UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP JOSÉ AUGUSTO ZAGUE O CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO E A COOPERAÇÃO REGIONAL NA INDÚSTRIA DE DEFESA SÃO PAULO 2018 JOSÉ AUGUSTO ZAGUE O CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO E A COOPERAÇÃO REGIONAL NA INDÚSTRIA DE DEFESA Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional” na linha de pesquisa de “Segurança Regional”. Orientadora: Profa. Dra. Suzeley Kalil Mathias Coorientadora: Profa. Dra. Marina Gisela Vitelli SÃO PAULO 2018 JOSÉ AUGUSTO ZAGUE O CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO E A COOPERAÇÃO REGIONAL NA INDÚSTRIA DE DEFESA Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional” na linha de pesquisa de “Segurança Regional”. Orientadora: Profa. Dra. Suzeley Kalil Mathias Coorientadora: Profa. Dra. Marina Gisela Vitelli BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Profa. Dra. Suzeley Kalil Mathias (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) ______________________________________________ Prof. Dr. Samuel Alves Soares (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) ______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferreira de Carvalho (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) ______________________________________________ Profa. Dra. Ariela Diniz Cordeiro Leske (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) ______________________________________________ Prof. Dr. Claudio de Carvalho Silveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) SÃO PAULO, 01 DE MARÇO DE 2018 AGRADECIMENTOS Agradeço a minha orientadora a professora Suzeley Kalil Mathias pelo incentivo e apoio desde a minha graduação tardia no curso de Relações Internacionais. Agradeço ainda a professora Suzeley pela orientação na iniciação cientifica, no TCC e por ter possibilitado o meu contato com a prática de pesquisa no Observatório de Política Exterior (OPEX). A minha coorientadora professora Marina Gisela Vitelli agradeço pelo acompanhamento da minha pesquisa e por suas preciosas sugestões e indicações. Agradecimentos aos professores Héctor Luís Saint-Pierre e Samuel Alves Soares pelos preciosos conselhos e pela oportunidade de enriquecer os meus conhecimentos participando dos projetos e iniciativas do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Agradeço pelo companheirismo e apoio de todos os amigos e colegas do OPEX e GEDES pelo aprendizado, troca de conhecimentos e sobretudo pelo espirito de coletividade e solidariedade no âmbito das atividades de pesquisa ou fora delas. Aos colegas do mestrado e doutorado do Programa San Tiago Dantas agradeço pela amizade e companheirismo. Agradeço ao corpo docente do San Tiago Dantas pelo espaço de debate e discussão que abre novos horizontes. E aos amigos que trabalham no San Tiago Dantas agradeço a inestimável ajuda sem a qual seria impossível alcançar este objetivo. Agradecimentos a Hilton Grossi Silveira, Gerente do Departamento de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa do Brasil (MD), pela entrevista concedida; a Geraldo Antonio Diniz Branco, Gerente do Departamento de Ciência, Tecnologia e Inovação do MD, pelos esclarecimentos sobre o programa Unasul I; a Rubem Ribeiro Veloso, Gerente do Escritório do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) no MD, por fornecer documentação sobre as reuniões dos Comitês do programa Unasul I e a Mariana Bilac dos Santos funcionária do Escritório do CDS no MD pela colaboração na seleção e envio dos documentos sobre o projeto. Agradeço ainda a professora María Natália Tini e ao adido aeronáutico da Argentina no Brasil, Carlos Luís Yedro, pelas entrevistas concedidas. Aos professores que participaram da minha banca de doutorado: Ariela Diniz Cordeiro Leske, Claudio Carvalho Silveira, Carlos Eduardo Ferreira de Carvalho e Samuel Alves Soares agradeço pela disponibilidade em avaliar o meu trabalho. Por fim, um agradecimento especial a minha família pelo suporte e apoio fundamental durante esse período de viagens, busca pelo conhecimento e aprendizagem. Todo o sistema institucional, desde a tribo até o Estado e à Federação, exprime e racionaliza uma forma de equilíbrio entre grupos e forças sociais. A instituição é o vestígio lógico, com que se cobre e protege um corpo animado de vida e ávido de dominar suas próprias contradições. San Tiago Dantas RESUMO O objetivo desta tese é compreender os motivos que levaram a paralisação do programa para a produção do Avião de Treinamento Primário Básico Unasul I, que se desenvolveu sob a coordenação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), em um consórcio integrado por quatro países: Argentina, Brasil, Equador e Venezuela. A pesquisa enfatizou os processos históricos e econômicos que dificultam a possibilidade de ampliar a autonomia e a integração regional no campo da produção de armamentos, especialmente a dependência de fornecedores externos, infraestrutura tecnológica insuficiente e o baixo investimento em P&D. A análise dos documentos dos Comitês Consultivo e Técnico do programa do avião de treinamento, identificou uma correlação entre a paralisação do projeto e os dois principais objetivos do CDS para a produção colaborativa de armamentos: a integração regional e a busca por maior autonomia no desenho, desenvolvimento e produção de sistemas de armas. Até a sua paralisação, duas vertentes com interesses distintos buscaram espaço no programa Unasul I: a de integração autonomista, coerente com os princípios da iniciativa do CDS e constituída por países com baixa capacitação tecnológica e industrial no setor aeronáutico; e a assimétrica, representada por países com maior capacitação na indústria de defesa e no setor aeronáutico. Não obstante a distância tecnológica que separa os países sul-americanos dos principais fabricantes mundiais de armamentos, há ainda uma notável assimetria entre o Brasil, único país que possui um parque industrial de defesa na região, e os seus parceiros sul-americanos, o que teve peso decisivo no processo de produção colaborativa coordenado pelo CDS. Nesse sentido, o modelo de produção colaborativa proposto pelos quatro países membros do CDS, se mostrou disfuncional, caracterizado pelo desequilíbrio na divisão de atribuições entre os parceiros no desenvolvimento e fabricação do avião sul-americano, o que levou a paralisação do programa. Palavras-chave: Conselho de Defesa Sul-Americano. Colaboração Internacional na Produção de Armamentos. América do Sul. Indústria de Defesa. Defesa e Integração Regional. ABSTRACT The purpose of this thesis is to understand the reasons that led to the discontinuity of the primary flight training aircraft program, named Unasur I, developed under the coordination of the South American Defense Council (CDS) and four countries: Argentina, Brazil, Ecuador and Venezuela. It sought to establish a correlation between the discontinuity of the aircraft training program and the two main objectives of the collaborative weapons production project, namely regional integration and the quest for greater autonomy in the design, development and production of weapons systems. In a subsidiary way, it was sought to understand the interests involved in the program. It was verified that until the discontinuity, two areas with different interests sought space in the program, the autonomic integration, consistent with CDS initiative’s principles, but formed by countries with low technological and industrial capacity in the aeronautical sector; and the asymmetric, represented by countries with greater capacity both in defense and aeronautical sectors. The discontinuity of the Unasul I program is related to its asymmetric and dysfunctional model. In addition, we will emphasize historical, economic, and regional geopolitical processes that impede broaden the regional autonomy and integration in the field of weapons production, such as reliance on external suppliers, low R&D investment and insufficient technological infrastructure. Despite the technological disparity between South American countries and the world major arms producers, there is still an asymmetrical regional relationship between Brazil, the only country with a defense industrial park in the subcontinent and its South American counterparts, which is decisive in international collaborative production processes. Keywords: South American Defense Council. International Collaboration in Armaments Production. South-America. Defense Industry. Defense and Regional Integration LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – A aeronave CBA-123 Vector...............................................................35 Figura 2 – A viatura Gaúcho ..............................................................................37 Figura 3 – A aeronave KC-390 ..........................................................................38 Figura 4 – Perspectiva do avião de treinamento Unasur I..................................45 Figura 5 – Fornecedores do avião Embraer KC 390 .........................................73 Figura 6 – Características do Modelo Brasileiro...............................................115 Figura 7 – Características do Modelo Venezuelano.........................................116 Figura 8 – O modelo da OTAN.........................................................................134 Figura 9 – O modelo do CDS ...............................................................................136 Figura 10 – Dupla triangulação na América do Sul...........................................140 LISTA DE GRÁFICOS, QUADROS E TABELAS Quadro 1 – Cronograma da Arquitetura Oganizacional do programa Unasul I........48 Tabela 1 – Valor das importações de sistemas de armas........................................60 Quadro 2 – Principais sistemas de armas importados na América do Sul..............61 Quadro 3 – Relação peso-valor de alguns produtos...............................................71 Gráfico 1 – Porcentagem das exportações mundiais de sistemas de armas.........72 Quadro 4 – Fornecedores do avião Embraer KC-390.............................................74 Quadro 5 – Fornecedores do avião Unasul I...........................................................85 Quadro 6 – Cronologia de atividades do programa Unasul I e das eleições........113 Quadro 7 – Programas de produção colaborativa da OTAN e do CDS................121 Quadro 8 – Participação por país programas Eurofighter e Unasul I....................122 Quadro 9 – Especialização dos países membros do programa Eurofighter.........127 Quadro 10 – Especialização dos países membros do programa Unasul I.............128 Quadro 11 – Divisão de responsabilidades das empresas Eurofighter................130 Tabela 2 – Valor das importações de sistemas de armas pelo Equador................138 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ALBA Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América ALCA Área de Livre Comércio das Américas ASMAR Astilleros y Maestranzas de la Armada BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAVIM Compañía Anónima Venezolana de Industrias Militares C&T Ciência e Tecnologia CDS Conselho de Defesa Sul-Americano CIAC Corporación de la Industria Aeronáutica Colombiana S.A C&T Ciência e Tecnologia CITEFA Instituto de Investigaciones Científicas y Técnicas de las FFAA CODALTEC Corporación de Alta Tecnologia para la Defensa CTA Centro Técnico Aeroespacial CTEX Centro Tecnológico do Exército DGFM Dirección General de Fabricaciones Militares DIAF Dirección de Industria Aeronáutica de la Fuerza Aérea Ecuatoriana DIDEP Dirección de Investigación, Desarrollo y Producción (DIDEP) EMBRAER Empresa Brasileira de Aeronáutica ENAER Empresa Nacional de Aeronáutica FADEA Fabrica Argentina de Aviones Brigadier San Martin FAMA Fábrica Militar de Aviones FAMAE Fábricas y