i NAYARA CRISTINA BARBOSA BATISTA Gênero, negritude e memória em Fe en disfraz (2009), de Mayra Santos-Febres ASSIS 2020 NAYARA CRISTINA BARBOSA BATISTA Gênero, negritude e memória em Fe en disfraz (2009), de Mayra Santos-Febres Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador(a): Maria de Fátima Alves de Oliveira Marcari Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ, Processo Nº 130199/2018-4). ASSIS 2020 Às minhas ancestrais, por estarem comigo em meu sangue para compôr este trabalho. AGRADECIMENTOS Ao CNPQ, que concedeu auxílio financeiro para realização deste trabalho; À professora Drª. Maria de Fátima Alves de Oliveira Marcari, pelas leituras minuciosas e pela paciência e carinho na orientação deste trabalho; À professora Drª. María Dolores Aybar Ramírez pela participação na Banca de Qualificação e Defesa, bem como pelas contribuições valiosas para a execução do trabalho. Ao professor Dr. Antônio R. Esteves por fazer com que meu amor pela literatura crescesse desde a graduação e pelas correções atentas; Ao Edson Luis R. Junior por ser um amigo pra se guardar do lado esquerdo do peito e me fazer acreditar que esse sonho fosse possível; Ao Thiago S. de Jesus por me incentivar; Ao Thiago Alves por me defender; Ao Roberto P. Damasceno por sempre perguntar se eu estava bem; À professora Claudia Mirian Abelhaneda por ser a primeira e por acreditar que eu pudesse fazer mais do que eu imaginava; À minha menina de exatas Izabel V. de O. Perez; À menina de humanas Francieli C. Roberto, Ao Jaime e ao Samuel Isaac por entrarem na minha vida e me incentivarem a persistir na escrita do trabalho; Aos maravilhosos “Totti, Lenta e Lê”. Eu não me vejo na palavra Fêmea, alvo de caça Conformada vítima Prefiro queimar o mapa Traçar de novo a estrada Ver cores nas cinzas E a vida reinventar Um homem não te define Sua casa não te define Sua carne não te define Você é seu próprio lar. (Francisco, el Hombre) BATISTA, Nayara Cristina Barbosa. Gênero, negritude e memória em Fe en disfraz (2009), de Mayra Santos-Febres. 2019. 86 f. (Mestrado Acadêmico em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019. RESUMO Este trabalho analisa o romance Fe en disfraz (2009), de Mayra Santos Febres, o qual apresenta uma narrativa híbrida, que elabora um processo de rememoração de um passado doloroso, que denuncia tanto as relações de dominação e submissão entre homens brancos e mulheres afrodescendentes, como a reprodução destas dinâmicas nas sociedades pós-coloniais. Além disso, investigam-se as questões relativas à construção identitária da mulher negra, versando sobre as teorias que estudam gênero e negritude, a construção histórica sobre as mulheres negras e a criação de imagens estereotipadas oriundas do período escravocrata. Através da análise do romance, pode-se observar como as concepções estereotipadas sobre as identidades das mulheres negras foram moldadas no período escravocrata, assim como tais estereótipos tornam-se objeto de desconstrução por meio da constituição da personagem Fe Verdejo. Finalmente, analisamos como a suspensão temporal em partes do romance apresenta uma temporalidade distinta e mítica. Palavras-chave: Mayra Santos-Febres (1966- ). Negritude. Literatura hispano- americana. Memória. BATISTA, Nayara Cristina Barbosa. Gender, blackness and memory in Fe en disfraz (2009), by Mayra Santos-Febres. 2020. 86 p. Dissertation (Master in Languages). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2020. ABSTRACT This work analyses the novel Fe en disfraz (2009), by Mayra Santos Febres, which presents a hybrid narrative, the novel elaborates a process of remembrance of a painful past, which denounces both the relations of domination and submission between white men and Afro-descendant women, and the reproduction of these dynamics in post-colonial societies. In addition, the questions related to the identity construction of black women are investigated, dealing with the theories that study gender and black historical construction on black women and the creation of stereotyped images from the slavery period, through the analysis of the novel, one can observe how the stereotyped conceptions on the indentities of black women may have been shaped in the slavery period, just as such stereotypes become the object of deconstruction through the constitution of the Fe Verdejo character. We intend to analyze how the temporal suspension in parts of the novel presents a distinct and mythical temporality. KEYWORDS: Mayra Santos-Febres (1966- ). Blackness. Hispanic-American literature. Memory. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10 1 Fe en disfraz : Hibridismo e polifonia 17 1.1 “Ignoran dónde se oculta la secreta herida que los corroe”: a memória cultural em Fe en disfraz 23 2 Gênero e negritude ...................................................................................... 34 2.1 Autoria feminina, gênero e negritude.......................................................... 34 2.2 María e Petrona: a diáspora africana............................................................ 46 3 MEMÓRIA, HISTÓRIA E FICÇÃO: diálogos e embates............................. 50 3.1 La Xica que manda, Diamantina, María e Petrona: mulheres que atuaram nas brechas da história 55 3.2 “Mi propia celda de clausura”: memórias de Fe Verdejo...................... 65 3.3 “Mi piel era el mapa de mis ancestros” : mito, rito e memória em Fe en disfraz 68 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 78 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 80 10 INTRODUÇÃO Mayra Santos-Febres, nascida em 26 de fevereiro de 1966 em Porto Rico, é poetisa, romancista, ensaísta e professora. Filha de professores, a autora porto- riquenha inicia contato com os livros desde a infância e começa a escrever com apenas cinco anos de idade. Seus pais a inscreveram para tornar-se bolsista em um colégio espanhol de freiras dominicanas, mas a menina não prestava atenção nas aulas, ainda que tirasse boas notas. A escola resolveu contratar uma nova professora, que observou a pequena Mayra escrevendo em um caderninho durante a aula. A professora confisca o caderno e o devolve posteriormente para a menina com algumas correções e apontamentos; além disso, a professora elogia e incentiva a escrita da pupila. Devido ao incentivo da professora de espanhol do colégio de freiras, Mayra Santos-Febres aprende o rigor e a disciplina de leitura e pesquisa inerentes ao ofício da escritura, começando a publicar poemas em 1984 em jornais e revistas internacionais, antes mesmo de se graduar. Ingressa na Faculdade de Letras da Universidade de Porto Rico, graduando-se com honras em 1987 e, a seguir, vai para a Cornell University, em Nova York, para prosseguir com os estudos de pós- graduação. Os estudos em uma universidade norte-americana fizeram com que Mayra Santos-Febres interagisse com estudantes de diversas partes do mundo, o que a levou a reconhecer e a reivindicar sua identidade porto-riquenha. Ao perceber o local que ocupava no mundo, a escritora começa a questionar as estruturas sociais e as relações de poder. Assim, ao refletir sobre o papel subalterno designado aos porto- riquenhos na atual geopolítica mundial, Santos-Febres compreende os motivos que levaram a literatura caribenha a ser pouco conhecida e, consequentemente, pouco estudada. As obras da autora possuem como característica a presença de protagonistas marginalizadas socialmente. Em seus escritos, ela reivindica a liberdade sexual das mulheres e defende os direitos das comunidades homossexuais e negras. Contudo, não são somente as opiniões expressas em entrevistas e em suas obras que refletem a personalidade e as crenças da autora, mas, sobretudo a sua vasta formação acadêmica, a qual contribui para que ela conheça as ferramentas que 11 podem ser usadas para construir um bom texto literário, uma vez que é catedrática da Universidad de Puerto Rico, bem como foi professora visitante em Harvard e na Cornell University. Autora reconhecida e prestigiada, Mayra Santos-Febres recebeu diversas premiações, dentre as quais se destacam o Prêmio Letras de Ouro (Estados Unidos, 1994) por sua coletânea de contos Pez de vidrio, e o Premio Juan Rulfo Internacional de Cuentos, por seu relato Oso Blanco, (Paris, 1996). Em 1991, Anamú y manigua foi agraciado pela crítica e considerado um dos dez melhores livros de poesias, e El orden escapado foi premiado pela Revista Tríptico, dentre outras obras. Finalmente, no ano de 2009, a autora recebe a prestigiada bolsa Guggenheim, outorgada a profissionais que se destacam em várias áreas do saber. Mayra Santos-Febres publicou até o momento as seguintes obras: Anamú y manigua (1991); Pez de vidrio (1994); Oso Blanco (1996); El cuerpo correcto (1996); Tercer mundo (2000); o romance Sirena Selena vestida de pena (2000), já traduzido para o inglês, francês e italiano e finalista do Premio Rómulo Gallegos na categoria romance em 2001; Cualquier miércoles soy tuya (2002); Sobre piel y papel (2005); Nuestra Señora de la Noche (2006); Fe en disfraz (2009); a obra de título sugestivo Tratado de medicina natural para hombres melancólicos (2011), La amante de Gardel (2015) e Huracanada (2018). As obras de Santos-Febres retratam as questões de gênero e sexualidade, colocando em primeiro plano a sexualidade feminina e a homossexualidade, rompendo com a hegemonia falocêntrica e patriarcal. Ao valorizar os espaços caribenhos e latino-americanos, a autora também rompe com a hegemonia eurocêntrica; contudo, seus personagens não são estáticos, seja em relação aos espaços que ocupam ou as relações que desenvolvem. Neste sentido, seus textos se caracterizam pela transitividade dos personagens e os aspectos fronteiriços, não apenas com relação às fronteiras geográficas, mas também no que concerne à mobilidade dos gêneros textuais e das subjetividades de gêneros. Publicado em 2009, o romance Fe en disfraz apresenta uma narrativa não- linear, na qual se entrecruzam eventos do passado, ocorridos entre os séculos XVII e XVIII em colônias espanholas e portuguesas, com eventos da atualidade. O argumento gira em torno de dois personagens: o porto-riquenho Martín Tirado, um historiador que chega a Chicago para trabalhar sob as ordens de Maria Fernanda Verdejo, ou simplesmente Fe Verdejo, historiadora e pesquisadora afro- 12 venezuelana. A personagem é uma historiadora renomada que trabalha em uma universidade, sendo a única mulher e a única negra. Ao longo da narrativa, Fe Verdejo se depara em sua pesquisa com documentos sobre mulheres negras escravizadas do século XVIII. Durante as buscas por esses documentos, a pesquisadora viaja para o Brasil e, ao visitar um monastério, descobre um luxuoso traje que pertenceu à negra Xica da Silva (1731-1796), figura emblemática da história do Brasil. A obra apresenta como narrador principal Martín Tirado, que narra em primeira pessoa a maior parte do romance; contudo, no que se refere ao grau de importância para o desenvolvimento do conflito dramático, Fe Verdejo se configura como a protagonista assim como Martín. Ao longo da narrativa, essa voz masculina é exposta juntamente com as vozes femininas presentes nos documentos referentes ás escravizadas, assim como a voz da própria Fe Verdejo, que assume a narrativa de suas memórias no capítulo XVIII. O romance Fe en disfraz (2009) problematiza as representações das relações étnicas e de gênero e, ademais, apresenta um passado comum a todos os países latino-americanos que consiste na colonização da América Latina e a escravidão do negro. Entretanto a escravidão, não incide do mesmo modo nas Antilhas que no cono sul. Assim sendo, a releitura crítica da história hegemônica é justificada pelo fato do discurso histórico ser reelaborado através da perspectiva de pessoas destituídas de voz perante os acontecimentos históricos. A história das ex-escravas relegadas ao esquecimento ganha vida por meio da pesquisa da protagonista historiadora, que resulta em uma exposição dos documentos e de artefatos dos séculos XVIII e XIX. Assim, o estudo da obra articula um resgate da história para que se compreendam seus reflexos no presente. Ademais, cabe enfatizar que o estudo da escrita feminina foge à prática hegemônica, uma vez que as produções ficcionais canônicas são predominantemente masculinas e majoritariamente brancas. Partindo dessas proposições, este trabalho objetiva analisar como Fe en disfraz reelabora o papel designado às mulheres afro-latinas nas sociedades latino- americanas escravocratas dos séculos XVIII e XIX, bem como compreender como os reflexos dos papéis historicamente impostos às mulheres negras nesse período interferem na construção identitária desse grupo nas sociedades pós-coloniais. 