Guilherme Blanco dos Anjos Casa casinha: A bagunça no fazer do íntimo e a arte como reorganização dos afetos SÃO PAULO 2021 UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO MESQUITA FILHO” Casa casinha: A bagunça no fazer do íntimo e a arte como reorganização dos afetos Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como roteiro de Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Artes Visuais. Orientação: Rosangella Leote. SÃO PAULO 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. A599c Anjos, Guilherme Blanco dos, 1997- Casa casinha : a bagunça no fazer do íntimo e a arte como reorganização dos afetos / Guilherme Blanco dos Anjos. - São Paulo, 2022. 87 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosangella da Silva Leote Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte. 2. Narrativas pessoais. 3. Paisagens literárias. I. Leote, Rosangella. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 704.9 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 GUILHERME BLANCO DOS ANJOS Casa casinha: A bagunça no fazer do íntimo e a arte como reorganização dos afetos Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no Instituto de Artes da Unesp como requisito básico para a conclusão de Curso de bacharelado em Artes Visuais. Dissertação aprovada em:__/__/__ Banca Examinadora ___________________________________________________________________ Profa.Dra. Rosangella Leote Dedico esse trabalho à minha família. AGRADECIMENTOS Em meio a um tempo difícil, de muitas perdas para mim e para tantas outras pessoas que me acompanham de perto, tenho o privilégio de finalizar um ciclo de estudos e de vida a qual sou muito grato. Desde já agradeço a todos os funcionários, a todos os mentores, professores e amigos que compartilharam e trocaram vivências e aprendizados comigo. Em destaque quero agradecer a minha orientadora Rosangela Leote pela abertura, paciência e dedicação comigo durante a tutoria da pesquisa. E, finalizando, a toda minha família, a qual o seguinte trabalho por si só já é um grande agradecimento, uma celebração de nossa história. RESUMO Através de um olhar atento à minha casa, a seus cômodos, objetos, rotinas, segredos e, principalmente, às suas bagunças tento compreender os afetos que arquitetam a minha família. Mediado por esse espaço íntimo sigo escrevendo e desenhando. Reorganizo assim as memórias de família pelo encontro da palavra e da imagem. A arte vem a mim como uma forma de compreender minha origem, tramando o sentido entre o dito e o não dito. Palavras-chave: Intimidade, memória, desenho, bagunça, lugar. Abstract Through a careful look at my house, its rooms, objects, routines, secrets, and especially its messiness, I try to understand the affections that build my family. Mediated by this intimate space, I continue writing and drawing. I thus reorganize my family memories through the encounter of words and images. Art comes to me as a way to understand my origin, plotting the meaning between the said and the unsaid. Keywords: Intimacy, memory, drawing, mess, place. Sumário Nota…………………………………………………………………………… p.12 Introdução ……………………………………………………………………. p.13 Família, um por um………………………………………………………….. p.14 Escritura, aranha e espírito…..…………………………………………….. p.33 Pixibás 19 à Manifesto 1583 ……………………………………………… p.38 Andanças da nascente……………………………………………………... p.40 Voltei tudo e nada mudou………………………………………………….. p.42 Sobre o que tem seu espaço………………. …………………………..…. p.44 Contando o tempo de grão em grão…………………………………….... p.55 Ba-gun-ça……………………………..……………………………….…….. p.67 Entre pés e mãos: Indícios de um corpo em transe………...………..…. p.69 Cada um com sua bagunça e a bagunça de todo mundo..………….…. p.72 Casa bússola, questões curvas num mundo reto………………………... p.76 Ficha catalográfica…………………………………………………………… p.86 Referências bibliográficas……….………………………………………….. p.89 Nota É necessário destacar algo, o seguinte trabalho não se estrutura de forma convencional, exige uma postura diferente de seu leitor. Diferente das convenções do que vem a ser um trabalho acadêmico de artes visuais, os textos que se encontram aqui se fazem como parte da obra. Objetivamente, são relatos de histórias de minha família narrados por um locutor que se anuncia, eu. Nesse sentido a escrita se encontra como espaço de construção de imagens, das estesias, de toda a trama visual, sendo assim boa parte do trabalho escrito é obra e não análise, contextualização, crítica ou visualização, explicação de uma obra. O texto é por ele mesmo, existe sem mediadores, fala por si próprio, o contrário de um texto que parte de algo já feito, que discute e busca se construir a partir desse algo. Somente ao final do trabalho, nos últimos três capítulos, que há uma mudança no ritmo da escrita, pois é a partir de então que são elaboradas análises sobre o trabalho como um todo. Sobre seu processo criativo, quando falo da importância da bagunça na construção da rotina da casa, e como essa movimentação da bagunça e seu fazer se assemelham ao processo de semiose estudado por Peirce. E sobre seu papel político uma vez que o trabalho é uma produção de conhecimento sobre intimidade, sobre a memória, sobre como a casa seria então um lugar antropológico (AUGÉ, 1992), que se contrapõe a uma cidade global, de tempo acelerado, em que o corpo se encontra alienado, e que o tempo e o espaço servem somente como meio para o lucro, para o consumo, um não lugar. 11 Introdução Esse trabalho que tem em mãos é fruto de uma experiência afetiva a qual me encontro imerso antes mesmo de saber escrever. Acredito que essa sensibilidade, cultivada no fazer da vida, em suas continuidades e intermitências, deva prevalecer mediante as palavras aqui digitadas. Escrever sobre intimidade exige um pouco de falta de vergonha na cara, ainda mais quando se trata de expor particularidades não só minhas mas também de outros. Não pedi autorização de minha família para escrever sobre nossa vida privada, não deram um aval sobre o texto, somente pedi que compartilhassem histórias sobre a vida em casa e fui escrevendo e desenhando. Por isso mesmo que se trata de algo bem particular, é um trabalho sobre uma intimidade mediada por outra, a minha sobre a de minha família, algo extremamente corpóreo, limitado há uma percepção. Não sei como este trabalho será recebido por minha família, se bem ou mal, quem sabe? De qualquer forma, espero que minhas palavras tragam prazer, afinal se trata de uma celebração da vida. Aqui me encontro como escritor que se coloca como sujeito de sua escrita, que se assume particular, que aproveita esse espaço para entender seu sentido, e não para impor o sentido à algo. Roland Barthes em “O prazer do texto” alerta que todo autor se aproveita da estrutura facista da escrita, uma vez que quem lê somente pode ouvir e quem escreve está alí para falar, não havendo assim diálogo é um espaço facilmente alienante, no sentido de que o autor pode impor mais facilmente as ideias ao seu leitor. A partir dessa problematização Barthes discorre sobre a legitimidade de uma escrita mais íntima, permeada de tessituras, em que o autor se ponha em jogo¹, em que o prazer permeie o fazer da escrita, em que o autor compreenda as ________________________________________________________________________________¹ “Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim, escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que eu o procure (que eu o “drague”), sem saber onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo.” (BARTHES, R. “O prazer do texto”, São Paulo, Editora Perspectiva Coleção Elos, 1987. p.9.) 12 limitações da palavra, e se coloque dentro da obra, se percebendo neste meio limitado, fazendo assim com que haja mais transparência nessa relação autor leitor, potencializando a sua vocalidade. Trasímaco², o bruto, astuto, também nos traz uma lição sobre o poder de narrar no momento em que mostra como Sócrates tem a razão não por sua sabedoria mas sim porque conduzia o debate, sempre era ele quem fazia as perguntas, moldando a palavra falada à imperatividade do diálogo escrito. É só a partir dessa compreensão sobre o espaço da escrita que terei responsabilidade sobre o que escrevo. Por aqui me inscrevo ao escrever. Não busco impor palavras visando uma análise dura sobre o mundo, mas sim componho palavras atravessadas por este. Acredito que esse trabalho seja relevante no sentido de dar relevância, de enfatizar, de ser afirmação, de deixar-se levar pela parcialidade do afeto em sua construção, afinal ele é feito por uma mente e um corpo, por mim. De certa forma aqui jaz um relato, certas vezes direcionado à uma pessoa como uma carta, outras vezes direcionado a um público geral, como um discurso aberto. Por aqui reconstruo minha casa e suas bagunças manufaturando lembranças minhas e de meus familiares. Como arte, este trabalho, os textos que se encontram aqui, se fazem como poesia. Caso estes me sirvam minimamente como um espaço de organização/desorganização do pensamento, isto é, de fecundação e complexificação deste, já me darei por satisfeito. ___________________________________________________________________ ² “Polemarco e eu ficamos apavorados; porém Trasímaco, elevando a voz no meio do auditório, gritou: — Que tagarelice é essa, Sócrates, e por que agis como tolos, inclinando-vos alternadamente um diante do outro? Se queres mesmo saber o que é justo, não te limites a indagar e não teimes em refutar aquele que responde, mas, tendo reconhecido que é mais fácil indagar do que responder, responde tu mesmo e diz como defines a justiça. E abstém-te de pretender ensinar o que se deve fazer, o que é o útil, proveitoso, lucrativo ou vantajoso; exprime-te com clareza e precisão, pois eu não admitirei tais banalidades”. (PLATÃO, Livro I República, p.18) 13 Família, um por um Por aqui conversarei com minha mãe, meu pai e meus irmãos. Acredito que entre tantas coisas que escrevi ao longo dessas páginas nada me fez sentir tanto quanto essas cartas. Escrevê-las me fez refletir sobre como eu os observo, como os filtro em minha mente. Dentro de minha cabeça milhares de fotos dispersas esquadrinham um grande mosaico, desse retirei algumas fotos para enquadrar certas palavras de gratidão. Infelizmente não consegui dizer tudo que queria, acho que é uma tarefa impossível. Ainda viveremos muitas coisas das quais não encontrarei palavras ou fotos que consigam representar fielmente o que fazemos do mundo, sinto que ao lado deles tudo se torna casa. 1. Fotos antigas espalhadas na mesa (fotografia digital) link 14 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Papito Meu pai se encontra numa rotina de idas e vindas, quando não está cruzando são paulo toda entregando tapetes higiênicos para pets provavelmente está em casa consertando algum computador, vive um vai e volta marcado pelas pausas de cada cafézinho. O som das chaves do carro jogadas ao lado da tv anunciam suas chegadas, sempre aceleradas. Com braços duros e arqueados dá passos ansiosos até a cozinha, pega algo para comer enquanto troca áudios com alguns clientes e amigos, vai atrás de alguma peça de computador no salão, volta, vai à sala, liga a tv, coloca os óculos, abre o notebook, instala um programa, vai ao banheiro e volta pra rua. E mesmo assim várias coisas podem estar acontecendo, dentro dessa rotina apressada ele sempre dá um jeito de estar presente seja com uma piadinha boba, uma música no rádio ou um papo jogado. Acordado desde as cinco ou seis horas da manhã já vai à cozinha passar um café enquanto lava a louça da noite passada, tudo isso após sintonizar o rádio para ouvir as notícias do dia, trânsito na avenida, atraso na vacina, essas coisas de rádio. Gosta de política, fica atento a todo tipo de opinião, dos liberais aos mais à esquerda. Por isso que gosta de rádio, diz que consegue furar a bolha já que a maioria das emissoras é reacionária, palavras dele: “porque tem que saber o que o outro lado pensa para poder refutá-los”. De fato é verdade, mas santa paciência, que preguiça. Aproveito mais quando começa o quadro de Juca Kfouri comentando futebol, a entrada é ótima e a voz dele é bem boa, com um café com