Maestranzas del Ejército HUMVEE High Mobility Multipurpose Wheeled Vehicle ID Indústria de Defesa INDAER Industria Aeronáutica INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais ITAR International Traffic in Arms Regulations LAAD Latin American Aero Defense KAI Korea Aerospace Industries MD Material de Defesa MERCOSUL Mercado Comum do S MTCR Missile Technology Control Regime NETMA NATO Eurofighter and Tornado Management Agency OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte P&D Pesquisa e Desenvolvimento ROB Requisitos Operacionais Básicos RTB Requisitos Técnicos Básicos SENID Servicio Naval de Investigación y Desarrollo SEMAN Servicio de Mantenimiento de la Fuerza Aérea del Perú SIPRI Stockholm International Peace Research Institute TNP Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares UNASUL União de Nações Sul-Americanas VANT Veículo Aéreo Não Tripulado VLS Veículo Lançador de Satélites SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................13 2 COOPERAÇÃO SUL-AMERICANA NA INDÚSTRIA DE DEFESA ..............23 2.1 Antecedentes da indústria de defesa na América do Sul..........................23 2.2 Adesão aos Regimes de Não Proliferação...................................................28 2.3 Antecedentes da produção colaborativa na América do Sul.....................34 2.4 Novos arranjos cooperativos regionais: Unasul e CDS..............................39 2.5 Cooperação no Eixo Indústria e Tecnologia de Defesa ............................43 3 INDÚSTRIA DE DEFESA, AUTONOMIA E DEPENDÊNCIA.........................51 3.1 A Indústria de Armamentos..........................................................................51 3.2 Dependência de fornecedores externos......................................................58 3.3 Estratégias autônomas em defesa...............................................................68 3.4 Restrições dos Regimes de Não Proliferação.............................................77 4 COOPERAÇÃO EM UM MODELO ASSIMÉTRICO........................................82 4.1 O programa Unasul I.......................................................................................82 4.2 Estratégias de produção e financiamento...................................................88 4.3 Concepções antagônicas no desenvolvimento do programa...................95 4.4 Restrições dos Estados Unidos.................................................................106 5 COOPERAÇÃO EM UM MODELO DISFUNCIONAL....................................112 5.1 Foro de diálogo e aliança militar................................................................112 5.2 Distribuição disfuncional de capacidades.................................................120 5.3 Produção colaborativa sob dois modelos de defesa................................131 5.4 Considerações sobre a geopolítica regional.............................................137 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................142 BIBLIOGRAFIA.............................................................................................155 APÊNDICE.................................................................................................... 178 13 1. INTRODUÇÂO Argentina, Brasil e Chile desenvolveram na década de 1960 polos industriais de defesa que supriram parte das suas necessidades e, no caso brasileiro, possibilitou ao país tornar-se um importante exportador de armamentos. Os três países sul- americanos desenvolveram capacidade de produzir uma importante gama de armamentos, porém a insuficiência de recursos técnicos, científicos e financeiros para manter a capacidade produtiva e criar uma infraestrutura tecnológica capaz de assegurar a continua atualização dos produtos, obstou os avanços obtidos. Com o fim da Guerra Fria e a redemocratização a partir da metade dos anos 1980, a indústria de defesa nos três países entrou em declínio, com a redução da produção para suprir as demandas internas e de exportação (BUZAN, 1991; ABETTI; MALDIFASSI, 1994; CONCA, 1997). Os grandes produtores de armamentos procuram influenciar e desencorajar políticas autonomistas no desenvolvimento de tecnologia militar avançada. Buscam interferir e interditar programas de produção de armamentos utilizando mecanismos de contenção na venda de componentes de tecnologia sensível e na transferência de tecnologia de sistemas de armas1. A adesão de Brasil e Argentina ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e ao Missile Technology Control Regime (MTCR) na década de 1990, foi responsável por retardar ou descontinuar o desenvolvimento de projetos como o dos foguetes brasileiros Sonda e dos mísseis argentinos Condor, restringindo a capacidade regional em gerar tecnologias sensíveis que são aplicadas em amplos setores da indústria de defesa. Apesar da adesão ao MTCR, a indústria de defesa e o Programa Espacial brasileiro continuam enfrentando restrições, especialmente dos EUA, que tem negado licenças para a aquisição de componentes utilizados na montagem de equipamentos de uso militar e espacial (ABETTI; MALDIFASSI, 1994; CONCA, 1997; ARBILLA, 2000, DAGNINO, 2010; BUSSO, 2013). Duas décadas depois, com a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), a região passou a contar com um organismo multilateral capaz de coordenar 1 O conceito de sistemas de armas abrange entre outros armamentos: aeronaves, armas anti submarino, material de artilharia, mísseis, motores, navios, satélites, sistemas de defesa aérea, sensores e veículos blindados (SIPRI, 2015a). 14 em âmbito regional iniciativas conjuntas para a produção de armamentos. O processo que cimentou a ideia de uma instância de cooperação em defesa na América do Sul foi forjado sob a liderança brasileira e enfrentou resistências, em especial da Colômbia. A arquitetura do modelo de cooperação em defesa articulada pelo CDS foi construída de modo a evitar o unilateralismo e produzir decisões consensuais e não vinculantes (SANAHUJA; VERDES-MONTENEGRO ESCÁNEZ, 2014; COMINI, 2015). O CDS decidiu produzir sistemas de armas tendo em conta a busca por maior autonomia e integração regional (UNASUL, 2008a). A produção colaborativa visa reduzir custos na produção de sistemas de armas, com o aumento da escala produtiva e redução na duplicação dos custos de P&D (HARTLEY, 2006). Busca ainda articular- se com objetivos tático-estratégicos com a padronização de equipamentos e interoperacionalidade dos meios empregados. O desmantelamento da indústria de defesa sul-americana que se concentrou na Argentina, Chile e Brasil criou entraves para o desenvolvimento e produção de armamentos de maior sofisticação. Autonomia e dependência são polos de uma equação que define estratégicamente a capacidade – ou a ausência da mesma – de um Estado decidir soberanamente sobre a defesa do seu territorio. Para os Estados dependentes, um conflito ou a possiblidade deste, condiciona sua atuação à vontade do fornecedor. Desde o fim da Guerra Fria intensificou-se a incorporação de novas tecnologias aos armamentos pari passu aos processos de concentração produtiva em grandes conglomerados oligopolistas, ampliando o gap tecnológico e a dependência dos países que produzem armamentos de menor intensidade tecnológica, ao mesmo tempo em que se disseminou o conceito de Revolução em Assuntos Militares (RAM) que preconiza o protagonismo da tecnologia dos armamentos frente ao emprego da tática e estratégia nos conflitos (CAVAGNARI FILHO, 1993; KINSELLA, 1998; DUNNE; SKÖNS, 2009; AMARANTE 2012). O Estado tem um papel fundamental para o desenvolvimento, manutenção e expansão dos arranjos em infraestrutura tecnológica e produtivos no setor de defesa. A indústria de defesa é também estratégica para a formulação da política de defesa, seja no âmbito interno ou em um espaço de cooperação regional, ampliando a autonomia na utilização dos meios de defesa e reforçando a capacidade dissuasória. Ademais, concorre para o desenvolvimento da indústria de defesa a existência de uma infraestrutura tecnológica, nos campos da C&T, P&D e financiamento público e 15 privado das atividades produtivas. Quanto mais complexa a infraestrutura tecnológica existente, maior será a capacidade do país ou bloco de países em desenvolver e produzir armamentos sofisticados (BUZAN, 1991; SANDLER et. al., 1999; BRAUER, 2008). O perfil regional é de concentração dessas atividades majoritariamente no Brasil, baixa autonomia no desenvolvimento e na produção e dependência de fornecedores externos. Produzir sistemas de armas colaborativamente é um processo custoso que demanda intensa coordenação e a necessidade de consenso na tomada de decisão têm impacto no cronograma de desenvolvimento ou nos custos programados. No âmbito do CDS, a grande assimetria entre os seus membros torna esses processos ainda mais custosos, tendo em conta a concentração de atividades em determinados países por motivos de ordem tecnológica, financeira ou política (KAPSTEIN, 1991; HARTLEY, 2002; HARTLEY, 2007; BRAUER 2007). A produção colaborativa internacional de sistemas de armas permite aos países membros diluir custos em P&D, reduzir custos com o aumento da escala produtiva e aproveitar as capacidades dos parceiros em áreas especificas (BRZOSKA; LOCK, 1992). Na América do Sul, existem antecedentes de produção colaborativa bilateral de sistemas de armas. Desde a década de 198, Brasil e Argentina têm cooperado nas áreas aeronáutica e no desenvolvimento de um modelo de viatura blindada sobre rodas (FERREIRA, 2009; MORAES 2010). A produção colaborativa internacional de sistemas de armas, como no modelo proposto pelo CDS, é um tema relevante para a integração regional em defesa, tendo em vista o histórico sul-americano de importador de tecnologia militar e de dependência na aquisição de sistemas de armas. Para avançar na produção colaborativa, o CDS definiu os dois principais objetivos do programa: fomentar a integração regional no setor da indústria de defesa (ID) e ampliar a autonomia no desenvolvimento e produção de sistemas de armas (UNASUR, 2015b). O CDS representa um projeto regional de caráter estratégico que estabelece condições para incrementar progressivamente o desenvolvimento e a cooperação na área da defesa, avançando de maneira gradual e flexível na institucionalização dos mecanismos de financiamento – orçamentos plurianuais nacionais direcionados aos programas de produção colaborativa – garantindo investimentos de longo prazo. Para tanto, deve avançar na construção de uma arquitetura legal que incentive e desenvolva conjuntamente a P&D e centros regionais de inovação, convergindo com 16 nichos tecnológicos regionais, especialmente no Brasil e na Argentina (DA PONTE, 2012, p.13-15). O CDS decidiu desenvolver dois programas de produção colaborativa internacional. O do Avião Sul-Americano de Treinamento Básico Primário (Unasul I) e do Sistema Regional de Veículos Aéreos Não-Tripulados (Vant Unasul). O programa do avião Unasul I foi paralisado e o do Vant Unasul descontinuado. A pesquisa concentrou-se no avião sul-americano e buscou compreender o motivo pelo qual o projeto foi paralisado. Influenciou na escolha, a maior disponibilidade e sistematização das informações produzidas pelos comitês do programa do avião sul-americano em contraste com o programa do Vant Unasul que pouco avançou e sobre o qual há poucas informações disponíveis (UNASUR, 2012; SILVEIRA 2017). O projeto do avião sul-americano contou com quatro países para o desenvolvimento da aeronave: Argentina, Brasil, Equador e Venezuela. As principais atividades do projeto se desenvolveram entre 2012 e 2015 por meio de grupos de trabalho e dos Comitês Consultivo e Técnico, que eram responsáveis pelo planejamento das diversas etapas do programa, divisão de responsabilidades, requisitos técnicos e marco legal até que fosse criada a Unasur Aero, empresa que ficaria responsável