1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MANOLLO SEDANO DE OLIVEIRA O JUIZ DAS GARANTIAS E O SISTEMA ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO FRANCA 2021 2 MANOLLO SEDANO DE OLIVEIRA O JUIZ DAS GARANTIAS E O SISTEMA ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP), como pré-requisito para a obtenção do título de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Alberto Machado. FRANCA 2021 3 4 MANOLLO SEDANO DE OLIVEIRA O JUIZ DAS GARANTIAS E O SISTEMA ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO Trabalho de conclusão de curso submetido à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP), como pré- requisito para a obtenção do título de bacharel em Direito Franca, 13 de dezembro de 2022. BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. Antônio Alberto Machado ____________________________________ Professor Pedro Guilherme Borato ____________________________________ Professor João Victor Carloni de Carvalho 5 À minha avó Neusa de Moraes Sedano, que sempre estará viva em meu coração 6 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar e, portanto, o mais importante agradecimento, sem sombra de dúvidas vai para minha mãe: Katia Cristina de Moraes Sedano, mulher guerreira que sempre batalhou por suas conquistas, me ensinando o pouco que sei sobre a vida, sem ela nada disso se realizaria, fazendo o possível e o (quase) impossível para sempre me apoiar em minhas escolhas e decisões. Ao meu avô, Antônio Sedano Filho dono de um papel central em minha criação e ainda hoje, no auge de seus 81 anos, nos ensina diariamente sobre a vida e suas surpresas. À minha irmã, Isabella Cristina Sedano, que mesmo com nossas profundas diferenças, me inspira e apoia, ao mesmo tempo minha fã e ídolo. À Natália Kovacs, minha madrinha jurídica e personagem central na troca da graduação de História pelo Direito, sempre agregando na vida e no conhecimento jurídico À toda minha família: Wilson, Wagner, Márcia, Liliane, Luísa, Gabriel, Suellen e Bruno. Um agradecimento especialíssimo à República Sarjeta, minha segunda família que me acolheu em um período de enorme mudança. Em fevereiro de 2017 saí de São Paulo percorrendo 400 quilômetros rumo à (distante) cidade de Franca, e lá encontrei um local em que posso tranquilamente chamar de lar, o qual carregarei com carinho e para sempre nossas resenhas, momentos de alegria e tristeza que permearam essa jornada de 5 anos, tanto aos que tive a honra e o prazer de morar junto quanto aos veteranos que, infelizmente, não pude desfrutar da companhia nos anos dourados da graduação. Não posso deixar de mencionar a Z4, obrigado às Repúblicas: Curral, Zé Porcão e Frango com Cachaça, pela parceria, rolês e momentos inesquecíveis os quais em sua imensa maioria, não teriam cabimento de serem narrados nessa ocasião, mas estão perpetuados em minha memória. Ao Vinicius Braga Nascimento, vulgo “Aquamano”, irmão de outra mãe, fechamento certo e um dos responsáveis pela minha decisão em vir cursar a graduação na UNESP. Obrigado a UNESP e a todos os seus docentes, sei que nem de longe fui exemplo de aluno, mas aprendi algo em (quase) todas as aulas que frequentei, saio da Universidade com a certeza que evoluí, não só a nível de conhecimento jurídico, mas como cidadão. À cidade de Franca que me acolheu nesses 5 anos e foi meu lar, mesmo com a diferença gigantesca em relação à capital, ganhou um lugar eterno em meu coração. A todos aqueles que não mencionei especificamente, mas de alguma forma colaboraram nesse processo, quem é, sabe, e os de verdade eu sei quem são. 7 RESUMO O presente trabalho tem como escopo analisar a implementação da figura do Juiz das Garantias no Brasil e as suas consequências, sob a ótica do sistema processual acusatório, vigente no país desde a Constituição Federal de 1988. Em que pese haverem críticas à figura, o estudo buscará demonstrar que os benefícios que permeiam o instituto superam enormemente quaisquer problemas. Desse modo, buscaremos evidenciar brevemente o juiz das garantias nas legislações portuguesa e chilena, além da experiência empírica desenvolvida pelo professor Schünemann com base nos estudos de Leon Festinger e Martin Irle, demonstrando como a “teoria da dissonância cognitiva” afeta os seres humanos e assim, comprovar a imprescindibilidade da inserção do instituto no ordenamento jurídico pátrio, como forma de buscar cada vez mais um julgador imparcial, de forma a concretizar um processo penal democrático e constitucional. O método utilizado é o bibliográfico e o de abordagem é o sistêmico, dialético, dedutivo e comparativo. Após a análise é mister concluir que o Juiz das Garantias, a exemplo do que já acontece em outros países da América Latina e da Europa, é um avanço importante na concretização da imparcialidade do julgador e na busca de um julgamento sem “pré-conceitos” e com respeito às garantias e direitos fundamentais. Palavras-chave: Juiz das garantias; Teoria da dissonância cognitiva; Sistema acusatório. 8 ABSTRACT The present work aims to analyze the implementation of the figure of the Judge of Guarantees in Brazil and its consequences, from the perspective of the accusatory procedural system, in force in the country since the Federal Constitution of 1988. Despite criticisms of the figure, the study will seek to demonstrate that the benefits that permeate the institute vastly outweigh any problems. Thus, we will seek to briefly highlight the judge of guarantees in Portuguese and Chilean legislation, in addition to the empirical experience developed by Professor Schünemann based on studies by Leon Festinger and Martin Irle, demonstrating how the "cognitive dissonance theory" affects human beings and thus, to prove the indispensability of the institute's insertion in the national legal system, as a way to increasingly seek an impartial judge, in order to implement a democratic and constitutional criminal process. The method used is bibliographic and the approach is systemic, dialectical, deductive and comparative. After the analysis, it is necessary to conclude that the Judge of Guarantees, like what already happens in other countries in Latin America and Europe, is an important advance in the realization of the judge's impartiality and in the search for a judgment without "prejudices" and with respect to fundamental guarantees and rights. Key words: Judge of Guarantees; Theory of Cognitive Dissonance; Accusatory System 9 SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO..................................................................................................................09 2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS............................................................................11 2.1 Sistema inquisitório......................................................................................................11 2.2 Sistema acusatório........................................................................................................14 2.3 Sistema misto................................................................................................................16 2.4 Sistema processual brasileiro........................................................................................18 3. O JUIZ DAS GARANTIAS..............................................................................................21 3.1 Conceito........................................................................................................................23 4.A FUNÇÃO DO JUIZ NA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR BRASILEIRA............25 4.1 A problemática do inquérito policial.............................................................................25 5. A IMPARCIALIDADE DO JULGADOR.......................................................................29 5.1 O entendimento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos........................................32 5.2 Um importante julgado do STF....................................................................................33 6. A TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA...............................................................35 6.1 Efeitos da dissonância cognitiva...................................................................................36 6.2 Experimentos da Psicologia Social...............................................................................37 6.3 A Pesquisa do Professor Bernd Schünemann...............................................................38 7. O JUIZ DAS GARANTIAS EM OUTRAS LEGISLAÇÕES.......................................42 7.1 O Juiz da Instrução Português......................................................................................42 7.2 O “Juez de Garantía” Chileno......................................................................................43 8. A SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO INSTITUTO........................................................47 8.1 A audiência pública no STF sobre o Juiz das Garantias...............................................51 9. PRINCIPAIS CRÍTICAS À FIGURA............................................................................53 10. O ESTUDO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA........................................58 11. CONCLUSÃO.................................................................................................................64 12. BIBLIOGRAFIA............................................................................................................65 10 1. INTRODUÇÃO Iniciaremos o trabalho delineando a respeito dos sistemas processuais penais: inquisitório, acusatório e misto, além de examinarmos como se dá o papel do julgador em cada um deles, pois possuem diferenças marcantes entre si. Também comentaremos a respeito da classificação que as melhores doutrinas dão ao sistema processual vigente no Brasil. Passaremos a discorrer sobre o conceito do juiz das garantias e a sua tipificação legal com todas as funções que passará a exercer até o seu