leite e pão com manteiga então, um ótimo começo de dia. Entre versos cantados de Paralamas do Sucesso, Ira, Barão Vermelho, Os Mutantes e outras bandas de sua juventude, ele vai fazendo as coisas que tem que fazer, e são muitas coisas. Sua agenda é um cruzamento de dezenas de lugares, sempre tem alguém chamando o seu João, no celular ou no portão. Acho que não tem um dia sequer que ele não quebre o galho de alguém, tem vezes que é tão bonzinho que fica bravo consigo mesmo. Essa simpatia, esses sorrisos, esse fazer pro outro, tem um sentido fora de casa, agora dentro é totalmente outro. Ao mostrar suas 15 feridas me sinto igualmente aberto, suas palavras me atravessam por mais que eu queria agarrá-las. Vejo você corroído por certas coisas que não convém falar por aqui. Espero que um dia eu possa ajudar você a se recuperar. Busco ser um lugar de carinho, um espaço de amor assim como você sempre foi para mim. 2. Foto de meu pai mais jovem preparando um café (fotografia digital) link 16 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Laranzul 3. Pequeno joãozinho guitarrista do Delfina Azevedo (fotografia digital) link João, dos irmãos, o quarto, somos em cinco, contando nos dedos do dedão ao mindinho ele é o anelar. Ele veio ao mundo para ler light novel, fazer piada, me irritar, tomar vitamina lotada de açúcar e comer pizza de queijo. Acabou de se formar em direito, embora jurasse que seguiria para as exatas já que tinha uma facilidade enorme com números. Mas nunca foi de estudar muito, o negócio é divino mesmo. Pega pesado de verdade é com os jogos de console, ali o negócio ferve, vai pro pessoal, seja no fervo gritando com seus parceiros de overwatch, duro a vida de healer né João, ou na busca implacável por itens específicos em Skyrim e outros jogos de RPG nunca sei se está se divertindo ou se está mais é se estressando. Desses mil e um jogos que jogamos juntos fica imortalizado Age of Mythology. Lembro de nós durante a gloriosa era da lan house do pai, eu pouco suado com a camisa toda suja de chocolate e provavelmente mastigando um dos vinte “Babaloos”¹ que guardava num dos meus bolsos, nota-se que o outro bolso estava ________________________________________________________________________ ¹ O nome correto do produto é Bubbaloo, escolhi deixar como “babaloo” pois era a forma, e continua sendo, como nos referimos a esse chiclete no dia a dia. Acredito que esse resquício da fala enriquece a narrativa sobre essa lembrança. 17 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ reservado para o chocolate, provavelmente um chokito, e você de cabelinho de tigela e com mullets vestido no seu traje de lei, laranzul, shorts laranja e camisa azul. Se tivesse exatamente aquelas roupas só que do seu tamanho atual, tenho certeza que estaria usando. Um dia comprarei um terno meio azul e meio laranja pra você usar no tribunal. Bem, João é facilmente encontrado em sua cama ou no computador entre quarto e saleta. 4. “Ajax laranzul” - (450 x 1050 pixels, pintura digital sobre printscreen) link 18 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Re, voada Renan, o caçula, dos dedos o mindinho. Quem diria que o dedinho seria o mais alto, como cresceu. De vez em quando eu ainda estranho seu rosto. Acho que essa é a sina de toda pessoa mais velha, de sempre lembrar os mais novos como se fossem eles ainda crianças. Mesmo que nossa diferença de idade seja somente de quatro anos, sempre pude te ver com olhos contemplativos, construímos nossas infâncias juntos, mas de certa forma essas também tinham momentos distanciados, paralelos, em que te via como uma lembrança de meus passos já dados. À medida que te observava ia cultivando um carinho pelo nosso entorno, pelo nosso lar, pois ver você trilhar à sua maneira a vida em casa, na escola, enfim, nesses espaços que constituíram nossa existência, me fizeram perceber com mais clareza nossas identidades. Seu rosto arredondadinho, bochechas vermelhas, sorriso banguela e cabelinho loirinho com o corte igual ao do João ficaram gravados no meu coração. Hoje mais velho, com cabelo na régua, rosto definido e “bigodin finin”¹, tudo e nada mudou. Continua jogando bola, bolero ex federado pelo corinthians, ninguém fazia gol no menino. Também destruidor de lares quando se trata de handebol, bagunçou com quem cruzasse seu caminho não importasse que camisa vestisse, defendendo o Sanfra, Fecap ou Claretiano não tinha pra ninguém. Em casa quando não tá jogando um CS provavelmente tá estalando um funk na cozinha. Chato é só quando coloca pra tocar às oito da manhã acordando todo mundo. Antigamente a playlist contava com dj marcinho, bonde do tigrão, e outros funkeiros cariocas do furacão 2000, daí passou um bom tempo ouvindo ConeCrewDiretoria, e hoje gosta de uns sons do tipo de Matuê, Mc Bin e Sidoka. A questão é que, irmão, do seu lado me sinto em revoada, com você alço vôos para lugares distantes, impensáveis, com a tranquilidade de que voltaremos mais leves pra casa, um rolê. _________________________________________________________________________ ¹”bigodin finin” é escrito dessa forma como referência aos versos de funks e traps populares de dois mil e vinte adiante. 19 5. Foto de renan ao lado de uma revista a qual aparecia como campeão da taça paulista sub-13 (fotografia digital) link _______________________________________________________________________ ¹ Quando descíamos o litoral para ir à praia gostávamos de brincar de fazer castelos de areia. A ideia era mantê-lo intacto o máximo possível, nisso edificávamos várias barricadas, verdadeiras muralhas que tinham de ser reconstruídas a cada solavanco do mar. 20 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Má, ndibula 6. Marcelo sentado em frente a laje da antiga casa em São Mateus (fotografia digital) link Marcelo, o mais velho, o polegar. O que falar sobre ele? Bem, de tudo que disse sobre Renan agora me encontro na situação contrária. Ele abriu caminho a todos. Como é ser irmão mais velho quando se tem quatro irmãos? Que poder. Ainda bem que não se trata de um ditador. Gostaria de ter perguntado isso a ele enquanto estava aqui à visita. Há três anos se mudou para o exterior. Foi fazer um mestrado em Lyon na França e acabou ficando por lá. Que bom, porque lá é bem mais tranquilo de ser viver do que aqui, porém que ruim, porque dá saudades demais. _______________________________________________________________________ ¹ Quando descíamos o litoral para ir à praia gostávamos de brincar de fazer castelos de areia. A ideia era mantê-lo intacto o máximo possível, nisso edificávamos várias barricadas, verdadeiras muralhas que tinham de ser reconstruídas a cada solavanco do mar. 21 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Das memórias que ficam sobre ele tenho uma muito marcante, eu devia ter sei lá uns seis anos, lembro que era na época do prézinho. Estávamos no carro, um tempra cinza se eu não me engano, indo para a escola. No banco de trás era um fuzuê danado, a gente ficava lá literalmente se matando até descer, rotina que chama. Bem, só sei que um dia desses eu dei um socão na boca do marcelo e ao invés de revidar ele colocou a mão no queixo, me olhou com cara de desespero e com a boca semi aberta e, fazendo um bico, começou a repetir a seguinte frase gaguejando:“vo..cê…quebrou…minha.mandibula…você…quebrouminhamandibula”. Eu fiquei com um remorso horrível, mas tão horrível que aquilo ficou gravado na minha memória de um jeito que poderia considerar essa a lembrança mais nítida que tenho de toda minha infância. Lembro exatamente de eu saindo do carro, colocando os pés na calçada olhando pro seu rosto super arrependido querendo te socorrer mas ao mesmo tempo não querendo chamar atenção para não ser repreendido pelos pais. Nisso fiquei o dia inteiro amargurando aquele sentimento, um misto de ansiedade, medo e arrependimento, uma dor de barriga, parecia que meu intestino estava dando um nó. Nossa como doeu, me senti péssimo. Acho que foi a primeira vez na minha vida que senti uma pitada de angústia. E como isso se arrastou, porque não sei o que tinha acontecido, mas quando deu cinco da tarde e tocou o sinal, na saída da escola você não estava lá. Nisso eu achei que você tivesse ido para o hospital ou coisa assim, era coisa séria né mandíbula, coisa estranha nem sabia o que era na época, tinha seis anos. Quando te vi em casa rindo e brincando eu experimentei outro sentimento pela primeira vez naquele dia, o alívio e a raiva juntos. Era muito ambíguo porque por um segundo eu fiquei aliviado por você estar bem e no outro eu estava transtornado, emputecido por conta da mentira. Aquilo foi uma tremenda lição, doída, mas foi. Acho que foi a maior pegadinha que cai na minha vida inteira. Um golpe de mestre. Bem, se deixasse por contar só essa história estaria pintando um Marcelo muito cruel. O que não é verdade. É gentil, paciente, justo, mais do que um ator de mandíbulas quebradas. A questão é que tudo que a vida tira a gente busca repor com algo, como tentar manter um paredão de areia frente à maré que avança¹ _______________________________________________________________________ ¹ Quando descíamos o litoral para ir à praia gostávamos de brincar de fazer castelos de areia. A ideia era mantê-lo intacto o máximo possível, nisso edificávamos várias barricadas, verdadeiras muralhas que tinham de ser reconstruídas a cada solavanco do mar. 22 Nunca pensei que um dia você iria, pra mim era certo o conforto de sua companhia. Você não é o paredão, é o castelo. Uma vez desmanchado, a brincadeira acaba, é insubstituível. Diante dessas idas e vindas, dessa situação de transe, você se tornou um castelo voador. Quando vem até aqui a casa deixa de ser casa, somos transportados para um espaço sem medidas. O ar que respiro, que respiramos, acho que falo por toda família, com você ao lado é mais generoso, a maré adentra a praia em batidas suaves. 7. “Castelo voador” (3480 x 3152 pixels, pintura digital, paint) link 23 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Sobre as tardes com Dani Daniel, meu irmão gêmeo, dos dedos o indicador, o mais firme. De tudo o que a gente viveu junto, o que segurar com mais força? Você estava lá e você está aqui, passamos pelas coisas da vida em tempos mais próximos. Trata-se de uma ligação esboçada antes mesmo de sermos apresentados, antes mesmo de sermos nomeados. De mãos dadas passamos pelos lugares que nos inventaram, entre as grades de dois berços de madeira, entre as portas da escola AB, BC, CA¹, entre as linhas vermelhas e amarelas de uma quadra azul², entre tudo que veio depois, criamos sentido, inventamos nossa amizade. Levo comigo as tardes preguiçosas de segunda após as aulas. Era tão libertador sair do colégio, comprar tranqueiras no super mercado Dia pra ficar morgando no sofá por umas três horas na frente da Tv vendo “Todo mundo Odeia o Cris” ou “Eu a Patroa e as Crianças”, até o programa do Brito Junior era gostoso de assistir com seus comentários sobre as “sub sub celebridades”³ da Tv Record. Tomando uma bela Coca Cola Dia de dois litros, gelada, dois saquinhos de Fandangos e um pacote de bala Sete Belo eu descansava, só a partir dali que eu realmente me saia do colégio. Depois de uma boa dormida, ou simplesmente depois da gente conseguir fazer a digestão, que por si só já levava um bom tempo, a gente descia pro quintal pra jogar bola. Quando não estávamos só batendo uma bolinha de leve como um reloginho, disputa de arremessos de três na cesta de basquete, ou cobranças de pênaltis da parede da saleta, tínhamos dois jogos mais pegados: Baskogro, uma mistura de basquete com ogro, a base dessa modalidade esportiva é a porrada, o objetivo secundário eu diria que é fazer sextas, não tem contagem de pontos, não têm limite da quadra podendo inclusive fazer sextas por trás da tabela, não tem falta, tem um momento que nem mesmo bater a bola é necessário, tudo flui e tem seus acordos _________________________________________________________________________ ¹ “AB BC CA” é uma referência às mudanças de turmas, de salas de aula, que fizemos ao longo de nossa formação escolar, do prézinho ao ensino médio. ² São as cores das quadras de handebol e basquete de nossa escola de infância.