pelo gerenciamento do programa (UNASUR, 2014; UNASUR 2015d). Cooperar em áreas sensíveis como a defesa, pressupõe integrar-se a um complexo processo de convencimento que envolve relações de confiança e transparência. Torna-se relevante para a compreensão dos processos de integração em defesa na América do Sul, encontrar os motivos para a paralisação dos programas colaborativos do CDS, em especial o do avião sul-americano, que muitos pesquisadores consideram simbólico como representação de um novo modelo de integração sul-americana, dado que um projeto desta natureza significa priorizar os interesses da cooperação regional, em vez do interesse nacional dos países membros, seja político ou econômico (VILLA, 2017, p.11). Nessa perspectiva a tese procurou responder a seguinte questão: quais as causas aparentes e implícitas que impediram o CDS de atingir os objetivos de cooperar na produção colaborativa de sistemas de armas? Para analisar o modelo de produção colaborativa do CDS foi necessário compreender o desenho organizacional e a gestão de modelos similares. Os processos de produção colaborativa internacional de armamentos se consolidaram na 17 Europa, em especial na década de 1970. No mesmo período, surgiram os primeiros arranjos de produção colaborativa na construção de aeronaves militares (SANDLER et.al.,1980). Esses arranjos para a produção de sistemas de armas na área da construção aeronáutica podem ser divididos em três modelos: (i) programas de parceria colaborativa bilateral ou multilateral; (ii) programas colaborativos bilaterais e (iii) programas colaborativos de organizações multilaterais; Os programas de parceria colaborativa (PPC) são liderados por um país (tendo à frente uma empresa local) que busca parcerias para reduzir custos, padronizar os equipamentos e assegurar que ao cooperarem na produção seus governos adquiram unidades do produto. Nesse modelo, há uma empresa e um país líder, no desenvolvimento e produção e países parceiros que fornecem partes e componentes e podem possuir ou não instalações para a montagem da aeronave. Os PPC não se restringem a uma determinada área geográfica ou ao âmbito do espaço territorial de uma organização multilateral. Um exemplo de programa de parceria colaborativa multilateral (PPC) é a produção da aeronave de combate de 5ª Geração Lockheed Martin F-35, desenvolvida pelos EUA com participação de outros países (MATTEWS, 2018, p.120). Além do fabricante e dos fornecedores dos EUA que ficam responsáveis pela maior parte do projeto, como P&D e produção, as empresas dos outros países participam do desenvolvimento da aeronave em três níveis: 1. Reino Unido contribui com 10% do desenvolvimento da aeronave; nível 2. Itália e Holanda contribuem com 4% e 3%; e nível 3. Austrália, Turquia, Dinamarca, Noruega e Canadá, contribuem com percentuais que variam entre 0,5% a 1% para cada país. Nesse modelo não se cria uma entidade jurídica – empresa criada especificamente para desenvolver a aeronave – e a parceria se dá entre os fabricantes com recursos repassados pelos países que participam do projeto (GERTLER, 2014, p.23). Outro exemplo de PPC é o da aeronave militar de transporte tático KC-390, projeto que é liderado pela empresa brasileira Embraer, em colaboração com indústrias de defesa de três países, FAdeA (Argentina), OGMA (Portugal) e Aero Vodochody (República Tcheca) (OLIVEIRA; SILVEIRA, p.64-65, 2014). Os programas colaborativos bilaterais (PCB), são associados à cooperação regional e os países sócios normalmente dividem os custos de desenvolvimento em partes iguais e compartilham as principais etapas do projeto. Esse modelo de coprodução pode ser representado pelo projeto do avião de combate Sepecat Jaguar, 18 produzido por Reino Unido e França na década de 1970 e liderado pelas empresas BAC (BAE Systems) britânica e Breguét (Dassault) francesa. As tarefas de P&D e fabricação são distribuídas às empresas parceiras e realizadas separadamente por elas, o desenvolvimento e fabricação é dividido em módulos, e a montagem final é frequentemente realizada simultaneamente e separadamente pelas empresas parceiras. Tal organização não requer a criação de uma entidade jurídica separada para desenvolver e gerenciar o projeto (DASSAUGE; GARRETTE, 1995, p.516-517). Os modelos de programas colaborativos de organizações multilaterais (PCOM) são caracterizados por uma divisão mais equitativa nas atribuições dos países sócios, não há um país líder no desenvolvimento e em geral a concepção das aeronaves obedecem a objetivos geopolíticos e geoestratégicos correlacionados às políticas de defesa da organização. E o espaço geográfico dos PCOM coincide com os limites da organização de defesa a qual pertence os membros do projeto. Esse modelo de produção colaborativa pode ser representado pelo programa do avião de combate Eurofighter Typhoon, que começou a ser produzido no início da década de 2000. Na gestão do programa Eurofighter, quatro países membros da OTAN: Reino Unido, Alemanha, Itália e Espanha, se organizaram á partir de uma agência a NETMA e da empresa Eurofighter GmbH. No modelo europeu a Eurofighter GmbH. foi constituída para desenvolver e gerenciar o projeto da aeronave e é mantida com o capital de empresas de construção aeronáutica dos quatro países sócios, que possuem atribuições definidas no desenvolvimento e fornecimento de partes e componentes e na produção e montagem da aeronave. Cabe ainda a Eurofighter GmbH. contratar as empresas fornecedoras não sócias do projeto (HARTLEY, 2006, p.487). O Programa do Avião Sul-Americano de Treinamento Básico Primário Unasul I, foi concebido como um PCOM e incorporou elementos do modelo de gestão do programa Eurofighter. Os dois programas coincidem no número de países sócios e a na criação da entidade jurídica, a Unasur Aero S.A, empresa que seria constituída com o capital de empresas dos quatro países sócios para o desenvolvimento da aeronave, contratação das empresas parceiras e de fornecedores não sócios. Nesse sentido, foram analisados os elementos presentes no modelo de gestão do programa Eurofighter aplicados no programa Unasul I, notadamente a tentativa de viabilização da Unasur Aero. Nosso objetivo não foi comparar as duas aeronaves, os valores dos dois projetos, a tecnologia empregada ou os países envolvidos. Essa 19 referência na gestão propiciou a comparação entre os dois projetos na distribuição das atribuições dos países sócios e no formato da empresa responsável pelo gerenciamento do consórcio. O objetivo aqui é compreeder o que impediu o avanço dos projetos de produção de sistemas de armas definidos no eixo Indústria e Tecnologia de Defesa do Plano de Ação do CDS. Para tanto, foram analisadas duas variáveis: 1) As deficiências do sub-continente no campo do desenvolvimento tecnológico-industrial: infraestrutura tecnológica insuficiente, restrições definidas em acordos internacionais de não proliferação e baixo investimento em P&D. 2) As variáveis político-estratégicas: as relaçoes assimétricas entre os países sócios, as disfuncionalidades do modelo de produção colaborativa do CDS e a prevalência de valores westfalianos (disputas territoriais) entre os Estados membros do CDS. Considera-se que a cooperação para a produção colaborativa de sistemas de armas no âmbito de um organismo multilateral, busca solidificar os laços e a confiança entre os seus membros; compartilhar conhecimento e tecnologia; reduzir a dependência de fornecedores extra-regionais; e diminuir os custos de produção com o aumento da escala produtiva. O modelo colaborativo sul-americano é caracterizado por relações assimétricas nos campos da economia, tecnologia e na geopolítica regional com grande peso das posições do Brasil e da Argentina. Iniciativas de cooperação em ambientes assimétricos exigem grande capacidade de coordenação dos países na divisão de responsabilidades, nivelamento tecnológico e na política de custos do projeto. Nesse sentido, a hipótese do trabalho para a paralisação do programa Unasul I é de que a produção colaborativa no âmbito do CDS não atendeu aos objetivos da organização sul-americana, quais sejam, ampliar a autonomia e a integração regional na produção de sistemas de armas – que pressupõe vantagens para todos os países sócios – e foi parte de uma estratégia econômica de um ou mais países sócios para promover o seu próprio interesse. A tese foi construída á partir de uma pesquisa com análise de natureza histórica e abordagem qualitativa. Este trabalho, no entanto, não se vincula diretamente a nenhuma corrente teórica. Para sua realização foram utilizadas fontes primárias, dentre as quais, leis, acordos, tratados, convenções, resoluções, informes, licitações, 20 editais, entre outros documentos. Quanto as fontes secundárias, utilizou-se bibliografia especializada relacionada com os temas da pesquisa disponibilizadas em artigos, livros e periódicos. Para a contextualização do tema, realizou-se um levantamento histórico sobre o processo de crescimento e debacle da indústria de defesa na América do Sul entre as décadas de 1960 e 1980, a cooperação bilateral na produção de sistemas de armas no subcontinente e dos antecedentes que levaram a criação do CDS e projetos regionais de produção colaborativa. Revisou-se a literatura teórica relacionada a produção de armamentos, tecnologia dos armamentos, produção colaborativa, dependência sul-americana de provedores externos de armamentos, estratégias autonomistas e as consequências da adesão sul-americana aos regimes de não proliferação. Buscou-se ainda articular e problematizar aspectos relacionados à produção colaborativa sul-americana com temas de integração regional e de geopolítica regional. Para atingir o objetivo central da pesquisa, utilizou-se documentos produzidos pela Unasul e pelo CDS, tais como: Tratado Constitutivo, Planos de Ação, estatuto, declarações, resoluções e atas. Os Planos de Ação do CDS (2009-2016) foram importantes fontes bibliográficas, pois contêm informações sobre o planejamento do CDS e descrevem as atividades dos grupos de trabalho e o cronograma a ser desenvolvido. Interessou-nos de maneira detida os Planos de Ação do Eixo Indústria e Tecnologia de Defesa e as informações produzidas pelo Comitês do Projeto do Avião Sul-Americano de Treinamento Unasul I. Dentre os documentos oficiais do CDS utilizou-se as atas produzidas pelos Comitês Consultivo e Técnico Assessor e pelo Project Manager Office (PMO) discutidas nas Mesas Técnica, Jurídica e de Divisão de Trabalho. Foram úteis ao trabalho os Livros Brancos de Defesa, Planos Nacionais, documentos com deliberações e relatórios de Casas Legislativas, Ministérios de Defesa e Ministérios das Relações Exteriores dos países membros do CDS, dos EUA, Reino Unido e OTAN. Utilizou-se ainda material produzido por organizações que acompanham o desenvolvimento, produção, exportação e importação de armamentos ou que produzem inventários de defesa como o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Outro importante recurso utilizado na tese foi a condução de entrevistas. O principal objetivo das entrevistas foi ouvir membros dos comitês do projeto Unasul I, 21 responsáveis por desenvolver o modelo e operacionalizar a produção da aeronave de treinamento básico primário do CDS. O Comitê foi constituído por representantes civis e militares, dos quatro países sócios na produção do avião sul-americano, indicados pelos respectivos governos. Com as entrevistas foi possível comparar ou fechar lacunas das demais fontes sobre a estrutura e funcionamento do consórcio, a divisão interna de atribuições aos membros do organismo na produção de MD, as restrições tecnológicas e os aspectos relacionados aos entraves de ordem político-institucional. A articulação das fontes documentais com as entrevistas foi fundamental para responder a pergunta de pesquisa e testar a hipótese. Organizamos