limite temporal de atuação que é o recebimento da denúncia. Depois, comentaremos o papel do julgador na investigação, visto que será o escopo de atuação do juiz das garantias e como a exclusão do inquérito policial foi uma medida acertada trazida pela lei 13.964/19. Após, dedicaremos um tópico para explicar a importância da imparcialidade do julgador dentro de um sistema acusatório e como a atual sistemática de apenas um juiz, acaba por minar essa tal imparcialidade, pelo excesso de informações e de decisões que o magistrado recebe e pode proferir antes mesmo de iniciada a instrução processual. Então, finalmente entraremos no tópico que a meu sentir, é o cerne de toda a discussão do cabimento e necessidade da implementação do instituto, um experimento da psicologia social desenvolvido pelo professor Leon Festinger, conhecida como “Teoria da Dissonância Cognitiva”. Explicaremos os efeitos da dissonância cognitiva nos indivíduos, comentaremos a respeito dos experimentos realizados e principalmente, sobre a paradigmática pesquisa do penalista alemão Bernd Schünemann realizada com juízes e promotores de seu país, demonstrando empiricamente como o excesso de contato do julgador com autos do inquérito pode influenciar sua convicção antes da instrução, gerando prejuízos irreversíveis na cognição daquele. Teceremos comentários acerca da paradigmática decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos sobre a impossibilidade de se ter um julgador imparcial e ao mesmo tempo com poderes investigatórios. Analisaremos o instituto do juiz das garantias na legislação portuguesa, pois claramente serviu de inspiração para ser implementado aqui em nosso país. Também demonstraremos a figura no ordenamento jurídico chileno. Traremos a íntegra das decisões liminares do STF que suspenderam a eficácia do instituto e com as devidas vênias, teceremos críticas às decisões dos Ministros, principalmente a última do Luiz Fux. 11 Haverá um tópico dedicado a demonstrar as críticas doutrinárias à figura e como os seus benefícios superam os possíveis malefícios. Por fim, colacionaremos excertos do estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça acerca da viabilidade da implementação do juiz das garantias em nosso país, mesmo com as desigualdades regionais. Finalmente concluiremos o presente trabalho, com o objetivo de defender a implementação do juiz das garantias, que se mostrará um avanço civilizatório e um marco no processo penal pátrio. 12 2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS Os sistemas processuais penais sofreram grandes modificações desde a sua criação, variando conforme o nível de autoritarismo de determinado Estado, afinal, o processo penal é o termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua Constituição1. Guilherme de Souza Nucci sustenta que existiram na história da humanidade, três sistemas regentes do processo penal, quais sejam: Inquisitivo; acusatório e misto2. É fato que não existem sistemas processuais puros, sendo que a construção teórica é mais aproximada de um ou de outro sistema, e que eles são absolutamente incompatíveis entre si, pois toda a estrutura do processo muda a depender de qual base se adota. Existe uma tendência doutrinária de se classificar o sistema inquisitório como mais tendente a um ideário punitivista, pois as características basilares que deram origem a ele, não guardam compromisso com os princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e os direitos fundamentais e garantias do réu. Por outro lado, há uma inclinação dos autores a classificarem um sistema acusatório de forma mais vinculada a uma lógica garantista, eis que, em tese, não se busca a punição a qualquer custo e em detrimento das garantias fundamentais do acusado, mas sim, o respeito às regras do jogo e a do devido processo legal. Para nossa análise, nos atentaremos mais aos dois primeiros, tão somente como forma de introduzir a necessidade da inserção do Juiz das Garantias em nosso ordenamento, não tendo como escopo esgotar o tema, mas apenas delineá-lo, afinal a mencionada figura tem relação direta com o tipo de processo penal que se quer privilegiar em determinado ordenamento jurídico. 2.1 Sistema inquisitório De acordo com o professor Renato Brasileiro de Lima, o sistema inquisitório ou inquisitorial, foi adotado pelo direito canônico a partir do século XIII, propagando-se por toda a Europa e perdurando até o século XVIII. Sobre o indigitado sistema, leciona o autor: 1 ARAGONESES ALONSO APUD LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 580. 2 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p 109. 13 “Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Nesse sistema, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicável. No sistema inquisitivo, não existe a obrigatoriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse. Trabalha o sistema inquisitório com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade real, absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao objeto do processo, quer em relação aos meios e métodos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso.”3 Típico dos regimes totalitários e ditatoriais, é um sistema processual em que o julgador possui muitos poderes concentrados em sua mão, visto que acusa, busca a prova e julga, na figura do juiz acusador ou inquisidor4. O acusado não é visto como um sujeito de direitos, mas como um mero objeto do processo, não havendo que se falar em contraditório, ampla defesa, pois muitas vezes os processos corriam de maneira sigilosa. A Igreja Católica teve uma importante colaboração na perpetuação desse sistema durante os séculos, pois foi nesse período em que se instituiu o Tribunal da Inquisição, como forma de conter toda manifestação que fosse de encontro aos preceitos católicos. Como ensina o ilustríssimo professor Aury Lopes Júnior, com o acúmulo das funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios a este, resta fulminada a imparcialidade, pois, a mesma pessoa que busca a prova, decide a partir daquela que ela própria produziu, sendo óbvio que isso afetará de sobremaneira a qualidade da decisão proferida5. Com essa dinâmica processual, tem-se que o processo se torna um mero teatro, visto que não havia de fato um julgamento justo, as chances de um acusado ser absolvidos eram praticamente nulas e muitas vezes a condenação já estava definida antes mesmo do rito ser iniciado. Segundo Aury, foi a partir do século XII em que ocorreram mudanças no modelo processual penal da época, havendo uma transição do modelo acusatório para o inquisitório, o 3 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8ªed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 42. 4 Idem 5 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 56 14 que fortalecia de sobremaneira a Igreja Católica, pois esta já não tinha mais a hegemonia que outrora possuía na Europa, e vinha tendo seu domínio questionado.6 Sob esse contexto, a Igreja então se lançou na empreitada de retomar sua influência que gozava há alguns séculos antes e o fez através da força bruta, impondo o modelo de processo que servia muito bem aos seus interesses, considerando o réu um herege e, portanto, merecedor do castigo. O juiz aqui era considerado apenas um meio para que se atingisse a condenação. Com o magistrado ocupando um papel central no processo, buscava-se a “verdade real” do processo, e se utilizavam dos mais nefastos métodos de tortura para que esse fim fosse atingido, sendo que o julgador possuía amplos poderes probatórios e podia inclusive iniciar o processo de ofício, sem provocação, o que por óbvio demonstra o total descompromisso desse sistema com a verdadeira justiça. A respeito do papel do juiz no sistema inquisitivo, Renato Brasileiro aduz: “No sistema inquisitivo, não existe a obrigatoriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse”.7 E continua acerca do poder do juiz sobre a produção probatória: Trabalha o sistema inquisitório com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade real, absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao objeto do processo, quer em relação aos meios e métodos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso. No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito e sigiloso, mas essas formas não lhe eram essenciais. Pode se conceber o processo inquisitivo com as formas orais e públicas.8 Tal sistema restou vigente em grande parte do mundo até a Revolução Francesa, na qual os preceitos valorização do ser humano indicaram que o sistema inquisitivo deveria ser superado, pois obviamente implicava em um processo absolutamente injusto. Nas palavras de Geraldo Prado: 6 Idem. p 190. 7 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 42. 8 Idem p. 42/43. 15 “(...), a função predominante do processo inquisitório consiste na realização do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o objetivo primordial. No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança pública no exercício do magistério penal.”9 Pelas características brevemente explanadas, é lógico concluir que tal sistema predomina em regimes totalitários descompromissados com a democracia, na qual a punição prevalece sobre as regras do jogo. Passaremos então a comentar o sistema acusatório, que constitui sem sombra de dúvidas um avanço civilizatório no processo penal. 