³ ³ “Sub sub celebridades” é um neologismo usado pelo meu irmão para se referir aos famosos que de famoso não tem nada, personalidades da Record icônicos mas ao mesmo tempo pouco reconhecidos, como “mulheres fruta”, ex namorados de atletas, etc. 24 sem troca de palavras sendo o vencedor decidido moralmente quando a partida acaba, que é basicamente no momento em que os dois participantes não aguentam mais mover os braços direito de tanto cansaço. Cotoveladas, empurrões, tapas, tropeções, arranhadas, tudo vale, só dá pra jogar esse jogo com um irmão gêmeo. Já no Vôlei de Quintal a história é completamente outra, não tem contato. Funciona assim, é um vôlei em que a rede é substituída pelo varal, não pode ser um varal alto, tem que ser no máximo na altura do pescoço, a ideia é simular um mundo em que temos a altura de um jogador profissional. A partida vai até vinte e um pontos, em um melhor de cinco sets, quem fizer três primeiro ganha, que nem no profissional, mas só é permitido dois toques não importando se é um contra um, dois contra dois, ou três contra três. Boa parte da diferença vem da quadra, que é pequena e improvisada. Se a bola bater na parede é marcado fora e ponto para o time adversário, isso acontece bastante já que o varal é preso na parede, então basicamente ele serve de linha de quadra também, mas se bater no telhado e voltar tá valendo. É um jogo específico, projetado para funcionar em um único estádio, que é nossa casa. Esse jogo assim como o baskogro era jogado com a alma era uma batalha que valia a honra, nesse não só eu e Daniel jogávamos, era totalmente consolidado entre os irmãos. Quantas bolas não jogamos para o vizinho tentando recepcionar um corte? O negócio era disputado, jogadinhas ensaiadas com inversão de bola com toque para trás como a “China” de Renan e Daniel, tática inspirada no time olímpico feminino chinês de dois mil e alguma coisa, ou chamadas para um bloqueio conjunto como os feitos pela seleção brasileira, além de largadinhas e cortes colocados faziam parte de nosso repertório. Mas nada disso não impedia do jogo ser simplesmente ridículo, vários marmanjos pulando dois centímetros do chão para dar um bloqueio, nem era necessário pular na realidade. Daniel que o diga ele mais juntava os pés pro alto do que pulava, parecia uma perereca, amava aquilo, fazia careta enquanto estava no ar. Ainda dava tempo de gritar "Sheilla!", “Jaaaaqueline!”, “FÊ GARAY!", a gente é ridículo, amo. 25 Foi nesse entusiasmo que crescemos e é a partir dessas memórias que consigo construir um passado mais generoso. Sem essas pausas no tempo dificilmente seria assim hoje. Tem vezes que esqueço o quão sortudo eu sou de construir uma vida ao seu lado Dani. 26 8. “Jaquelineee” (1.364 x 1.428 pixels - paint) link 27 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ 9. “Entre manos” (806x756 pixels - paint) link 28 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Mããããããnheeeeeee OOOOOOOO mããããããnheeeeeeeeeeee, imagino quantas vezes você tenha ouvido esse chamado. Entre berros e mais berros não se fez de surda, ouviu, escutou, conversou, mediou o mundo a nós e dele nos fez desejosos. O tempo passou e pertencendo ao mundo me fiz diferente do que um dia sonhei. Nesses desenganos você sempre esteve lá para me fazer querer de novo. Quantos berros terei que dar agora para expressar minha gratidão? Por aqui narro o meu primeiro eu te amo: Lembro de uma homenagem de dia das mães do colégio, eu tinha nove ou dez anos, era a última aula do dia e estavam todas as mães esperando eu e meus colegas de classe para um número musical que ensaiamos o mês inteiro. Cantamos “Como é grande o meu amor por você” de Roberto Carlos: “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer, como é grande, o meu amor, por você”. Me recordo de cantar bem a música e bastante emocionado, todos estavam de branco, segurando uma rosa, foi lindo, muito fofo. Alguns dias depois estávamos na casa de vó Olívia e você pediu para eu cantar a música de novo. Eu tentei mas não sabia mais a letra, sai rindo. Diferente de você, nunca consegui decorar as letras das músicas, o que decorei, o que ficou guardado na minha mente foi seu rosto quando te dei aquela flor. 29 10. Minha mãe brincando comigo (fotografia digital) link 30 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Desenhando me encontrei 11. Eu com dez anos sorrindo após ganhar uma tatuagem de homem aranha (fotografia digital) link Sempre gostei de desenhar árvores, foi com elas que aprendi a compreender o meu entorno, foram minhas professoras de desenho de observação. Os veios de seus troncos e galhos contornaram minhas mãos. Linhas curvas e ao mesmo tempo concisas tramaram o meu olhar sobre o mundo. Foi em meio às árvores do parque da independência reclinado sobre caderno de escola traçando as silhuetas dos cedros-rosas, as folhas das palmeiras, as copas das embaúbas e os galhos sinuosos dos jatobás que minha relação com o desenho se voltou para as minhas vivências. Dentre todas as árvores a que mais desenhei foi a amoreira de casa, passava horas e mais horas a desenhando. Ela me fisgou antes mesmo pela boca do que pelos olhos, adorava comer amoras. Para infelicidade do vizinho sua árvore se 31 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ inclinava para a laje de minha casa, era muito fácil colher seus frutos. Aos quatorze anos aprendi a fazer tortas de amora, até hoje é minha receita favorita. Quando fui desenhá-la pela primeira vez já cultivava uma relação com ela. Hoje ao desenhar uma folha inconscientemente faço uma folha de amoreira. Recentemente a amoreira morreu, foi deteriorada por cupins, ficou oca por dentro, teve que ser cortada, deixou um vazio. Vejo essa perda como um último ensinamento, o de como o espaço significa algo, como ele configura uma parte de nós mesmos. A partir dali comecei a desenhar a casa, vejo folhas de amoreira em tudo. 12. “Amoreira” (fotografia digital) 32 Escritura, aranha e espírito Um telhado triangular, o portão quadrado com uma portinha no canto direito, uma casa feita a partir de um desenho de criança. Linda. Mas azul e bege, que coisa desconfortável, custava pintar o portão de branco? Bem o tempo passou, o desconforto foi embora, nem dá mais pra saber se o bege é da sujeira ou da tinta, talvez meu pai tenha antecipado esse tom meio gasto já na intenção de camuflar a sujeira. Nem sempre essas cores foram o rosto da 1583 da rua do manifesto, aliás a casa nem sempre foi nossa, tenho uma vaga lembrança do primeiro dia que ficamos nela. Há dezessete anos atrás saímos do parque São Lucas para morar no Ipiranga, uma senhorinha bem idosa nos esperava em frente a um portão bem rasteiro, me recordo de toda a cena por baixo, como se estivesse sendo filmada de baixo pra cima, uma memória bem forte, quase monumental. Num aperto de mãos carregado de sentido e com um sorriso sorrido com olhos dentes e orelhas tudo fora firmado. Era um receber com um deixar. Ela viveu a vida inteira ali. Seus pais a criaram entre aquelas paredes. Mesmo criança sabia que ela estava fazendo algo grandioso, estava encerrando um ciclo que começou antes mesmo de sua existência. Aquele espaço se tornou nosso e aos poucos o transformamos em nosso lugar, pois já tinha alma, entramos desconhecendo suas histórias, viemos para agregar outras. 33 13. “Aperto de mãos pesadas” (1366 x 1060 pixels, pintura digital, paint) link Como suas últimas visitas ela nos abriu o portão com grande respeito, a partir daí não me lembro dos acontecimentos em sua totalidade, se ela nos mostrou primeiro a cozinha, a sala ou o banheiro, não me recordo de nada da parte interna da casa, o que ficou gravado na minha mente foi o salão. Ele ficava bem ao fundo de casa após o quintal. Era um barraco de madeira atrás das árvores, escuro de tudo, só que na época era mais fundo, difícil de explicar, parecia também mais abandonado que hoje. Cheirava a serragem, provavelmente porque para entrar nele você era obrigado a descer uma escadaria de madeira bem antiga, sem corrimão, super perigosa aliás, rangia a cada degrau. Estava morrendo de medo de descer, mas 34 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ meti a cara lá só pra ver do que se tratava. Era de dia, mas mesmo assim não entrava luz. Ligaram uma lanterna e ao fazerem isso tomei um susto daqueles. Tinha uma aranha no teto do tamanho sei lá, de um cachorro, numa teia que atravessava de cabo a rabo todo aquele espaço. Não sei como meus pais deram conta daquele monte de bixo, teia, sujeira e entulho, parecia trabalho pra nunca acabar. Lembro deles comentando “Aqui vai precisar de reforma”, e por um bom tempo o salão de fato esteve em reforma. Inclusive teve um tempo que chegaram a sonhar, mais que isso, a prometer que lá se tornaria a casa principal, com uns dois ou três andares e que após a reforma a casa antiga, a da frente, seria demolida. Mas sabe como é casa de pobre: sempre tá em reforma. Continuou sendo um galpão, só trocaram a escada por uma rampa, as aranhas por outras e a bagunça deles pelas nossas. 35 14. “Aranhona”( 2160 x 1540 pixels, pintura digital, paint) link Há quem diga que Dona Nadima, a senhora que nos recebeu, esteja ainda ligada à casa. Minha mãe numa tarde qualquer estava tirando as roupas do varal quando de repente ao recolher um lençol foi surpreendida. Era ela. O fantasma de Nadima atrás do varal. Não sei se veio só visitar, bater um papo quem sabe, mas não foi bem recebida por minha mãe que gritou expulsando o espírito. Falou algo do tipo: “Aqui agora é meu, tá tudo pago”. Só eu acredito nessa história, então vou fazer ela ecoar mais forte por aqui. Mãe sempre cuidou dos assuntos espirituais da família, fez questão de levar na benzedeira cada filho assim que nascia. Uma benzedeira lá do Jardim Iva tomava conta de nós. Passava farinha numa mesa, pra marcar os pés dos bebês, e com a ponta de sua faca ia riscando a pegada tirando todo o olho gordo, o quebranto, o bucho virado, o nervo estropiado e o mal olhado que poderia nos atormentar. Haja farinha pro tanto de pé que minha mãe trouxe. Ela herdou essa crença de sua avó e bisavó, ambas benzedeiras. A bisavó dela, dona Francisca, mais conhecida na família como vó xica é muito querida pela família, dizem que herdei a testa dela, como falam: ”é dobradinha”. A questão é que ela é a benzedeira mais antiga da família, pelo menos do que se tem registro, mas a mais famosa mesmo seria a avó de minha mãe, minha bisavó, Dona Maria Aparecida de Jesus, ela vivia disso, era seu ganha pão, várias famílias vinham até sua casa pedir proteção, benzia através da costura. Minha mãe recorda de como eram as paredes da casa de minha bisa “cheias de tiras de panos costuradas em rezas, velas por todo o lado, e ela num canto cozendo e rezando”. Também gostava de costurar colchas de retalhos, algumas mantinhas estão guardadas aqui em casa inclusive, lindas, ela tinha uma sensibilidade um olhar para as cores que nem mesmo eu que sou inclinado para as artes herdei. Minha mãe estranha minha avó não ter continuado a tradição de benzer. Ela costura como a bisa mas fazendo roupas, trabalhou com isso a vida inteira, fazia vestidos de casamento. De certa forma, assim como apontou minha mãe, é na cozinha que minha vó benze. Seus salgados, seu bolinho de queijo, sua trança salgada e pãozinho caseiro são uma perfeição, coisa inexplicável, não tem 36 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ como não se sentir abençoado. Nunca a vi errar, troca os copos medidores pela intuição, enche as mãos de farinha e joga na cumbuca, vê se a massa tá no ponto. Sabe tudo de cabeça, mais que isso de coração. Entre velas, mandalas, incensos, cantos, e rezas, minha mãe segue suas ancestrais. Minha casa só se manteve de pé por conta de uma mulher. Sempre nos cuidou pra além do visível. Bença mãe. 15. Manta costurada por minha bisavó (fotografia digital) link 37 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Pixibás 19 à Manifesto 1583 16. “Fifi da casinha” (3460 x1652 pixel, pintura digital, paint) link Cidade de São Paulo. Zona norte. Vila Gustavo. Perto do metrô Tucuruvi. 