o texto com o fito de tornar mais fácil a descrição do processo. Assim, o primeiro capítulo, Cooperação Sul-Americana na Indústria de Defesa, é dedicado a contextualizar históricamente os processos de aquisição de capacidades e consolidação dos parques industriais de defesa e dos setores nuclear e espacial na América do Sul entre as décadas de 1960 e 1980 e o desmantelamento dos mesmos na década de 1990. Em seguida é analisada a evolução da cooperação sul-americana na esfera política com a criação da Unasul e no campo da defesa com o CDS. No segundo capítulo, Indústria de Defesa, Autonomia e Dependência, realizou- se uma revisão da literatura especializada sobre o desenvolvimento e produção de armamentos, o financiamento de C&T e P&D, a dependência sul-americana de fornecedores externos de armamentos e dos seus componentes, as possibilidades autonômas de produção de armamentos, a concentração da produção em grandes produtores, a produção colaborativa e as restriçoes dos grandes produtores internacionais de armamentos. O terceiro capitulo, Cooperação em um Modelo Assimétrico, apresenta uma sintêse do modelo de produção colaborativa do CDS. Com base em documentos do programa Unasul I e na condução de entrevistas, foi possível descrever o modelo do programa, a divisão de responsabilidades, cooperação técnica, financiamento e caráter dependente da cooperação em um processo que se revela assimétrico e com protagonismo do Brasil e da Argentina. No quarto capítulo, Cooperação em um Modelo Disfuncional, são apontadas deficiências do programa Unasul I. O caráter assimétrico e disfuncional do programa, em que o desequilíbrio nas atribuiçoes e capacitação técnico-industrial entre os países sócios, foi determinante para a sua paralisação. Para tanto, foram analisadas as 22 similaridades entre os modelos de produção colaborativa do programa do avião de combate da OTAN Eurofighter Typhoon e do Unasul I, as diferenças entre o CDS e a OTAN e os entraves na geopolítica regional caracterizada por disputas territoriais na área voltada para o Oceano Pacífico. 23 2. COOPERAÇÃO SUL-AMERICANA NA INDÚSTRIA DE DEFESA No capítulo apresentamos um histórico dos arranjos econômicos e políticos na América do Sul, que deram origem a produção de armamentos, tecnologia nuclear, espacial e a construção de alternativas para a produção colaborativa de armamentos no sub-continente. O desenvolvimento da ID sul-americana foi impulsionada por investimentos do Estado e combinou majoritariamente empresas estatais na Argentina e Chile e empresas estatais e privadas no Brasil. Vis-à-vis desenvolveu-se centros de P&D e instalações para os programas nuclear e espacial no Brasil e na Argentina. As pressões externas, notadamente dos EUA, bloquearam as iniciativas desses países e desmantelou a infraestrutura que é dual para o desenvolvimento de determinadas tecnologias como a de mísseis. Brasil e Argentina aderiram aos Regimes de Não Proliferação como o MTCR (mísseis) e o TNP (nuclear). Com os avanços na cooperação e integração sul-americana foi criado em 2008 o CDS, organização que busca coordenar temas de defesa no âmbito regional, permitindo a produção colaborativa de sistemas de armas. 2.1 Antecedentes da indústria de defesa na América do Sul A sistematização de um modelo produtivo na área da ID na América do Sul teve impulso à partir da década de 1960 e coincidiu com o período em que regimes autoritários liderados por militares se instalaram em diversos países no sub- continente. A ID chilena desenvolveu-se antes da implantação do regime autoritário que teve início nos primórdios da década de 1970. Os parques industriais de defesa na região concentraram-se majoritariamente em países que fomentaram a industrialização com políticas de Estado. Três países se destacaram por intervenções do Estado que resultaram no desenvolvimento de parques industriais no setor de defesa: Argentina, Brasil e Chile. O avanço lento do processo de industrialização nos demais países sul-americanos, condicionou a dinâmica interna, restringindo o desenvolvimento local de arranjos produtivos vinculados à ID. Não houve, contudo, uma homogeneidade no grau de desenvolvimento que a produção de material de defesa (MD) alcançou nos três países, o que será ponderado mais adiante. Durante o período em que a ID ganhou importância no subcontinente a dinâmica da Guerra Fria influenciou a segurança na América do Sul em quatro aspectos: 24 instabilidade interna, contestação de limites fronteiriços, considerações sobre hegemonia regional entre Brasil e Argentina e envolvimento dos Estados Unidos em questões internas dos países da região (BUZAN; WEAVER, 2003, p. 320). No contexto da Guerra Fria e de rivalidades regionais introduziu-se uma política sistêmica para ampliar a capacidade de produzir armamentos. Para tanto, com fomento estatal, desenvolveu-se uma articulação entre as instituições de pesquisa e desenvolvimento (P&D) vinculadas as organizações militares e as empresas privadas e estatais dedicadas a produção de MD, que resultou na criação de aglomerações industriais altamente especializadas e intensivas em capital, como resultado de estratégias nacionais para aumentar os níveis de autossuficiência na produção de armas (KALDOR, 1986, p. 144). No Brasil, a implantação de centros de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias aplicadas a área militar, vis-à-vis ao avanço da industrialização entre as décadas de 1950 e 1970, propiciou um arranjo produtivo induzido pelo Estado, que deu origem a importantes empresas produtoras de MD no país. A pedra fundamental deste modelo, o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), foi fundado em 1954. Com a evolução no setor de P&D no âmbito da Força Aérea foi criada em 1969 a Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER) e nos anos 1970 os pré-existentes complexos de P&D da Marinha e da Força Aérea foram expandidos substancialmente (CONCA, 1997, p. 40). Na década de 1970 o Exército implantou um modelo organizacional para as atividades de P&D que seguiu o desenho institucional desenvolvido duas décadas atrás pela Força Aérea, que deu origem ao Centro Tecnológico do Exército (CTEx) (CONCA, 1997, p. 42). Durante o regime autoritário, notadamente na década de 1970, consolidou-se uma política industrial-militar fomentada em uma estratégia de crescimento liderada pelo Estado, que estimulou investimentos no setor de defesa e garantiu mercado para os fabricantes. Para a consecução da política industrial- militar foram utilizados subsídios diretos e indiretos, incentivos fiscais, P&D financiada pelo Estado, políticas de aquisições de MD produzido internamente e de proteção ao mercado brasileiro (CONCA, 1997, p. 88). Na Argentina o projeto de ampliar a produção de armas nas décadas de 1960 e 1970 se inseriu como parte de uma política de desenvolvimento econômico e independência frente aos fornecedores externos de armamentos adotada pelo país desde a década de 1930 (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 65). Segundo Moraes (2011, p. 49) “A indústria de defesa argentina se destacou, historicamente, pela 25 fabricação de quatro tipos de produtos: (i) aeronaves de asa fixa; (ii) blindados; (iii) navios; e (iv) armas leves e munições”. Dentre as iniciativas do país no setor, a criação de uma infraestrutura de P&D ganhou relevância na década de 1950. O Instituto de Investigaciones Científicas y Técnicas de las Fuerzas Armadas (CITEFA), fundado em 1954, foi encarregado da pesquisa básica e na área de mísseis. O Instituto de Aeronáutica y Pesquisas Espaciales (IAPE), criado em 1957, impulsionou as atividades da Fábrica Militar de Aviões (FAMA), atual FAdeA, na fabricação de aeronaves sob controle da Força Aérea. O Servicio Naval de Investigación y Desarrollo (SENID) atuou na pesquisa desenvolvida pela Marinha e a Dirección General de Fabricaciones Militares (DGFM) na pesquisa e desenvolvimento de pequenas armas, munições e explosivos. No final da década de 1960 o CITEFA (atual CITEDEF) foi designado para atuar nas pesquisas de novas armas. Com a ascensão ao poder dos governos militares, o financiamento das atividades de P&D militar passou a contar com um aumento substancial no total destinado a Ciência e Tecnologia (C&T). Do total do orçamento federal destinado a C&T em 1976, 6,9% foi direcionado para as atividades de defesa. Em 1978, o percentual destinado a P&D alcançou 17,94% do orçamento do Ministério da Defesa, além de 0,20% diretamente para atividades da Marinha e 1,7% para a Força Aérea (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 72). No Chile, país em que a ID não alcançou a mesma importância que teve no Brasil e na Argentina, a infraestrutura de P&D foi concentrada nos principais fabricantes estatais de armamentos vinculados às Forças Armadas. A ID chilena ganhou impulso entre as décadas de 1960 e 1970, com a criação de novas empresas e expansão da capacidade produtiva em áreas pré-existentes. Durante o regime autoritário houve uma expansão nos gastos militares com incidência sobre a ID. No setor naval, os recursos para P&D foram direcionados para a Astilleros y Maestranzas de la Armada (ASMAR) criada em 1960 sob a gestão da Marinha Chilena. Já a Força Aérea utilizou os recursos para P&D em projetos desenvolvidos pela Industria Aeronáutica (INDAER) criada no final da década de 1970 e da Empresa Nacional de Aeronáutica (ENAER) fundada em meados da década de 1980. A empresa Fábricas y Maestranzas del Ejército (FAMAE) fundada em 1811 e dedicada a produção de armas leves, utilizou os recursos destinados a P&D para ampliar na década de 1970 o seu portfólio de produtos de defesa e desenvolver uma linha de veículos blindados e foguetes (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 89-98). 26 A busca por autonomia na produção de armamentos nos três países respondeu a demandas reprimidas por restrições dos Estados Unidos, principal fornecedor de MD para a América do Sul, ao acesso a tecnologia de uso militar. As restrições dos EUA, que cresceram no imediato pós Segunda Guerra Mundial concorreram para o desenvolvimento da ID entre as décadas de 1960 e 1980, período em que a Argentina produzia uma considerável gama de produtos e o Brasil estava entre as nações determinadas em construir uma indústria de armamentos de base ampla (BUZAN, 1991, p.72). A ID argentina segundo Moraes (2011, p.49) “[...] chegou a alcançar entre meados dos anos 1960 e o término dos anos 1980 um grau de complexidade e diversificação na região equiparável apenas ao da indústria de defesa brasileira”. Não obstante a dinâmica de crescimento do setor naquele período os armamentos produzidos pela ID no subcontinente se caracterizavam pelo baixo incremento tecnológico (BATTAGLINO, 2009, p. 88). Contudo, nem mesmo as limitações de acesso a tecnologia avançada impediram as indústrias brasileiras de defesa de expandirem-se na década de 1970. Em uma única década, o Brasil, país com forte dependência de fornecedores externos, tornou-se um importante exportador de armas e líder entre os então denominados países do “Terceiro Mundo” (CONCA, 1997, p. 1). Se no conjunto, a produção da ID no Brasil nas décadas de 1970 e 1980 apresentava baixa incorporação de tecnologia militar avançada, em situações especificas, o país foi capaz de desenvolver sistemas de armas de alguma sofisticação para o uso local e exportação aos países do “Terceiro Mundo” e em algumas ocasiões para os países desenvolvidos (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 14). A maior parte da produção de armamentos nos três países eram destinadas as forças armadas locais, mas com o tempo foi possível gerar saldos exportáveis. Os registros disponíveis, são aqueles relacionados as exportações de sistemas de armas por parte dos três países entre 1970 e 1990, que revelam uma notável assimetria entre a ID brasileira