13 Nesta perspectiva, buscamos analisar como as concepções estereotipadas sobre as indentidades das mulheres negras podem ter sido moldadas no período escravocrata, assim como tais estereótipos tornam-se objeto de desconstrução por meio da constituição da personagem Fe Verdejo. Para o desenvolvimento do presente trabalho, foram utilizadas pesquisas bibliográficas que se basearam em elementos da literatura comparada e dos estudos culturais, de gênero e de literatura afro-latina. Para os estudos sobre literatura afro- latina, utilizamos textos de Zilá Bernd (1987) e (1988). Para os estudos de critica feminista e de gênero, os textos básicos que condensam o referencial teórico aparecem reunidos nas coletâneas de Heloisa Buarque de Hollanda (1994) e Neus Carbonell e Meri Torras (1999). Já a análise das relações entre memória, ficção e história contaram com o apoio teórico das obras de Halbwachs (2006), Nora (1993), Le Goff (2003) e Bernd (2013). Finalmente, Carvalhal e Coutinho (1994) e Samoyautl (2008) serviram de base para o estudo de elementos da teoria literária e questões relacionadas à intertextualidade, respectivamente. O trabalho foi dividido em três partes. Na primeira parte, apresentamos a estutura do romance e como se entrelaçam as vozes na obra que resultam em uma narrativa híbrida. Além disso, analisamos como as tramas se justapõem em uma narrativa complexa que permite a leitura de três enredos simultâneos: a história do relacionamento entre Fe Verdejo e Martín Tírado; a releitura da história de opressão das mulheres escravizadas que se passa no período colonial, e os episódios que descrevem a ritualização das relações sexuais dos protagonistas, nas quais Fe busca a integração com suas antepassadas por meio do uso do vestido de Xica da Silva. Para as questões relativas ao caráter híbrido e polifônico do romance utilizamos as teorizações de Bakhtin (2005); já para a análise das questões relativas ao tempo mítico e à memória ancestral, nos apoiamos em Mircea Elíade (1968). Ainda na primeira parte do trabalho, que versa acerca da capa e das três epígrafes presentes na obra, utilizamos as teorias de paratextos de Gérard Genette (2009). A segunda parte consiste na análise das questões de gênero e negritude, na qual articulamos as teorizações sobre a narrativa de autoria feminina relacionada à negritude com a análise do romance. Além disso, analisamos como ocorreu a diáspora africana com a apresentação das personagens escravizadas María e Petrona. Discutimos também como ocorre o processo de construção de gênero nas 14 mulheres negras e como tal construção dá-se pelo olhar do outro, que é quase sempre masculino e branco. Para as reflexões acerca dos aspectos de gênero, contamos com as teorias de Elaine Showalter (1979) e Zilá Bernd (1987; 1988; 2013) que discorrem sobre negritude e sobre o conceito ‘afrolatinidade’, bem como sobre a crescente expressão negra na América Latina. A terceira parte do trabalho visa à discussão dos diálogos entre história, memória e ficcção, e para apoio teórico nos baseamos em Linda Hutcheon (1991), que enftiza que o discurso histórico também é uma construção. Assim, ao problematizar os conceitos sobre a representação da história veiculados pelos protagonistas Fe e Martín, os quais vão se modificando ao longo do romance, observamos como os personagens estabelecem uma relação que performatiza o passado histórico. Além disso, na terceira parte analisamos o discurso de Fe Verdejo presente em suas memórias no capítulo XVIII, e as semelhanças de seu relato com os documentos ficcionalizados que apresentam os depoimentos das escravizadas. Partimos da conceituação de memória de José Antônio dos Santos (2003), que realiza um estudo sobre a diáspora negra. O conceito de lieux de memóire de Pierre Nora (1993), serve de apoio para defender que o texto é permeado de diversos lugares de memória e o próprio romance pode ser interpretado como sendo um deles. Com relação à fortuna crítica sobre o romance, os trabalhos acadêmicos sobre o romance de Santos-Febres são encontrados majoritariamente em universidades hispanofalantes e em algumas instituições norte-americanas. Para o estudo da fortuna crítica, nos centramos nos trabalhos cujas temáticas versassem apenas sobre o romance Fe en disfraz (2009). O artigo denominado El cuerpo sufriente como lugar de memoria en Fe en disfraz, de Mayra Santos-Febres foi publicado em 2015 pela professora Patricia Valladares-Ruiz. O artigo apresenta o processo de dominação e erotização das mulheres negras em um passado escravista e como tais questões podem se reproduzir nas sociedades pós-coloniais. A pesquisadora examina ainda como o corpo pode ser lido com um lugar de memória na obra de Mayra Santos-Febres. O texto de Verónica Peñaranda-Angulo (Universidad del Valle, Cali, Colombia), denominado Habitar en el lenguaje materno, estrategias femeninas contra el racismo en la literatura Caribeña: el vestido/disfraz de Xica da Silva en Fe 15 en disfraz (2009) de Mayra Santos-Febres, publicado em 2017, apresenta outro viés interpretativo da obra. O texto da pesquisadora colombiana analisa a perspectiva da resistência simbólico-discursiva que Mayra Santos-Febres utiliza com a inclusão e a destruição do traje que teria pertencido a Xica da Silva, e que une a protagonista Maria Fernanda Verdejo á um passado escravista. Peñaranda-Ângulo também publica outro artigo denominado La historia femenina negra o la herstory negra: "Fe en disfraz" de Mayra Santos-Febres, lectura y reescritura de la historia desde y para las mujeres afrodescendientes (2018). Nesse artigo, a pesquisadora analisa o romance como uma história afro-diaspórica e utiliza o conceito de herstory negra para nomear as narrativas em que mulheres negras podem reescrever sua história e descolonizarem seus corpos. O texto de Helene C. Weldt-Basson denominado Memoria cultural versus olvido histórico: las voces de las esclavas en Fe en disfraz de Mayra Santos-Febres y Cielo de tambores de Ana Gloria Moya (2017) apresenta um estudo comparativo entre a obra de Ana Gloria Moya e Mayra Santos-Febres, no qual a autora enfatiza que a obra de Santos-Febres não é um romance histórico tradicional: Fe en disfraz no es una novela histórica en el viejo sentido del término, pero los protagonistas son historiadores, la esclavitud en América es un hecho histórico, y la novela es una reflexión sobre el impacto de la historia tanto en el individuo como en la colectividad (WELDT-BASSON, 2017, p.187) Weldt-Basson defende que não somente a questão histórica é importante, mas sobretudo a memória traumática do período da escravidão, o qual apresentou forte impacto na história dos negros, tanto no indivíduo quanto na comunidade negra. A tese defendida em 2015 denominada El cuerpo que se repite: el cuerpo en la narrativa nómade de Mayra Santos-Febres, Ena Lucía Portela y Ángela Hernández Núñez de autoria de Solymar Torres-García, apresenta um estudo comparativo entre as três escritoras do Caribe hispanofalante. Partindo das teorias de Benítez Rojo e Édouard Glissant e os escritos sobre o corpo de Rosi Braidotti y Elizabeth Grosz, a pesquisa mostra como as escritoras caribenhas contemporâneas empregam em seus textos uma estética nômade que visa ampliar as possibilidades de significados para os sujeitos das obras, sejam eles racializados ou não. 16 Diante do exposto, a escolha da obra justifica-se pelo fato de haver poucos estudos sobre literatura hispano-americana com protagonistas negras em posições sociais não subalternas, bem como não há nenhuma pesquisa sobre o romance de Mayra Santos-Febres no meio acadêmico brasileiro. Desse modo, acreditamos na necessidade de se afirmar, dentro dos espaços acadêmicos, outras possibilidades de efetivação e divulgação de conhecimentos. 17 1 FE EN DISFRAZ: Hibridismo e polifonia Fe en disfraz foi publicado em 2009 pela escritora porto-riquenha Mayra Santos-Febres. A obra possui cento e vinte páginas e está subdividida em catorze capítulos. Na sua página inicial, o romance apresenta três epígrafes que serão analisadas adiante, as quais são atribuídas aos seguintes autores: Goethe, A. Kojéve e Lucrécio. Em seu prefácio, o romance apresenta um narrador não nomeado, que apresenta vagamente sua localização: "estoy en tierras del Norte." (SANTOS- FEBRES, 2009, p.13). O romance se inicia na noite de Halloween, a celebração popular do que antecede o Dia dos mortos, que possui forte tradição em países anglófonos. Ele nos explica que, em outros tempos, em ritos antigos as pessoas se cobriam com peles de animais e, sob as orientações de um xamã em torno de uma fogueira considerada sagrada, comunicavam-se com seus ancestrais: Estoy en tierras del Norte. Un rito ocurre allá afuera. Muchos no lo saben, pero celebran el comienzo de un nuevo año, según los antiguos calendarios. Mañana será 1 de noviembre. Hoy, la gente corre disfrazada por las calles, ocultándose entre las sombras de la noche más larga del año. Si estuviéramos en tiempo pagano, los chamanes habrían encendido el fuego sagrado, convocado a la tribu con cantos y con música. Nosotros, la tribu, procederíamos a apagar las luces de cada choza y, a oscuras, rescataríamos de lugares secretos las pieles de búfalos, gatos monteses, jabalíes. Nuestras carnes se prepararían para recoger los humores de animales sacrificados, sus esencias aún presentes en sus pelambres; en las pieles del disfraz, sus espíritus. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.13). O narrador ressalta que "esto sería así, si hoy fuera tiempo pagano. Pero hoy es hoy, y yo no soy el mismo. Hoy soy yo y mi disfraz, dirigiéndome hacia Fe" (SANTOS-FEBRES, 2009, p. 14). Ainda no prefácio, a voz se apresenta como o historiador Martín Tírado e nos conta que o relato que será apresentado é um testemunho do que se passou entre ele e Fe: “Mi historia quedará como testimonio, por si acaso no regreso de esta Víspera de Todos los Santos. O por si no regresa Fe Verdejo” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.14). 18 O capítulo I do romance versa sobre a preparação de Martín Tírado para seu encontro com Fe Verdejo. Nota-se que o personagem deve seguir um ritual passo a passo: “las indicaciones de Fe son claras y hay que seguirlas al pie de la letra. Son sus condiciones para nuestro encuentro. Esta vez, me han llegado escuetas, precisas. Debo esperar a que caiga la noche.” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.15). O período noturno é o escolhido, uma vez que, com a ausência solar, ocorre também um afastamento da razão. Nota-se também que Martín não comanda o relacionamento, mas sim Fe Verdejo, pois quem ordena todas as condições para os encontros é ela. O capítulo II inicia-se com a voz de Martín Tírado nos contando o que lhe foi narrado por Fe Verdejo. “Me cuenta Fe que durante los años anteriores a la afamada exposición sobre esclavas manumisas que le ganó prestigio y fama, el seminario estuvo a punto de cerrarse.” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.21, grifo nosso). Observa-se no trecho acima grifado, assim como em várias passagens, que a obra apresenta uma narrativa de experiência vicária, pois quem vivencia a maior parte da história narrada por Martín Tírado é a própria Fe Verdejo: “considera-se narrativa de experiência vicária aquela em que o narrador relata uma história que lhe foi contada por terceiros.” (MONTEIRO, 2000, p.2). O capítulo III apresenta o primeiro documento recebido por Martín Tírado. Vamos sendo apresentados aos documentos referentes às mulheres escravizadas, ao mesmo tempo em que Martín Tírado os recebe de Fe Verdejo, por meio de mensagens de computador (figura 1). Essa estrutura é retomada ao longo do romance e, desse modo, somos apresentados aos documentos enviados a Martín repentinamente em meio a narrativa, parodiando, de certo modo, a estrutura do romance reportagem. 19 Figura 1 capítulo III Fonte: (SANTOS-FEBRES, 2009, p.26-27) O primeiro depoimento de uma escravizada, cujo nome é Diamantina, aparece neste terceiro capítulo. A mulher se apresenta duas vezes perante o governador. A primeira vez para reclamar dos abusos que sua senhora lhe infligia, e a segunda ocasião ocorre após o falecimento de seu amo, para reivindicar o direito de seus filhos à herança: Esta vez, la esclava manumisa pide audiencia al gobernador Alejandro de Pires para anunciar que el señor Tomás de Angueira ha fallecido (...). Que ella carga en su seno el testamento que le dejara de Angueira, firmado por su puño y letra. En él declara como sus herederos universales a los cinco hijos de Diamantina. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.29). O capítulo VI apresenta Martín recebendo um e-mail de Fe com mais um depoimento, desta vez sobre uma menina escravizada, que posteriormente é identificada como Xica da Silva. Ao ler sobre os estupros sofridos pela menina, descritos detalhadamente no documento, e ao observar a imagem do traje de Xica, o historiador sente desejo: Era una fotografía en detalle del disfraz de Fe; es decir, del traje de Xica, el reencontrado. Miré el traje, miré la piel, miré a la niña corrompida. La 20 imagen de su rasgadura más escondida, húmeda y rosada, se me presentó ante los ojos como una visión. No puede sostenerla. Mi mano se movió veloz. Cerré los ojos. Me vacié sobre el escritorio de mi computadora, soltando un bramido. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.42). Nessa passagem do romance, não sabemos com exatidão o que provocou o desejo de Martín, pois as três imagens correspondentes ao traje, ao relato e a Fe Verdejo se confundem na mente de Martín Tírado. O romance, portanto, apresenta uma narrativa genericamente híbrida, na qual os capítulos que retratam o relacionamento de Martín com Fe Verdejo, se alternam com os episódios que descrevem a ritualização das relações sexuais dos protagonistas, nas quais Fe busca a integração com suas antepassadas por meio do uso do traje de Xica da Silva. Ademais, o relato memorial surge na rememoração da história das mulheres escravizadas, assim como no capítulo no qual a protagonista Fe relata suas memórias. Desse modo, o romance apresenta as vozes contemporâneas de Martín Tírado e de Fe Verdejo e, ainda, as vozes de mulheres de séculos passados, através da reelaboração ficcional de documentos históricos. Neste sentido, o romance não apresenta um discurso que suplanta o outro, mas múltiplos pontos de vista, que coexistem e podem se modificar ao longo da narrativa. O capítulo dezoito, escrito por Fe Verdejo (figura 2), apresenta o mesmo modelo dos documentos referentes as escravizadas no romance. O texto escrito por Fe possui caráter testemunhal, e a historiadora relata como ela e sua mãe foram internas de um convento e a sua primeira relação sexual, a qual pode ser caracterizada como um estupro. 21 Figura 2 capítulo XVIII Fonte: (SANTOS-FEBRES, 2009) A escolha de Fe Verdejo por esse tipo de texto, que se assemelha aos depoimentos das escravizadas, parece proposital, uma vez que a personagem sofreu com episódios semelhantes aos narrados por suas antepassadas. Seu relato memorial, datado na segunda metade do século XX (1985), descreve a mesma violência que caracterizou os relacionamentos sexuais de homens brancos com mulheres negras, descritos nos documentos das escravizadas: Pero no me esperaba la fuerza con que me agarró por debajo el traje, me desgarró la ropa interior, me metió los dedos por dentro hasta ponerme de cuclillas. Tampoco me esperaba la manera como me mantuvo sujeta contra el suelo, mientras me metía su miembro duro entre las piernas. El muchacho comenzó a morderme, a arañarme, a abrirme con empellones. Forcejeé un poco, pero lo peor de todo fue cómo mi cuerpo respondió a cada empujón y a cada manoplazo. Respondió con sangre y con ardor. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.90). Fe Verdejo perde sua virgindade em um estupro, mas seu corpo responde com um misto de dor e desejo. Martín também escolhe o relato confessional para falar de si, entretanto, seu texto não está encabeçado por seu nome e aparece depois do capítulo escrito por Fe Verdejo. O relato de Martín Tírado descreve um 22 homem que não se vê em papel dominante. Um narrador masculino vacilante e contraditório: “Estaba seguro de que nunca sería el macho alfa, protagonista de una historia que se impondría ante los demás relatos de la especie” (SANTOS-FEBRES, 2009, p. 95). Contudo, Martín rememora a ocasião em que era estudante e, fantasiado de Don Juan Tenório, praticou um estupro contra uma colega durante uma festa na universidade: Pasé la noche entera encajado entre las carnes de aquella pobre muchacha, dándole empellones, como un poseso. Ella, tan borracha como yo, no hacía más que gritar; no sé si de placer, no sé si de dolor.(...) Ese día me descubrí capaz de actuar de otra manera. De sentirme dirigido por esa extraña hambre que desde siempre me habita. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.97). Fica evidente, tanto no relato de Fe, assim como nos depoimentos das escravizadas e no relato de Martín, a ciclica reprodução das práticas violentas contra as mulheres, que serão analisadas mais adiante. O relato de Fe Verdejo, a história das escravizadas e o relato de Martín, constituem uma multiplicidade de vozes. Bakhtin ao estudar a poética de Dostoiévski, nos aponta que seria errôneo analisar particularmente cada voz do romance. O autor desenvolve o conceito de polifonia que consiste na multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivado uno, à luz da consciência una do autor, que se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante (BAKHTIN, 2005, p. 4). Nesta perspectiva, fica evidente que observar cada voz do romance separadamente, assim como se observa apenas um fio que compõe a trama de um tecido, pode nos induzir a não analisar a obra em seu conjunto. Para Bakhtin (2005, p. 21), “a essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia”. O romance, portanto, apresenta caráter híbrido, não somente em sua estrutura, que mescla vários tipos de gêneros narrativos, mas também pela multiplicidade de vozes que, ao se articularem, enriquecem a obra. 23 1.1 “Ignoran dónde se oculta la secreta herida que los corroe”: a memória cultural em Fe en disfraz A capa e a epígrafe são considerados paratextos, de acordo com as teorias de Gérard Genette (2009), sendo a capa considerada literalmente como o primeiro contato do leitor com a obra. Tal fato deve ser observado, visto que a capa costuma passar por um processo de editoração, que a torna um importante recurso, não só para atrair leitores para uma obra, mas para auxiliar na construção de significados do romance como um todo. Já a epígrafe é definida como um gênero introdutório e, de acordo com Genette, tal recurso consiste no recorte feito pelo autor de outra obra, de autoria própria ou alheia, pela qual o autor se expressa. Propõe-se analisar as três epígrafes presentes na obra Fe en disfraz (2009), e demonstrar analíticamente, através das teorias de Gérard Genette e Tiphaine Samoyault, como os autores Goethe (1749 - 1832), Kojéve (1902 - 1968), e Lucrécio (94 a.C.- 50 ou 51 a.C), se relacionam com a obra. Pretendemos demonstrar ainda como essas epígrafes contribuem para a leitura do romance. As epígrafes presentes no romance foram extraídas das seguintes obras: Fausto (1808), de Goethe; de um excerto extraído do texto El deseo en la posthistoria (1996), de A. Kojève. A terceira epígrafe foi retirada do poema La herida oculta, de Lucrécio. Para esta análise, utilizaremos a edição da editora Alfaguara. A capa é um paratexto editorial diferente da epígrafe, sendo literalmente a primeira impressão do livro. Entretanto, a capa, que geralmente passa por um trabalho editorial, pode contribuir para construções de significados em uma obra. No caso do romance Fe en disfraz (2009), a capa é um paratexto importante que contribui para a leitura da obra e antecipa alguns temas, como veremos mais adiante. De acordo com Gérard Genette, a capa se encaixa em uma categoria denominada peritexto editorial, assim como tudo que pode se encontrar sob a responsabilidade principal (mas não exclusiva) do editor, ou seja, a capa, o formato 24 e o tamanho da letra, a escolha do papel, dentre outras coisas que a equipe editorial possa ajustar e diagramar. (GENETTE, 2009 p.21) Interessante observar que, apesar da execução muitas vezes depender do impressor (que pode ser o autor da obra, ou alguém contratado), há interferência direta dos editores e/ou diagramadores na execução dos projetos de capa. Ou seja, pode ocorrer do autor chegar aos editores com um projeto, mas os editores orientarem para outros caminhos. Às vezes pode ocorrer da qualidade do papel interferir na cor e na textura da capa, ou ainda as cores selecionadas pelo autor podem encarecer o produto final. Desse modo, a equipe editorial detém um conhecimento que pode auxiliar o autor na execução de seu projeto, mas que deve ser levado em consideração nas análises, pois interfere diretamente no resultado final, o livro. A capa do romance é uma foto tirada por Daniel Mordzinski. O design da fotografia foi realizado por Michelle M. Colón Ortiz, e a modelo apresentada na imagem é Keyla E. Negrón Díaz. Importante destacar o trabalho do fotógrafo argentino Daniel Mordzinski, conhecido como “o fotógrafo dos escritores”, pois trabalha para escritores hispano-americanos há mais de trinta anos. Segue a imagem da obra: 25 Figura 3 capa (SANTOS-FEBRES, 2009) A capa possui informações fundamentais que facilitam sua identificação e localização, tais como o nome da autora, o título e a editora que o distribui. De acordo com Genette “hoje as únicas menções praticamente (senão legalmente) obrigatórias são o nome do autor, o título da obra e o selo do editor” (GENETTE, 2009, p.27). O título, o nome da autora e o selo editorial possuem tipografias específicas, pois nota-se que o nome da autora encontra-se em destaque pelo tamanho da fonte, em relação ao título da obra. A fonte utilizada na capa do romance é denominada serifada, cujas letras apresentam serifa, ou seja, possuem pequenos prolongamentos em suas extremidades. Um exemplo similar que todos conhecem é a clássica times new roman. A fonte serifada é utilizada preferencialmente em documentos oficiais e trabalhos acadêmicos, e está presente nas antigas máquinas de escrever. 