2.2 Sistema acusatório Diferentemente do anterior, o sistema acusatório se caracteriza pela presença de partes processuais distintas, cada qual com a sua função muito bem delineada. Ao órgão acusador, que no Brasil é o Ministério Público o titular da ação penal, nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, cabe o início da ação e a produção probatória no sentido de demonstrar a autoria e a materialidade delitiva. A Defesa, por óbvio, deve rebater as hipóteses acusatórias em busca da absolvição, desclassificação, ou pelo menos de uma redução da reprimenda. Nucci caracteriza o supracitado sistema da seguinte maneira: “Possui nítida separação entre o órgão acusador e o julgador; há liberdade de acusação, reconhecido o direito ao ofendido e a qualquer cidadão; predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes no processo; vigora a publicidade do procedimento; o contraditório está presente; existe a possibilidade de recusa do julgador; há livre sistema de produção de provas; predomina maior participação popular na justiça penal e a liberdade do réu é a regra.”10 Vejamos a definição do sistema acusatório nas palavras de Renato Brasileiro de Lima: “De maneira diversa, o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial.4 Historicamente, tem como suas características a oralidade e a publicidade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a regra era que o acusado permanecesse solto durante 9 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 173. 10 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p. 111. 16 o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito e sigiloso. Chama-se “acusatório” porque, à luz deste sistema, ninguém poderá ser chamado a juízo sem que haja uma acusação, por meio da qual o fato imputado seja narrado com todas as suas circunstâncias. Daí, aliás, o porquê da existência do próprio Ministério Público como titular da ação penal pública. Ora, se é natural que o acusado tenha uma tendência a negar sua culpa e sustentar sua inocência, se acaso não houvesse a presença de um órgão acusador, restaria ao julgador o papel de confrontar o acusado no processo, fulminando sua imparcialidade. Como corolário, tem-se que o processo penal se constitui de um actum trium personarum, integrado por sujeitos parciais e um imparcial – partes e juiz, respectivamente. Somente assim será possível preservar o juiz na condição de terceiro desinteressado em relação às partes, estando alheio aos interesses processuais Mas esta mera separação das funções de acusar e julgar não basta para a caracterização do sistema acusatório, porquanto a imparcialidade do magistrado não estará resguardada enquanto o juiz não for estranho à atividade investigatória e instrutória. Com efeito, de nada adianta a existência de pessoas diversas no exercício das funções do magistrado e do órgão estatal de acusação se, na prática, há, por parte daquele, uma usurpação das atribuições deste, explícita ou implicitamente, a exemplo do que ocorre quando o magistrado requisita a instauração de um inquérito policial, dá início a um processo penal de ofício (processo judicialiforme), produz provas e decreta prisões cautelares sem requerimento das partes, etc. Portanto, quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, portanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal”11. Temos como principal mudança em relação ao inquisitório é em relação ao julgador, pois aqui, ele adquire um status de terceiro imparcial ou expressão do professor Aury: um juiz- espectador12. É essa separação de funções, com a gestão da prova incumbida às partes e não ao magistrado, que cria condições para que a imparcialidade se efetive. Dessa forma, o juiz não pode ter iniciativa probatória, sob pena de usurpar a competência das partes e ter sua imparcialidade prejudicada, gerando imensos prejuízos cognitivos que na ampla maioria das vezes, acabarão por prejudicar o réu. O clássico Luigi Ferrajoli elenca como características do sistema acusatório, a separação rígida entre o juiz e a acusação, a paridade entre acusação e defesa, a publicidade e oralidade do julgamento13. 11 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p.43/44. 12 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p.58 13 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518. 17 O catedrático professor nos ensina: Por exemplo, se fazem parte tanto do modelo teórico como da tradição histórica do processo acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento [...] Justamente, pode se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.14 O professor Aury elenca como as principais características do mencionado sistema: Na atualidade – e a luz do sistema constitucional vigente – pode-se afirmar que a forma acusatória se caracteriza por: a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição15. É inegável que a adoção do sistema acusatório demarca uma nítida evolução democrática em relação ao inquisitivo, pois o acusado deixa de ser um mero objeto do processo, passando a ser um sujeito de direitos e garantias, um passo importantíssimo em direção a um processo penal menos punitivista e mais preocupado com as garantias fundamentais, sendo a presunção de inocência a mais sagrada delas. A partir dela, lança-se o ônus probatório de forma completa ao órgão acusador, cabendo a ele a missão de provar, para além da dúvida razoável, os indícios de autoria e materialidade de determinado ilícito penal. Ao acusado, não cabe o papel de provar nada, afinal ele já é presumidamente inocente, sendo que só deverá sair desse status após robustas provas pesando contra si. 2.3 Sistema misto O sistema misto, veio à tona após a Revolução Francesa e uniu as características dos dois anteriores, sendo dividido em duas principais fases: a instrução preliminar, que contém 14 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 451/452. 15 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 57/58. 18 elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento, com a predominância do modelo acusatório. No ensinamento de Renato Brasileiro: “Após se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que instituiu o denominado sistema processual misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês. É chamado de sistema misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, destituída de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação.”16 No procedimento preliminar, o procedimento é secreto, escrito e sem contraditório, enquanto que no segundo, há a oralidade, publicidade, o contraditório, a concentração dos atos processuais, a intervenção de juízes populares e a livre apreciação das provas17. Para o professor Aury, tal conceituação é insuficiente para caracterizar o sistema processual brasileiro, afinal não há nenhum modelo no mundo que consegue aplicar de forma pura quaisquer um dos outros. E propõe uma análise sobre o núcleo fundante presente na estrutura processual, de modo a definir para qual lado a estrutura pende, se a gestão da prova está nas mãos do magistrado é o inquisitivo, já se as partes se incumbem da prova, então é o acusatório que se sobressai.18 A respeito do sistema misto, ensina o professor: “Ora, afirmar que o sistema é misto é absolutamente insuficiente, é um reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros (são tipos históricos), todos são mistos. A questão é, identificar o princípio informador de cada sistema, para então classifica-lo como inquisitório ou acusatório, pois essa classificação feita a partir do seu núcleo é de extrema relevância.19 Diante de tantas diferenças conceituais, os autores divergem sobre qual é o sistema processual adotado em nosso país, vejamos a seguir o que os doutrinadores dizem a respeito. 16 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8ªed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 45. 17 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p 112/113. 18 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p.61. 19 LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 215. 19 2.4 Sistema processual brasileiro Não há consenso na doutrina acerca de qual modelo predomina no Brasil, havendo fortes e respeitáveis posições que o caracterizam de várias formas. Guilherme de Souza Nucci, coloca como marco de mudança de paradigma a lei 13.964/2019. Pois para ele, antes do advento da legislação, o sistema adotado no Brasil era o misto, eis que presente uma clara distinção entre a fase do inquérito policial ou da investigação preliminar, onde os postulados acusatórios não se aplicam, e a fase de instrução, que deve respeitar os princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório, etc. Após a vigência da indigitada lei, ele argumenta que vige atualmente o sistema acusatório mitigado, pois os poderes instrutórios do julgador ainda se fazem presentes.20 Segue o teor da lição do Professor Nucci: O sistema adotado no Brasil era o misto; hoje, após a reforma realizada pela Lei 13.964/2019, é o acusatório mitigado. Na Constituição Federal de 1988, foram delineados vários princípios processuais penais, que apontam para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indicam um sistema acusatório, mas não o impõem, pois quem cria, realmente, as regras processuais penais a seguir é o Código de Processo Penal. De outra parte, encontram-se na Constituição as normas prevendo a existência da polícia judiciária, encarregada da investigação criminal. Para essa fase, por óbvio, os postulados acusatórios não se aplicam. A adoção de princípios acusatórios não significa, em hipótese alguma, a eleição de um sistema de persecução penal exclusivamente calcado nesse molde. É preciso que a legislação ordinária acompanhe esses princípios, estabelecendo ritos, procedimentos, regras, meios de prova, recursos etc. Ou que os Tribunais sigam muito mais a CF do que o Código de Processo Penal, o que não ocorre.21 Por outro lado, Renato Brasileiro de Lima, argumenta que nosso sistema é tipicamente acusatório, pois a Constituição Federal o acolheu explicitamente, com a delegação privativa do Ministério Público para a propositura da ação penal: “Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória e na fase processual, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais, do Ministério Público e, no curso da instrução processual penal, das partes. É exatamente nesse sentido, aliás, o art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19 (Pacote 20 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p. 115/116 21 Idem p. 115/116 20 Anticrime), segundo o qual “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” 22 Em uma posição divergente, porém muito bem fundamentada, Aury Lopes Júnior defende que até o advento da lei 11.964/2019, era vigente no processo penal brasileiro o sistema neoinquisitorial, pois alguns