e a dos dois outros países. No período, o Brasil exportou um total de US$ 2.283 bilhões2 em sistemas de armas, a Argentina US$ 68 milhões e o Chile US$ 16 milhões (SIPRI, 2015c). Com a eclosão do conflito militar entre Irã-Iraque, durante a década de 1980, houve um aumento exponencial das vendas brasileiras de 2 Dólares a preços constantes 27 armamentos aproximando-se dos US$ 600 milhões3 em 1987 (DAGNINO, 2010, p. 68). O incremento nas exportações durante grande parte da década de 1980, apontava para um cenário em que a ID nos três países poderia superar as limitações de caráter tecnológico e alcançar maior sofisticação nos seus produtos. No entanto, a dinâmica da política e da economia naquele período impôs uma conjuntura de dívida pública crescente, mudanças no câmbio, alta da inflação, redução dos investimentos na ID com o fim dos governos militares e a reconfiguração da ordem política mundial com o fim da Guerra Fria, obstando a expansão do setor nos três países ao final da década de 1980 (ABETTI; MALDIFASSI, 1994; CONCA, 1997). Na década de 1990 o cenário externo marcado pelo fim da Guerra Fria e no âmbito interno o processo de redemocratização alterou a configuração do modelo implantado nos três países, com a diminuição da produção de armamentos e consequente interrupção na geração de saldos exportáveis, sobretudo no caso brasileiro. Na Argentina a capacidade de desenvolvimento de novos produtos de defesa foi perdida e as atividades se concentraram na manutenção e reprodução de equipamentos pré-existentes. As instalações produtivas na área de defesa tiveram suas atividades encerradas ou diminuídas e o conhecimento acumulado pelo setor e sua cadeia se pulverizou (MORAES, 2011, p. 53). No Brasil e na Argentina, países em que a ID avançou mais, houve um desmantelamento do setor (COSTA, 2005, p. 216). A ID chilena, menor no volume de vendas entre os três países e com atividades de P&D e produção concentradas majoritariamente em empresas do Estado, manteve as atividades produtivas4, contudo sem o dinamismo das décadas anteriores (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 89-228). Comparativamente, o valor das exportações de sistemas de armas dos três países que alcançou US$ 2.367 bilhões entre 1970 e 1990, recuou para menos da metade entre 1991 e 2014, totalizando US$ 1.071 bilhões. No período, o Brasil exportou US$ 997 milhões, Chile US$ 41,4 milhões e Argentina US$ 33 milhões 3 Inclui a exportação de sistemas de armas e armamento leve. 4 O SIPRI indica exportações chilenas de sistemas de amas entre 1990 e 2014 no total de US$ 158 milhões. No entanto, US$ 100 milhões são referentes a venda em 2008 pela Marinha do Chile de duas fragatas da Classe Leander (retiradas de serviço), de fabricação britânica, ao Equador. Há ainda no período, registro de venda da Força Aérea do Chile para El Salvador de dez aeronaves A-37 Dragonfly (retiradas de serviço) fabricados nos EUA, no valor US$ 8.6 milhões (SIPRI, 2015b). 28 (SIPRI, 2015c). A queda das exportações brasileiras foi expressiva e evidenciou a perda de dinamismo do setor com vendas concentradas em itens desenvolvidos na década de 1980. A ID chilena ainda demonstrou resiliência com exportações de produtos do setor naval e aeronáutico e na Argentina houve uma queda acentuada nas vendas externas concentradas no setor aeronáutico (SIPRI, 2015b). As exportações de armamentos são um termômetro das condições dinâmicas da ID. A queda nas exportações no período evidenciou não apenas mudanças conjunturais, como o fim da Guerra Irã-Iraque e da Guerra Fria, mas indicou a existência de fadiga estrutural do sistema de financiamento-pesquisa-produção nos três países. 2.2 Adesão aos Regimes de Não Proliferação Os investimentos associados aos programas de produção de armamentos foram acompanhados da criação de uma infraestrutura para o desenvolvimento das tecnologias nuclear e espacial. Nesses segmentos Brasil e Argentina foram os países que mais avançaram na América do Sul. Não há indicações na literatura especializada de que o Chile tenha desenvolvido mísseis ou avançado na tecnologia nuclear (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 101-102). Do mesmo modo que no setor da ID os demais países sul-americanos não fizeram progressos relevantes na área nuclear e espacial. A infraestrutura necessária ao desenvolvimento de tecnologias associadas aos programas nucleares e espaciais no Brasil e na Argentina, entre as décadas de 1970 e 1990, vis-à-vis aos progressos na ID, possibilitou o desenvolvimento de um importante complexo de P&D com um corpo técnico-cientifico de alta qualificação e com capacidade para disseminar o conhecimento acumulado para outros ramos da economia. Mudanças no campo político, restrições orçamentárias e pressões externas fizeram com que os dois países abdicassem de partes importantes dos dois programas resultando em perda do conhecimento acumulado. No Brasil o desenvolvimento dos programas para produção de foguetes iniciada na década de 1960 contou com a cooperação da França e dos Estados Unidos (CONCA, 1997, p. 53). Entre as décadas de 1970 e o início da década de 1990, o programa brasileiro de foguetes Sonda I, II, III e IV desenvolvidos pelo Centro Técnico Aeroespacial (CTA) em colaboração com a empresa privada brasileira Avibras e a West German Corporation for Aerospace Research (DLR) centro de pesquisas da 29 então Alemanha Ocidental, proporcionou ao país capacidade tecnológica para produzir mísseis de médio alcance. Na Argentina, o programa dos mísseis Condor e Condor II desenvolvidos pelo CITEFA inicialmente como parte de um programa espacial, foram depois projetados para serem utilizados como míssil balístico de alcance médio (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p. 55-83) Em processo simultâneo aos investimentos na indústria de armamentos e no programa espacial, desenvolveu-se o programa nuclear. Durante os regimes autoritários os esforços no setor nuclear seguiram simultaneamente dois caminhos. No Brasil o programa oficial resultado do acordo nuclear com a então Alemanha Ocidental em 1975 previa a construção de centrais nucleares para a geração de energia e o desenvolvimento de uma indústria nuclear brasileira. No mesmo período, o governo militar criou o programa nuclear paralelo, como esforço secreto para superar os obstáculos encontrados no programa oficial para a produção de artefatos nucleares de emprego militar (CONCA, 1997, p. 54-55). Com o objetivo de desenvolver o ciclo completo da produção de energia nuclear e por consequência alcançar a capacidade de produzir um artefato nuclear de emprego militar, Brasil e Argentina estabeleceram uma corrida armamentista. No entanto, em meados da década de 1980 e coincidindo com o processo de redemocratização, houve um significativo avanço na cooperação entre os dois países no campo nuclear. A formação de um grupo de trabalho conjunto sob a presidência dos chanceleres em 1985 deu origem a vários instrumentos de cooperação e em 1986 os dois países assinaram um protocolo para intercâmbio de tecnologia e segurança na área nuclear (BUENO; CERVO 2012, p. 502). No ano seguinte, o presidente brasileiro José Sarney e o seu homólogo argentino Raul Alfonsín visitaram as instalações secretas de uma planta de enriquecimento de urânio na Argentina, para comprovar que o programa nuclear do país possuía finalidade pacífica (JORNAL DE BRASÍLIA, 1987). Com o avanço na cooperação bilateral e o aumento da confiança mutua – ainda que ambos os países tenham alcançado o domínio do ciclo completo da tecnologia nuclear – houve uma interrupção da corrida armamentista e a possibilidade de construção de um artefato nuclear ficou mais distante (BUENO; CERVO 2012, p. 502) No início década de 1990, o novo presidente brasileiro Fernando Collor de Mello modificou o perfil da Política Externa do país, dando ênfase a três aspectos: (i) atualização da agenda internacional do Brasil aos novos padrões do Pós-Guerra Fria; 30 (ii) estreitamento dos laços com os Estados Unidos; (iii) e modificação no perfil Sul- Sul da Política Externa Brasileira (HIRST; PINHEIRO, 1995, p. 6). Para restabelecer a confiança do establishment internacional com base na nova agenda liberal, o governo Collor de Mello decidiu eliminar contenciosos que dificultavam uma relação mais fluída com parceiros como os Estados Unidos. Ao determinar o fechamento das instalações da Serra do Cachimbo em 1990, herança do programa nuclear paralelo, Collor de Mello quis diminuir as pressões externas em um momento que o país renegociava a sua dívida externa com credores internacionais (SANTOS, 1990). A agenda da política externa do governo Collor de Mello influenciou a política de segurança do governo brasileiro em duas frentes. Na primeira, reforçou os laços com a Argentina e com o governo de Carlos Menem, com a criação em 1991 da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) ao selar o Acordo Quadripartite que reuniu Argentina, Brasil, ABACC e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para a aplicação de salvaguardas, gerando um modelo regional de não proliferação (HERZ; LAGE, 2013, p. 15). Na segunda, a mudança no perfil internacional do Brasil e a aproximação com os Estados Unidos, alterou a posição do novo governo quanto as tecnologias sensíveis e tornou mais flexível a posição brasileira frente a adesão aos regimes de não proliferação (HIRST; PINHEIRO, 1995, p. 6). Na frente interna o governo Collor de Mello preparou o terreno para a adesão brasileira aos regimes de não proliferação. O governo procurou reduzir a influência dos militares sobre a política doméstica e a política externa e conferiu aos civis o controle de atividades ligadas as áreas sensíveis. Extinguiu o Serviço Nacional de Informações (SNI) e a responsabilidade pela formulação e supervisão da Política Nacional Nuclear passou a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência (SAE) sob o comando civil. O governo teve que substituir a direção da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), favorável à produção de um artefato nuclear de emprego militar, para assumir o controle sobre as atividades desenvolvidas no campo nuclear no país. Instalações nucleares, como a da Serra do Cachimbo, foram fechadas. Ao desmantelar a estrutura do programa nuclear paralelo, que não tinha objetivos pacíficos, Collor de Mello buscou certificar a Comunidade Internacional sobre a disposição do governo brasileiro em não construir um artefato nuclear de emprego militar (OLIVEIRA, 2011, p. 44-68). 