40m². Vista para a serra da cantareira. Numa encruzilhada. Em cima de um bar, o boteco do magu. Cinco cômodos, quarto, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. Duas pessoas, eu e Julia, minha parceira. Ficamos por lá um ano e meio: meio ano antes da pandemia, no segundo semestre de 2019, e um ano durante ela, em 2020. Descíamos a avenida guapira aos sábados para fazer compras no mercado, durava cerca de vinte minutos para chegar ao famigerado Motinha. Havia um outro mercado mais próximo, o superlotado e caótico Comercial Esperança, mas não 38 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ aceitava o vale refeição. Aproveitando o caminho, gostávamos de ver as casas e dar pitacos de como estas seriam por dentro. Vira volta, tiravamos fotos destas, gostávamos das que tinham um hall de entrada envidraçado. Júlia sonha com esse cantinho, onde poderia cuidar de suas plantas ao mesmo tempo que observa a rua acariciando suas gatas e aproveitando o sol, tenho a impressão que somos dois idosos em corpos de jovens. Durante o isolamento andar pelo bairro era nossa única recreação fora de casa. Passado um ano, chegado 2021, desempregado, minhas reservas acabaram e tive de me mudar. Da casinha saí. Voltei para casa de meus pais. Entre uma e outra foram acrescidos uns 130m² e uma vista para dois grandes prédios, digo, uma vista para ser avistado. Dos imbricamentos da encruzilhada a qual estava, agora me vejo num caminho reto, uma descida, um grande declive, linear, retilíneo, a rua de minha infância. Se a vida fosse uma escalada seria como se tivesse escorregado devido uma forte tempestade e ao mesmo tempo não ter me estatelado graças a uma corda de segurança. Nova velha casa, dos cinco cômodos aos quais estava habituado, lá na zona norte, voltei a acrescentar no mínimo outros cinco, aqui na zona sul. Uma casa térrea, antiga, de operários, dos tempos das grandes fábricas de tecido no Ipiranga, casa a qual morei dos meus seis aos vinte e dois anos. Voltei. 39 Andanças da nascente 17. “Dois rios, travessia” (2160 x 1114 pixels, pintura digital, paint) link Ao me deparar com a casa de meus pais novamente, após meses, a minha primeira impressão foi, estranhamente, de achar tudo pequeno, por mais que a casa onde estivesse até então fosse muito menor. A sensação de voltar para onde fui criado é como bem retrata a expressão popular: voltar para o casulo dos pais, não sei se é de repertório geral, mas sempre me foi recorrente essa fala. Não tem como não se sentir lesado, nem que seja um pouquinho. Muitas liberdades são de fato recolhidas. Mas não tem jeito, você deve se adaptar a esse espaço que um dia foi nativo. Entretanto, não vejo o porquê desse retorno não ser coberto de ensinamento trocas e potências. Nesse sentido existe outra frase de efeito, Heráclito de Éfeso, filósofo pré socrático precursor do mobilismo articulou a máxima que é utilizada até hoje: “Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas” (HERÁCLITO, 1999). Na realidade, normalmente nos deparamos com esse pensamento veiculado dessa forma: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes 40 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!” Gosto mais da versão original porque esta segue: “Mas também almas são exaladas do úmido” (HERÁCLITO, 1999). Prefiro tal versão pois esta enfatiza que a transformação do homem, é engatada pelo contato com o meio, o rio. A alma se renova quando imersa em uma nova conjuntura, é exalado um diferente modo de ser após tal passagem. É a partir desse ensinamento que durante minha volta à casa busco exercer um olhar atento a mim e a ela, com a expectativa de tatear tal diálogo, somente com essa postura percebo aos poucos as ativações de minhas potências, do meu ser se revigorando nas andanças de um novo rio, que por acaso é minha nascente. No intuito de me deixar levar pelas correntezas desse rio que não me banhava há tempos me faço curioso aos menores detalhes. Os objetos da casa que até então a crua utilidade se sobrepunha aos seus demais atributos, se apresentam agora filtrados por olhos cheios de saudade. Assim, da conveniência passei a reparar nas coisas pelo espectro dos afetos. Diante de mim objetos como uma caixa de som, algumas canecas, certas toalhas, mantinhas guardadas no armário, até a velha fruteira de plástico da cozinha, deixaram por um momento de ser matéria. Seus pesos se esvaíram tornando-se livres abstrações, imagens muito presentes de um cotidiano passado, tempo imantado de vida, conversas, brincadeiras, risadas, histórias, conflitos, lições, comemorações e futuros, diversas facetas da existência que revigoram meu ser nessa volta. 41 Voltei tudo e nada mudou Não só de felicidades fui arrematado, algumas surpresas desagradáveis me aguardavam em casa. Fiquei incomodado com certas coisas que haviam mudado, meu antigo armário de madeira, lar dos meus amontoados de roupas, não estava mais na saleta. Sem uma porta e cheio de adesivos aleatórios, daqueles que vem nas primeiras páginas de cadernos de escola, foi parar no salão ao lado de outros móveis esquecidos. Acho que não esperavam a minha volta. Minha cama também. Foi desmontada. Não tinha tanto apreço por ela em si mas sim pelo que representava ela não estar alí. Ao não vê-la tomei consciência de minha ausência, de como me distanciei de minha família durante minha saída. Com quatro irmãos e um só quarto as camas ocupavam um espaço além do normal, tinha mais colchão pra deitar que chão pra andar, elas definiam o formato do cômodo, eram como cubos em um jogo de tetris. O modo como eram dispostas dava pistas de como se construíam as relações entre nós. João e Renan, os caçulas viviam grudados, se davam tão bem que decidiram juntar as camas, ficavam assim juntinhos no canto direito do quarto próximos à janela, quem via achava até que se tratava de uma cama de casal. Marcelo, o mais velho, escolheu ficar ao lado da porta, de lá à sua esquerda tinha uma visão privilegiada do quarto, bem ampla, lembro de brincadeiras do tipo “se invadirem a casa o primeiro a ser pego é o Marcelo". Entre ele e mim ficava Daniel. Ele deu sorte de ficar com o lugar mais próximo da televisão, por outro lado deu muito azar de ficar ao meu lado já que vira volta dou umas roncadas das bravas. Mas ele também faz seus sons noturnos, uma espécie de arranhada na garganta, que parece mais uma quachada de pato, um tal de “cum, cum, cum” que vem de dentro, um som peculiar. Enfim, quando penso em meus irmãos, quando os conto na mão, me vêm à cabeça o quarto, cada canto, cheiro, cores, texturas, e principalmente a disposição das camas. Ainda hoje me lembro de quando escolhemos os lugares, da gente criança berrando e brigando por quem que iria ficar em qual canto e tudo mais. Dá uma saudade dos tempos em que as camas eram tudo menos camas, viravam cabanas quando prendíamos os lençóis de uma a outra acampando no chão forrado com cobertores, ou trampolins pulando uma à outra na hora do pega pega, ou esconderijos quando brincávamos no escuro 42 de cobra-cega. Não tive como dormir em outro lugar, acredito que só ali no canto mais distante da porta, à esquerda bem ao fundo, poderia me sentir de volta. 43 Sobre o que tem seu espaço: relíquias de casa Roncronc Passado tempo o suficiente para sanar ou ao menos arrefecer a saudade de casa, e de arrumar o meu espaço, de me ambientar e de também muitas vezes procurar pelo em ovo, voltei a reparar nas coisas que não haviam mudado em nada. É fácil citar os cacarecos que tem certo protagonismo. Um bom exemplo é o porquinho inflável com chapeuzinho e camiseta tricolor verde, branco e vermelho representando o amor à Itália, digo literalmente, está escrito nas costas do porco: “I LOVE ITALY”. É um brinde de uma viagem que Daniel fez há uns bons anos atrás. Se eu não me engano foi durante o período do ensino médio, foi a Itália junto ao seu melhor amigo, Luca. Invejo, queria ter amigos assim que fazem a boa pagando uma viagem dessas, quem não gostaria. Bem, voltando ao porquinho, o mais divertido é que quando você o aperta faz de fato um som de porco, tem uma espécie de buzina dentro dele. Todo jogo do Palmeiras, quando sai gol, a gente comemora esganando esse bicho. Já faz tempo que ele deixou de ter as cores vibrantes que tinha, o ronco também não é mais o mesmo, agora está meio rouco, isso porque foi bem gasto, assim que chegou em casa nosso time, o palmeiras, não parou de ganhar títulos. Daniel trouxe uma espécie de amuleto da Itália, vejo dessa forma, não perderá facilmente seu lugar na sala. 44 18. “Porquinho do palestra” (fotografia digital) link 45 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Berimbau e bíblia Outros objetos que tem seu local cativo em casa são o berimbau, o tambor e o chocalho de minha mãe. Também se encontram na sala, mas diferente do porquinho, que pelo uso sempre muda de lugar, estes têm como propósito o que representam, predominando sua força como imagem visual, não como coisa tátil ou sonora. Engraçado essa inversão de funções o instrumento que serve de cacareco e o cacareco que serve de instrumento. Esses instrumentos musicais se encontram na sala, na estante de livros, na parte mais alta dela, em um lugar em que o berimbau fica apoiado na parede em pé, à vista de todos. O que acho curioso é que bem nessa estante estão os livros de catecismo, educação religiosa e diversas bíblias, vai ver ficam lá porque estão mais próximos de Deus, ou simplesmente porque ninguém as lê. Minha mãe é formada em filosofia e segue lecionando, isso explica o porquê de termos tantas bíblias em casa. Além de filosofia ministrava aulas de religião em colégios católicos. Tem vasto repertório com atendimento de pais e alunos, como também em organização de eventos e atividades solidárias. Atualmente se encontra como coordenadora da pastoral de um colégio da Santa Cecília, há pouco tempo se aposentou. Tem uma carreira enorme relativa à educação religiosa, mas seu coração está na música, inclusive diz que seu primeiro emprego em escola se deve por conta do violão. Minha mãe é uma artista, cara de pau de tudo, no bom sentido é claro. Atua, canta, toca, dança, geralmente com plateia. Fico me perguntando quantas pessoas já tiveram o prazer de ouvi-la. Bem, voltando ao ponto, acredito que aquele espaço seja uma espécie de metáfora, um canto que fala muito sobre minha mãe, dessa jornada dela, pela educação, pela espiritualidade e pela arte. Lembro que logo na primeira semana, ao voltar pra casa, fui desempoeirar os livros e realocar os meus, nisso acabei mexendo no berimbau, mudando-o de posição, na realidade tinha até deixado ele largado em algum canto da casa. Como ela ficou brava. Não se toca no que é sagrado. 