuida deve determinar a direção do crescimento de quem é cuidado porque, para cuidar, devem-se conhecer as limitações, as necessidades e o que conduz ao crescimento do outro. Os cuidadores precisam ser pessoas capazes de saber, querer e fazer o cuidado específico do idoso. Do contrário, a capacidade para compreender, responder aos idosos e relacionar-se com estes se torna limitada (Lenardt, 2006). No que tange às atitudes dos cuidadores para com os idosos, cabe salientar a falta de estímulos por parte dos primeiros para a autonomia dos últimos. O simples ato de andar, comer e realizar a higiene pessoal - tão problemático e necessário na recuperação de pessoas com problemas físicos e degenerativos - não é incentivado pelos cuidadores. Estes preferem efetuar essas funções junto aos idosos em vez de incrementá-las, pois sentem que as realizam, eles próprios, com mais rapidez e (supostamente) mais qualidade. Esse tipo de funcionamento vai ao desencontro do que recomenda o Guia Prático do Cuidador que defende a estimulação máxima ao idoso na realização das tarefas cotidianas que a ele competem, ainda que as faça com dificuldade. É pertinente que o cuidador esteja em vigilância nessas tarefas, quando estas são desempenhadas pelo idoso para prevenir possíveis acidentes (Guia Prático do Cuidador, 2008). Outra questão que merece certo destaque é sobre a maneira como os cuidadores realizavam, na referida instituição, as atividades mais próximas com os idosos. Eram raras as interações cognitivas e emocionais entre idoso e cuidador, limitando-se apenas a determinadas conversas e/ou orientações básicas de como o idoso deve se alimentar, vestir, higienizar, locomover-se e tomar seus medicamentos nos horários determinados. Tornou-se evidente a restrição afetiva envolvendo cuidadores e idosos, com o cuidador agindo de forma fria, como se valesse de mecanismos de defesa que o salvaguardariam de um contato mais aprofundado com a velhice, com a doença, com a decadência, com a proximidade da morte. Não observamos trocas de afeto entre cuidador e idoso, tal como um abraço ou ainda um gesto de carinho. A maioria dos cuidadores conversa o básico com os idosos para a realização da tarefa do momento. Se partirmos do pressuposto que nossa vida social é construída a partir de laços afetivos, estes devem ser reafirmados constantemente, pois são eles que tornam as pessoas e as situações socialmente preciosas, portadoras de valor. Entretanto, nessa reafirmação Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 87 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. tomamos tempo para nos dedicar a elas e assumirmos responsabilidade pelos laços que nascem entre nós e os outros. Ao que parece, os cuidadores não querem “esse” tempo ou o temem pelas questões postas acima. A postura assumida pelos cuidadores para com o idoso agrava, muitas vezes, a condição emocional deste último, que se sente abandonado. Cabe ressaltar aqui que, muitas vezes, presenciamos em nossa pesquisa alguns idosos falando consigo mesmos em tom muito baixo, impossibilitando a compreensão de suas palavras. Nesses momentos, percebíamos um certa indiferença por parte dos cuidadores, que se mostravam “indisponíveis” para “perder” tempo com conversas “fiadas”, e sob o pretexto de muito trabalho para ser realizado. Segundo Colière (1993), cuidar é amar, e para amar precisamos de tempo, de vivenciar prazerosamente esse tempo; então, o cuidado é composto pela essência do tempo dedicado às atividades efetuadas com afetividade. Cuidar tal como amar também é aproximar-se, estar presente e valorizar o outro. Cuidar é atuar sobre o poder da existência, é possibilitar a libertação das capacidades de cada ser humano para existir, para viver, é definitivamente uma forma de promover a vida. Cuidar é, na realidade, uma atitude de preocupação, ocupação, responsabilização e envolvimento afetivo com o ser cuidado (Guimarães Lopes, 1993), possibilitando um encontro dialógico entre o ser que cuida e aquele que é cuidado; encontro esse que possibilita desenvolver novos