31 Na Argentina, a semelhança do Brasil, o governo de Carlos Menem se aproximou do EUA oferecendo a possibilidade de privatização de empresas públicas e a liberalização da economia do país. Menem, fez concessões aos EUA no campo estratégico, como condição para tornar-se um sócio confiável no campo político- econômico. Uma das principais iniciativas do governo Menem foi paralisar o programa de desenvolvimento dos mísseis Condor. Um documento confidencial da Agência Central de Inteligência (CIA) datado de 1990 faz referência à oposição enfrentada por Menem em sua decisão de desativar o programa de mísseis e com isso se aproximar dos EUA: O polêmico programa de mísseis balísticos Condor da Argentina – principal controvérsia nas relações entre os EUA e a Argentina - está em uma importante conjuntura em seus 10 anos de história. Apesar da pressão considerável dos nacionalistas da Argentina, para continuar com o desenvolvimento do míssil Condor II, o governo Menem, aparentemente, decidiu iniciar etapas para abandonar o conturbado programa e melhorar sua imagem internacional forjando uma relação mais próxima com os EUA (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 1990, tradução nossa). Na década de 1990 a Argentina tornou-se membro do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (Missile Technology Control Regime) (MTCR), do Grupo de Supridores Nucleares (NSG) e do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) (GARBOSE, 2012). No mesmo período o Brasil tornou-se membro do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, da Convenção para Proibição de Armas Químicas (CPAQ), da Convenção para Proibição de Armas Biológicas e Bacteriológicas (CPAB) e do Grupo dos Supridores Nucleares (NSG) (HAK NETO, 2011, p.160-183). Em tela com essas iniciativas e no mesmo período, o Brasil criou a Lei 9112/1995, que dispõe sobre a exportação de bens sensíveis e de uso dual nas áreas nuclear, química e biológica (BRASIL, 1995). A adesão de Brasil e Argentina ao MTCR e ao TNP, representa um marco na política de ambos na integração aos Regimes Internacionais de Não-Proliferação. Como desdobramento do Acordo Quadripartite, os dois países aderiram ao MTCR, uma associação criada em 1987 por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido e que atualmente possui trinta e quatro membros. A associação busca compartilhar os objetivos da não proliferação de sistemas de lançamento capazes de transportar armas de destruição em massa, visando 32 coordenar esforços para impedir a concessão de licenças de exportação que contribuam para a proliferação de tais armamentos (MTCR, 2015a). O MTCR impede que Brasil e Argentina e os demais países membros exportem mísseis que tenham alcance superior a 300 km e ogivas acima de 500 kg (GODOY, 2013). Por sua vez, a adesão ao TNP obrigou-os a se abster de transferir ou receber armas nucleares ou outros artefatos explosivos nucleares, assim como ter o controle direto ou indireto sobre tais armas e explosivos (IAEA, 2015). Apesar da adesão formal ao TNP por parte dos dois países ter ocorrido entre 1995 e 1998, esse processo começou em 1991 com a assinatura do Acordo Quadripartite, quando ficou estabelecido a realização de inspeções periódicas da AIEA em instalações nucleares de ambos os países (OLIVEIRA, 2011, p. 68-70). Três correntes de análise se perfilam sobre a adesão brasileira aos regimes de não proliferação. Entre os representantes da primeira corrente, Arbilla afirma que o período em questão, premido por grandes transformações com o fim da União Soviética e da Guerra Fria e o fortalecimento da posição dos Estados Unidos no cenário internacional, restringiu às opções outrora disponíveis, sobretudo no que diz respeito a busca por estratégias autônomas de desenvolvimento econômico e tecnológico, que se tornaram restritas (ARBILLA, 2000, p. 338). Para Hurrel o Brasil foi forçado a fazer concessões em matéria de política de comércio e investimento, sem qualquer reciprocidade dos Estados Unidos e o mesmo ocorreu em setores como o de armas, mísseis e indústrias nucleares, seguido por um forte aperto de normas internacionais e instituições (HURREL, [1996], p. 32). Uma segunda corrente considera que a adesão criou classes distintas de países perpetuando as assimetrias no campo da segurança internacional. Para Dagnino, apesar da previsão de sanções por descumprimento dos acordos, nenhuma vantagem para os países que decidissem não se aventurar neste campo foi definida. Ao contrário, e confirmando o “senso comum estratégico”, países que já possuíam aquela capacidade tecnológica e industrial continuavam recebendo um tratamento diferenciado (DAGNINO, 2010, p. 206). Nesse sentido, o TNP criou segundo Guimarães (2002): status privilegiado aos países militarmente poderosos, em especial os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas que podem ter estoques, desenvolver armas nucleares e mísseis e até usá-las. Enquanto isto, países desenvolvidos menores e países da periferia, ex- colônias e desarmados, foram levados a aderir a esses acordos assimétricos por persuasão, cooptação e coerção política e a aceitarem neles uma condição de inferioridade e de capitis diminutio: não podem ter, desenvolver, comercializar e usar essas armas. 33 A terceira corrente considera que a política exterior do Brasil abandonou a força como meio de ação em favor da persuasão e abandonou a tendência iniciada nos anos 1970 de fortalecer a capacidade industrial na produção de meios de defesa e dissuasão (BUENO; CERVO, 2012, p. 502). Para Cervo (2002, p. 15-16) o Brasil “[...] imbuído de idealismo kantiano [...] renunciou a construção da potência e ao exercício da força como instrumento da política ao aderir aos pactos de armas químicas e biológicas de destruição massiva, ao Regime de Controle de Mísseis e ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear”. Do lado argentino, o governo de Raul Alfonsín, primeiro presidente que governou o país após a redemocratização, se recusou a aderir ao TNP. As objeções argentinas naquele período se dividiam em duas esferas. A primeira era a tecnológica, dado que o país não considerava razoáveis as objeções impostas para a utilização de explosivos convencionais para os países que aderissem ao tratado. A segunda, o desequilíbrio no sistema de controle, que colocava os Estados não nucleares em desvantagem (LUDDEMANN, 1983, p. 388). Nesse período, apesar das dificuldades econômicas, da crise de endividamento e cortes orçamentários, o projeto autonomista argentino em que a tecnologia nuclear ocupava lugar privilegiado manteve seus objetivos inalterados, pois provou ser muito avançado nas conquistas tecnológicas, industriais e estratégicas e a recompensa desses investimentos manifesta no orgulho nacional era muito valiosa para ser interrompida (ADLER, 1988, p. 75-76). O projeto autonomista e os avanços tecnológicos argentinos no setor nuclear e na tecnologia de mísseis, foram, contudo, objeto de negociação do governo Menem e os EUA, na década de 1990. O governo Menem abandonou o desenvolvimento de armas de destruição em massa, desativou o Projeto Condor II e reorientou a política nuclear, questões historicamente reclamadas por Washington. A política de mísseis argentina foi considerada transgressora das normas – tácitas e implícitas – da segurança internacional estabelecidas pelos Estados Unidos no Pós-Guerra Fria e assim como o programa nuclear foi desmantelada (BUSSO, 2013, p. 1-20).Os projetos autonomistas em setores estratégicos na América do Sul foram abandonados, desmantelados ou paralisados, por não dispor de infraestrutura tecnológica e industrial suficiente para manter os avanços e por pressões políticas externas, com prejuízo para o desenvolvimento de toda uma cadeia econômica fundamental para o conjunto da economia regional. 34 2.3 Antecedentes da produção colaborativa na América do Sul No período de maior dinamismo da produção de armamentos nos três países, entre as décadas de 1970 e 1980, prevaleceu o desenvolvimento de projetos estanques sem iniciativas de cooperação para a produção conjunta de MD. Com o processo de redemocratização e ascensão de governos civis no Brasil e na Argentina, desenvolveu-se na metade da década de 1980 o primeiro projeto de cooperação binacional no setor aeronáutico, o CBA-123 Vector, com o objetivo de produzir uma aeronave de uso civil com uma proposta tecnológica inovadora. Apesar de ser um projeto previsto para o uso civil, a aeronave incorporava inovações passíveis de gerar durante o seu desenvolvimento tecnologia de emprego militar. Outro aspecto representativo do projeto CBA-123 Vector é que as empresas encarregadas de produzi-lo, eram controladas pelos militares, cumprindo papel relevante na estratégia dos dois países de avançar na construção de aeronaves comerciais e militares. Em 1987, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) e sua congênere argentina Fabrica Argentina de Material Aeroespacial (FAMA), assinaram um acordo para a produção conjunta do CBA-123 Vector, uma aeronave turboélice de dezenove passageiros com uma cabine pressurizada (CONCA, 1997, p. 129-130). No acordo entre os dois países ficou decidido que na divisão dos custos para o desenvolvimento e produção da aeronave 67% caberia à Embraer e os outros 33% à FAMA (ABETTI; MALDIFASSI, 1994, p .47-48). A aeronave foi concebida para utilizar a fuselagem e a cabine do Embraer EMB- 120 Brasília e alguns conceitos considerados não convencionais para a sua categoria naquela época, tais como, asas de perfil supercrítico, motores traseiros com seis pás propulsoras instalados na seção posterior da fuselagem e o uso intensivo de materiais compostos. O acordo previa a instalação de duas linhas de montagem, em São José dos Campos no Brasil e outra em Córdoba na Argentina. À época previa-se um custo aproximado de US$ 292 milhões para desenvolvimento e lançamento da aeronave (EMBRAER, 1987, p. 3). Em 1990 a aeronave fez o primeiro voo na pista de testes da Embraer em São José dos Campos, com as presenças dos presidentes dos dois países, Fernando Collor de Mello e Carlos Menem. Por ser um projeto sofisticado e que exigia grandes investimentos, foi interrompido em 1991, por dificuldades financeiras dos dois 35 parceiros. A Embraer enfrentava um período de crise e a FAMA não possuía orçamento próprio, pois funcionava como um departamento da Força Aérea Argentina, que enfrentava restrições orçamentárias (VINHOLES, 2016). Ao longo do tempo, a Embraer assumiu o desenvolvimento da aeronave na qual foram consumidos aproximadamente US$ 400 milhões (FERREIRA, 2009, p.134). Apesar da tecnologia inovadora, o Vector não se viabilizou economicamente por se tratar de um avião regional de pequeno porte, com elevado custo unitário e reduzida capacidade de transporte, o que limitava o interesse de possíveis compradores (ibid., p. 133-134). A foto a seguir ilustra a aeronave CBA-123 Vector: Figura 1 - A aeronave “CBA-123 Vector” Fotografo Derek Ferguson. Data não identificada. Disponível em: dehttp://www.airliners.net/photo/Embraer -FMA-CBA-123-Vector-IA-0/0771042/L/>. Acesso em 03 ago. 2015 A parceria entre Brasil e Argentina no desenvolvimento de novos produtos de defesa foi reativada na década de 2000, quando os dois países decidiram produzir em conjunto uma viatura militar aerotransportável denominada Gaúcho. A viatura leve de 1.5 tonelada pode ser transportada por uma variada gama de aeronaves de asa fixa (aviões de transporte) e rotativas (helicópteros) (MORAES, 2010, p. 106-107). O projeto da viatura Gaúcho segundo Moraes (2010.,p.106) “[...] foi desenvolvido, em etapas iniciais, apenas pelos dois Exércitos, sem que estes houvessem sido incumbidos do projeto por órgãos superiores, uma evidência que aponta a existência de canais independentes de comunicação entre as Forças http://www.airliners.net/photo/Embraer%20-FMA-CBA-123-Vector-IA-0/0771042/L/ http://www.airliners.net/photo/Embraer%20-FMA-CBA-123-Vector-IA-0/0771042/L/ 36 Armadas dos dois países”. O programa de desenvolvimento e produção do Gaúcho só foi efetivamente incorporado aos Ministérios da Defesa e Ministérios das Relações Exteriores de ambos os países em 2005 (ibid., p.107). O Brasil, por meio do Centro Tecnológico do Exército (CTEx) ficou encarregado de desenvolver o sistema de freios, sistema elétrico, sistema de refrigeração, sistema de combustíveis, armamentos e assessórios. Pelo lado argentino, coube a Dirección de Investigación, Desarrollo y Producción (DIDEP), desenvolver o chassi jaula, grupo motopropulsor, transmissão, sistema de direção, sistema de amortecimento e carroceria. O primeiro protótipo foi montado na Argentina e encaminhado para testes e ajustes no Brasil (ibid., p.108-113). A divisão de trabalho do projeto Gaúcho, no entanto, se mostrou disfuncional. Na avaliação brasileira a equipe argentina não conseguiu executar adequadamente a sua parte no projeto. Segundo Amarante (2013, p. 40) a Argentina “contratou uma empresa civil, que faz carros de corrida tipo gaiola, para fazer uma viatura de emprego militar para paraquedistas [...] e o resultado foi nem um carro de corrida e muito menos uma viatura militar [...]”