dispositivos do CPP davam aos magistrados poderes que vão além do que se é esperado em um sistema tipicamente acusatório: O processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitório se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador era inquisitivo, pois a gestão da prova estava nas mãos do juiz.23 Dentre os dispositivos presentes no CPP que guardam características inquisitoriais, podemos mencionar a possibilidade de determinar, de ofício, o sequestro dos bens do acusado (art. 127 do CPP); a faculdade de ordenar a produção de provas de ofício (art. 156, I, do CPP); realizar a oitiva de testemunhas para além das indicadas pelas partes (art. 209 do CPP); ordenar, de ofício, o mandado de busca (art. 242 do CPP) e um dos artigos mais bizarros que ainda subsistem em nosso ordenamento jurídico, o qual permite ao juiz condenar mesmo que o órgão acusador tenha pleiteado a absolvição e reconhecer agravantes ainda que não tenham sido arguidas (art. 385 do CPP). Não faltam exemplos de artigos que vão totalmente de encontro ao sistema processual que foi desenhado na Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, consignado pela lei 13.964/2019, expressamente no art. 3º-A do Código de Processo Penal, o que os torna flagrantemente inconstitucionais. Com a alteração legislativa, é esperado uma mudança de mentalidade das partes do processo, cabendo ao Ministério Público uma maior responsabilidade na hora de produzir as provas, pois caso não consiga cumprir essa função de forma adequada, não poderá o julgador, dentro do que se entende por sistema acusatório, substituir o Parquet na produção probatória, devendo se manter alheio a atuação das partes. Ocorre que na prática, a teoria é outra e a mentalidade dos operadores do direito em nosso país é conservadora e resistente a mudanças progressistas. O movimento que os professores Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa apelidam de MSI-Movimento da 22 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8ªed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p.44 23 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p.65 21 Sabotagem Inquisitorial24, que basicamente consiste em um grupo de operadores do direito que se posicionam contrários ao avanço legislativo que foi a introdução de um sistema processual tipicamente acusatório. Ainda que a alteração legislativa represente um importante marco de avanço civilizatório em nosso processo penal e, consequentemente, nossa democracia, é necessário que essa cultura inquisitiva seja extirpada da prática forense, pois caso não o seja, os abusos e as ilegalidades continuaram ocorrendo. Falaremos no próximo capítulo sobre a introdução do instituto do Juiz das Garantias, que foi disciplinado nos arts. 3ºA- a 3ºF do Código de Processo Penal, considerado por muitos o maior avanço legislativo da nossa história recente. 24LOPES JÚNIOR, Aury e MORAIS DA ROSA, Alexandre. A "estrutura acusatória" atacada pelo MSI - Movimento Sabotagem Inquisitória. Revista Consultor Jurídico. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem- inquisitoria. Acesso em 06 out. 2021 22 3. O JUIZ DAS GARANTIAS O juiz das garantias surgiu na legislação brasileiro com o advento da lei 13.964/2019, o chamado “Pacote Anticrime”, estando previsto nos arts. 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal, in verbis: Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal; II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código; III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo; VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente; VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo; IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento; X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação; XI - decidir sobre os requerimentos de: a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) acesso a informações sigilosas; 23 e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental; XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento; XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia; XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação; XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. § 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência. § 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada. Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. § 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento. § 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias § 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. § 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias. Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo . 24 Parágrafo único. Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo. Art. 3º-E. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal. Art. 3º-F. O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal. Parágrafo único. Por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em 180 (cento e oitenta) dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação normativa aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão25. 3.1 CONCEITO Renato Brasileiro de Lima conceitua o instituto da seguinte maneira: “Na dicção do art. 3º-B, caput, do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 13.964/19, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal. Cuida-se de verdadeira espécie de competência funcional por fase do processo, é dizer, a depender da fase da persecução penal em que estivermos, a competência será de um ou de outro juiz: entre a instauração da investigação criminal e o recebimento da denúncia (ou queixa), a competência será do juiz das garantias, que ficará impedido de funcionar no processo; após o recebimento da peça acusatória e, pelo menos em tese, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (ou absolutória), a competência será do juiz da instrução e julgamento. Objetiva-se, assim, minimizar ao máximo as chances de contaminação subjetiva do juiz da causa, potencializando, pois, a sua imparcialidade, seguindo na contramão da sistemática até então vigente, quando a prática de qualquer ato decisório pelo juiz na fase investigatória tornava-o prevento para prosseguir no feito até o julgamento final (CPP, art. 75, parágrafo único, e art. 83)”26 Vale pontuar que apesar de ser uma novidade em nosso ordenamento jurídico, a competência do juiz das garantias não é nova, ela já existe atualmente, mas é exercida pelo juiz que posteriormente presidirá a instrução e julgará o caso, fato esse que gera inúmeros problemas que serão explorados em tópicos posteriores. 25 BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689. Código de Processo Penal. Decretado em 3 de outubro de 1941. Disponível em: . Acesso em 06 out. 2021. 26 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8ªed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 113. 25 Sobre o instituto, a valiosa lição do mestre Aury: “Nesse contexto, a função do juiz é atuar como garantidor dos direitos do acusado no processo penal. Esse é o lugar do juiz das garantias, nos termos do art.3º-C do CPP: Sem dúvida uma das mais importantes inovações da Lei n. 13.964/2019 foi a recepção do instituto – já consagrado há décadas em diversos países e por nós defendidos desde 1999 – do juiz das garantias. O nome dado não foi dos melhores, principalmente porque no Brasil existe uma costumeira e errônea confusão entre garantias e impunidade. Talvez tivesse andado melhor o legislador se tivesse seguido a sistemática italiana e denominado de “juiz da investigação” (il giudice per le indagini preliminari), talvez evitasse uma parcela da injustificada resistência.”27 Guilherme de Souza Nucci ainda vai além e chega a teorizar um caminho possível do funcionamento do instituto na prática: “A Lei 13.964/2019 criou a função de juiz das garantias, mas não o cargo. Nem seria cabível fazê-lo. Portanto, cuida-se de uma atividade do Tribunal ao qual pertença o juiz de primeira instância a ser designado como juiz das garantias. Há Comarcas em que funciona um setor formado somente de magistrados que lidam com os inquéritos policiais (ex.: em SP, capital, o Departamento de Inquéritos Policiais – DIPO). Serão eles os juízes das garantias. Porém, em outras Comarcas, cabe à direção do Tribunal apontar o juiz competente para essa função. Imagine-se uma Comarca em que existem três Varas Criminais. Deve designar-se o juiz da 1.ª Vara para ser o juiz das garantias da 3.ª Vara; o da 2.ª será o juiz das garantias da 1.ª; o da 3.ª será o juiz das garantias da 1.ª. Enfim, forma-se um sistema de rodízio. O art. 3.º-E do CPP menciona que esses magistrados serão designados “observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”. Eis um preceito inviável. Nunca houve um critério objetivo para a designação de juízes encarregados de lidar com os inquéritos policiais; não será agora que os tribunais conseguirão inventar alguns. Aliás, o critério mais objetivo que existe na magistratura é a antiguidade. Entretanto, não parece ter qualquer sentido designar os juízes mais antigos para essa função, porque não há nenhuma relação de causa e efeito”28 Não sabemos ainda se o professor Nucci acertou a forma como ocorrerá o funcionamento dessa nova figura na prática, pois os supracitados artigos se encontram suspensos pela decisão liminar do Ministro Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal no bojo das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, o que será comentado em tópico abaixo. Agora iniciaremos a explicação a respeito da atuação do magistrado no inquérito policial, e como a nova dinâmica do juiz das garantias irá alterar as funções que hoje são aglutinadas na figura de um único julgador. 27 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 186/187. 28 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p. 318. 