26 A partir da escolha tipográfica do título e do nome da autora podemos considerar que Mayra Santos-Febres já é uma escritora reconhecida, tendo publicado muitas obras antes de Fe en disfraz, por isso seu nome vem em destaque no layout da capa. Também o uso da fonte serifada, utilizada em ocasiões que exigem maior formalidade, pode indicar que o próprio romance documentará algo. A construção da capa é composta sem excessos de cores e ornamentos. A imagem possui duas sutis linhas com uma mescla cromática de amarelo e laranja queimados, que servem de suporte para o texto na capa. O amarelo pode indicar - de acordo com Modesto Farina no livro A psicodinânica das cores em comunicação (2006), alerta, ciúme, orgulho, egoísmo e euforia. Associação afetiva: iluminação, conforto, orgulho, esperança, idealismo, egoísmo, inveja, ódio, adolescência, espontaneidade, variabilidade, euforia, originalidade, expectativa. Amarelo deriva do latim amaryllis. Simboliza a cor da luz radiante em todas as direções. (FARINA, 2000, p.101). Por ser um tom de amarelo mais próximo da cor alaranjada, pode ser interpretada como uma cor que simboliza a advertência. A cor laranja simboliza para Farina (2000, p.100), um “vermelho moderado.” E essa coloração que se mescla com o amarelo no projeto de capa de Fe en disfraz simboliza: Associação material: ofensa, agressão, operacionalidade, locomoção, outono, laranja, fogo, pôr do sol, luz, chama, calor, festa, perigo, aurora, raios solares, robustez. Associação afetiva: desejo, excitabilidade, dominação, sexualidade, força, luminosidade, dureza, euforia, energia, alegria, advertência, tentação, prazer, senso de humor. (FARINA, 2000, p.100, grifo nosso). A capa apresenta tons alaranjados e o projeto gráfico que utiliza a fotografia de Daniel Mordzinski, contém elementos do romance. As palavras calor e festa por exemplo, referenciam o Sam Haim presente no romance. Além disso, as associações afetivas presentes nas sensações causadas pela cor são as mesmas sentidas pelos personagens. O desejo, a dominação e a sexualidade são elementos constitutivos de Fe en disfraz. O fotógrafo ao conseguir captar em uma imagem 27 todos esses elementos provavelmente leu a obra e de fato Mordzinski é conhecido por fotografar essencialmente para escritores. A imagem e texto são consonantes, pois a imagem nua da modelo harmoniza com o estilo despojado e sóbrio do texto. A capa possui um tom bege queimado ao fundo e a modelo ocupa espaço central, bem como nota-se que ela usa brincos modernos, o que demonstra não ser uma escravizada da época colonial, mas uma mulher contemporânea. Ademais, possui gravado nas costas um relógio preto em algarismos romanos que marcam dez para as sete. O relógio é como uma tatuagem, marcando a pele da mulher na foto, e pode ser interpretado como uma metáfora do tempo que aprisiona a protagonista no mesmo papel ao longo da vida: as amarras são simbólicas, não há mais a escravidão, mas a mulher negra segue estigmatizada pela cor da pele e vista como hipersexualizada pelo patriarcado. Entretanto, é através do contato com os relatos de outras mulheres negras escravizadas, que venceram as barreiras do tempo e da obscuridade histórica, que Fe Verdejo pode recuperar esse passado e, através da dor que é rememorar, superar essas feridas. A corda representa um aprisionamento, mas não é uma corda grossa e está amarrada frouxamente. Assim sendo, pode ser lida como um aprisionamento que não é físico, mas psicológico. Ao trazer à luz um passado histórico, rememorá-lo e superá-lo, talvez essas amarras e essas dores simbólicas possam ser superadas. A definição de epígrafe não deve ser feita de modo simplista. Em sua obra Paratextos editoriais (2009), Genette define a epígrafe como um tipo de citação em destaque na obra, ou seja, algo que se encontra na ‘borda’ do texto, não estando exatamente dentro e nem fora do texto. A prática da epígrafe ganhou destaque durante o século XIX, mas, de acordo com Genette, esse gênero não era usual, senão inexistente antes do século XVII. Tal fato talvez se deva ao chamado ‘texto divisa’, que pode ser considerado o antepassado da epígrafe: “o texto divisa pode muito bem ser uma citação (...) o que distingue a divisa não é, portanto, seu caráter forçosamente autógrafo, mas sua independência em relação ao texto singular.” (GENETTE, p.131). O texto divisa foi sendo aos poucos substituído pela prática da epígrafe. 28 A epígrafe é localizada o mais próximo possível da obra; na primeira página par após a dedicatória, mas antes do prefácio. Entretanto, há casos em que a epígrafe é situada ao final do texto, separada por um espaço em branco para fechar o texto, como se aquela citação sintetizasse as ideias do livro. O lugar em que se encontra a epígrafe determina uma função diferente da perspectiva do leitor, pois, se a epígrafe no final do texto encerra uma ideia “depois da leitura do texto, tem em princípio uma significação evidente e mais autoritariamente conclusiva.” (GENETTE, p.135). Já uma epígrafe no início da obra possui um caráter introdutório em relação ao tom do texto. Através de uma epígrafe bem escolhida, o leitor pode prenunciar desde a temática da obra, até como será trabalhado o tema; se ocorrerá de maneira agressiva ou sutil. No caso da obra Fe en Disfraz (2009), as epígrafes seguem o primeiro padrão identificado por Genette, ou seja, encontra-se na primeira página par após a dedicatória. A autora epigrafa Goethe, A. Kojéve e Lucrécio. Esse tipo de epígrafe é denominada alógrafa, ou seja, nenhuma das três pertence ao autor da obra (GENETTE, p.136) A primeira epígrafe foi recortada da obra Fausto de Goethe, de uma versão em espanhol, e contém os seguintes dizeres: “Si alguna vez me siento extasiado, seré esclavo y no preguntaré si tuyo o de otro dueño.” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.11). O trecho citado possui apenas o nome da obra e o autor para situar o leitor. A versão em espanhol permite interpretar que o sujeito se tornará escravo somente quando estiver extasiado, ou seja, arrebatado pelo desejo, em êxtase. O romance apresenta as relações de poder entre homens brancos e mulheres negras escravizadas no século XIX e como essas dinâmicas se reproduzem na sociedade pós-colonial atual. Entretanto, na obra os personagens principais Martín Tírado e Fe Verdejo mantém uma relação de poder consolidada pela prática do ato sexual de maneira violenta, de acordo com a perspectiva de Martín. Pode-se interpretar que a relação entre Fe e Martín é a mesma dos homens brancos com as negras escravizadas, porém com uma nova roupagem, um disfarce. A ligação entre o romance e essa primeira epígrafe de Fausto pode ser construída pelo fato do livro de Goethe nos indicar que o ser humano está sempre insatisfeito. O logro feito a Mefistófeles consiste exatamente na vantagem de Fausto 29 em saber que, enquanto ser humano, ele nunca ficará completamente satisfeito e terá sempre desejos a serem atendidos. Sendo assim, o desejo escraviza tanto Mefistófeles, que é obrigado a cumprir sua promessa, quanto Fausto, que sempre quer ter cada vez mais desejos atendidos. A epígrafe indica que duas pessoas (Fausto e Mefistófeles) se encontram em uma relação em que foi firmado um pacto de escravidão. Além disso, esse pacto é fortemente influenciado pelo desejo de Mefistófeles, que inicialmente se encontra na posição de subalterno e, no caso de Fausto, também por sua eterna insatisfação que o leva a fazer diversos pedidos, movido pelo desejo. A primeira epígrafe é um contato inicial com a obra. Talvez por esse motivo não é tão reveladora, entretanto revela um pouco do que está por vir. A epigrafária supõe que seu público leitor conhece Goethe, uma vez que a epígrafe é referenciada apenas com nome do autor e obra. Através desse primeiro contato, pode-se pressupor que a obra poderá tratar dos temas escravidão e desejo. A epígrafe inicial torna-se ainda mais significativa, pois Martín Tírado, personagem que narra o romance, é constantemente movido pelo desejo sexual, ao passo que Fe é movida pelo desejo de conhecer profundamente seu passado. Contudo, apesar de seu alto cargo departamental, ela é vista como objeto por ser mulher e é hipersexualizada por Martín, devido à cor de sua pele. Desse modo, as relações se repetem com novos disfarces e o desejo unilateral promove a escravidão do outro. A segunda epígrafe escolhida pela autora para compor o conjunto de epígrafes de seu romance consiste nos seguintes dizeres: “En el origen del deseo está esto, el hombre que se exilia del cosmos; cuando el cosmos ya no le dice nada, aparece el deseo.” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.11). Em tradução livre seria: “na origem do desejo se encontra o homem que se exila do cosmos; quando o cosmos já não lhe diz nada, o desejo aparece.” Essa segunda epígrafe é atribuída a Alexandre Kojeve. Entretanto, apesar de referenciar claramente o trabalho de Kojeve, essa epígrafe faz parte do trabalho de um pesquisador hegeliano que estudou a obra do filósofo alemão. A epígrafe utilizada ipsis litteris pertence na verdade ao filósofo e pesquisador Edgardo Castro e está em seu texto A. Kojève: el deseo en la posthistoria (1996). 30 Em seu texto, Castro explica as origens da palavra desejo e aponta que, na língua espanhola, a palavra “deseo” descende da palavra “desídia”, que remete à ideia de ociosidade (CASTRO, 1996, p.1). Ressalta ainda que a origem da palavra desídia carrega uma conotação entre a luxúria e o desejo. A epígrafe, em seu contexto original, consiste nas seguintes palavras: El término desir es semánticamente interesante. Désirer traduce el latín desiderare, desiderium, que significa “notar la falta de los astros”. Es un término que proviene del lenguaje de la adivinación. En el origen del deseo está esto, el hombre que se exilia del cosmos; cuando el cosmos ya no le dice nada aparece el deseo. En español deseo viene de desidia, de ociosidad. Por eso hay una connotación entre lujuria y deseo, porque la ociosidad es la madre de todos los vicios. (CASTRO, 1996, p.1, grifo do autor). A segunda epígrafe utilizada no romance de Mayra Santos-Febres é do tipo alógrafa, ou seja, foi atribuída a um autor que não é o da obra, e consiste em uma citação pertencente a um texto alheio para expressar possíveis ideias presentes no romance. Pode-se constatar que a epígrafe é autêntica; no entanto, a atribuição de autoria é falsa. Os motivos para essa atribuição podem ser variados, ou seja, “pode ainda ser autêntica, mas inexata (caso muito frequente), se o epigrafador, ou porque cita erroneamente de memória, ou porque deseja adaptar melhor a citação a seu contexto, ou por outra razão qualquer a utiliza.” (GENETTE, 2009, p. 136-137). Além de ser escritora, Mayra Santos-Febres é pesquisadora e professora universitária. Esse fato não deve ser ignorado, uma vez que um bom pesquisador é sempre muito atento às referências utilizadas em seus trabalhos. Nesse caso, ela pode ter atribuído autoria falsa propositalmente para instigar o leitor sagaz, já que a epígrafe permite a discussão da originalidade, uma vez que as ideias presentes no excerto, como já dito anteriormente, são de Kojéve. Todavia, resultam das leituras das obras de Hegel, pois o filósofo e pesquisador Edgardo Castro leu ambos os pensadores. Nesse caso, houve uma apropriação crítica dos autores que enriqueceram os conceitos apresentados por Hegel. Tal fato vai contra a tradicional crítica de fontes que se pauta em um texto primeiro (original ou modelo), e que considerava que todos os textos que vem depois são derivações do texto original e, portanto, menores. A crítica de fontes não levava 31 em consideração nas suas análises como os autores acrescentam e modificam os textos anteriores, mas apenas consideravam os aspectos semelhantes dos textos e os classificavam como cópias. A epígrafe do romance - “En el origen del deseo está esto, el hombre que se exilia del cosmos; cuando el cosmos ya no le dice nada aparece el deseo” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.11) -, relaciona-se com a primeira epígrafe da obra Fausto de Goethe, pois ambas falam do desejo. Contudo, se a primeira epígrafe não consiste em um desejo positivo, mas escravizante, no caso dessa epígrafe atribuída a Kojeve, o desejo tem uma conotação intelectual, ligada ao desejo de conhecimento, que surge quando o universo já não pode dar todas as respostas aos seres humanos. O cosmos, que tem sua etimologia do grego kósmos, consiste no universo regido por leis próprias. Essa epígrafe nos permite antecipar que os personagens serão guiados pela força de seu desejo, seja ele intelectual ou sexual, ou ambos, e, ao seguir seus desejos, os protagonistas não seguirão as leis do cosmos, ou seja, as leis ja conhecidas, pois deverão descobrir novas epistemologias. A terceira epígrafe que aparece no romance é atribuída ao poeta-filósofo epicurista romano Titus Lucrecius Carus, conhecido como Lucrécio. Essa epígrafe, assim como a de Goethe, vem acompanhada com a referência ao autor e o título da obra e consiste também em uma epígrafe alógrafa. A referência utilizada pela escritora do romance consiste em um excerto do poema La herida oculta, (a ferida oculta, em tradução livre). O excerto consiste nos seguintes dizeres: Y estrechan codiciosamente el cuerpo de su amante, mezclando aliento con saliva con los dientes contra su boca, con los ojos inundando sus ojos, y se abrazan una y mil veces hasta hacerse daño. Hasta tal punto ignoran dónde se oculta la secreta herida que los corroe. (LUCRECIO, s 98-55 a.C). Em uma tradução livre em língua portuguesa, temos: “e estreitam com cobiça o corpo do amante, misturando hálito e saliva com os dentes contra a sua boca, com os olhos alagando os seus olhos, e abraçam-se uma e mil vezes até se machucarem. Até tal ponto ignoram onde se oculta a secreta ferida que os corrói.’ Interessante notar que, ao eleger essa epígrafe, a escritora não selecionou o poema como um todo, mas uma parte do meio do texto e as duas últimas linhas do 32 poema. O fato de essa epígrafe ser a última também não deve ser ignorado, pois como observado nas epígrafes anteriores, a primeira apresenta os possíveis temas presentes na obra, o desejo e a escravidão que o subjaz. Já a segunda epígrafe apresenta como esses temas poderão ser abordados, ou seja, com o afastamento das leis cósmicas e a busca de novas fontes para saciar o desejo de conhecimento. Desse modo, veremos quais os possíveis motivos para encerrar a escolha das epígrafes com Lucrecio. O poema como um todo descreve a impossibilidade de fundir-se e de se apropriar totalmente do corpo do outro, uma vez que, de acordo com outro trecho do poema, os seres humanos, “(...) não sabem que não sabem o que desejam e continuam, no entanto, a procurar uma forma de saciar esse desejo que os consome” (LUCRECIO, s. 98-55 a.C). O trecho escolhido pela autora do romance nos permite interpretar que os amantes se machucarão nessa relação, apesar de se beijarem e se abraçarem, “y se abrazan una y mil veces hasta hacerse daño” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.11). Assim sendo, além dos personagens se magoarem nessa relação, ambos ignorarão onde se encontra a verdadeira ferida que os corrói. Interessante perceber que, após a leitura do romance, constatamos que a relação das personagens Fe Verdejo e Martín Tirado é baseada no desejo e na dor. Além disso, as relações dos casais emulam as relações entre homens brancos e mulheres negras escravizadas nos séculos XVIII e XIX, que eram marcadas pela dor. Tais relacionamentos eram sempre iniciados pelo desejo dos homens brancos que usufruíam dos corpos das mulheres e meninas escravizadas, que eram vistas apenas como objetos de sua propriedade. Os encontros sexuais de Martín e Fe se dão quando ela se disfarça com o traje que pertenceu a inúmeras negras escravizadas, incluindo a brasileira Xica da Silva. Ao vestir-se, o traje fere a pele de Fe, pois contém uma estrutura de arame. Assim, os encontros entre Martín e Fe sempre se caracterizam pela mescla de sensações dolorosas e prazerosas. Podemos observar a presença constante da palavra ‘sangre’ nas descrições; “Las cortó el arnés. Corrió la sangre entre las palmas, por los dedos. El cuero frío se bebió el líquido rojo, gota a gota, y se tensó, 33 como si recobrara una esencia primigenia que hacía tiempo echaba de menos” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.21). Ademais, os personagens se ferem durante o ato sexual; entretanto as feridas físicas não são as que causam mais dor e sofrimento, pois as feridas que mais machucam não são visíveis a olho nu. Consideramos capiciosa a escolha de uma epígrafe que fala sobre uma ferida oculta logo no seu título, e que retrata dois amantes movidos pela força do desejo. Sendo assim, a epígrafe de Lucrecio pode ser lida como uma pista de como se comportarão os personagens Fe e Martín, e o sofrimento que esse envolvimento causará. Apesar de essa última epígrafe situar-se no início do texto, pode-se dizer que, se ela não encerra as idéias da obra, encerra as epígrafes, pois, como já enfatizado, o lugar em que se encontra a epígrafe determina uma função diferente da perspectiva do leitor. Assim, o fato da autora do romance ter elegido a última estrofe do poema de Lucrécio é o que reforça esse caráter conclusivo. “Hasta tal punto ignoran dónde se oculta la secreta herida que los corroe.” (LUCRECIO, s 98-55 a.C). Contudo, não se trata de uma conclusão autoritária, mas algo que o leitor poderá ou não comprovar durante a leitura da obra. 34 2 GÊNERO E NEGRITUDE 2.1 AUTORIA FEMININA, GÊNERO E NEGRITUDE As mulheres em geral vêm conquistando cada vez mais espaços em profissões que antes eram majoritariamente ocupadas por homens. Dado as essas circunstâncias, nota-se um crescente número de escritoras e intelectuais, e as negras, apesar de representarem ainda uma pequena parcela dessas mulheres, resistem no ofício. A intelectual negra Bell Hooks (1995), discorre sobre a dificuldade das mulheres negras constituírem suas identidades em suas comunidades como escritoras e intelectuais. Tal fato se dá pela concepção de que as atividades do pensamento e da reflexão não são valorizadas e reconhecidas como ativismo político nas comunidades, uma vez que ações mais diretas e concretas são consideradas mais significativas tais como os piquetes e as passeatas. Ao expôr os motivos pelos quais há poucas intelectuais negras, Hooks aponta que o desconhecimento e a invisibilização dos trabalhos de intelectuais já existentes é um problema tão grave quanto a falta de vontade de se tornar intelectual. Essa invisibilização ocorre ao mesmo tempo em função do racismo do sexismo, e da exploração de classe institucionalizados, e é um reflexo da realidade de que grande número de negras não escolhem o trabalho intelectual como sua vocação (HOOKS, 1995, p.467). Entretanto, é importante considerar que a escolarização da população negra deu-se tardiamente e, muitas vezes, a escolarização alcançada não envergava para a intelectualidade propriamente dita, muito menos o ofício da escrita. Julgo pertinente trazer à baila que as práticas ligadas ao pensamento muitas vezes não são consideradas dentro das comunidades dessas mulheres, por requererem, por exemplo, distanciamento e isolamento do grupo para reflexão. 35 O pensamento independente era visto com desconfiança: eu sabia a importância de ser inteligente mas não inteligente demais. Ser demasiado inteligente era sinônimo de intelectualidade, e isso era motivo de preocupação, sobretudo se se tratasse de uma mulher. Para uma criança inteligente nas comunidades negras de classe inferior e pobre, fazer perguntas demais, falar de ideias que diferiam da visão do mundo predominante na comunidade, dizer coisas que os negros adultos relegavam ao reino do indizivel, era um convite ao castigo e até ao abuso. (HOOKS, 1995, p. 466). Fica evidente que as mulheres negras dentro de suas comunidades podiam ser reconhecidas pela dedicação aos estudos, desde que não questionassem demais sobre o mundo. A valorização das profissões ligadas ao ensino deve-se sobretudo à integração com a comunidade, pois a mulher que se isola é vista com estranhamento. A protagonista de Fe en disfraz desfruta desse isolamento que a inclina para a atividade intelectual. Fe Verdejo ainda na infância fora interna em um convento por sua avó. Nas palavras da protagonista, "Yo permanecía encerrada en mi propia celda de clausura — la biblioteca —. Allí, viví aquellos dos años sin interrupciones, desapercibida" (SANTOS-FEBRES, 2009, p.89). Santos-Febres apresenta uma personagem apartada de sua comunidade na infância e na idade adulta. Fe Verdejo ilustra a mulher negra intelectual em sua solidão, como se o preço a pagar pelo conhecimento adquirido fosse o isolamento. Neste tópico, nossa análise se dedica às questões relativas à autoria feminina e à negritude. No que tange à autoria feminina, Showalter (1979) expõe as diferenças entre a crítica feminista. Para a autora há duas fases, a fase feminista, que consiste no estudo das representações femininas na literatura em comparação com a mulher presente na sociedade. Já a ginocrítica, versa sobre a escrita feita por mulheres: É interessada na mulher enquanto escritora , a mulher como produtora de significado textual, a história, temas, gêneros e estruturas da literatura feita pelas mulheres. Seus temas incluem a psicodinâmica da criatividade feminina; a linguística e o problema de uma linguagem feminina; a trajetória da carreira literária feminina individual ou coletiva; história da literatura; e, é claro, estudos de escritoras e trabalhos particulares. Não existe nenhum termo em inglês para um discurso tão especializado, então adaptei o termo francês la gynocritique: “gynocritics”, a ginocrítica (embora a significância do pseudônimo masculino na história da escrita das mulheres tenha sugerido 36 também o termo “geórgicas”)1. (1979, p. 25-26, grifo da autora, tradução nossa). A escrita de autoria feminina tem por característica o rompimento com o sistema de escrita hegemonicamente masculino e branco; além disso, a ginocrítica, ao ocupar-se da escrita realizada por mulheres, valoriza a produção de conhecimento realizado por mulheres. Assim sendo, as mulheres no geral podem beneficiar-se da ginocrítica, sobretudo as mulheres periféricas, que, além de valorizarem o conhecimento produzido por mulheres e produzirem conhecimentos, podem discutir questões tais como o lugar do sujeito periférico e racializado. Um dos principais aspectos da crítica feminista que discute as questões concernentes à autoria feminina, tem sido “o papel de questionadora da prática acadêmica patriarcal” (ZOLIN, 2015, p.182). Ao discorrer sobre as características da literatura de autoria feminina, Zolin aponta que “a constatação de que a experiência da mulher como leitora e escritora é diferente da masculina implicou significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de paradigmas.” (ZOLIN, 2015, p.182). O feminismo e sua crítica contribuíram muito para que se pensasse a posição social da mulher e o meio em que está inserida e a construção dos estereótipos ligados às mulheres. Do mesmo modo, fez perceber que o estereótipo feminino negativo, largamente difundido na literatura e no cinema, constitui-se num considerável obstáculo na luta pelos direitos da mulher (ZOLIN, 2015, p.182). Importante ressaltar que o romance ilustra como foram sendo construídas as imagens negativas sobre a mulher negra desde o período colonial na América Latina. Além disso, a hipersexualização dessas mulheres, exacerbada nesse período, permanece na contemporaneidade retratada no romance, no momento em que a protagonista Fe Verdejo aparece descrita lascivamente pelo olhar do outro, 1 is concerned with woman as writer – with woman as the producer of textual meaning, with the history, themes, genres, and structures of literature by women. Its subjects include the psychodynamics of female creativity; linguistics and the problem of a female language; the trajectory of the individual or collective female literary career; literary history; and, of course, studies of particular writers and works. No term exists in English for such a specialised discourse, and so I have adapted the French term la gynocritique: “gynocritics” (although the significance of the male pseudonym in the history of women’s writing also suggested the term “georgics”). (1979, p. 25-26, grifo da autora). 