. Para Amarante o projeto Gaúcho mostrou a necessidade de tecnologia de nivelamento entre os dois países, pois a indústria de defesa argentina não possui a capacitação da sua congênere brasileira que durante as décadas de 1970 e 1980 produziu uma importante gama de veículos blindados. Segundo Amarante (2013, p. 46) “[...] pode-se concluir que o planejamento do programa Gaúcho careceu de especificar atividades que poderiam possibilitar, numa primeira fase, a absorção de tecnologia de nivelamento referente a blindados sobre rodas pela engenharia argentina”. A falta de tecnologia de nivelamento impediu que o projeto binacional tivesse seguimento. Com as dificuldades para a produção conjunta, ambos países buscaram alternativas para suprir as suas necessidades nesse segmento. O Brasil desenvolveu duas novas viaturas o Agrale Marruá e o Chivunk. O Exército argentino adquiriu junto aos EUA unidades do veículo blindado Humvee. A Argentina produziu algumas unidades da viatura Gaúcho que foram incorporadas ao Exército local para a utilização na região austral do país (INFODEFENSA, 2015b). A foto a seguir ilustra a viatura “Gaúcho”. 37 Figura 2 – A viatura “Gaúcho” Fonte: URUGUAY... (2012). Fotografo: Juan Carlos Cicalesi. Ao contrário dos programas para a produção do CBA-123 Vector e da viatura militar aerotransportável Gaúcho, a cooperação Brasil-Argentina no desenvolvimento da aeronave de transporte militar e apoio tático KC-390 tem seguido o cronograma previsto. O programa para a construção da aeronave iniciado em 2009, é financiado pelo governo brasileiro e liderado pela Embraer, ao custo de US$ 2 bilhões para o seu desenvolvimento. O primeiro voo do protótipo da aeronave de 23,6 toneladas ocorreu no início de 2015. É o maior programa envolvendo indústrias de defesa da América do Sul, por meio de um contrato que prevê a construção de partes e componentes da aeronave pela empresa argentina FAdeA, Embraer Defesa e Segurança e empresas de Portugal e República Tcheca (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2013b). O preço de venda de cada unidade do KC-390 é estimado pela Embraer Defesa e Segurança em US$ 80 milhões (GODOY, 2014). O KC-390 conta com 28 encomendas firmes da Força Aérea Brasileira e 32 cartas de intenção de compra por parte de cinco países. Entre os países que manifestaram a intenção de adquirir a aeronave despontam três são sul-americanos. Argentina e Chile encomendaram seis aeronaves para cada país e a Colômbia doze unidades (GODOY, 2014). No entanto, na América do Sul, apenas a Argentina participa do consórcio de empresas liderado pela Embraer para a produção da aeronave. A empresa argentina FAdeA será responsável pela fabricação dos spoilers (superfícies móveis de controle de sustentação na asa), portas do trem de pouso do 38 nariz, porta da rampa, carenagens dos flaps, cone de cauda e armário eletrônico (DEFESANET, 2011). Em 2010, durante a assinatura da carta de intenções entre o governo colombiano e a Embraer, o fabricante brasileiro iniciou estudos para a instalação de uma unidade de produção de peças usinadas na Colômbia, projeto que acabou não tendo continuidade (O ESTADO DE S.PAULO, 2010). A foto a seguir ilustra a aeronave KC-390: Figura 3 – A aeronave “KC-390” Fonte: Moreira (2015). A FAdeA investiu US$ 35 milhões em linha de montagem para a produção dos componentes do KC-390 em sua unidade localizada na cidade de Cordoba. Segundo Aguilera (2014) “a Embraer se comprometeu a comprar durante 10 anos no mínimo 180 conjuntos de componentes produzidos pela FAdeA que totalizam cerca de US$ 75 milhões”. A unidade industrial da FAdeA triplicou a sua capacidade para produção de componentes aeronáuticos na área de materiais compostos, incorporou e modernizou equipamentos para processamento e tratamento térmicos de partes primárias de aluminío (AGUILERA, 2014). As tentativas de cooperação bilateral no setor da ID na América do Sul, são ainda incipientes, contudo, pode-se verificar um padrão. Em suma, excetuando-se o programa para a produção do KC-390 que têm seguido o cronograma, nos outros casos, da aeronave CBA-123 Vector e da viatura aerotransportada Gaúcho, houve descontinuidade na produção conjunta dos mesmos. No caso do Vector a conjuntura econômica desfavorável explica a paralisação do programa. A paralisação do 39 programa Gaúcho, pode ser explicada pela falta de nivelamento tecnológico e a sobreposição de outros produtos da mesma categoria em desenvolvimento nos dois países, o que indica falta de coordenação política. Não se deve desconsiderar, contudo, que o fato do projeto para produção do Gaúcho ter se desenvolvido inicialmente apenas no âmbito dos Exércitos dos dois países, pode ter influenciado na decisão de esferas mais altas de governo, em descontinuar o desenvolvimento da viatura. 2.4 Novos arranjos cooperativos regionais: Unasul e CDS A relação assimétrica entre a América do Sul e os Estados Unidos sempre foi um limitador para a expansão do multilatealismo regional (HIRST, 1996, p.15). O fim da Guerra Fria, pavimentou o caminho para que os Estados Unidos utilizassem sua liderança global para estabelecer uma agenda liberal para a América do Sul, no sentido de fortalecer a orientação político-econômica amparada no corolário do Consenso de Washington. Durante a década de 1990 fortaleceu-se na América do Sul a agenda dos EUA, período em que observou-se segundo Lima: [...] a convergência [...] dos processos de integração e regionalização sob a hegemonia do regionalismo aberto, da integração comercial e inserção no capitalismo globalizado, da proposta de constituição da ALCA e do Consenso de Washington como solda normativa a unificar os processos políticos e econômicos. (LIMA, 2013, p. 181). Esse movimento reproduziu segundo Tavares (2014, p. 22) “[...] a tríade desregulação, privatização e globalização”. Essa agenda criou uma conjuntura de aumento do desemprego e desigualdade. O avanço do Consenso de Washington modificou a inclinação política dos líderes sul-americanos eleitos na virada das décadas de 1990 e 2000, com a ascensão ao poder de governantes identificados com programas de esquerda e centro-esquerda, em países como Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia, Equador e Venezuela. Na América Latina, essa nova configuração política caracterizou-se pela não convergência entre os diversos processos de integração econômica e regimes comerciais, como o Nafta, com EUA, Canadá e México; o Mercosul com Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela; os Acordos de Livre Comércio entre Chile, Colômbia e Peru com Estados Unidos e países fora da 40 região; e a Alba, sob a liderança da Venezuela, países centro-americanos e Cuba (LIMA, 2013, p. 181). Se não havia convergência sobre um modelo unificado para a inserção econômica do subcontinente no mundo globalizado, havia espaço para construir iniciativas de integração política. A premência de um espaço de cooperação em moldes mais abrangentes por meio de uma integração política e geopolítica para coordenar o processo sul-americano (BUENO; CERVO, 2012, p. 551-552) possibilitou a criação em maio de 2008 da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Segundo Lima (2013, p. 182): Ao contrário do que afirmam algumas análises correntes, a Unasul não pretende substituir nenhum dos regimes existentes, até porque não se constituiu como regime comercial, mas exatamente para propiciar que possam existir iniciativas de cooperação regional em diversos outros campos, como militar, energético, logistico e de infraestrutura, produtivo, na área de saúde pública e mesmo na coordenação de temas de segurança como a questão das drogas e narcotráfico. A criação da Unasul deu impulso as discussões sobre a institucionalização de um espaço regional de cooperação em temas de defesa. Na primeira década do novo milênio ocorreram mudanças importantes na região no âmbito da defesa. Com o Plano Colômbia os EUA reforçaram a sua presença na região deslocando tropas e equipamentos militares para bases colombianas. O fortalecimento do Comando Sul e a reativação da IV Frota dos EUA, também geraram apreensão e desconfiança entre os países sul-americanos e o efeito do transbordamento do conflito interno colombiano aumentou a tensão entre a Colômbia e países vizinhos, em especial Equador e Venezuela. Fatores convergentes internos e externos, como resposta tanto a mudança do panorama de defesa da região e a nova estratégia política regional que foi favorecida pela estabilidade política e econômica, levaram a criação do Conselho de Defesa da Unasul (BATTAGLINO, 2009). O processo de adesão ao novo Conselho da Unasul enfrentou resistências, sobretudo da Colômbia, país que possui um acordo com os Estados Unidos para o combate ao narcotráfico. Nas primeiras tratativas para a criação do CDS, em maio de 2008, o presidente colombiano Alvaro Uribe afirmou que não era o momento para o país integrar o Conselho de Defesa. Segundo Rikles (2010, p .63, tradução nossa) Uribe afirmou em discurso que “A Colômbia tem dificuldades para participar. Acreditamos mais em mecanismos como a Organização dos Estados Americanos 41 (OEA). Ademais temos um problema, o terrorismo, que nos faz ser muito cuidadosos ao tomar este tipo de decisão”. O Brasil teve papel fundamental na adesão da Colômbia, ao assegurar ao país que o novo Conselho não teria interferência no contencioso interno contra grupos insurgentes e nas bases do Plano Colômbia, no qual o país coopera com os Estados Unidos, ou em assuntos externos como no contencioso com o vizinho Equador (ibid., p.67). A resistência colombiana em participar do CDS demonstra como os processos de integração são complexos e demandam extensas negociações para equalizar os pontos de vista discordantes. De acordo com a análise de Haas a integração internacional é um fenômeno político, em que os atores perseguem seus próprios interesses pressionando os governos, ou se estão no governo, pressionando a outra parte a negociar políticas internacionais que são coletivamente benéficas porque são individualmente benéficas para todos os envolvidos (HASS, 1975, apud PUCHALA, 1984, p. 322). Superando a resistência colombiana, o CDS foi criado em 2008, segundo Unasul (2008a) consoante a três artigos do Tratado Constitutivo da Unasul: art. 3º, letra s, promover “o intercâmbio de informações e de experiências em matéria de defesa”; art. 5º convocação de “[...] Reuniões Ministeriais Setoriais, Conselhos de nível Ministerial, Grupos de Trabalho e outras instâncias institucionais que sejam requeridas, de natureza permanente ou temporária, para dar cumprimento aos mandatos e recomendações dos órgãos competentes. [...]” e art. 6º estabelecer “[...] as diretrizes políticas, os planos de ação, os programas e os projetos do processo de integração sul-americana e decidir as prioridades para sua implementação [...]”