26 4. A FUNÇÃO DO JUIZ NA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR Como vimos no tópico anterior, não são poucas as decisões que o julgador pode vir a tomar no curso do Inquérito Policial, para além da audiência de custódia e a verificação da legalidade da prisão em flagrante manutenção de eventual prisão preventiva, substituição da prisão por outras medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP, o juiz tem uma ampla gama de possibilidades de decisão antes mesmo da formação do processo em si. Decidir sobre produção antecipada de provas, pedidos de interceptação telefônica, afastamento de sigilo fiscal, bancário; busca e apreensão domiciliar. Nada disso passa imune à cognição do julgador, que querendo, ou não, já vai formando uma imagem mental do acusado e acerca do delito29. É exatamente por esse acúmulo de funções na mão do magistrado é que despontam questionamentos e críticas acerca da sua atuação, muitos são os argumentos apontando no sentido de que a imparcialidade do julgador está fulminada, a partir do momento em que ele toma uma decisão no curso da investigação preliminar. O Juiz das Garantias surge então como um novo paradigma no Direito Processual Brasileiro, eis que modificaria fortemente o funcionamento da dinâmica processual como conhecemos hoje, pois passaria a atuar no inquérito policial até o recebimento da denúncia, ocasião em que os autos seriam enviados ao julgador que será responsável pela instrução processual e, posteriormente, pela decisão de mérito. 4.1 A Problemática do Inquérito Policial Após muitas críticas doutrinárias a respeito da presença física dos autos do inquérito no processo penal, o pacote anticrime finalmente introduziu em seu bojo, a exclusão física do inquérito policial. Diz o art. 3º-C, §§3º e 4º da indigitada lei: § 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. 29 LOPES JÚNIOR, Aury. Teoria da dissonância cognitiva ajuda a compreender imparcialidade do juiz. Revista Consultor Jurídico. 2014. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia- cognitiva-imparcialidade-juiz. Acesso em 02 out 2021. 27 § 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias. Esse fato gerou, a priori, uma comemoração uníssona nos entusiastas de um processo penal democrático, acusatório e constitucional, pois são muitas as críticas do atual sistema em que o julgador tem livre acesso aos elementos produzidos sem o contraditório e ampla defesa. Todavia, a felicidade não durou muito, já que juntamente com o juiz das garantias, esse dispositivo também está suspenso pela decisão liminar do Ministro Luiz Fux. A doutrina mais garantista e atenta aos anseios do processo penal alinhado à Constituição Federal, sempre fez questão de diferenciar os atos de investigação (inquérito policial) dos atos de prova (provas produzidas sob o crivo do contraditório). E de apontar os prejuízos que a não exclusão do inquérito em relação ao processo pode gerar. Aury Lopes Júnior, pontua com a maestria que lhe é característica, sobre a alteração trazida pela nova lei: “Trata-se de medida importantíssima para que os atos da investigação preliminar (seja ela qual for) não ingressem no processo. Essa exclusão (ou não inclusão) serve exatamente para evitar a contaminação do juiz da instrução (portanto, o que irá julgar) pelos elementos obtidos no inquérito, com severas limitações de contraditório, defesa e, principalmente, que não servem e não se destinam à sentença. O objetivo é a absoluta originalità do processo penal, de modo que na fase pré-processual não é atribuído o poder de aquisição da prova. A função do inquérito e de qualquer sistema de investigação preliminar é recolher elementos úteis à determinação do fato e da autoria, em grau de probabilidade, para justificar a ação penal, como explicamos anteriormente ao fazer a distinção entre atos de investigação e atos de prova. Com isso, evita-se a contaminação e garante-se que a valoração probatória recaia exclusivamente sobre aqueles atos praticados na fase processual e com todas as garantias. Somente através da exclusão do inquérito dos autos do processo é que se evitará a condenação baseada em meros atos de investigação, ao mesmo tempo em que se efetivará sua função endoprocedimental.”30 O objetivo desse procedimento, é manter a originalidade cognitiva do Juiz em relação ao caso concreto, pois quanto menos informações da investigação chegarem ao conhecimento do juiz, menos contaminado ele estará e mais chances haverá de ocorrer um julgamento justo e com base nos elementos produzidos em audiência, respeitando assim os chamados princípios basilares do processo, a ampla defesa e o contraditório. Renato Brasileiro de Lima, também avalia a mudança como benéfica: “Enfim, ante a criação do juiz· das garantias, o ideal é concluir que a investigação preliminar não 1nais poderá integrar os autos do processo judicial, salvo .no tocante às provas irrepetíveis, antecipadas e meios de obtenção de prova; Essa, verdadeira medida de redução de danos vem ao encontro não apenas do princípio do contraditório 30 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 276/277. 28 e da· ampla defesa, mas também terá o condão de evitar a contaminação .do juiz, e os prejuízos, por sua parte, de uma primeira impressão unilateral e negativa contra o acusado, certamente capaz de influenciar sua cognição para a condução do processo subsequente, colocando em risco a imparcialidade, princípio supremo do processo penal. O que se busca com isso é o afastamento da autoridade judiciária competente para o julgamento do processo da fase pré-processual, inclusive no que se refere ao simples contato visual com os elementos de informação nesta produzidos. Afinal, este é o objetivo precípuo da própria criação da figura do juiz das garantias, que visa permitir que o julgador tenha o seu primeiro contato com o caso penal, originalmente, apenas mediante um processo em contraditório. Logo, de nada adiantaria a introdução do juiz das garantias na tutela da fase investigatória, objetivando-se afastar o julgador do processo da fase preliminar investigatória, se ainda se permitisse que o juiz da causa pudesse ter livre e irrestrito contato com os elementos informativos nela produzidos.31 Entretanto, o professor pontua uma contradição importante a respeito da nova lei e a exclusão dos autos do inquérito do processo. Na opinião do autor, há 3 (três) situações diversas em que tal exclusão geraria um imenso problema ao julgador, são eles: a) Absolvição sumária (CPP, art. 397); b) Obrigatoriedade de reexame da necessidade das medidas cautelares em curso pelo juiz da instrução e até 10 dias após o recebimento da denúncia pelo juiz das garantias (CPP, art. 3º-C, § 2º); c) Obrigatoriedade, por parte do juiz da instrução e julgamento, de revisar a necessidade da manutenção da prisão preventiva a cada 90 dias, sob pena de ilegalidade da medida (CPP, art. 316, parágrafo único).32 A problemática se encontra no fato de que as três decisões supracitadas, deverão ser proferidas pelo juiz da instrução e julgamento em um momento procedimental muito próximo ao do recebimento da denúncia pelo juiz das garantias. Logo, muito provavelmente, não terá iniciado a instrução do processo judicial de forma a conferir um substrato probatório para que se forme o convencimento do julgador acerca da necessidade ou não da decretação dessas medidas. Ocorre que com a mudança, caso não se trate de provas irrepetíveis ou provas antecipadas, mas somente elementos investigativos do inquérito, o juiz da instrução ficará ao relento para tomar a sua decisão, tendo que tomá-la praticamente às cegas.33 31 LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19 - Artigo por Artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 175. 32 LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19 - Artigo por Artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 176 33 Idem. 29 Parece-nos uma lacuna que o legislador não deu conta de suprir, resta saber se a jurisprudência conseguirá mitigar os possíveis efeitos maléficos dessa falha, ou se realmente haverão decisões em que não se terá o material probatório suficiente para fundamentar determinadas disposições. A seguir, teceremos comentários sobre um dos temas centrais no que diz respeito a justificativa para que se implemente o sistema de duplo juiz, a imparcialidade do magistrado, que na atual sistemática, conforme tentaremos demonstrar, não acontece de forma plena, prejudicando de forma inconsciente milhares ou até milhões de réus Brasil a dentro. 30 5 A IMPARCIALIDADE DO JULGADOR Em teoria, é sabido que vige em nossa legislação o famigerado princípio do juiz natural, no qual é vedado a criação de tribunais de exceção para o julgamento de determinados casos. A Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, consagrou esse princípio nos incisos XXXVII e LIII, in verbis: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; (...) LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente34". E mais, o Pacto de San José da Costa Rica em seu art. 8º, 1, que foi incorporado ao sistema jurídico brasileiro, normatiza o direito de toda pessoa ser julgada por um juiz imparcial. Em que pese o assunto estar disciplinado na Constituição Federal, ainda subsistem discussões mais profundas sobre a imparcialidade, sendo um dos temas centrais na avaliação da pertinência da inserção do Juiz de Garantias no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, a questão da imparcialidade do juiz, e como o nosso sistema processual penal, na visão importantes autores, acaba mitigando e as vezes até a destruindo por completo. Aury Lopes Júnior a respeito da importância da posição do magistrado: “Pretendemos, neste breve ensaio, demonstrar ainda que a posição do juiz no processo penal é fundante do sistema processual. Significa compreender que o processo penal – enquanto um sistema de reparto de justiça por um terceiro imparcial (já que a Imparcialidade é o Princípio Supremo do Processo [Werner Goldschmidt]) = está estruturado a partir da posição ocupada pelo juiz. Nesta estrutura dialética (actum trium personarum) a posição do juiz é crucial para o (des)equilíbrio de todo o sistema de administração da justiça (e do processo, por elementar). Se a imparcialidade é o Princípio Supremo, deve ser compreendido que somente um processo penal acusatório, que mantenha o juiz afastado da iniciativa e gestão da prova, cria as condições de possibilidade para termos um juiz imparcial. Impossível a imparcialidade do juiz em uma estrutura inquisitória.35 34 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 35 LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 212. 