processos de subjetivação; logo, a continuidade do viver. Hoje é sabido que o contato físico e o simples conversar com o outro, mesmo não recebendo uma resposta imediata, fortalecem os laços afetivos, tão necessários para a melhora da saúde daqueles que tanto sofrem das mazelas da mais alta idade. Segundo Bee (1997), o apego é uma variação do vínculo afetivo, no qual existe a necessidade da presença do outro, uma sensação de segurança pela sua presença. O outro é visto como uma base segura, a partir da qual o indivíduo pode explorar o mundo e experimentar outras relações. O vínculo afetivo com o outro permite reelaborarmos nossas dores e conflitos. Quando não estão realizando nenhuma tarefa com o idoso - momento muito raro, uma vez que o número de asilados de que cuidam é grande (três para cada um) -, os cuidadores se reúnem na enfermaria, e trocam informações a respeito da saúde dos internos, ou ainda preenchem a ficha de cada idoso, pois a instituição mantém todos os registros dos idosos atualizados, contendo as informações pessoais, de saúde, e institucionais. Entretanto, isso de faz de forma extremamente sistematizada, burocrática, 88 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. quase como uma obrigação sem nenhuma preocupação ou envolvimento afetivo com as pessoas atendidas. Assim é que verificamos que os cuidadores desempenham burocraticamente a atenção básica para a higiene e para as demais necessidades imediatas dos idosos. Também não há diferenciação de tratamento ao idoso mais dependente fisicamente, diante dos demais. Aqui se evidencia uma atitude meramente mecânica dos cuidadores. Eles evitam o contato visual com o idoso, não consideram os processos singulares dos idosos que podem se sentir afetados por determinados toques em seu corpo, de serem obrigados a se alimentar em determinados horários e com comidas que lhe são desagradáveis e de serem deslocados para certos locais da instituição sem serem ouvidos. Algumas recomendações básicas do Guia Prático do Cuidador, tal como a mudança de posição do idoso que está no leito e/ou na cadeira de rodas, por questões de saúde física, nunca foram observadas por nós enquanto lá estávamos. A relação entre os cuidadores e os idosos mostrou-se restrita, não havendo envolvimento nem por parte dos idosos aos cuidadores e nem vice-versa. Exceto alguns que ainda arriscavam dar um sorriso, e, aí então, o cuidador o retribuía. Dessa forma, seguiram-se os meses de observação, sem que nada de novo acontecesse na instituição a não ser o falecimento de dois idosos. Não se evidenciaram esforços dos cuidadores para tentar desenvolver um diálogo. Também não havia o conversar entre os internos: esta é uma das características muito marcantes na presente pesquisa. Na instituição estudada, não havia som de vozes: os idosos não se arriscavam em conversas, trazndo a televisão o som que imperava em volume, como referido anteriormente. A falta de afetividade foi vista nos três períodos em que se realizou a pesquisa, ou seja, notamos que o profissionalismo das três equipes se repetia invariavelmente: não havia nada, quanto ao ato de cuidar, que destoasse entre elas. Podemos indagar sobre essa condição de insuficiência observada na instituição em foco, relacionando-a com a precária estrutura de atendimento asilar no Brasil, a qual se encontra distante do que seria necessário para responder adequadamente às próprias políticas públicas ensejadas nessa área. Muitas ILPIs enfrentam dificuldades de todo o tipo, sobretudo quanto a recursos financeiros, segundo alegam comumente seus gestores. De acordo com os dirigentes, o custo dos idosos asilares é alto por conta da demanda de serviços de preço elevado, como os da área de saúde, requeridos por muitos dos idosos vitimados por doenças crônicas degenerativas e demenciais. Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 89 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Fato é que os asilos procuram justificar seus deficientes atendimento e tratamento aos idosos, a partir do discurso da insuportável sobrecarga financeira. Mesmo quando a condição de instituição asilar é reconhecida como precária, ainda assim, é comum esta possibilidade de acolhimento ao idoso ser celebrada como uma dádiva, sem a qual este estaria em pior situação. Muitos provimentos, que são oferecidos aos idosos, são de doações que a instituição consegue com alguns estabelecimentos como hortas de chacareiros e alguns mercados (que lhe oferecem os produtos sobressalentes ou próximos ao vencimento de consumo). Atividades culturais e de lazer (tais como as preconizadas no Guia), que poderiam ser incentivadas aos moradores asilares, na tentativa de suprir a falta de ações dependentes de recursos financeiros, também lhes são renegadas. É indicado que os cuidadores auxiliem os idosos em atividades, por exemplo, de ativação da memória, tais como: a leitura de livros, jornais ou revistas; a escuta de música; a realização de palavras-cruzadas, a escrita ficcional ou não: isso tudo, porém, em nenhum momento aconteceu, durante a presente pesquisa. Todo o domingo, que é dia preferencial de visita, torna-se o mais angustiante, até mesmo para os internos. Angústia que é evidente nos olhares dos abrigados, que demonstram a expectativa de receber a visita de um parente distante, de um filho, de um neto, de um amigo... A decepção diante da não vinda dos esperados expressa-se em choros, alteração de pressão, insônia, e outros sintomas que vêm como resposta do (não) vivido domingo de visitas. Durante as observações, não houve um domingo que foram mais que quatro pessoas para visitá-los, o que é muito pouco para um local que abriga 40 internos. A instituição deveria desenvolver medidas de ajuda e suporte para os abrigados no caso de ausência da família. A cooperação e a aproximação das famílias devem ser estimuladas. Os familiares devem ser entendidos como parceiros de cuidado e, quando ausentes, cabe à instituição o dever ético de encontrar medidas que permitam sua reaproximação e responsabilização da família para com o seu idoso. Mesmo que as principais causas do asilamento sejam consequência do novo tipo de sociedade vigente no mundo contemporâneo, não podemos aceitar essa transformação sem questionamento. Algumas instituições não devem ser subestimadas ou aniquiladas, desmanchadas no ar, tal como diria Marx, mas, pelo contrário, dêem ser preservadas e retomadas por ainda manterem o mínimo de humanização numa sociedade que já quase 90 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. aniquilou tudo aquilo que lembraria uma vida mais sólida, coletiva ou comunitária. Portanto, a valorização da velhice junto à família deve ser resgatada. Dessa forma, vemos que, ainda que os tempos fossem mudando, a condição da velhice (institucionalizada) permanece na condição mais desumana, paupérrima quanto a sentimentos nobres voltados a ela, os quais devem ser discernidos daquele sentimento de piedade a um indivíduo e que o coloca em condição de ser digno de pesar. Não é de sentimentos dessa ordem que há escassez, mas da premência de um olhar crítico para as políticas públicas de atendimento ao idoso, que, no conjunto das mais diversas leis e trâmites burocráticos, sobrepujam-se em quantidade, mas deixam a desejar quanto à transformação social e histórica esperada por um atendimento mais digno e humanizado à pessoa idosa em nosso país. Conclusões Podemos concluir que, na instituição asilar na qual foi realizada a pesquisa, o cuidado aos internos vem sendo realizado burocraticamente, indo desde a rigidez com que os horários de alimentação e sono são empregados até os medicamentos ministrados conforme prescrição médica. A principal preocupação da instituição está especificamente em prover os idosos de certos cuidados em relação à saúde, sendo as consultas de profissionais como médicos e dentistas bastante esperadas por todos. Verifica-se, nessa instituição, que, embora a parte de cuidado da saúde física seja bastante valorizada, o mesmo não ocorre com a parte de suporte emocional, que é de extrema importância ao idoso. Este, infelizmente, encontra-se