37 masculino e branco. Tal fato pode ser observado, por exemplo, no seguinte fragmento que apresenta seu colega observando-a: "Su carne lucía curva, apetitosa, bajo una falda de paño oscuro y una discreta camisa blanca" (SANTOS-FEBRES, 2009, p.34). Ao analisar a construção do feminino em Angela Carter, Rapucci (2011) o faz utilizando teorias de tendências junguianas, que buscam resgatar o feminino desprezado da mulher selvagem que foi suplantado por um ideal feminino de docilidade baseado na subserviência. Já ao analisar a obra de Harding, Rapucci observa que a autora afirma como características consideradas femininas, o encanto, a benevolência e a concordância. Entretanto, para o homem ingênuo, o elemento feminino é caracterizado em sua forma demoníaca “o princípio feminino na natureza mostra-se como uma força cega, fecunda e cruel, criativa, acariciadora e destrutiva. Trata-se do princípio feminino em sua forma demoníaca” (RAPUCCI, 2011, p.57). O personagem Martín Tírado inicialmente poderia ser visto como esse "homem ingênuo”, ou pelo menos nos tenta convencer disto. Para Martín, a desconhecida Fe se apresenta diante dele como uma força acariciadora e destrutiva, ou seja, o fogo que é o elemento que aquece e destrói. Fe é a sarça que o consome enquanto ele também a consome: "Me dirijo hacia la pira del sacrificio que es Fe Verdejo" (SANTOS-FEBRES, 2009, p.14). Martín compara Fe com a pira sacrificial que tinha por função purificar o sacrifício dos ritos praticados e elevá-los até os deuses. Nesse caso, o princípio feminino de Fe pode consumir Martín Tírado, por isso ele sente atração por ela e, ao mesmo tempo, a teme. Essa representação do princípio feminino dual pode ser encontrada nas mulheres criadas para serem donas de casa ou “rainhas do lar”, assim como nas mulheres que habitam os espaços fora da casa, que caracterizariam o princípio feminino “sem controle.‘ Todavia, tanto as mulheres que habitam espaços confinados quanto às mulheres que ocupam o espaço público das ruas (trabalhadoras, prostitutas, escravizadas...), em uma concepção patriarcal, deveriam servir aos homens, em casa como esposa e nas ruas como amantes. 38 O romance apresenta Fe Verdejo em um ambiente ocupado por homens brancos. O local de trabalho da protagonista é uma universidade, onde ela é a chefe. Em um diálogo entre dois homens que trabalham com ela, notamos como as mulheres ainda são vistas como alguém que deve servir. Fe Verdejo, apesar de ser uma excelente pesquisadora é vista primeiro por seu corpo. Em um diálogo entre Martín Tírado e Báez, notamos que a capacidade intelectual é vista de modo negativo na mulher. - No pierdas tiempo- me advirtió Báez una vez que me sorprendió contemplándola desde el escritorio-, debe ser tan fria como las vitrinas que ella misma monta. Todo lo que ha estudiado le mató el espíritu. Es una pena, porque todavia le quedan sus carnes de buena hembra. (SANTOS- FEBRES, 2009, p.35). A intelectualidade de Fe é vista como algo que ‘matou seu espírito’ e, para os os personagens masculinos, ela é digna de pena, uma vez que ela possui um corpo `desperdiçado’, que poderia servi-los. Assim, a personagem é sexualizada no diálogo e seu profissionalismo é caracterizado como frieza. O patriarcado, conforme analisa Rapucci (2011), parte da concepção de uma feminilidade na qual a mulher é feita para servir, e as que não correspondem a essa acepção são denominadas demoníacas. Assim sendo, ao examinar o que é característico do feminino, devemos considerar que a literatura, assim como a música e o cinema, representam ideias acerca do que se constitui como feminino, que podem ser configuradas tanto para perpetuarem essas concepções essencialistas sobre a mulher, como subverter esse princípio dual e restritivo. Por outro lado, no que concerne às questões relacionadas à negritude, Zilá Bernd utiliza o termo negritude no sentido de tomada de consciência. Com n minúsculo (substantivo comum) – é utilizada para referir a tomada de consciência de uma situação de dominação e de discriminação, e a consequente reação pela busca de uma identidade negra. Nesta medida, podemos dizer que houve negritude desde que os primeiros escravos se rebelaram [...]. Com N maiúsculo (substantivo próprio) – refere-se a um momento pontual na trajetória da construção de uma identidade negra, dando-se a conhecer ao mundo como um movimento que pretendia reverter o sentido da palavra negro, dando-lhe um sentido positivo (BERND, 1988, p. 20). 39 A questão da negritude no romance deve ser enfatizada, uma vez que a personagem central da obra é negra e a questão da pele a identifica enquanto sujeito antes mesmo que ela diga algo ou se expresse: “De tan oscura, a veces, no se lograba ver la definición de su rostro, que parecia hecho de una madera pulidísima.(...) Blanco y negro ella toda, pupilas contra su cara, sus dientes contra sus labios, camisa contra piel” (SANTOS-FEBRES, 2009, p.34). Notamos na descrição de Fe Verdejo por Martín Tírado que ele não a vê de fato, pois a identifica somente pelo contraste da cor branca dos olhos e dos dentes com a cor negra de sua pele. Para ele, seu rosto não tem definição, nem expressão. É por sua cor que ela é identificada, antes de ser reconhecida por seus traços, sua personalidade ou sua profissão. Nesta perspectiva, as questões de raça estão intrinsecamente ligadas com as questões de gênero para a mulher negra, pois ela é subalternizada por pertencer a um gênero e a uma cor de pele inferiorizada socialmente. Além de possuir uma protagonista negra, o romance foi escrito por uma autora negra. Por conseguinte, adentramos nas questões referentes à literatura de autoria feminina, bem como procuramos investigar se a questão étnica interfere nos processos de escrita. A narrativa de autoria feminina caracteriza-se como uma forma de expressão artística que carrega em si traços de consciência de gênero. “A autoria feminina, portanto, diz respeito à produção literária de um sujeito histórico feminino, cuja consciência das relações de gênero se deixa transparecer em sua obra.” (WIECHMANN, 2012, p.65). Contudo, se um sujeito histórico feminino dotado de consciência das relações de gênero transparece em uma obra, a questão da negritude deve ser analisada juntamente com a autoria feminina. Uma autora negra, enquanto sujeito histórico construído socialmente, dotada de consciência das relações de raça e classe, evidenciará tais questões em seus processos literários. Fe en disfraz apresenta como a historiadora Maria Fernanda Verdejo combate ideias pré-concebidas sobre as mulheres negras latino-americanas, escravizadas nos séculos XVIII e XIV. Através de sua pesquisa sobre a história do cotidiano dessas mulheres, que resulta em uma magnífica exposição de artefatos e documentos, Fe demonstra que as mulheres negras eram multifacetadas e que muitas conquistavam autonomia e liberdade ao procurar a justiça da época. 40 Fe Verdejo evita trabalhar com fotografias, uma vez que ela não as considera objetivas e as vê como preconceituosas. Além disso, até o século XIX não existiam fotografias. Martín Tírado pede para Fe algumas imagens para auxiliar, na perspectiva dele, uma melhor visualização da condição dessas mulheres. Esas ya la vi. [sic] Pero, insisto, sería un éxito si se pudiera encontrar algún dibujo de las mujeres, algún grabado, algo que las retrate en detalle. —Esas imágenes no existen. Te puedo enviar testimonios que describen a alguna que otra esclava. Los encuentro poco convincentes. —¿Por qué? —Están llenas de prejuicios, carecen de objetividad.(SANTOS-FEBRES, 2009, p.52). A historiadora acaba preferindo os testemunhos, uma vez que estes veiculam as vozes dessas mulheres registradas em documentos oficiais; já nas imagens, elas estão sujeitas ao olhar do outro sobre elas. Fica evidente que a protagonista do romance possui uma consciência de gênero, mas, sobretudo, possui consciência racial. Essa consciência perpassada na obra advém da autora, uma vez que Mayra Santos-Febres é reconhecida como ativista pelos direitos das mulheres. Considerando as relações ex-cêntricas descritas por Hutcheon (1991), pode se constatar que a autoria feminina é uma maneira de dar voz a autoras periféricas, uma vez que o contexto literário das metaficções historiográficas é predominantemente masculino. Entende-se por periférico aquele que se encontra à margem de um centro. Ou seja, no caso de Mayra Santos-Febres, que faz parte da literatura caribenha, nota-se que, apesar de ser muito estudada pela crítica norte americana - pois têm vários livros publicados em inglês -, a literatura caribenha é considerada marginal. Assim sendo, ela utiliza como estratégia a tradução, pois assim sua obra alcança um público maior. Assim, a narrativa de autoria feminina, que tem por princípio a tomada da consciência de gênero que se reflete na esteticidade do texto, deve ser analisada também pelo viés da crítica feminista. Para Lúcia Osana Zolin (2015), o feminismo e sua crítica contribuíram muito para que se pensasse a posição social da mulher e o 41 meio em que está inserida e a construção dos estereótipos ligados às mulheres. Zolin (2015) apresenta uma definição do que pode ser interpretada como a essência do pensamento feminista. Trata-se de um movimento político bastante amplo que, alicerçado na crença de que, consciente e coletivamente, as mulheres podem mudar a posição de inferioridade que ocupam no meio social, abarca desde reformas culturais, legais e econômicas, referentes ao direito da mulher ao voto, à educação, à licença-maternidade, à prática de esportes, à igualdade de remuneração para função igual, etc., até uma teoria feminista acadêmica, voltada para as reformas relacionadas ao modo de ler o texto literário. (ZOLIN, 2015, p.183). A autora realiza um percurso histórico, apresentando como as condições de vida das mulheres fizeram com que o feminismo se fortalecesse, uma vez que, fosse à Inglaterra, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar, as mulheres eram vistas como inferiores e isso era justificativa para a opressão. As mulheres não só eram destituídas de poderes políticos, mas também econômicos, uma vez que elas eram proibidas de acumular bens, visto que eram consideradas espólios de seus pais e, posteriormente, de seus maridos. Nesse caso, o sujeito histórico mulher faz referência apenas às mulheres brancas, as quais eram vistas como seres humanos de segunda classe, ou seja, inferiores aos homens brancos e semelhantes aos homens negros. Assim sendo, as mulheres negras eram inferiorizadas, pois eram desumanizadas pelo gênero e pela cor, ocupando o último lugar na pirâmide social. Nancy Leys Stepan (1994) apresenta como os estudos de frenologia no século XlX sustentavam que as mulheres brancas eram inferiores aos homens brancos, sendo equiparadas aos homens de raças consideradas inferiores por esses estudiosos, como os homens negros. As mulheres negras, de acordo com tais estudos, estariam em um alto grau de primitivismo e infantilismo. Eram consideradas inferiorizadas, uma vez que “o gênero era notavelmente considerado análogo à raça, de modo que o cientista podia usar a diferença racial para explicar a diferença de gênero e vice-versa.” (STEPAN, 1994, p.74). Em Fe en disfraz, percebemos a animalização e primitivização da mulher negra no seguinte