. Segundo Unasul (2008b) o Estatuto do CDS define o organismo como “[...] instância de consulta, cooperação e coordenação em matéria de defesa”. O Estatuto prevê entre os Princípios da organização: promover a paz e a resolução pacifica das controvérsias; fortalecer o dialógo e o consenso em matéria de defesa mediante o fomento de medidas de confiança e transparência e preservação da América do Sul como área livre de armas de destruição em massa. Entre os Objetivos previstos destacam-se: a busca pela consolidação da América do Sul como zona de paz e a construção de uma identidade sul-americana em matéria de defesa. Entre os Objetivos Específicos o CDS pretende: avançar gradualmente na análise e discussão de uma visão conjunta em matéria de defesa; promover intercâmbio de informaçoes sobre a situação regional e internacional com proposito de identificar fatores de risco 42 ou ameaça; articular posiçoes conjuntas da região em foros multilaterais sobre defesa; fortalecer as medidas de confiança; promover o intercâmbio e cooperação no âmbito da indústria de defesa; fomentar o intercâmbio em matéria de capacitação e formação militar e compartilhar experiencias em operaçoes de paz (UNASUL, 2008b). No âmbito da segurança regional, o CDS reflete os padrões de uma comunidade de segurança, em que as principais preocupações referentes à segurança de um conjunto de Estados estão interligadas e os problemas de segurança podem ser analisados ou resolvidos de maneira razoável através da cooperação (BUZAN, WAEVER; WILDE; 1998, p. 198). O CDS não foi criado como uma aliança militar, mas como um polo de poder regional, em que os contenciosos se resolvem por meio da tradição sul-americana de respeito à soberania e não intervenção em assuntos internos dos estados (BUENO; CERVO, 2012, p. 552). Segundo Lima (2013, p. 183-184) ”Seu ineditismo consiste na formação de um arranjo de defesa exclusivamente sul-americano, rompendo com a tradição das instituições hemiféricas com a participação dos Estados Unidos nas organizações de defesa coletiva”. A criação do CDS contribuiu para aumentar a confiança e a transparência entre os países, no que tange as suas percepções quanto às ameaças e desafios comuns na formulação da politica de defesa, buscando uma sintonia que permita projeções compartilhadas em segurança regional (SAINT-PIERRE, 2009, p.17). A agenda de Segurança Regional incorporada pelo CDS, possui diversos temas comuns aos países membros, como a preocupação com a soberania sobre os recursos naturais ou a segurança energética, em que os que problemas de segurança são vistos e tratados de maneira interdependente (OLIVEIRA, 2004). Em sua análise sobre a criação do CDS, Sanahuja e Verdes-Montenegro Escánez (2014, p. 515) afirmam que o mesmo “foi criado como resultado da liderança regional e presença global do Brasil em distintos foros, respondendo a preocupação do país com a instabilidade na região andina e na busca de um papel maior como mediador dos conflitos na região”. Para Gratius a liderança política do Brasil no final da década de 2010, buscava projetar o país como potência cooperativa e anti hegemônica, partindo da convicção de que não pode agir unilateralmente e necessita de alianças para alcançar seus objetivos (GRATIUS, 2007, p. 24). Na visão de Comini a criação do CDS foi articulada em torno de determinados princípios que definiram o perfil da organização, como flexibilidade, gradualidade e ausência de natureza compulsória 43 nas atribuições dos membros, permitindo a adesão da Colômbia e de outros países sul-americanos sem que esses perdessem vínculos anteriores com os Estados Unidos ou com concepções políticas em defesa distintas da posição majoritária dos países sul-americanos (COMINI, 2015, p. 111). 2.5 Cooperação no Eixo Indústria e Tecnologia de Defesa O CDS é dirigido por uma Instância Executiva composta pelos Ministros da Defesa dos 12 países membros da Unasul e as decisões são tomadas por unanimidade dos membros. O planejamento das atividades estão descritas em um Plano de Ação e divididas em eixos temáticos: I. Políticas de Defesa; II. Cooperação Militar, Ações Humanitárias e Operações de Paz; III. Indústria e Tecnologia de Defesa; IV. Formação e Capacitação. O Plano de Ação define o cronograma de trabalho, o país responsável pela atividade e os países corresponsáveis no desenvolvimento das ações propostas (UNASUL, 2008a). Um dos objetivos do CDS é promover o intercâmbio e a cooperação no âmbito da ID como um espaço colaborativo na esfera da produção de armamentos (ARANGUIZ, 2013, p. 56-57). A cooperação na produção de armamentos no âmbito de um organismo regional implica na busca por maior autonomia e integração na capacidade conjunta de desenvolvimento e produção de MD e na possibilidade de reduzir a dependência de fornecedores externos. A institucionalização de um mecanismo de cooperação em defesa preenche uma lacuna no processo de integração do subcontinente. O Eixo Indústria e Tecnologia de Defesa (EITD), que integra os Planos de Ação do CDS, estabelece um planejamento para o desenvolvimento de iniciativas regionais no setor da ID no subcontinente. Foi criado com objetivo de promover o intercâmbio e cooperação na área da industria de defesa como prevê o Estatuto do CDS (UNASUL, 2008b). De início os membros do EITD constituiram um grupo de trabalho encarregado de realizar um diagnóstico sobre a situação da ID na América do Sul. Para produzir o diagnóstico, o EITD estabeleceu objetivos a serem alcançados, dentre os quais, o de “Estudar a possibilidade de criar um Centro de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico e Cooperação Industrial do CDS” (UNASUL, 2010/2011, p. 3). Ainda no Plano de Ação 2010/2011 os membros do EITD decidiram “Articular um calendário anual das feiras, seminários, e outros eventos sobre indústria e tecnologia de defesa 44 que se desenvolvem na região [...].” (UNASUL, 2010/2011, p. 3). No Plano de Ação 2013 o EITD propôs: Realizar um Seminário Sul-Americano de Tecnologia Industrial Básica – Segurança e Defesa para incentivar a cooperação e o intercâmbio no âmbito da Unasul, de mecanismos que incentivem e atribuam as indústrias regionais uma maior prioridade e com normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e sistemas de defesa, assim como desenvolver um sistema integrado de informação sobre indústria e tecnologia de defesa (UNASUL, 2013, p. 4). Não há, contudo, informações sobre os resultados da maior parte das ações propostas nesse período no âmbito do EITD. Em outros eixos dos Planos de Ação, como no de Políticas de Defesa, houve avanços na disponibilização de informações sobre transparência nos gastos em defesa. Em 2014, o CDS divulgou o primeiro volume do Registro Sul-Americano de Gastos em Defesa, desenvolvido a partir de uma definição comum de gasto em defesa e de metodologia padronizada para a apresentação das informações (UNASUL, 2014, p. 15). Nos Planos de Ação 2012 e 2013, os países membros do CDS decidiram criar grupos de trabalho para analisar a viabilidade de produzir sistemas de armas. No âmbito do EITD (Plano de Ação 2012) deliberou-se pela criação de “[...] um Grupo de Trabalho de especialistas que, em um prazo de seis meses, apresente um relatório de viabilidade com vista ao desenho, desenvolvimento e produção regional de um avião de treinamento básico primário sul-americano” (UNASUL, 2012, p. 3). O grupo de trabalho encarregado do avião de treinamento básico primário ficou sob a responsabilidade da Argentina e co-responsabilidade de Chile, Equador, Peru, Brasil e Venezuela, (UNASUL, 2012, p. 3). No ano seguinte deliberou-se no âmbito do EITD (Plano de Ação 2013) pela criação de “um Grupo de Trabalho constituído de especialistas com o propósito de apresentar o desenho, o desenvolvimento e a produção regional de um sistema de aeronaves não tripuladas, considerando os requisitos operacionais apresentados no informe de viabilidade concluído no ano de 2012” (UNASUL, 2013, p.3). O grupo de trabalho encarregado do sistema de aeronaves não tripuladas ficou sob a responsabilidade do Brasil e co-responsabilidade de Argentina, Chile e Venezuela (UNASUL, 2013, p. 3). Para o desenvolvimento do avião sul-americano foram criados em 2013 o Project Manager Office (PMO), o Comitê Técnico Assessor e o Comitê Consultivo, 45 para promover as etapas de desenvolvimento e produção nos âmbitos técnico, industrial e comercial (YEDRO, 2014, p. 11). Na reunião da Instância Executiva do CDS, realizada em 2013 no Peru, foi apresentado o cronograma de desenvolvimento e produção do avião sul-americano de treinamento básico primário, que foi denominado Unasul I. O cronograma inicial previa que o primeiro protótipo da aeronave seria apresentado em 2016 com início de produção em série para 2017 (ANDINA, 2013). O Comitê Consultivo para gestão do projeto e montagem do avião sul-americano foi constituído por Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Venezuela e Uruguai (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2013a). Figura 4 – Perspectiva do avião de treinamento “Unasur I” Fonte: Felipe (2013). Conforme a Figura 4, o desenho do Unasul I foi desenvolvido pela construtora aeronáutica argentina FAdeA, com um projeto para a produção de uma aeronave com 9.3 metros de envergadura, 12.8 metros de cumprimento, de categoria acrobática, impulsionada por um motor turbo-hélice, assento ejetável e projetada para pesar 1100 kilos vazia (UNASUR, 2015e). O programa para o desenvolvimento e produção do Unasul I, contudo, enfrentou a sobreposição de outras aeronaves de treinamento, que encontram-se em fabricação ou estão em desenvolvimento em alguns países sul-americanos. Entre as aeronaves que poderiam concorrer com o Unasul I, está o treinador básico TX-c 46 monomotor de asa baixa desnvolvido pela empresa brasileira Novaer, que encontra- se em processo de avaliação pela Força Aérea Brasileira (FAB) para substituir os antigos treinadores T-25 que estão no final da sua vida útil. O Chile produz desde 1981 o treinador Pillán-T-35 projetado e desenvolvido pela construtora aeronáutica estatal ENAER que continua ativo na Força Aérea Chilena. O governo peruano celebrou acordo com a empresa sul-coreana Korea Aerospace Industries (KAI) para a produção sob licença da aeronave de treinamento KT-1, através da estatal Servicio de Mantenimiento de la Fuerza Aérea del Perú (SEMAN) que é vinculada a Força Aérea do país. Na Colômbia a empresa estatal Corporación de la Industria Aeronáutica Colombiana S.A (CIAC) desenvolveu o T-90 Calima, treinador que voou pela primeira vez em 2010. Em 2011 as primeiras unidades foram integradas a Força Aérea Colombiana. Em outubro de 2013 o governo da Bolívia anunciou o desenvolvimento da aeronave de treinamento Tiluchi que será produzido em instalações nas quais estavam previstos investimentos de US$5 milhões. Em abril de 2014 o governo equatoriano anunciou a construção da primeira aeronave produzida no país, um avião de treinamento básico que terá ainda a capacidade para realizar operações de fumigamento, em que estavam previstos recursos no total de US$ 3,5 milhões destinados a construção de uma fábrica de aviões (LOPES, 2014). Não há, porém, informações atualizadas de que os projetos de Bolívia e Equador avançaram. Entre os membros do CDS, apenas Argentina, Brasil, Equador e Venezuela, decidiram participar no desenvolvimento e produção do Unasul I. No final de 2014 os quatro países definiram as etapas para o financiamento, desenvolvimento, requisitos técnicos, logísticos e industriais da aeronave. Para o desenvolvimento do protótipo e produção da aeronave estava previsto a criação de uma Sociedade Anônima denominada Unasur Aero, possibilitando que as empresas participantes do projeto pudessem ser contratadas e receber remuneração pelos serviços, materiais e equipamentos fornecidos. Para a fase de desenvolvimento do projeto foram previstos gastos de US$ 61 milhões. O Brasil ficou responsável por 62% dos subsistemas da aeronave, representando US$ 36 milhões, que deveriam ser repassados as empresas brasileiras participantes do projeto: Novaer (trem de pouso), Akaer (asas equipadas), Avionics (painel de instrumentos). As empresas argentinas FAdeA e Redimec participariam com 28% do valor (US$ 17 milhões) produzindo portas, hélices, montagem de motor e assento ejetável. A empresa equatoriana Dirección de Industria Aeronáutica de la Fuerza Aérea Ecuatoriana (DIAF) e a venezuelana Compañía 47 Anónima Venezolana de Industrias Militares (CAVIM) participariam com pouco mais de 5% cada (US$ 3,5 milhões) fornecendo ainda outras partes da aeronave (PORTAL BRASIL, 2014). No modelo definido pelo consórcio, os países sócios ficariam encarregados de repassar os pagamentos por etapa para a Unasur Aero, que posteriormente contrataria os fornecedores dos quatro países envolvidos de acordo com as suas atribuições no desenvolvimento da aeron