na real condição de asilamento, não lhe sendo dado o devido valor como ser desejoso de afeto. Os idosos tendem a aceitar tal condição de vida, pois muito poucos ainda tenham condições de reclamar ou refletir sobre a precária sobrevida que lhes é oferecida. As instituições asilares, via de regra, adotam a mesma estrutura dos problemas que têm que enfrentar, manifestando em sua organização o mesmo caráter alienador em que são mantidos seus pacientes: estes são tratados como objetos, quando sua identidade se perde totalmente; empobrecem-se os contatos sociais, reforçando-se a alienação por parte de cuidadores e internos. Bem-me-quer, mal-me-quer: uma análise dos cuidados dispensados ao idoso asilar 91 Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Podemos dizer que o idoso, ao ser internado no asilo, tornar-se-á ainda mais desamparado, ao se afastar do grupo familiar/social ao qual pertence, e, não tendo o asilo uma estrutura suficiente para ajudá-lo a enfrentar suas dificuldades; acaba por reforçar-lhe o sintoma de desamparo, trazendo-lhe momentos de vida angustiantes. Esse mesmo desamparo e alienação podem ser percebidos no grupo de funcionários, ideia reforçada pelo pouco envolvimento destes no contato com os internos. Assim, os cuidadores se utilizam da frieza e da mecanização de seus atos para conseguirem exercer seu trabalho, talvez por não suportarem a degenerescência da estrutura asilar tal como esta se apresenta e de seus internos. Dessa forma, entendemos que são necessárias a intensificação e a reflexão em cima de programas que trabalhem, e não apenas divulguem, o Guia Prático do Cuidador, especialmente nas cidades do interior dos estados do Brasil. Ou ainda que sejam trabalhados e cobrados dos cuidadores esses aspectos que ainda faltam para um cuidado mais humano ao idoso asilar, pois, se bem que alguns cuidadores não tenham nenhum curso superior e sejam voluntários, são de extrema importância seus conhecimentos básicos para a saúde física e emocional do idoso. Este artigo vem a ser uma reflexão pregressa na tentativa de subsidiar projetos que trabalhem o Guia Prático do Cuidador, como uma ferramenta que sobressaia de seus aspectos meramente mecânicos, geralmente quando orientam para a melhoria das condições físicas dos idosos, e enverede-se na melhoria das relações humanas que acontecem dentro das instituições, como a aqui estudada, com a meta de respeitar e promover a dignidade dos idosos. Apesar da melhoria do cuidado aos idosos, como pudemos verificar no referencial teórico estudado e em nossas observações empíricas, acreditamos ser necessária a criação de políticas públicas que incentivem programas de caráter formador e informativo aos cuidadores de idosos, em especial àqueles voltados aos idosos institucionalizados. Referências Bee, H. (1997). O Ciclo Vital. Porto Alegre: Artes Médicas. Born, T. (2006). Seminário Velhice Fragilizada – A formação de cuidadores: acompanhamento e avaliação. São Paulo: SESC-SP. 92 Marina Coimbra Casadei; Antonio Carlos Barbosa da Silva & José Sterza Justo Revista Kairós Gerontologia, 14(6). ISSN 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil, dezembro 2011: 73-93. Berquó, E. (1996). Algumas considerações demográficas sobre o envelhecimento da população do Brasil. In: Anais do I Seminário Internacional “Envelhecimento Populacional: Uma Agenda Para o Final do Século”. Ministério da Previdência e Assistência Social. Brasília: MPAS. Carvalho, R.R. (2011). Política nacional de saúde da pessoa idosa: Competência dos cuidadores de pessoas dependentes. Monografia – Curso de Especialização em Legislativo e Políticas Públicas. Brasília (DF). Colière, M. (1993). Promover a Vida. Lisboa: Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. Cortelletti, I.A.; Casara, M.B. & Herédia, V.B.M. (2004). Idoso Asilar: um estudo gerontológico. Caxias do Sul: EDUCS/EDIPUCRS. Decreto-Lei n.º 1.948 de 3 de julho de 1996. (1996). Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Dias, I.G. 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