trecho das declaraõçes de uma mulher branca sobre sua 42 escravizada: “trepándosele él encima y ella aullando como una loba.” (SANTOS- FEBRES, 2009, p.28, grifo nosso). Se as mulheres brancas e negras eram consideradas seres inferiores e dotadas de inteligência mínima, obviamente lhes era negado o acesso à cultura letrada. A mulher branca era minimamente vista como um ser humano, ainda que de classe inferior ao homem branco; contudo a mulher negra era totalmente desumanizada, não tendo acesso a condições mínimas de existência e, por conseguinte, ao mundo letrado. Apesar de ambas serem oprimidas, entre as mulheres brancas e negras há um abismo social, já que uma se considerava proprietária da outra. Além de ser vedado à ambas o acesso à escrita, esta não era considerada uma atividade feminina, pois, de acordo com Wiechemann (2012, p.77) se o trabalho intelectual envolvido na atividade da escrita não seria condizente com o ideal feminino, uma escritora inserida nesse contexto teria que compreender, assimilar e ao mesmo tempo transcender o ideal de obediência aos padrões dessa sociedade. No caso da mulher negra, além de transcender o ideal de obediência pré- estabelecido de que a profissão de escritor não era considerada feminina, ela também desafia os padrões da sociedade, pois o papel de escritor não é subalterno, e se praticado por quaisquer mulheres é visto com desconfiança. Para Bell Hooks (1995), existe uma diferenciação das escritoras, podendo algumas delas serem intelectuais, acadêmicas; entretanto, independentemente da área de atuação, as atividades praticadas por mulheres negras são constantemente questionadas. Hooks denuncia ainda que muitos intelectuais negros, ao listarem escritores, não mencionam produções intelectuais das autoras negras. Desse modo, essas mulheres são silenciadas dentro de sua própria comunidade e suas contribuições relegadas ao esquecimento. Hooks (1995), constata que não se discute nas comunidades negras, nem nas comunidades acadêmicas, como o sexismo molda o nosso pensamento sobre o que se concebe como um intelectual, e denuncia também que muitas vezes se recordam de alguns intelectuais negros, mas com dificuldades se lembram das intelectuais negras. 43 Apesar do testemunho historico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras criticas e teóricas culturais na vida negra, em particular nas comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mentes, quase sempre invoca imagens masculinas. (HOOKS, 1995, p.466). A dificuldade em se dedicar ao trabalho da escrita, no caso das mulheres, deve-se ao fato de seu tempo ser ocupado realizando os afazeres domésticos, ademais de não possuírem um lugar específico para se dedicarem à escrita sem serem interrompidas, pois não possuem espaço privado para isso. Tais fatos foram explanados por Virgínia Woolf (1985) e também aparecem na obra de Bell Hooks (1995), que nos apresenta a distinção entre intelectuais e acadêmicos. Essa diferenciação é de suma importância, uma vez que Santos- Febres exerce a escrita, seja ela acadêmica ou ficcional. Hooks observa que o intelectual pode ser acadêmico, mas não necessariamente ocore o inverso: Intelectual é alguém que lida com ideias, transgredindo fronteiras discursivas, porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-lo. Segundo, intelectual é alguém que lida com ideias em sua vital relação com uma cultura politica mais ampla. (HOOKS, 1995, p.468). Desse modo, através da autoria feminina, que se consolida a partir da consciência das relações de gênero etnia e classe, a autora consegue transgredir os papéis pré-estabelecidos pelo patriarcado para as mulheres, sobretudo as negras. Cabe reiterar que Mayra Santos-Febres não somente apresenta uma mulher como protagonista de uma narrativa, como outras escritoras já fizeram, mas apresenta uma protagonista em uma posição não subalterna, pois a historiadora Maria Fernanda Verdejo é a chefe de Martín Tirado e de outros homens que trabalham no departamento de história da universidade. Por outro lado, a forma de escrita do romance transgride as fronteiras discursivas ao ficcionalizar diversas fontes documentais, para nos apresentar uma versão possível da história das mulheres escravizadas. 44 O fato de Fe desejar entender como as mulheres negras do passado moldaram a sua identidade no presente consiste no que Hooks denomina como “relação com uma política mais ampla” (1995, p.468). Ao ser elaborado a partir de um sujeito histórico, no caso o sujeito mulher, a narrativa de autoria feminina reflete nas obras como se dá a construção de gênero. Contudo, a autoria feminina pode apenas apresentar essa construção histórica ou questionar e problematizar tais discursos. A autora adota esta última característica e, além de apresentar a autoria feminina, lança mão de um narrador masculino em primeira pessoa; ou seja, quem narra a história de Fe Verdejo é Martín Tírado. Desse modo, a autora subverte e, em muitos momentos, parodia os romances que apresentam a figura da mulher sob a perspectiva patriarcal masculina e branca. Ao mesmo tempo em que o narrador masculino descreve a protagonista dentro dos estereótipos de representação da mulher negra, ou seja, como uma figura sensual e provocante, a apresenta como uma mulher intelectualmente sagaz e uma acadêmica de excelência. Ao descrever a historiadora, Martín Tírado também constata que: No abundam mujeres como Fe en esta disciplina; mujeres preparadas em Florencia, en México; com internados en el museo de Historia Natural o en el Instituto Schomburg de Nueva York. No son muchas las estrelas académicas con su preparación y que, como Fe, sean, a su vez, mujeres negras. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.16-17). A personagem se apresenta de modo totalmente austero, pois, sendo mulher e negra, Fe procura afastar de si quaisquer adereços que possibilitem inclusive de identificá-la como uma mulher: Sus muslos largos se prensaban bajo los ropajes poco llamativos de su usual indumentaria. Siempre vestía blusa clara, falda oscura —gris, marrón, negra—. Alisaba su pelo crespo hasta hacerse un moño enrollado en la nuca. No llevaba maquillaje ni se pintaba las uñas. Siempre usaba zapatos de piel genuina, cerrados, que nunca exponían los dedos de sus pies. No olía a perfume, sino a ella (SANTOS-FEBRES, 2009, p.44). Fe Verdejo não usa roupas chamativas, não pinta as unhas e não usa maquiagem. Até os seus sapatos são fechados. Desse modo, ela tenta evitar ser vista apenas por seu corpo e passar uma imagem estritamente profissional. Pode-se dizer que toda sua indumentária é pensada e construída por Fe de acordo com o 45 que o outro irá julgar. A historiadora sabe que será vista sob a perspectiva do outro, branco e masculino e, por isso, constroi uma imagem de si que foge de quaisquer estereótipos do gênero feminino. A vestimenta pode ser interpretada como performática, enquanto usada para construir um papel social, pois, segundo Butler, os gêneros são representações construídas (BUTLER, 2003, p. 185). Fe Verdejo se apresenta ao mundo com atitudes reservadas, que contribuem para uma construção identitária aceita e respeitada socialmente como séria e profissional. Desse modo, entendemos que a construção identitária da personagem é manufaturada e perpassa as questões de gênero. Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado. (BUTLER, 2003, p. 194). Os denominados signos corpóreos citados por Butler (2003), podem ser verificados em Fe Verdejo, que constitui sua aparência pela ausência do que é considerado culturalmente como feminino. Fe Verdejo constroi sua imagem por meio de atuações e vestimentas sóbrias, evitando a todo custo a identificação com estereótipos raciais e de gênero, pois “alguém vem a existir pela dependência fundamental do endereçamento do Outro.” (BUTLER, 2003, p. 05). Devido a isso, a personagem não usa esmaltes, sapatos abertos, perfumes, maquiagem, veste sempre roupas de cores neutras (cinza, branco e preto) e a única peça que a diferere dos seus companheiros de trabalho é a saia até os joelhos que usa. Podemos concluir que, desse modo, Fe não deseja apagar-se totalmente e ser vista como um homem, mas sim, ser reconhecida como uma profissional respeitada e não sexualizada; para tanto, consegue subverter quaisquer estereótipos sobre a mulher negra. 46 2.2 María e Petrona: a diáspora africana Fe en disfraz retrata um importante período da diáspora africana, uma vez que a obra também apresenta personagens dos séculos XVIII e XIX, ou seja, o período escravocrata, no qual a diáspora foi um marco traumático na história dos negros, já que ocorreu de modo compulsório. A diáspora ou a dispersão dos povos africanos pela Europa, Ásia e América se produziu em escala massiva durante o período do tráfico de escravos entre os séculos XV e XIX (SANTOS, 2008, p.182). Conforme recorda o autor, o termo diáspora já aparece no Antigo Testamento para denominar a dispersão dos judeus. O termo passou a ser empregado também para denominar a condição dos negros em analogia à condição judaica. Para o autor: A diáspora traz em si a idéia do deslocamento que pode ser forçado como na condição de escravo, resultado de guerras, perseguições políticas, religiosas ou desastres naturais. Também pode ser uma dispersão incentivada ou espontânea de grandes massas populacionais em busca de trabalho ou melhores condições de vida. (SANTOS, 2008, p.181). Pode-se afirmar que, apesar da diáspora africana apresentar um maior fluxo de pessoas negras escravizadas sendo forçadas a atravessar oceanos ao longo dos séculos XVI até o século XIX, esse fenômeno iniciou-se antes do início da era cristã. Ao estudar a diáspora africana, o autor aponta que a Ásia Menor e o Levante Mediterrâneo foram as localidades que apresentaram elevado índice de êxodo até o século VII. É interessante observar que, apesar do êxodo ocorrer mesmo antes da era cristã, nota-se que, durante as imigrações para a América Latina, o número de negros escravizados e transportados foram infinitamente maiores nas Américas. Além disso, após o fim do período escravocrata, essas populações não retornaram para a África, permanecendo em solos americanos. Conforme Hall (2017), o número de negros escravizados trazidos para as Américas foi muito debatido pelos historiadores através dos tempos. Entretanto, apesar dos números de negros superarem os transportados a força para a Europa, o teórico deixa claro que os números podem ser ainda maiores, se levarmos em 47 consideração que os historiadores se baseavam em grandes arquivos europeus para confirmarem seus dados, ou seja, os números de navios ilegais que traficavam escravos é desconhecido. Nas palavras do autor, "a verdade é que nunca sabemos e provavelmente nunca saberemos quantos africanos escravizados foram embarcados em navios negreiros na África e quantos desembarcaram nas Américas" (HALL, 2017, p. 72). Conforme mencionado por Knight, Talib, Curtin (2010, p.875), esta imigração essencialmente consumada contra a vontade dos participantes durou séculos e deixou de modo generalizado na Europa, no Oriente Médio e nas Américas, comunidades residuais de proporções diversas. Uma micro-história representativa da memória diaspórica africana encontra-se nos capítulos que descrevem a memória dos depoimentos das mulheres escravizadas, particularmente o que apresenta a chegada de duas escravizadas à Costa Rica em 1719. As duas mulheres de nome María e Petrona são as únicas no romance que narram sua chegada ao novo continente. As escravizadas são retratadas no romance através de um dos documentos históricos encontrados pela historiadora Fe Verdejo. Há muitos dados na descrição das mulheres, tais como os barcos em que chegaram, seus donos atuais, quem as vendeu e a casta de origem a que pertenciam. Conforme observa Hall (2017, p.77- 78): Os escravos eram definidos legalmente como propriedade, portanto, muitas vezes há mais informações listadas sobre eles em documentos do que sobre pessoas livres. Muitos documentos contêm descrições detalhadas de escravos: seus nomes e os nomes de seus senhores, seus gêneros, idades, habilidades, doenças, familiares, suas personalidades como percebidas pelos seus senhores, suas origens (incluindo ás vezes designações étnicas africanas) e seus preços. Quando escravos eram interrogados, eles muitas vezes identificavam suas próprias etnias (descritas como nações ou castas nos documentos) ou as etnias de outros africanos. No romance, percebemos que o documento que cita María e Petrona contém, em seu cabeçalho, as características apresentadas acima: "Registro Histórico del Valle de Matina, Costa Rica. Papeles del gobernador Diego de la Haya. Caso: María y Petrona. Condición: esclavas. Era el año de 1719, cuándo María y Petrona, ambas de casta lucumí (...)" (SANTOS-FEBRES, 2009, p.39). 