31 A imparcialidade do juiz é corolário da prestação jurisdicional contemporânea, celebrada como uma grande conquista, vinda à baila com a Constituição Federal de 1988, constituindo um passo crucial na caminhada para a democratização do Processo Penal Brasileiro. Para Luigi Ferrajoli, a imparcialidade é basilar na legitimação do julgador: “Os juízes, ao contrário, não procuram um interesse pré-judicial, mas só a aproximação do verdadeiro nas únicas causas às vezes julgadas, após um contraditório entre sujeitos portadores de interesses em um conflito. Não só por razões estruturais, mas também por razões funcionais, enquanto a atividade administrativa é discricionária ou subordinada a diretivas superiores, a atividade jurisdicional é privada substancialmente de orientações políticas porque substancialmente, mais que formalmente, também vinculada à lei.”36 Fato é que todo ser humano que convive em sociedade carrega consigo valores, opiniões, métodos e toda uma carga de pré-compreensões a respeito dos mais diversos assuntos, seja pela influência da família, religião, professores ou até mesmo suas experiências pessoais. Razão pela qual consideramos que é absolutamente impossível que alguém consiga ser totalmente neutro diante de alguma situação que venha a tomar conhecimento. Por esse motivo, quanto menos contato o julgador tiver com os elementos da investigação preliminar, mais chance temos dele chegar próximo da imparcialidade que se espera para um julgamento justo e dentro dos parâmetros estabelecidos na legislação constitucional, penal e processual penal. A imparcialidade se divide em duas, a objetiva, que tem a ver com o julgador e sua relação com o caso penal, e a subjetiva, entre o juiz e os envolvidos. Tamanha é sua importância, que os professores Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa, afirmam que a garantia de jurisdição não passa de uma fábula quando não se tem um juiz imparcial37. Aury caracteriza a imparcialidade subjetiva como: A imparcialidade subjetiva diz respeito ao estado anímico do juiz, isto é, à ausência de prejulgamentos em relação àquele caso penal e seu autor. É a inexistência de prévia tomada de decisão, capaz de gerar os pré-juízos que causam um imenso prejuízo38. Já a imparcialidade objetiva: A imparcialidade objetiva diz respeito a se tal juiz se encontra em uma situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida razoável acerca de sua 36 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.533/534. 37 LOPES JÚNIOR, Aury. Quando o juiz já sabia: a importância da originalidade cognitiva no Processo Penal. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-29/limite-penal-quando-juiz- sabia-importancia-originalidade-cognitiva-processo-penal?imprimir=1#_ftnref3”. Acesso em: 13 out. 2021. 38 LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p.107 32 imparcialidade. Em ambos os casos, a parcialidade cria a desconfiança e a incerteza na comunidade e suas instituições. Não basta estar subjetivamente protegido; é importante que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial39. Continuam os professores, opinando no sentido de que a forma mais correta de se garantir de fato a jurisdição, com todas as suas condições inerentes, incluindo a imparcialidade, é a do julgador ser um terceiro alheio e ignorante em relação ao conteúdo probatório. Com mais razão ainda, deveria ser assim em relação ao inquérito policial, elaborado sem a participação da defesa, mas tão somente do Ministério Público, Autoridade Policial e o Juiz de Direito40. Acerca da importância da imparcialidade para a concretização verdadeira de um sistema tipicamente acusatório: É importante destacar que a posição do “juiz” é fundante da estrutura processual. Quando o sistema aplicado mantém o juiz afastado da iniciativa probatória (da busca de ofício da prova), fortalece-se a estrutura dialética e, acima de tudo, assegura-se a imparcialidade do julgador. O estudo dos sistemas processuais penais na atualidade tem que ser visto com o “olhar da complexidade” e não mais com o “olhar da Idade Média”. Significa dizer que a configuração do “sistema processual” deve atentar para a garantia da “imparcialidade do julgador”, a eficácia do contraditório e das demais regras do devido processo penal, tudo isso à luz da Constituição. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal. Em última análise, é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual41. É bem verdade que não é possível um julgamento justo sem a máxima garantia que o juiz será imparcial, e para a concretização do sistema acusatório será necessário que para além da alteração normativa, que se mude também a mentalidade dos operadores do direito, mas inegavelmente, o juiz das garantias e a expressa previsão no CPP que adotamos o sistema acusatório é um avanço importante, esperamos que as coisas continuem caminhando nessa direção. 39 Idem. p.112 40 Idem. p 212 41 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p.58/59. 33 5.1 O Entendimento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) já se manifestou a respeito da incompatibilidade de um julgador acumular pra si as funções simultâneas de investigação e julgamento, especialmente nos casos Piersack, de 01/10/1982 e De Cubber, de 26/10/1984, constituindo uma violação ao consagrado direito ao juiz imparcial, no art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, de 1950.42 Essa decisão, tomada há quase quatro décadas, foi paradigmática no entendimento de que um magistrado que investiga, está contaminado com concepções que são impossíveis de se livrar, o que implica na total morte de qualquer imparcialidade que se possa cogitar. O TEDH entendeu que um juiz-instrutor não possui a imparcialidade objetiva, que de acordo com o que já explicamos em tópico anterior, resulta da relação do julgador com o objeto do processo. O contato desse juiz com elementos inquisitórios constitui um óbice insuperável do ponto de vista interno, somente sendo superado, no caso brasileiro, com a introdução de um novo juiz responsável única e exclusivamente pela instrução e pelo julgamento. Sobre o caso, comenta Renato Brasileiro: Paradigmático, nesse sentido, é o caso De Cubber vs. Bélgica, quando o TEDH se manifestou sobre a legitimidade de um julgamento proferido por uma Corte de Justiça composta por 3 juízes, um dos quais teria conduzido a investigação do caso por quase dois anos, não apenas decretando a prisão do suspeito, mas também o interrogando e indeferindo requerimentos de liberdade e de trancamento da investigação. Na visão do TEDH, esse juiz investigador teria, na prática, o mesmo status de um oficial de investigação da polícia, cuja atuação é subordinada à supervisão do Ministério Público. Ante a constatação de que esse juiz investigador teria adquirido extenso conhecimento sobre os fatos delituosos, o Tribunal entendeu que isso permitiria crer, tanto ao acusado quanto à sociedade em geral, que o magistrado já teria formado sua convicção sobre a culpabilidade do acusado mesmo antes do julgamento, carecendo, pois, da necessária imparcialidade para julgar como terceiro desinteressado. Concluiu, assim, ter havido violação da imparcialidade no seu aspecto objetivo, vez que o sucessivo exercício das funções de juiz investigador e de magistrado julgador justificaria a dúvida acerca da perda da sua imparcialidade43. Nota-se que a decisão vai ao encontro da ideia de separação do juiz que atua na investigação preliminar do que presidirá a instrução, pois para o TEDH, o excesso de informações que o juiz teve contato no inquérito acaba por contaminá-lo, de modo que sua tendência à tese acusatória é quase certa, rompendo a imparcialidade e a paridade de armas. 42 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 93. 43 LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei nº 13.964/19 - Artigo por Artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 125/126. 34 Outra decisão importante fora proferida pelo TEDH no caso “Castillo-algar contra Espanha (STEDH de 28/10/1998) no qual reconheceu que houve quebra da imparcialidade por conta de dois magistrados, que foram parte de uma Sala que denegou um recurso interposto na fase pré-processual, também terem participado do julgamento44 5.2 Um importante julgado do STF Há na jurisprudência brasileira uma paradigmática decisão em relação à imparcialidade do magistrado, segundo o Informativo do STF n. 528, de novembro de 2008, o Tribunal decidiu no bojo do HC 94.641/BA, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgado em 11 de novembro de 2008: Em acréscimo a esses fundamentos, o Min. Cezar Peluso, em voto-vista, concluiu que, na espécie, pelo conteúdo da decisão do juiz, restara evidenciado que ele teria sido influenciado pelos elementos coligidos na investigação preliminar. Dessa forma, considerou que teria ocorrido hipótese de ruptura da denominada imparcialidade objetiva do magistrado, cuja falta, incapacita-o, de todo, para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida. Esclareceu que a imparcialidade denomina-se objetiva, uma vez que não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Assim, sua perda significa falta da isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional. Observou, por último, que, mediante interpretação lata do art. 252, III, do CPP ("Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:... III - tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando- se, de fato ou de direito, sobre a questão;"), mas conforme com o princípio do justo processo da lei (CF, art. 5º, LIV), não pode, sob pena de imparcialidade objetiva e por consequente impedimento, exercer jurisdição em causa penal o juiz que, em procedimento preliminar e oficioso de investigação de paternidade, se tenha