46 19. “Berimbau e bíblias” (fotografia digital) link 47 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Mural de medalhas Minha família, reunida, sempre trama algo pra fazer, dificilmente ficamos parados, basta juntar dois gatos pingados pra começar uma roda de jogos, mímica, brincadeiras de adivinhação, jogos de palavras, baralho, tabuleiro, topamos de tudo. Os cunhados da família que o digam, quando viajam com a gente sempre ficam estranhando como não paramos quietos dizendo: “parece uma família de cachorros”. No dia a dia, em casa, é de costume descermos para jogar um vôlei de quintal, em que a rede é substituída pelo varal, ou, também alí, um futebol, só cobranças de pênalti, em que a escada que dá pra cozinha se junta à porta da saleta delimitando a área do gol. No corredor que liga a sala à cozinha fica na parede o mural de medalhas e troféus da família. Tem muitas medalhas, contamos a uns tempos atrás e dava por volta de trezentas. Eram tantas que ficava praticamente impossível desempoeirar-las, então guardamos a maioria em caixas e preenchemos o mural com fotos. Infelizmente não há medalhas de meus pais pois não tiveram a oportunidade de disputar campeonatos como eu e meus irmãos podíamos, mas mesmo assim diria que gostam de jogar e até que levam jeito. Minha mãe gosta mais de vôlei, tem um saque que ela dá que se chama “jornada nas estrelas” acho que é uma referência a uma jogada de uma medalhista olímpica. Já meu pai gosta mais de futebol, engraçado como os dois ficam muito vermelhos quando fazem atividade física, obviamente não teve como não puxar esse traço deles. Ambos sempre apoiaram muito a gente na prática de esportes e gostavam muito de assistir às nossas partidas. Dos filhos o Marcelo foi o que participou de mais modalidades na escola, acho que todas, digo, vôlei, basquete, handebol e futebol. Era excelente, ganhou várias ligas paulistas. Lembro bem de uma partida, a final da liga estadual de basquete, foi em um dia chuvoso, estava torcendo bem debaixo da cesta a qual o time dele estava atacando no último tempo. Era uma pressão enorme, se tratava de uma final e mesmo assim ele não se abalou, frio fez uma cesta de três e logo em seguida 48 converteu se eu não me engano uns dois lances livres virando o placar e vencendo a partida, a torcida veio abaixo. Mas confesso o que eu gostaria de ter visto mesmo era o Marcelo na sua primeira competição de nado com uns cinco ou seis anos. Ele mesmo conta rindo como ele aos cinco anos saiu sem se dar conta do vestiário só de toca e óculos, pelado a vista de todos. Só percebeu que estava sem sunga quando a professora veio avisá-lo. Tadinho voltou pro vestiário correndo todo envergonhado. Isso sim é impagável, adoro essa história. Bem, eu e Daniel éramos mais do handebol e do basquete. Era ótimo estar com ele nos times porque podíamos jogar juntos em casa, sinceramente tinham dias que passávamos a tarde inteira no quintal, dalí criamos uma sintonia, chegavamos afiados nos treinos do colégio. Hoje em dia é bem mais difícil para estarmos com essa disposição, sinceramente ficamos sedentários com o tempo. Daquele período que tínhamos fôlego fica memorável as vaselinas de ponta esquerda e cestas de três no olisanfra, campeonato bienal de nosso colégio. Já eu me garantia mais nas infiltrações e dribles no basquete, e na defesa no handebol. Nunca sabia quando tinhamos jogo marcado, se não fosse Daniel provavelmente teria faltado em vários. O João sempre me pareceu que fazia os esportes mais por obrigação, mas na realidade acho que era o que ficava mais envolvido nos campeonatos sempre tava de mutreta com alguém. Ele também era do handebol e do basquete. Por um bom tempo treinamos juntos no colégio, era muito bom jogar com dois irmãos ao lado, e quando o caçula, Renan, subiu de categoria, então parecia que era nossa família contra rapa, contra todo mundo, um time praticamente completo. Renan, o dono de praticamente todos os troféus do mural. Como foi bom assistir às suas partidas, todos da plateia mal esperavam a bola ir pro ataque enquanto nossa família ficava mais animada quando ela estava nos pés do time adversário, vibravamos a cada defesa. Ao sair dos gramados foi jogar handebol no colégio, nem se fala, um absurdo de bom. Só uma lesão o parou, rompeu o ligamento do joelho esquerdo. Dessa pausa, desse momento de recuperação fez então um de seus lances mais bonitos, transformou a adversidade em prosperidade, decidiu fazer da vida um espaço de cuidado. Como fisioterapeuta ajudará muitos a passarem pelas dores que um dia também teve de passar. 49 Ao destacar uma das medalhas do mural e segurá-la me vem à mente algumas lembranças das partidas. Como se todos os jogos fossem um em minha mente acabo juntando estilhaços de gols, faltas, cestas, dribles, brigas, vitórias e derrotas, entre esses pensamentos me vem então lembranças das vivências fora dos jogos, a vida na escola, minha adolescência. Fechando os olhos me pergunto quanta energia despendi para conquistar essas medalhas, só assim percebi que nunca se tratou das medalhas mas sobre como fui crescendo. As medalhas se unem ao corredor, não teria lugar melhor para elas ficarem, em certa medida ambas representam caminhos, o corredor de modo concreto um lugar onde se andam de um ponto a outro e as medalhas aqui que simboliza uma jornada, um tempo de transição. 20. Mural de medalhas (fotografia digital) link 50 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Entre potes e mais potes No quarto de minha mãe em frente à sua cama do lado da escada caracol que dá para o meu quarto e de meus irmãos há uma cômoda comprida, de madeira, com um tampo de vidro preto e brilhante com poucas gavetas. Na realidade mal dá pra ver o móvel pois este serve somente de alicerce para uma enorme bagunça de pequenos objetos, todos guardados em potes, mas empilhados, equilibrados, por sorte não desabam, acredito que com um leve toque tudo poderia vir abaixo. Essas dezenas de caixas e potes tem milhares de coisinhas que ninguém se atreve a mexer e só minha mãe sabe o que são. A maioria dos potes são de papel cartão, são antigas embalagens de presente, ou potes de panetone, brindes de festa que nas mãos de minha mãe se tornam baús. Além dos potes, em cima da cômoda encontram-se vários produtos para cuidados da pele e cabelos, já embaixo dela tem secadores de cabelos, chapinha, babyliss, bolsas com coisas para manicure e pedicure, por isso que a cômoda é mais conhecida como penteadeira por mais que não tenha um espelho. Mas se olharmos bem de perto o que prevalece não é uma funcionalidade. Ali está muito mais para um templo de relicários. Tem velas de sete dias repletas de rezas e promessas, algumas coisas da nossa infância, incensos, terços dados por minha avó, cartas, lembranças, enfim, tudo isso. Lembro que certo dia estava procurando um documento e acabei achando uma agenda bonita, fui fuxicar. Quando a abri tinha um cartão vermelho com algo escrito em mandarim. Abri a carta e achei uma foto de Marcelo, fiquei feliz de tê-la achado e acabei prendendo-a na lateral da geladeira no lugar onde fazemos uma espécie de muralzinho de fotos. Depois de um tempo percebi que poderia estar quebrando uma reza que até agora estava dando certo. Nisso rapidamente coloquei a foto de volta para o lugar e pedi desculpa falando sozinho. Um outro dia estava procurando elásticos de cabelo na penteadeira e acabei esbarrando num pequeno pote de porcelana branca, arredondado e com bordas rendadas com detalhes em lilás e pérolas sintéticas esmaltadas cor prata. Num 51 geral, lembra muito um dos bolos de aniversário de minha avó Olívia. Curioso que eu abri a caixinha e fiquei muito surpreso com o que vi. Quando menor, diria que a partir dos dez anos até o final da adolescência, fiquei desenhando incansavelmente olhos nos cadernos de escola, ainda hoje quando estou distraído acabo fazendo mais um. Uma parte considerável de minha infância e de meus irmãos foi na frente da tv, víamos a tv cultura, tv globinho e Bom Dia e Companhia do SBT, então não tem como falar de desenho sem falar sobre esse primeiro contato. Nesses canais passava Três Espiãs Demais, Yu gi-oh, Pokémon, Digimon, Hantaro, Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball Z e é claro, o meu preferido Naruto. Foi copiando os traços de muitos desses personagens que adquiri o hábito de desenhar. Quando comecei a tentar desenhar de um jeito mais naturalista, fazia uns olhos que certamente não eram nem mangá nem realista, estava entre esses estilos. As pálpebras ficavam muito arredondadas, fora a íris que mal cabia no olho de tão grande que era. O resultado final ficava meio engraçado, meio esquisito, eu achava o máximo na época. Acho que ficava assim um tanto descompassado porque parece que o desenho não conseguia bancar a expressão que eu tentava construir. Ainda hoje desenho olhos com a mesma expressão blaze, um olhar sério, mirando o nada, com a pálpebra descansando e a sobrancelha para o alto, mas com a técnica já mais madura. Mesmo procurando esses desenhos antigos, esses olhos tortos, nunca os achei porque em casa tínhamos o hábito de fazer uma fogueira com os cadernos no final de cada ano. Bem, minha mãe guardou essa relíquia, foi um presente que dei para ela. Foi uma das coisas mais bonitas que ela fez por mim, transformou aquele presente em reza, acendendo uma pequena vela azul juntou nossos hábitos mais inexplicáveis, nossos gestos. Dentro da porcelana repousam o olho que não vê e a vela que não acende mais. 52 21. “Um olhar a ser preservado” (fotografia digital) link 53 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Lamparina japonesa Construir você em palavras é como tentar consertar uma taça de vinho costurando-a. A cada alfinetada a agulha foge, o metal joga pra longe cada estilhaço, mal risca o vidro muito menos o perfura, os cacos continuam separados. Sentado em cima de sua cama sob a luz do lustre japonês nas dobras do edredom de cetim me acomodo. Desses retalhos não uma Luciane é possível, cada um a espelha de um jeito. A cada dia que passa mais de você se multiplica. Piso sobre seus cacos e meus pés sangram vinho. Quem mais eu seria? 22. “Lamparina japonesa” (fotografia digital) link 54 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Contando o tempo de grão em grão 23. "Inóspito a mim” (4856 x 4461 pixels, pintura digital, paint) link Realmente objetos têm a capacidade de se cobrir de memórias, ou melhor, nós tratamos de imantar sentidos neles, de construir suas significâncias. É pelos olhos do intérprete que o mundo se torna signo como nos mostra Peirce ao relatar o caminho da tríade semiótica e o movimento sígnico. No caso de tais objetos apontados anteriormente, das terceiridades, predomina sua iconicidade, suas características físicas, sensíveis, como cor, textura, formato, cheiro, som, apelam, atiçam nossos afetos, estimulam relações, fazendo com que perdurem na memória. Presenciei um momento encantador, sobre a história de meu pai, contada por ele mesmo, mediada por um objeto. Sou muito grato a um carimbo de metal que marcava as fieiras de diamante, uma ferramenta que servia como um ponto final, a conclusão de um produto, o encerramento de um trabalho bem feito no dia a dia de 55 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ um antigo negócio de sua juventude. Algo que hoje é guardado no meio de sua caixa de ferramentas. Nesta caixa se escondia por trás de uma inóspita bagunça. Entre coisas miúdas estava protegida, como um segredo. A bagunça de meu pai, de forma proposital ou não, acredito seja algo do acaso, criou uma espécie de invólucro, uma caixa do tesouro enferrujada, que só ele sabia o valor. Numa escuridão, parada, por tanto tempo, sem eu saber de sua existência. Estávamos na sala, eu e meu pai, vendo televisão, uma partida de futebol qualquer. Falávamos sobre os times, adentramos num debate sobre suas histórias. Daí começamos a comparar o tipo de futebol jogado hoje e o de antigamente. Quando mal percebemos estávamos alí, como várias outras vezes, comparando Cristiano Ronaldo a Pelé, Neymar a Zico, enfim, a geração de hoje com a de ontem. Coisas anacrônicas, que mal tenho repertório para falar mas que acabo fazendo, é um papo que sempre caímos por capricho da monotonia. Só paramos tal enfrentamento no seguinte desfecho, também previsto, com ele dizendo algo do tipo: “mas se Pelé jogasse nos tempos de hoje, com a tecnologia atual, com a medicina e os conhecimentos que temos agora o negócio seria diferente. Ele continuaria sendo o melhor. Pelo menos é o que eu acho né”. Enfim, jargões de meu pai os quais tenho inúmeros em mente, imagino que ele tenha inúmeros dos meus em mente também. De qualquer forma, são falas as quais não me canso de ouvir, é bom ver tevê ao lado dele. Mas voltando, nesse telefone sem fio que uma coisa embola na outra e não se fala mais da coisa inicial, mas sim da última coisa falada fomos parar no passado, nas histórias de infância de meu pai. Da sala de estar ele, com certas palavras, me transportou para um bar há quarenta anos atrás, em São Mateus, zona leste paulista, bar de seu pai, Arnold, meu avô, "vô arnordi". Por lá passou boa parte de sua infância trabalhando, ajudando a família a ter seu sustento, falava sobre isso com muito pesar. Enfim, diferente de agora não pela televisão o jogo era acompanhado, mas sim escutado num radinho o qual ficava em cima do balcão. Trabalhando, lavando copos americanos, e atento às transições da bola, por vezes interrompidas pelos chanfros dos pequenos