48 O romance perpassa a questão da escravidão, entretanto, como um pano de fundo em que nos apresenta a história das mulheres escravizadas. Nota-se que somente no caso de María e Petrona observamos como ocorreu a chegada das escravizadas ao novo continente. Apesar das condições adversas enfrentadas por essas mulheres, tais como a imigração transatlântica forçada e os anos de escravidão na Costa Rica, é digno de nota que ambas as mulheres tenham aprendido a língua para comunicar-se e procurar a justiça da época para tentar revertê-la a seu favor. No entanto, foi nas Américas que a diáspora africana teve sua amplitude máxima. Os africanos e os seus descendentes, chamados em geral africanos-americanos (expressão recém substituída por afro-americanos), desempenharam um papel de forte importância no desenvolvimento de todas as sociedades do Novo Mundo, desde a descoberta da região pelos europeus, ao final do século XV, até os tempos modernos. Qualquer tenha sido o número de africanos em tal ou qual país, a África imprimiu, na América, a sua marca profunda e indelével. (Knight, Talib, Curtin, 2010, p.877). Os autores deixam claro na citação acima que os africanos trazidos para a América e seus descendentes contribuíram muito no desenvolvimento do continente como conhecemos hoje. Além disso, foi o continente americano que se apresentou o maior número de negros escravizados oriundos do continente africano. Seria injusto não reconhecer as contribuições da população negra nas Américas; contudo, no início do século XIX, os regimes escravistas do continente americano apresentavam entre si diferenças de grau, muito mais que distinções fundamentais de natureza. Em todos estes regimes, a libertação do escravo era relativamente rara, e as mulheres dispunham de um tratamento legal mais favorável que os homens. (Knight, Talib, Curtin, 2010, p.890). Notamos que o romance retrata esse tratamento legal favorável às mulheres, ao apresentar diversos documentos jurídicos em que mulheres procuram a justiça, seja para denunciar maus tratos, seja para requerer partilha de bens ou negociar a própria alforria ou a de seus descendentes. Apesar dos documentos referentes às escravizadas pertencerem a países diversos, nota-se que, apesar das distinções do sistema escravocrata em cada localidade, a procura pela justiça da época se fez de modo similar em todos os países referidos: 49 Algunos de aquellos papeles narraban como esclavas manumisas de diversas regiones del Imperio lusitano y del español lograron convertirse em dueñas de hacienda. Otros tan solo recogían testimonios de ‘abusos’, en los cuales las esclavas pedían amparo real. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.22). Assim, a diáspora africana se faz presente no romance. Ainda que não seja o foco central da obra, atua como pano de fundo histórico, uma vez que, juntamente com o período de escravização das populações negras, trouxe de modo forçado os negros para o continente americano. O romance perpassa essas questões ao apresentar mulheres chegando de um navio negreiro e relatando diante de um governador, como se deram a chegada, as vendas e o motivo de procurar amparo. A narrativa apresenta as escravizadas María e Petrona que, enquanto sujeitos diaspóricos, tentam através de sua condição atual negociar com o poder hegemônico. Apesar dessas mulheres encontrarem-se na situação de escravidão, ambas tentam se adaptar nesse sistema, seja aprendendo a língua do conquistador, seja tomando conhecimento de que podem buscar a justiça. Desse modo, apesar da condição diaspórica, essas mulheres encontraram maneiras de resistir à opressão. 50 3 MEMÓRIA, HISTÓRIA E FICÇÃO: diálogos e embates Ao estabelecer diálogos entre ficção, memória e história, Fe en disfraz pode ser lido como uma narrativa híbrida, uma vez que apresenta relatos memoriais que recontam a história de mulheres escravizadas nos séculos XVIII e XIX, sob uma nova ótica - a das personagens que foram silenciadas pela historia hegemônica; no caso, as mulheres negras. As pesquisas sobre o período colonial efetuadas pela historiadora Fe Verdejo culminam numa exposição de artefatos e documentos históricos, trazendo à tona a micro-história de mulheres negras que se tornaram sujeitos históricos atuantes, ao procurarem a justiça da época para reivindicar direitos negados, tais como partilhas de herança e denúncias de maus tratos. Algunos de aquellos papeles narraban cómo esclavas manumisas de diversas regiones del Imperio lusitano y del español lograron convertirse en dueñas de hacienda. Otros tan solo recogían testimonios de “abusos”, en los cuales las esclavas pedían amparo real. Encontró, además, documentos de condena por el Santo Oficio, declaraciones de tormentos y castigos. Mariana Di Moraes, Diamantina, la mulata Pascuala, los testimonios se sucedían uno tras otro. Relataban estupros y forzamientos con lujo de detalles. Su contenido sexual era particularmente violento. (SANTOS- FEBRES, 2009, p.22) Consideramos o romance uma história híbrida, não somente por utilizar a história e a memória da escravidão para reelaborar novas versões da história, mas por apresentar protagonistas dotados de humanidade e, sobretudo, de desejos, seja os de Fe Verdejo por compreender seu passado que, apesar de reverberar em seu presente, a envolve como uma sombra, seja os desejos de Martín em conquistar e dominar Fe por completo. Linda Hutcheon (1991) enfatiza que o discurso histórico é uma construção narrativa, assim como a ficção; portanto, o historiador não apresentaria um ponto de vista neutro ao relatar os acontecimentos. A pesuisadora canadense reitera esse caráter de construto discursivo ao dizer que, “tanto a ficção como a história são sistemas culturais de signos” (HUTCHEON, 1991, p.149), ou seja, construções sociais e culturais discursivas. Por outro lado, ao apresentar um processo de criação 51 ficcional que recompõe e reelabora diferentes elementos externos no romance, tais como registros jurídicos e artefatos históricos, por exemplo, o romance apresenta o que Hutcheon considera como característico de metaficções historiográficas: a reconstrução ficcional da história, para abarcarem informações que tanto a memória quanto a história não conseguem abranger por completo. Desse modo “certos detalhes históricos são deliberadamente falsificados para ressaltar as possíveis falhas mnemônicas da história registrada.” (HUTCHEON, 1991, p.152). O estudo da história pode ser feito através do estudo de arquivos, que podem ser constituídos por documentos escritos, fotográficos ou microfilmados, que são mantidos sob a guarda de uma entidade pública ou privada. A historiadora Fe Verdejo analisa os documentos inéditos sobre as mulheres negras escravizadas que buscaram a justiça da época. Os documentos possuem importância reconhecida pela pesquisadora, pois, até então, não se sabia da existência de documentos em língua espanhola que relatassem os depoimentos das mulheres escravizadas sobre a violência sofrida por elas. Jacques Derrida (2001) apresenta a etimologia da palavra arquivo para analisar sua dupla conotação. “Arkhê, lembremos, designa ao mesmo tempo o começo e o comando.” (DERRIDA, 2001, p.11). O autor explica como arkhê e arquivo se aproximam, no sentido de originário, primeiro ou inicial, mas a significação mais relevante remete ao sentido de poder e comando: De certa maneira, o vocábulo (arquivo) remete bastante bem, como temos razões de acreditar, ao arkhê no sentido físico, histórico ou ontológico; isto é, ao originário, ao primeiro, ao principal, ao primitivo; em suma, ao começo. Porém, ainda mais, ou antes ainda, “arquivo” remete ao arkhê no sentido nomológico, ao arkhê do comando. (DERRIDA, 2001, p. 12). A narrativa apresenta inicialmente os documentos jurídicos sobre as mulheres escravizadas como um arquivo na definição de Derrida (2001). A pesquisadora Fe Verdejo propõe uma exposição com artefatos, que também são arquivos, para recontar a história das escravizadas. Os documentos encontrados, que relatam as queixas apresentadas perante um juiz da época, poderiam parecer, à primeira vista, serem apenas relatos descritivos das condições apresentadas pelas escravizadas. No entanto, a voz das mulheres aparece em primeira pessoa; desse modo, elas podem nos relatar com 52 suas palavras as violências sofridas ou as exigências a serem cumpridas perante juízo. Esse recurso concede maior verossimilhança ao relato, como podemos observar no trecho do documento referente à escravizada Diamantina, que denuncia os maus tratos infligidos constantemente por sua senhora quando a escrava engravidava: En esa ocasión, declaró la esclava: “que la señora no para de injuriarme, de pegarme con un palo sobre el vientre y empujarme para ocasionarme caídas”. Mostró cicatrices de golpes y carnes moradas al veedor, una vez presentada la denuncia. Diamantina pedía la venia para buscar otra casa donde servir y otro amo que la comprara con sus hijos. (SANTOS-FEBRES, 2009, p.28) No trecho citado que faz referência à Diamantina, nota-se a mudança discursiva, ao ser interrompida a narração do documento para acrescentar a fala da mulher. Esse recurso permite que o subalterno fale, pois, apesar de apresentar voz própria, nem sempre possui a oportunidade de narrar e ser ouvido. O relato em primeira pessoa, juntamente com a narração documental contribui para o enriquecimento do texto, uma vez que mescla a linguagem documental e jurídica com o relato da interrogada, apresentando polifonia. Desse modo, a fala testemunhal da escravizada, que sente e relata a violência sofrida por ela, contrapõe-se à visão hegemônica que narra a violência de modo normatizado e com frieza objetiva. Ao apresentar o que a personagem Diamantina poderia estar sentindo, o romance a humaniza e a coloca como sujeito atuante de sua própria história, uma vez que, mesmo consciente de que talvez sofresse alguma retaliação, a escravizada faz a denúncia, pois, somente dessa maneira poderá modificar sua situação de constantes maus tratos, ainda que não consiga mudar sua condição de escravizada. Assim, ao conceder a voz narrativa a Diamantina, o romance visa reconstruir uma mais que “possível falha mnemônica” da história ao registrar os feitos, uma vez que não se trata de uma descrição neutra, mas do relato testemunhal de quem sofreu tais castigos, registrando, desse modo, a voz de quem foi ignorado pelo discurso historiográfico hegemônico. Conforme já foi dito, a narrativa apresenta dois historiadores que trabalham juntos em um departamento de uma renomada universidade: a historiadora afro- 53 venezuelana Maria Fernanda Verdejo, única mulher e negra do local, e Martín Tírado, porto-riquenho e branco. No início da narrativa, Tirado se prepara para ir a um encontro com Fe Verdejo e nos diz que, caso não retorne, o relato narrad