pronunciado, de fato ou de direito, sobre a questão. Vencida a Min. Ellen Gracie, relatora, que, no ponto, não conhecia do writ ao fundamento de supressão de instância e o indeferia em relação às demais questões suscitadas O caso concreto era de um juiz que condenou um pai por atentado violento ao pudor contra sua filha, mas que anteriormente havia sentenciado em um processo de investigação de paternidade. Assim o Ministro entendeu de maneira acertada que restou violada a imparcialidade, pois o juiz havia realizado atos de natureza instrutória de ofício naqueles autos de investigação 44 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p.94 35 de paternidade, o que por óbvio comprometeu a qualidade de sua decisão, pois evidentemente os elementos colhidos na investigação preliminar influenciaram o julgador. Essa decisão, embora já antiga, denota um importante marco na jurisprudência brasileira, onde se reconheceu pela primeira vez que quando o julgador faz o papel de investigação, acaba por perder um dos atributos principais para que possa julgar a causa, a imparcialidade objetiva. Os fundamentos que embasaram o voto do Ministro Cezar Peluso são os mesmos utilizados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Piersack versus Bélgica de 1982, quais sejam a imparcialidade objetiva e subjetiva do julgador, que evidentemente restam prejudicadas quando ele tem contato com elementos investigativos. No tópico seguinte, traremos um importante experimento empírico desenvolvido pelo professor Bernd Schünemann e traduzida pelo professor Luís Grecco, demonstrando como a implementação do juiz das garantias será imensamente benéfica para a concretização de fato da imparcialidade do julgador 36 6. A TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA A teoria da dissonância cognitiva veio ao mundo pela primeira vez no ano de 1957, por meio da obra “A Theory of Cognitive Dissonance” de Leon Festinger. Trata-se de um estudo sobre a cognição e comportamento humano, mais especificamente de como os seres humanos tentam sempre buscar um estado de coerência acerca de seus conhecimentos.45 Ela parte da premissa tal processo ocorre de forma involuntária, desse modo, quando o sujeito se depara com dados que diferem de seus valores mais enraizados, tenderá a reduzir tais informações dissonantes, seja diminuindo a atenção que dá à informação divergente. Há sempre uma tentativa de estabelecer uma harmonia interna entre o conjunto de ideias, ações, crenças e opiniões. Quando há uma dissonância entre essas cognições, há dois efeitos que ocorrem de maneira imediata: uma pressão para diminuir a “incoerência” entre a informação nova e seu conjunto de ideias, de forma a afastar as novas fontes que aumentam essa incongruência. 46 Dessa forma, Festinger em seu experimento concluiu que quanto mais importante os elementos forem para a pessoa, mais intensos serão os efeitos sobre a redução e evitação do desconforto que a informação dissonante tende a gerar. O autor subdivide os elementos cognitivo-comportamentais em quatro categorias, quais sejam: (1) mudança de elementos cognitivos dissonantes; (2) desvalorização de elementos cognitivos dissonantes; (3) adição de novos elementos cognitivos consonantes com a cognição existentes; (4) evitação ativa do aumento desses elementos dissonantes47. O notório penalista alemão Bernd Schünemann, nomeia o processo redutor de dissonância como “efeito inércia ou perseverança”, que consistiria em uma superestimação, inconsciente, do indivíduo, acerca das hipóteses pré-concebidas, em detrimento daquelas que contradizem aquelas48. Em outros termos, é um mecanismo inconsciente de autoconfirmação de hipóteses. Além disso, há a ocorrência de outro mecanismo para a diminuição da tensão psíquica gerada pela tal dissonância, qual seja, a busca seletiva de informações. Aqui, o indivíduo seleciona, predominantemente, informações confirmatórias a respeito da hipótese que foi 45 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p. 84/85. 46 Idem. p. 87 47 FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1975. p. 232. 48 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p. 93 37 previamente aceita, gerando um efeito de tranquilização e amenizando a dissonância cognitiva.49 O impacto disso na imparcialidade do julgador é evidente, visto que para além de todas as decisões que toma na fase da investigação preliminar, inquisitiva e cujo escopo é fornecer os elementos de autoria e materialidade para uma eventual ação penal, ainda há o contato completo do Magistrado com os autos do inquérito, o que implica, inconscientemente, na formação dos elementos de culpa, trazendo um prejuízo irreparável para a Defesa, que muitas vezes, se vê dentro de uma batalha de vários contra um. Autoridades policiais, Ministério Público, mídia e a própria sociedade, não raras vezes, se posicionam contra o Acusado, cabendo ao Advogado ou Defensor Público a hercúlea tarefa de realizar a defesa para então consagrar o devido processo legal, com todas as suas garantias de praxe. 6.1 Efeitos da Dissonância Cognitiva Ruiz Ritter, traz com um brilhantismo ímpar, dois efeitos que foram percebidos pelo professor Bernd Schünemann em seus estudos doutrinários do psicólogo alemão Martin Irle: (...) traduz tal processo redutor de dissonância como “efeito inércia ou perseverança”, que se constitui da superestimação, no indivíduo, das hipóteses (cognições) pré- concebidas, em detrimento daquelas não levadas em consideração até então (desconhecidas) e/ou contraditórias a estas. O terceiro processo, por sua vez, constitui- se da busca voluntária por informações consonantes com a cognição pré-existente. Assim, estando presente a dissonância, o indivíduo, sob efeito da pressão para retomar sua coerência cognitiva interior, buscará novos conhecimentos (informações em geral, estudos, pesquisas, entre outros) que sejam consonantes com seus elementos cognitivos contrariados. No que concerne ao exemplo dos fumantes, “As pessoas que fumam poderiam buscar provas que os efeitos danosos desse hábito são mínimos, ou pelo menos, não fatais”50(tradução nossa) É o que Schünneman (repita-se, com base nas lições de Irle) tratou por “princípio da busca seletiva de informações”, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo impulso, no indivíduo possuidor de dissonância cognitiva, de procurar predominantemente informações que confirmem suas hipóteses (cognições) prévias (redundantes), ou que sejam dissonantes, mas facilmente refutadas, “de modo que elas acabem tendo um efeito igualmente confirmador51 49LOPES JÚNIOR, Aury. Teoria da dissonância cognitiva ajuda a compreender imparcialidade do juiz. Revista Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva- imparcialidade-juiz. Acesso em 23 set 2021. 50 BARON, Roberta A; BYRNE, Donn. Psicología social. 8ª ed. Trad. Montserrat Ventosa; Blanca de Carreras; Dolores Ruiz; Genoveva Martín; Adriana Aubert; Marta Escardó. Madrid: Prentice Hall Iberia, 1998. p. 162 51 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p. 93/94 38 Basicamente são dois os efeitos percebidos sob a ótica dos experimentos, o primeiro chamado efeito inércia ou perseverança, consiste em um mecanismo de autoconfirmação de hipóteses previamente tomadas como corretas, superestimando informações que corroborem a proposição inicial e ignorando ou subestimando as que vão de encontro ao que estava previamente estabelecido. O outro efeito é a busca seletiva de informações, na qual o sujeito procura por informações que confirmem a proposição que fora previamente aceita, gerando o efeito confirmador-tranquilizador. Esses efeitos, a princípio podem não representar nenhum perigo para a vida corriqueira em sociedade, todavia, para aqueles que exercem função jurisdicional e possuem como missão a garantia dos direitos fundamentais, tais consequências psicológicas ainda que inconscientes podem ser nefastas para a tomada de decisão. Um magistrado que teve contato com os elementos do inquérito policial, já está contaminado por esses dois efeitos, quer queira, quer não, ao tomar alguma decisão deferindo ou denegando medidas cautelares na investigação preliminar, o julgador já vai formando dentro de si, uma imagem do caso penal, seja de culpa, seja de inocência, o que, de certo, compromete a qualidade decisória. Caso haja uma decisão que prive o réu de seus bens, sua liberdade ou seu sigilo fiscal e telefônico, pensamos que o problema é ainda mais acentuado, pois a imagem de culpa que o julgador forma, a partir de uma prisão cautelar, por exemplo, impedirá que ele exerça a instrução de forma imparcial, contrariando frontalmente o princípio do favor rei, ou in dubio pro reo (Art. 5º, LVII, CF) Alguns experimentos foram feitos para que essa teoria fosse demonstrada, passaremos a comentá-los a seguir. 6.2 Experimentos da Psicologia Social e Consequências para a Sistemática Processual Penal Segundo Ritter, os estudos que mais impactaram na investigação a respeito de formação das impressões foram conduzidos por Solomon Asch e caminhou para duas importantes conclusões que tem total pertinência com o tema aqui tratado: 1) existem qualidades que se 39 sobressaem no processo de percepção; 2) as primeiras informações recebidas tem mais peso que as demais, o chamado efeito primazia.52 O estudo teria ocorrido da seguinte maneira: foram feitas duas séries de características idênticas, que somente eram diferentes em relação à ordem em que eram apresentadas (na primeira, inteligente, trabalhador, impulsivo, crítico, teimoso e invejoso; e na outra invejoso, teimoso, crítico, impulsivo, trabalhador e inteligente). Apresentaram tais palavras a dois grupos distintos que formularam impressões sobre uma pessoa com tais características, e a conclusão foi a de que o grupo que recebeu a série com características positivas primeiro, revelou uma impressão melhor sobre a pessoa imaginada, em detrimento do outro em que foram expostas as propriedades negativas primeiro.53 Esse efeito, constatado em diversos experimentos empíricos na área da psicologia social, pode trazer consequências nefastas quando se tem em jogo um caso penal, um indiciado e sua liberdade em jogo, eis que os indivíduos tendem, por um processo natural, buscar um estado de coerência a respeito de seu ideário. Por conta desse fenômeno de natureza inconsciente, mas com imensa capacidade de influência, é que diversos autores defendiam há tempos a exclusão do inquérito policial em relação aos autos do processo, como forma de atenuar os efeitos danosos que o contato do magistrado com os atos informativos do inquérito gera em suas percepções e, consequentemente, nas decisões proferidas. No tópico seguinte, traremos um importante experimento empírico desenvolvido pelo professor Bernd Schünemann e traduzida pelo professor Luís Grecco, a qual demonstra que a alteração legislativa supracitada foi benéfica, pois há um nítido aumento na chance de condenação quando os magistrados conhecem dos autos do inquérito policial. 