copos que mal intercalados pressionavam vidro a vidro e meu pai perdia um gol. Imagino que tenha começado assim, esse tal de sai da sala vai pra cozinha e bola na rede. 56 Acontece tanto que meu pai já leva na esportiva. Sempre perdendo as reviravoltas do jogo. 24. “Perdeu o gol” ( 670 x 656 pixels, pintura digital, paint) link 57 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Alí, ele, como menino, pequeno e franzino, ainda mais ruivo que hoje com seus cabelos vermelhos e rosto pálido, sem as milhares de pintas alaranjadas que cobrem seu rosto e braços após anos de sol aprendera desde cedo o que é trabalho duro. Sem muito tempo pra ser criança se fez adulto depressa. Foi nessa velocidade também que quando os negócios aumentaram, e mais de um bar era alugado, teve de tocar um dos negócios sozinho. Nisso o tempo de escola cada vez mais era minado. A rapidez que amadurecia era a mesma que imputava em seus passos quando carregava diversos engradados de cerveja de uma bodega para a outra. Durante essa trajetória passava em frente ao campinho da escola. Novamente se via como um espectador ocupado. Tinha de equilibrar sua atenção com o que via em campo, seus amigos jogando bola durante a aula de educação física, aula a qual era dispensado para trabalhar a pedido dos pais, com o que via na rua, à medida que desviava de seus buracos equilibrando assim os engradados no carrinho. Passada a infância, e já lá com seus dezesseis anos, na inércia de uma vida sem tempo, arrumou um emprego, que não seria com, e para, seu pai. Diamantes. Iria trabalhar com algo precioso, valioso, brilhante. Bem, foi o que eu pensei nos primeiros segundos enquanto ele me contava a história. Na realidade, não era bem esse lado glamouroso, das pedras preciosas. O que meu pai fazia eram fieiras. Usava diamantes para furar outros diamantes, que após serem furados, tendo assim um orifício de diâmetro e formato específicos serviriam para modelar fios de cobre. Uma peça que no final é revestida de ferro e parece mais um carretel, só que bem pequeno. Bem, a empresa a qual foi contratado era bem próxima do bairro onde morava. De acordo com ele não havia sequer um adolescente na zona leste que não estivesse trabalhando durante o ensino médio, se achasse um era como um E.T, não havia escolha. Por lá dos quatorze aos dezessete trabalhou como um verificador do diâmetro do furo do diamante, aferindo a qualidade da fieira. Além disso aprendeu por lá todos os passos de fabricação desta como também sobre trefilação de fios de cobre e aço, a finalidade da feira, para oque era usada, entre outros detalhes. Sendo assim teve uma espécie de educação toyotista nessa empresa, dominando assim todos os processos de fabricação dos produtos desta. Como trabalhava sozinho no setor de fieiras, trabalho demais pra uma pessoa, aderiu a greve dos 58 metalúrgicos, na realidade foi uma breve paralisação, o suficiente para pressionar o patrão a contratar um outro funcionário, um senhor chamado Telesforo. Este seria então, seis meses após conhecer meu pai, um dos sócios da Fiertec, futuro negócio de ambos, mais adiante se juntaria outro sócio, um tal de Pedro, mas tal parte da história não me foi contada em detalhes. Com o conhecimento desenvolvido durante as aulas de desenho industrial que tivera na escola, fez um croqui da máquina do trabalho e pediu para um torneiro mecânico conhecido materializar tal rabisco. Faltou só uma peça que não havia incluído no desenho. Componente da máquina que teve de surrupiar, pegar emprestado seria menos emocionante, para fazer um molde. Assim que pronta a maquinaria, pediu dispensa do trabalho e abriu sua primeira empresa no estacionamento de sua casa, na casa dos pais, junto aos sócios de mais idade pré-citados. Muito empenho foi colocado na empresa, meu pai fez questão de frisar isso, e de modo até que rápido começaram a fazer bons clientes. 25. “Fiertec” (899 x 460 pixels, pintura digital, paint) link 59 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Sempre testemunhei no dia a dia a engenhosidade de meu pai, ele realmente faz qualquer coisa, conserta chuveiro, máquina de lavar, televisão, computador, fogão, encanamento, levanta parede, enfim, não era qualquer coisa que me surpreende-se vindo dele, mas como assim ele adolescente aplicou uma espécie de engenharia reversa num maquinário sofisticado, de fieira de diamantes, tudo pra montar um negócio próprio. Para mim foi difícil visualizar ele fazendo isso, algo tão ousado e maduro ao mesmo tempo, e com tão pouca idade. Tive de me projetar com meus dezessete anos, para ter uma ideia da dimensão da esquisitice dele. Na época estava empenhado em estudar para o vestibular, jogar handebol e basquete pelo colégio e nas tardes que estava de bom humor gostava de ir na biblioteca e dar uma passada no parque da independência, por lá gostava de desenhar árvores, estátuas e o arredor. Enfim, um outro contexto com outras demandas, mas certamente sem essa ganância, essa autonomia, essa autoconfiança que ele já tinha tão cedo. Meus desenhos se finalizavam ali na materialidade do papel, na intimidade de um diário, os dele eram meios para um fim concreto, se materializaram como metros e metros de fios, os quais viriam a revestir casas e prédios. Isso me mostrou objetivamente como era diferente a conjuntura a qual meu pai operava, e como isso diz muito sobre seu fazer no presente. 60 26. “Como um fim para um fim, dois tempos” (1486 x 1110 pixels, pintura digital, paint) link 61 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Bem, decidi escrever dessa forma, com tal sentimento ufanista empreendedor pois era um tanto assim que a história era contada. De fato fico feliz com as realizações de meu pai e também grato pelo que elas me proporcionaram como seu filho. Entretanto vejo que tal apego a um passado de muita prosperidade financeira o fez aborrecido com os negócios do presente. É como se houvesse uma régua inatingível, injusta, a qual não importe quais sejam as conquistas do agora estas sejam subjugadas por um grandeza pregressa. Muitas vezes vejo você segurando essa ampulheta, totalmente virada, que não tem mais nada a contar. Sinceramente esse sentimento que percebo tu sentir é algo que mesmo eu, com menos vivência, com menos experiência de vida, consigo entender. Essa angústia, essa frustração, esse “e se”, realmente nos faz desamparados. Mas saiba que se não fosse por ti eu não teria jogado bola, não teria tempo disso. De certa forma você refez o tempo. Quebrou a ampulheta e espalhando grão a grão, manufaturou um chão que pudéssemos pisar sem calejar. Aos poucos um grande deserto surgiu. Nesse tu fez questão de nos mostrar cada horizonte para que um dia soubéssemos nos guiar por qualquer canto. Em cinco, um estático ao centro e quatro em movimento se espalhando por distintos pontos de fuga, traçamos linhas que cruzam este grande deserto. Contamos cada passo, e juntando tais caminhadas fizemos laterais e escanteios, um campinho de areia, assim como o de quando éramos crianças, na casa em São Mateus. 62 27. “Aos poucos um grande deserto surgiu. Nesse tu fez questão de nos mostrar cada horizonte para que um dia soubéssemos nos guiar por qualquer canto.” (fotografia digital) link 63 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ 28. “Traçamos linhas que cruzam este grande deserto” (pintura digital, paint 5416 x 2832 pixels) link 64 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Quando lhe escrevi aquela carta de aniversário, sobre o tempo que tu dedicaste para se tornar um lugar de amor, estava falando sobre este deserto, sobre este campinho. Vejo que você virou o jogo, multiplicou o tempo para que pudesse se concentrar só no que interessa. Como um espectador desocupado, pode enfim se deixar fluir, permitir-se dissolver na ludicidade do jogo no que tudo este possa representar. Imergir numa partida de opostos que lhe faça sentir o paradoxo, da tensão ao alívio, do desalento ao deleite, do estresse à diversão. Quando te via na arquibancada nos tempos de escola enquanto eu e meu irmãos jogávamos os torneios interescolares me dava muito orgulho, agora entendo mais o porquê, o quanto você fez para que pudéssemos jogar nosso tempo fora. Contada a história, saímos da sala deixando a tevê falar sozinha. Fomos até o quintal, e em cima da mesa dentro da desassossegada caixa de ferramentas tu me fez questão de mostrar aquela relíquia parada, o carimbo que deu nome a seu trabalho por tanto tempo. Imagino que seja este o único objeto inútil daquela caixa. Um carimbo que não precisa mais carimbar, sua função continua a ser representar, mas não mais uma marca, um logotipo, mas sim uma trajetória de vida. Basicamente este substituiu seu rastro. É como uma matriz que não será mais impressa. Esta tem mais valor que todas as gravuras que fez. Torna-se ela mesma objeto de arte. 65 29. “Varrendo minhas folhas” (fotografia digital) link 66 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Ba-gun-ça 30. “Bagunça” (3496 x 1504 pixels, pintura digital, paint) link A palavra bagunça por conhecimento popular é comumente empregada como sinônimo de desorganização, desleixo, desarrumação, confusão, isto é, é utilizada para se referir a uma situação num espaço em que falta ordem, disciplina, interesse, zelo, carinho e atenção, predomina nessa forma de aplicação a pejoratividade do termo. Em contrapartida, por outro lado, a mesma palavra exerce o sentido trivial de uma ação disruptiva, caótica, ruidosa e animada, diria até criativa, sinalizando um momento de festa, farra, folia, zorra, um tumulto, uma suciata, enfim, a palavra bagunça também é empregada como algo que enfatiza uma ação e não a falta dessa, dá destaque a uma animosidade e não uma falta de postura diante de algo. Diria que nessa segunda forma exposta predomina certa positividade do termo em contraponto a negatividade da primeira forma de aplicação deste. No dicionário consta ainda mais um emprego do termo bagunça, de uso regional, talvez um jargão? Que é bagunça como máquina utilizada para remover aterro. 67 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Utilizada na construção civil é a bagunça que assenta o terreno, dando base para a construção da fundação de casas. Que beleza, bagunça é desordem é farra e é a base para o levantamento de uma casa. É material e também imaterial. É a partir dela que se organiza uma rotina tácita, um dia a dia como também é por meio dela que são articulados os afetos que constituem um lar. Entendo que o primeiro contato que temos com qualquer bagunça seja uma experiência denotativa. Nos deparamos com a sua materialidade, com ela quanto coisa física, seja como acúmulo, ou como dispersão essa disposição das coisas no espaço de forma direta nos dá pistas de como opera. Isto é, sinaliza a maneira como se realiza em sua dimensão conotativa. As coisas não são esvaziadas de sentido, elas representam algo, funcionam como signos aos olhos de quem as interpreta e, ou, manipula, são indícios de nossa relação com a casa e seus transeuntes. Isto é, também são abstrações, representam idéias e lógicas de vida. A bagunça é matéria, mas também forma. Imagens, memórias, afetos, relações, tudo que é imaterial vem a constituir o que significa bagunça. Sendo assim, é criado um equilíbrio singular entre essas dimensões no bagunçar. Tanto o concreto quanto o abstrato ocupam lugares de pesos proporcionais. Durante a construção e vivência da bagunça o denotativo e conotativo tem relevâncias confluentes, hora paralelas hora coincidentes gerando embates profundos, imbricamentos turvos que tornam a delimitação do que é bagunça de fato uma bagunça. 68 Entre pés e mãos: Indícios de um corpo em transe 31. “Trocar os pés pelas mãos” (827 x 541 pixels, pintura digital, paint) Vasculhar a bagunça é como caçar pegadas feitas por mãos, os passos da pessoa que bagunça são indicados pelos próprios objetos presentes na bagunça. A imagem pegada exemplifica bem as características principais da operação de bagunçar uma vez que ambas, tanto o bagunçar como deixar pegadas, têm a humildade e a ocasionalidade de se construir como rastro de algo, nos dando pistas sobre esse agente, que deixa rastros. De certo modo a bagunça se faz de corpo inteiro, sua materialidade compreende toda a envergadura do corpo, mãos e pés são lógicas de operação distintas, porém 69 correlatas, complementares. Pelos pés é dito muito sobre nosso trânsito sobre os arredores da casa, nosso deslocamento nela, e pelas mãos o nosso modo de se prostrar diante dela, sobre a manipulação que fazemos do espaço e seus objetos. Deslocar-se na casa, e deslocar a casa, para se realocar. É uma readaptação constante num espaço. Se mover e fazer mover. Ando no espaço com os pés mas deixo pegadas com as mãos. Estas pegadas que como objetos contam uma trajetória de um certo cotidiano nos dando pistas das ideias que o transpõe. Nesse sentido é como “trocar os pés pelas mãos”. Engraçado porque é exatamente essa forma errante e caótica que dá substância à bagunça. Dessa sobreposição de pés e mãos surge algo obtuso. Essa movimentação, esse deslocar-se deslocando, do corpo e das coisas, esse arranjo espontâneo que detém certa lógica, essa renovação de algo em outro algo correspondem ao fazer da semiose, isto é, do movimento do signo de se renovar e se perpetuar em um interpretante, um novo signo. O signo atiça um próximo à medida que se conserva parcialmente neste. Tal estrutura se repete sem fim como discorre Santaella: É justamente a terceira categoria fenomenológica (crescimento contínuo) que irá corresponder à definição de signo genuíno como processo relacional a três termos ou mediação, o que conduz à noção de semiose infinita ou ação dialética do signo. [...] Peirce definiu essa relação como sendo aquela própria da ação do signo ou semiose, ou seja, a de gerar ou produzir e se desenvolver num outro signo, este chamado de ‘interpretante do primeiro’, e assim ad infinitum[...]. (SANTAELLA, 2008, p.8) Exemplificando, uma mesa vazia perto da lavanderia, é objeto que comunica disponibilidade a certos intérpretes necessitados de um canto para deixar roupas secas recém tiradas do varal. Logo, o signo mesa vazia pela ação desses transeuntes torna-se interpretante mesa cheia. Em seguida a mesa cheia de roupas, vem a se transformar em outra coisa. De acordo com certos viventes intérpretes da casa esta se transmuta como uma espécie de passadeira, uma mesa de dobrar roupas. Já para outros, esta pode servir como o armário em si, em que, a partir de tal premissa, surgem chapadas, serras, cordilheiras, sempre inabaláveis, compactas e ao mesmo tempo espaçosas, cheias de declives, texturas, cores e profundidades. Grandes pilhas de roupas, algo que beira o sublime, para mim da preguiça. 70 Confesso que algumas vezes sou eu esse preguiçoso. Dessa paisagem tudo pode vir a surgir. Entretanto, não é uma relação unilateral em que somos somente agentes desse lugar, também somos passivos ou reagentes. Moldamos nosso lar à medida que ele nos tange. É como aprender a moldar potes. Sentamos em frente ao torno, posicionamos a argila no centro do prato, molhamos as mãos, apertamos o pedal com um dos pés, e à medida que vamos confeccionando a peça a mesma nos mostra como devemos moldá-la. Com o tempo as coisas parecem nem serem pensadas, só flui, acontece, fazemos potes. Pelo tato, adentramos em uma terra úmida, só caminhando saberemos diferenciar as áreas movediças das de solo firme. Andamos à medida que aprendemos a andar. Concebe-se a casa à medida que esta nos arquiteta. Bagunçamos à medida que a bagunça nos ensina a bagunçar. Ela é um rastro de nossa rotina como também espaço de construção desta. É possível ser identificado pela bagunça que fazemos como também nos identificamos, nos fazemos, a partir do bagunçar. A felicidade de se estar num lugar que se pode chamar de seu passa por perceber como esse compreende a nossa própria maneira de pensar, pois ele mesmo é constituído de rastros de nossa imaginação, se faz pelos indícios de nossa vivência. 71 Cada um com sua bagunça e a bagunça de todo mundo Bagunça é aquilo que preenche a casa, aquilo que não tem ordem aos olhos daquele quem delimita que aquilo é bagunça. Minha casa é uma bagunça porque é um diálogo entre diferentes. Todo mundo é bagunceiro, porque a bagunça é arbitrária. Essa, assim como a beleza, a inteligência, a astúcia, a sinceridade, a extroversão e a tolerância é mais um simples atributo delimitado por alguém. É parcial, é vago. A bagunça enquanto coisa pejorativa reside em tudo que se acredita não haver coerência. Para o auto intitulado organizado há uma concepção prévia do espaço, um script que não pode ser desviado, uma intencionalidade no olhar para o mundo em que tudo que barre tal ordem é caracterizado como bagunça. Esta necessidade de controle não é algo necessariamente errado, não se trata disso, é só mais uma forma de responder ao movimento da bagunça. Via de regra é necessário criar acordos para que se tenha uma certa administração do espaço, para diversas finalidades básicas como saber onde as coisas estão ou ter o conforto de uma casa limpa e com superfícies vazias à disposição. Enfim, não sou uma espécie de defensor da bagunça por ela mesma, um arruaceiro que não quer dobrar suas roupas e busca dar desculpas para sua preguiça filosofando, longe disso, adoro espaços limpos e organizados faço questão inclusive, o ponto é que a bagunça me desperta curiosidade. Ela detém uma riqueza particular, torna visível palavras não ditas, pois opera por meio de resquícios. Me ajudam na busca de fazer sentir, traçar narrativas que exercitem o afeto, a me entender em meu lugar e fora de meu lugar. A bagunça como conceito de ação, de fuzuê, zorra ou folia vem com toda a imprevisibilidade do encontro. Ela se faz com uma coletividade, traz o diálogo à tona entre os residentes. É um rearranjo do lugar mediado por subjetividades, mais de uma. Não é algo elaborado de modo controlado em que se poderia mapear por completo em que lugar cada um tem sua zona, as bagunças se amontoam se cruzam de modo orgânico. Mesmo que tenhamos aversão a bagunça, buscando extingui-la, muita energia será despendida sobre essa empreitada, pois o caminho natural é o desvio, é a ponta solta, é o copo de refrigerante do lado do computador, 72 o estojo de tintas em cima do microondas, os tênis na sala, coisas do tipo. De qualquer forma a organização é uma resposta a bagunça, é uma castração contínua das coisas, as quais parecem ser animadas, quase como se tivessem vontades, como se dissesem o lugar delas, onde são mais usadas. O pacto uma vez afrouxado, o fuzuê volta a ter espaço e as coisas repousarão onde quiserem. Como vimos pensar em bagunça é pensar em também em diálogo, em convivência. Lembro de imediato das roupas em cima da cama de Daniel, um dos meus irmãos que não está mais em casa. Como é um lugar desocupado é terra de ninguém, por lá tudo se pode fazer e mais um pouco. Pelo fato de estar do lado da minha cama eu abuso, para mim acaba virando uma extensão da minha própria. Às vezes acabamos por tacar lençóis ou cobertores por cima daquele fuzuê e até parece que Daniel está ali dormindo. Não discutirei se isso é uma expressão inconsciente de saudade, pois sei bem que é. Enfim, a pilha não é uma instalação permanente, temos de desmontá-la para lavar tais roupas. Nos finais de semana meu pai dorme em casa, então é certo que temos que desocupá-la. 73 32. “Quarto sem dani” (2140x3010 pixels, pintura digital, paint) link 74 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Boa parte das bagunças, principalmente as de dentro de casa, com foco nas da cozinha e dos quartos, são bem fluidas, há uma velocidade acelerada das trocas. A mesa da cozinha é a que mais se destaca por isso, em cerca de três horas tudo muda, taparueres podem ter sido retirados do armário e ficado por lá ao lado de alguns pratos usados no almoço que alí acumulam cascas de banana e laranjas comidas no lanche da tarde, tudo em volta de sacolas de pão murcho, algumas contas a pagar e uns potes de achocolatado, e, no meio dessa confusão, quem sabe algum pequeno e importante parafuso de uma máquina que meu pai estava consertando possa ter sido esquecido entre as migalhas de pão e as frestas da mesa. Uma natureza morta pincelada pelas pegadas de cada assaltante de geladeira. 75 Casa bússola, questões curvas num mundo reto 33. ‘Por do sol” (Mural pintado junto a meu pai após conversa sobre história casa e afetos - fotografia digital) link 76 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Boiando sou como uma bússola. De braços abertos, entre minhas mãos, tenho o nascer e o pôr do sol. Viro a cabeça para os dois lados. À minha esquerda, a leste, a cidade. À minha direita, a oeste, minha casa. Olho para cima e vejo ele. Acorda às seis trazendo claridade aos de cima e retas escuras me turvam. Escalando o tempo, do céu chega ao cume, mas de todos os azuis de lá prefere os daqui. Afunilados pelas linhas dos prédios descem em raios planos. Como que procurando um abrigo, se moldam as rachaduras do chão que piso. Voltam a ser natureza. Raios ondulantes retornam ao horizonte. Meu norte é meu centro. Flutuando recolho meus braços, me envolvo neles. Afundo. Submerso, me firmo. Sinto o sol queimar em ondas o azul de minhas costas. Sobre a diferença entre curvas e retas: A curva ao andar de um lugar a outro transita desperta pelo caminho, frui cada detalhe do entorno. Anda em passadas vagarosas esquadrinhando o céu, fitando os arredores, e, viravolta algo lhe rouba a atenção. Talvez uma planta ou mesmo um passarinho de canto estridente. Admira tais coisas, muitas vezes perseguindo-as, quem sabe até fazendo certos desvios pelo bairro neste gentil entusiasmo, mas ao final segue seu caminho. Tocando as paredes com as mãos como uma criança que busca novas texturas chega a seu destino. Já a reta faz o oposto, preocupada somente com seu fim, caminha olhando fixamente para frente à passadas velozes otimizando seu tempo já contado de modo decrescente. Aí está, uma frui o caminho, dá tempo ao tempo, vive o aqui e o agora, atenta às singularidades, às organicidades do mundo, o contrário da outra que usufrui do espaço como meio para determinados fins. Com papel e lápis em mãos desenho minha casa em curvas. Com mãos trêmulas porém conscientes dou vazão a um traçado oscilante, ora grosso ora fino, atento às vicissitudes de meu lar. Fora de casa há lugares aos quais esse traço é impossível de ser riscado, não me vem esse impulso, muitas vezes só me surgem como retas, limpas, controladas e homogêneas. Pelo uso excessivo da borracha percebo o 77 descompasso entre minhas expectativas. Algo foge de mim, seria eu mesmo? O que o espaço me diz? O que faz minhas mãos tão ausentes? É a medida que produzo imagens sobre as memórias de minha família, lembranças que marcam e dão forma ao nosso redor, que me penso também como imagem e reflito sobre como me apresento ao mundo. Me deparo então com duas imagens minhas, uma dentro de casa e outra fora. Em que momento me dividi em dois? 78 34. “Boiando sou como bússola” (5.792 x 3.384 pixels - paint) link 79 https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1SHFgyPwNQtVbqvY-pkNO0zxKTuspp26_ Em inércia a casa perde seu teto Examinando¹ a repartição da vida em pública e privada, recorro à uma reflexão feita pela psicóloga Maria Lúcia Homem. A pesquisadora dá um panorama social sobre esse imbricamento. Observando tal questão para entender o homem contemporâneo aponta essa separação como uma importante conquista social. Discorrendo sobre as sociedades antigas¹ ela nos diz como a crença em uma divindade impedia a construção da noção do eu, e da vida privada, uma vez que o pecado teria de ser confessado já que Deus saberia de tudo que seus fiéis faziam. Isto é, sendo impossível a omissão dos pecados se sentiam no dever da confissão para receber a redenção, logo não tinham espaço para criar sua intimidade. Posteriormente, com o declínio da Igreja e a ascensão do Estado moderno, o homem ganha então subjetividade, uma vez que não é mais sujeitado nem à um Deus que pune o que pensa, conquistando assim sua liberdade em relação ao que fazia da sua vida sobre quatro paredes, uma vez que, ao sair de casa omitia seu Eu privado se trajando como um Outro público, guardando assim segredos, construindo dessa maneira uma imagem de si para os outros. Com o surgimento dos adventos tecnológicos oriundos da terceira revolução industrial, houve uma reestruturação da comunicação e de nossas relações interpessoais. Ao difundir o digital na rotina das sociedades houve uma invasão do virtual no real. O homem contemporâneo se desprende enfim de seu corpo. Este não é mais impeditivo para sua mente vagar por lugares distantes. Estar em um espaço não é mais encontrar-se presente ali. Logo, com esse novo modo de se viver a noção de pessoa pública e privada se mesclam. Se na modernidade o público era o espaço de se construir como um personagem visando resguardar uma intimidade a qual seria exposta somente no interior de casa, agora não há mais o porquê de se esconder. Inclusive é reforçado o oposto. Para ser no mundo, para ter 80 de fato alguma relevância nas redes é necessário se mostrar, tentar vender a nossa melhor versão, nosso melhor ângulo. Nisso nos encapuzamos perdendo a distinção entre o que somos de fato e o que somos para o outro. Maria Homem com uma célebre metáfora relaciona a publicização da vida privada e a perda da categoria do eu: “Estamos fazendo com que as paredes que nos protegiam e faziam quarto, a casa e o lar sejam permeáveis, que elas sejam de vidro. Não porque elas sejam de vidro, mas porque eu quebro as paredes e eu coloco um espelho aqui pra refletir para você…a gente publiciza a nossa intimidade, a gente vai fazer uma bagunça com essa divisão clássica moderna e a gente vai se oferecer pro lugar do outro[...] É uma montagem de um para o outro, uma montagem narcísica para ser aprovada, para ter likes, dislikes. E cadê o eu? (HOMEM, 2020) Vejo que minha casa não se encontra alheia a esse processo. Há uma tensão que busca esticar suas curvas, querem deixar reto, simples, homogêneo um espaço complexo, de imprevisibilidade, cheio de vida. A casa perde a si mesma à medida que é vista somente como espaço útil, determinada meramente a certas funções, como um dormitório, um escritório ou um refeitório, deixando de lado sua dimensão sensível, afetiva. De um modo geral, hoje em dia é muito comum não termos tempo para conversar com quem dividimos nosso teto. Não só por trabalharmos muitas horas fora de casa, mas pelo fato de não elaborarmos nossas relações, não darmos atenção as pessoas que compartilhamos nossa intimidade. Aliás nos encontramos num período atípico, nunca antes ficamos tanto em casa, e mesmo assim nunca antes houveram tantas barreiras com quem está ao nosso lado. Me parece que o contato íntimo com nossa² família, parceiros ou amigos, isto é, com quem moramos juntos, me parece deixar de ser o foco principal da experiência de descanso e 81 prazer pós trabalho. Durante o repouso, quando não estamos trabalhando ou estudando, somos aliciados a um outro tipo de trabalho, o consumo, trabalhamos como consumidores de entretenimento, de informação, de relações virtuais, do que seja, somos invadidos pelo mundo público em nosso mundo privado. Se não olhasse com mais carinho os detalhes de meu lar eles seriam esquecidos, pois hoje o direcionamento mais rotineiro dos olhos não são mais para outros olhos. Fechamos nosso horizonte trancando portas. Muitas vezes, em casa, estamos em mais de cinco pessoas e mesmo assim o silêncio impera. Cada cômodo é alocado por cada um como se fosse um hotel. Nossos corpos são tomados por um impulso quase robótico. Os olhos ardem de tanto tempo que passamos em frente a uma tela, os lábios grudam de tão pouco usados, as costas doem de tanto tempo curvadas. Até que ponto estamos dispostos a nos alienar de nós mesmos só pelo conforto de agir em inércia? Casa como lugar de pertencimento As mudanças que se configuram no dia a dia de todos nós correspondem a nossa relação com o espaço, o tempo e os outros. Marc Augé ao trabalhar as noções sobre o espaço “lugar antropológico” e “não lugar”, nos mostra como a configuração do espaço tem peso sobre a formação de nossa identidade¹. Segundo o autor, o lugar antropológico seria aquele que construímos, aquele que temos participação em sua constituição. O não lugar por sua vez seriam então espaços construídos por outrem, que buscam a otimização do tempo em prol do consumo. De várias formas essa nova ideia de cidade busca que façamos “cada vez mais coisas em menos tempo”. Como se vê há uma implementação do _______________________________________________________________________________ ¹Se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque os processos de simbolização colocados em prática pelos grupos sociais deviam compreender e controlar o espaço para se compreenderem e se organizarem a si mesmos” (AUGÉ,1994b, p. 158) 82 individualismo à medida que se dificultam as relações com o outro. Como bem pontua Teresa de Sá: “Se, por um lado, os “não lugares” permitem uma grande circulação de pessoas, coisas e imagens em um único espaço, por outro transformam o mundo em um espectáculo com o qual mantemos relações a partir das imagens, transformando-nos em espectadores de um lugar profundamente codificado, do qual ninguém faz verdadeiramente parte.”(SÁ, 2014, p.211) Essa disposição dos espaços é planejada de modo explícito para o consumo torna a experiência pública, numa experiência ocular, em que (DEBORD, 2003, p.14) “as relações humanas são todas mediatizadas por imagens”. Cedemos nosso arbítrio ao espetáculo, permanecemos assim em trânsito num vazio cheio de imagens. Uma vez que essa nova concepção de espaço contribui primordialmente para a otimização dos lucros, não calculando gastos humanos para isso, fica claro quem são os mandantes e únicos beneficiados por essa mudança. Manuel Castells propõe a hipótese de que o espaço organiza o tempo na sociedade em rede², nisso direciona seu olhar à nova elite empresarial tecnocrata e financeira, os propositores dessa reorganização do tempo por meio do espaço público. Concebe assim esses lugares esvaziados, acelerados e sem raízes no lugar como “espaços de fluxo”. Teresa de Sá sintetiza: O “espaço dos fluxos”, frisa Castells, não é a única lógica espacial das nossas sociedades, mas é a dominante, porque corresponde aos interesses representados pela elite empresarial tecnocrática e financeira com exigências espaciais específicas. Manuel Castells, partindo da importância dessas exigências, mostra como elas estão relacionadas com a apropriação e o controle do espaço onde se instalam, constituindo comunidades simbólica e espacialmente segregadas. (CASTELL, 221 teresa) O padrão de vida das elites é almejado pelas classes médias. A burguesia, quando transita por áreas vips, camarotes de festas privadas, quando compra em determinadas boutiques, come em certos restaurantes, veste determinadas marcas, dita uma cultura internacional à medida que vive seu estilo de vida dispendioso. _________________________________________________________________________________ ²“um horizonte de espaço de fluxos a-histórico em rede, visando impor a sua lógica nos lugares segmentados e espalhados, cada vez menos relacionados uns com os outros, cada vez menos capazes de compartilhar códigos culturais” (Castells, 2002, p. 555) 83 Logo, dita não só um padrão de como devem ser os espaços como se coloca também como um padrão de vida modelo. Fazem assim uma homogeneização da cultura a nível mundial para transitarem ao seu bel prazer, construindo assim “cidades globais”(Sassen, 2001). Os "espaços dos lugares”, os quais detêm características culturais locais, com histórias e conjunturas únicas dão vez aos “espaços de fluxo”, “espaços de circulação e consumo, desligados do território e das pessoas que os habitam,”(SÁ, 2014. p.223). Esse processo acelerado de gentrificação além de por si só contribuir para a segregação social desapropria o residente de seu próprio território, o aliena a medida que descaracteriza o espaço drasticamente, ele perde sua história, seu vínculo com o lugar e as pessoas que convivem ali, que o construíram. “A primeira é perceptível pelo conjunto de edifícios semelhantes encontrados em todo o mundo e que se referem aos espaços extraterritoriais, espaços do déjà-vu (cf. Idem, ibidem), porque se parecem todos uns com os outros: estamos exatamente no mundo dos “não lugares”, onde o viajante não se sente nem estrangeiro nem “em sua casa”, e o autóctone sente-se estranho, residente, perdendo a singularidade do seu território.” (SÁ, 2014, p.221) Lembro bem de uma vez que estava voltando da escola com um amigo de infância e no momento em que estávamos nos despedindo ele me perguntou onde eu morava, eu disse a ele que era perto, ainda no mesmo bairro três quarteirões descendo a rua. Ele estranhou, falou que não era o mesmo bairro: “Aqui é alto Ipiranga, lá é o baixo Ipiranga”. E realmente entendo o que passou na cabeça dele quando falou aquilo, por mais que essa demarcação não fosse real. Onde eu morava era o lugar mal iluminado, que as ruas alagavam após chuvas mais fortes, que não tinham lojas chiques ou prédios de vinte andares. Já onde ele estava que era o ipiranga de verdade, em que todos moravam em condomínios ou casas de milhões de reais, que no começo do dia tomavam o café da manhã fora de casa em padarias gourmet. O bairro das esmalterias, das boutiques, das academias, dos restaurantes chiques, hamburguerias, barbearias e demais outros espaços inóspitos a mim por mais que morasse lá há anos. 84 Talvez por conta de toda essa pressão desde pequeno sentia vergonha de minha casa. Não conseguia chamar ninguém para visitá-la. Hoje compreendo melhor sua beleza. Em meio a tantos espaços palatáveis ela é difícil de engolir, é única, é um espaço que não é espaço, é lugar porque me encontro presente nele, em que, desperto, me construo à medida que sou construído, existe troca. Atualmente com cada irmão seguindo sua vida, saindo de casa, e meus pais, separados, precisando de dinheiro para terem seu próprio canto, não há mais como ficarmos aqui. Coincidentemente o fim da convivência em família, pais e irmãos, coincidiu com o fim da casa. Decidiram colocá-la à venda. Até então quem visitou não tinha planos de morar ali, mas sim de derrubá-la para aproveitar o terreno, então posso dizer que somos seus últimos moradores. Diante dessa cidade que devora tudo, minha casa não tem mais futuro, pois ela é lugar. É resistência, é história em meio ao esquecimento, não quer ser apagada. É o alicerce de um eu que não tem mais espaço. É curva dentro de reta. É mão que se sente potente, e desperta manufatura seu sentido. Sou grato por tudo que vivi aqui. 85 Conclusão Bem, não posso dizer que por aqui estou concluindo o trabalho por inteiro. Este ainda continua em movimento. Busco ao longo deste ano desmembrar os capítulos transformando-os literalmente em cartas. Algumas alterações serão necessárias, talvez incorpore ainda mais histórias e imagens, quem sabe eu ainda passe tudo à mão. Bem, nunca imaginei que seria tão afetado pelas palavras que eu mesmo escrevi. Na realidade não tinha o hábito de escrever cartas, mas sempre que recebia alguma ficava balançado, sempre foi claro a mim a potência desse tipo de escrita. Talvez por isso mesmo que tenha escrito de tal nesse linguajar, de fato foi algo inusitado, surgiu durante a pesquisa. Escrevia em meu caderno, desenhava e depois repassava digitando. Sinto que não trai minhas palavras, ao lançá-las me coloquei em jogo ao rememorar, coletar, imaginar, bagunçar, traduzir e reinventar as histórias de minha família. Compreendo melhor onde pertenço e o que sou a partir desse trabalho de arte. Como disse no último capítulo, me encontro nesse fechamento, nesse fim de ciclo que é a despedida da rua manifesto, 1583. É algo difícil, mas não faço daqui um funeral, muito pelo contrário, por aqui celebro algumas boas lembranças que levarei com muito carinho. 86 Ficha Catalográfica 1.Fotos antigas espalhadas na mesa (fotografia digital) 2. Foto de meu pai mais jovem preparando um café (fotografia digital) 3.Pequeno joãozinho guitarrista do Delfina Azevedo (fotografia digital) 4.“Ajax laranzul” (450 x 1050 pixels, pintura digital sobre