6.3 A Pesquisa do Professor Bernd Schünemann O experimento do jurista alemão é o ponto nevrálgico na discussão sobre a imparcialidade do julgador no processo, frente ao seu contato com os autos do inquérito policial. Pretendeu o autor, verificar se a hipótese de que o contato do julgador com a investigação 52 Idem p. 111/112 53 Idem p. 114. 40 preliminar pode impedir a sua análise adequada das provas acerca do fato, ou se involuntariamente, acaba se vinculando à versão policial exarada no inquérito.54 O cerne da pesquisa de Schünemann é se a leitura dos autos do inquérito policial acaba por fixar a imagem unilateral e tendenciosa do ocorrido no inconsciente do julgador, e se tal fenômeno seria capaz de fechar seus olhos para outras possibilidades absolutórias ou contrárias as que foram previamente formuladas, de forma a comprometer sua imparcialidade 55 A pesquisa contou com a participação de 58 juízes criminais e promotores de várias regiões da Alemanha, submetidos a diferentes condições do experimento, utilizando como cenário, uma simulação de uma audiência real de instrução e julgamento56 Para melhor demonstrar o experimento iremos esquematiza-lo abaixo: a) Grupo 1 (8 juízes e 6 promotores): possuíam o conhecimento dos autos e era facultado a inquirição de testemunhas na audiência; b) Grupo 2 (9 juízes e 5 promotores) tinham conhecimento dos autos, todavia não podiam perguntar nada para as testemunhas; c) Grupo 3 (11 juízes e 6 promotores): não conheciam os autos, mas podiam inquirir testemunhas em audiência; d) Grupo 4 (7 juízes e 6 promotores): nem conheciam os autos nem lhes era possível a quesitação às testemunhas.57 O teste se deu por meio da comparação dos resultados das sentenças, condenatórias ou absolutórias, levando em conta o conhecimento ou a falta dele a respeito dos autos do inquérito e da possibilidade de realizar perguntas para as testemunhas. O resultado obtido, demonstra que diante das mesmas circunstâncias fáticas, na medida em que o julgador conhece dos autos, pouco importa a possibilidade da quesitação das testemunhas, pois a probabilidade final da sentença ser condenatória é muito maior do que ser absolutória.58 54 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p. 121. 55 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p. 121. 56 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 210. 57 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 210. 58 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p. 124. 41 O placar ficou em 10 condenações para 4 absolvições nos grupos 1 e 2. Já nos grupos em que os magistrados não leram os autos da investigação preliminar, há um acréscimo sensível na probabilidade de absolvição, sendo 13 absolvições no grupo 3 e 7 absolvições no grupo 4. Por outro lado, no grupo 3 houve 4 condenações, e no grupo 4, totalizaram 6 as sentenças condenatórias.59 Em relação aos juízes, constatou-se que todos os 17 que conheciam os autos condenaram, enquanto no grupo dos 18 magistrados que não haviam tido contato com a investigação preliminar, somaram-se 10 absolvições e apenas 8 condenações, o que fortalece a tese do efeito primazia.60 O segundo experimento, tinha como escopo analisar a incidência do efeito inércia ou perseverança e consistiu no seguinte, os participantes foram questionados a respeito das respostas dadas pelas testemunhas em audiência. Se, por um lado, o grupo que tinha conhecimento dos autos, acertou em média, 6,59 de 11 questionamentos, já os participantes que não detinham conhecimento dos autos, obtiveram a média de 7,69 de respostas corretas.61 A discrepância se elevou quando comparados os resultados dos que condenaram e conheciam os autos em relação aos que absolveram e não o possuíam, com médias de 6,35 e 7,63, respectivamente.62 O resultado é sintomático e demonstra que o conhecimento prévio da investigação preliminar impacta fortemente a atenção do julgador em relação ao conteúdo demonstrado na audiência de instrução, sendo que os magistrados que possuíam mais informações sobre o acusado, tendem a não darem a devida atenção a argumentação defensiva na audiência, tendendo a armazenarem apenas as informações incriminadoras, que já tinham ciência por conta do contato prévio com os autos da investigação.63 A terceira pesquisa, buscava explicar as consequências cognitivas de um magistrado passivo frente à audiência de instrução o julgamento, mais especificamente sobre a possibilidade de realizar questionamentos às testemunhas. A conclusão foi a de que a realização de perguntas pelo julgador, tende a garantir uma maior atenção às respostas recebidas, eis que as médias foram de 8,65 e 6,33, relacionadas a possibilidade e vedação de inquirição, chegando a 9.25 quando observamos os juízes que não tinham conhecimento dos autos.64 59 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 211. 60 Idem. p. 211 61 Idem. p. 211/212 62 Idem. p.212 63 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 212. 64 Idem. p 212. 42 O último experimento, queria investigar a respeito do modus operandi do julgador na busca de informações no processo, sendo que o método utilizado consistiu em aferir o número de perguntas realizadas na audiência e a sua relação com as condições experimentais e o teor da sentença proferida. Os resultados demonstram que a maior parte dos questionamentos foram feitos pelos que proferiram uma sentença condenatória e também possuíam conhecimento da investigação preliminar, fortalecendo a hipótese de que a formulação das perguntas, serve, antes de mais nada, para uma autoconfirmação das cognições já obtidas, do que a obtenção de novas informações.65 Fato é que os experimentos demonstraram que as hipóteses estabelecidas foram integralmente confirmadas, eis que os resultados apontam no sentido de que o julgador condena muito mais frequentemente quando possui conhecimento prévio da investigação preliminar do que quando não possui. E esse contágio do magistrado após a leitura dos autos do inquérito policial, fere de morte a imparcialidade do julgador, pois restou evidente que há um apego às informações previamente conhecidas, restando à defesa muitas vezes uma missão quase impossível, de demonstrar que o fato narrado na denúncia não existiu, tendo pela frente um julgador que já decidiu inconscientemente pela culpa do acusado66. Portanto, a partir desse importante resultado, restou demonstrado a imperiosa e urgente necessidade de mudanças em nossa sistemática processual penal, sendo as duas principais mudanças comentadas nesse presente trabalho, a implementação do juiz das garantias e a exclusão dos autos do inquérito policial do processo, como as que mais trarão impactos positivos, sob a perspectiva de um processo penal constitucional, democrático e acusatório. A seguir, demonstraremos como o instituto foi concebido em Portugal e no Chile, apontando algumas semelhanças com o que se espera que entre em vigor futuramente em nosso país. 65 Idem. p.212. 66 RITTER, Ruiz. imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2016. p.125. 43 7. O JUIZ DAS GARANTIAS EM OUTRAS LEGISLAÇÕES Para seguir uma nefasta tradição que nos assola, o Brasil também está atrasado em relação ao resto do mundo no que diz respeito a adoção de um sistema processual penal acusatório e democrático, enquanto por aqui a instituição do juiz das garantias na legislação ocorreu somente no ano de 2019, em outros países do mundo a figura já se faz presente na legislação há décadas, como é o caso de Portugal, que desde 1987 teve seu Código de Processo Penal alterado para que fosse implementado o lá chamado “Juiz da Instrução”67. 7.1 O Juiz da Instrução Português Em Portugal, o instituto vem disciplinado no art. 17 do Código de Processo Penal Português: Artigo 17.º Competência do juiz de instrução Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código.68 Suas funções constam nos artigos 268 e 269 daquele diploma legal: Artigo 268.º Atos a praticar pelo juiz de instrução 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido; b) Proceder à aplicação de uma medida de coação ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público; c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 3 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º; d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º; e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º; f) Praticar quaisquer outros atos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução. 67 MIGALHAS. Da análise do juiz das garantias sob a luz do direito comparado e das decisões liminares no STF. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/319989/da-analise-do-juiz-das-garantias-sob-a-luz-do- direito-comparado-e-das-decisoes-liminares-no-stf. 68 PORTUGAL. DL nº 78, de 17 de fevereiro de 1987. Código de Processo Penal. Disponível em: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=199&tabela=leis&so_miolo=. Acesso em: 06 out. 2021. 44 2 - O juiz pratica os atos referidos no número anterior a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente. 3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades. 4 - Nos casos referidos nos números anteriores, o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas