UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP SÉRGIO LUIZ DE SOUZA FLUXOS DA ALTERIDADE: ORGANIZAÇÕES NEGRAS E PROCESSOS IDENTITÁRIOS NO NORDESTE PAULISTA E TRIÂNGULO MINEIRO (1930-1990) ARARAQUARA-SP 2010 2 REPENSAR O MULTICULT SÉRGIO LUIZ DE SOUZA FLUXOS DA ALTERIDADE: ORGANIZAÇÕES NEGRAS E PROCESSOS IDENTITÁRIOS NO NORDESTE PAULISTA E TRIÂNGULO MINEIRO (1930-1990) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Linha de pesquisa: Gênero, etnia e saúde Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca URALISMO E O DESEN VOLVIMENTO NO BRASIL: POLÍTICA ARARAQUARA – SP 2010 3 SÉRGIO LUIZ DE SOUZA FLUXOS DA ALTERIDADE: ORGANIZAÇÕES NEGRAS E PROCESSOS IDENTITÁRIOS NO NORDESTE PAULISTA E TRIÂNGULO MINEIRO (1930-1990) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Linha de pesquisa: Gênero, etnia e saúde Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca Data da defesa: MEMBROS COMPOSITORES DA BANCA EXAMNIDAORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Júnior UFC - Ceará Membro Titular: Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – PUC - SP Membro Titular: Profa Dra Renata Medeiros Paoliello UNESP/ Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Edmundo Antônio Peggion UNESP/ Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras UNESP - Campus Araraquara - SP 4 Dedico esta vitória à toda minha família. Especialmente a meu pai Romualdo Filismino de Souza Filho (in memorian), à minha mãe Neide Luiz de Souza, às minhas irmãs Selma, Solange e Sandra, a meu irmão Carlos Leonardo, a meu filho Aruã Henrique, ao meu sobrinho Gabriel e minha sobrinha Heloísa e também aos meus cunhados. 5 Agradecimentos Nesta jornada que constitui minha pesquisa tenho muito a agradecer. Primeiramente agradeço a Deus. De todo meu coração e com toda força de minha alma digo: Obrigado Senhor! Gratidão expresso também a todos amigos e amigas que participaram desta jornada de diferentes maneiras. De minhas recordações momentâneas deixo aqui minha gratidão ao Rodrigo Gutierrez por ser tão generoso e me auxiliar tanto em diversos pedaços desta caminhada. Agradeço ao Perci pelo período em que desenvolvemos nosso trabalho de dança e por se apresentar tão generoso, à Poliana Savegnago por nossos trabalhos e pela alegria de ser e receber. Deixo um abraço carinhoso ao Ricardinho, hoje professor Ricardo e ao também professor Cleber, meus ex- alunos e atualmente companheiros de jornada por tudo, simplesmente por todo carinho e simplicidade que sempre me dispensaram de diferentes maneiras, inclusive como seus auxílios técnicos na realização desta tese, com as refeições da Dona Nilva e o acolhimento de seu José Carlos. Deixo minha alegria estampada neste momento tão precioso de minha vida para Patrícia e todo sua família em Sertãozinho. Alegro-me em trazer para este bojo a Patrícia Sene, o Pereira da Viola e toda linda família deles dois. Sou grato também a Kríssia e ao Vinícius que se mostraram pessoas interessadas em minha pesquisa, ótimos interlocutores e, acima de tudo, solidárias com minha pessoa. Mando um grande abraço ao Odair Bim, camarada que apareceu de forma tão bacana com sua simplicidade e alegria para firmar ainda mais minha crença na bondade humana. Exponho minha gratidão e amizade ao Gilberto Aquino e ao José Roberto Jabor, dois grandes amigos de quase duas décadas que desde sempre me ajudaram. Aproveito aqui para mandar um monte de luz para todos amigos e amigas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas na USP Ribeirão e para os companheiros de percurso da Escola Estadual Eugenia Vilhena de Morais., especialmente ao Ismael, à Fátima Ezequiel, ao Sílvio, Rita Sirlene, Dulciléia Jussara, Claúdia, Silvia Rangon... e os demais. Abro um espaço mais nesta homenagem ao pessoal da capoeira por todos os ensinamentos e por toda alegria de viver sentida e compartilhada em nossa prática. Especialmente sou grato ao Pai de Santo, meu professor e amigo-irmão, também conhecido por Adriano, agradeço ao Hamilton mais conhecido por Cangaceiro, ao Ariel e a todos com quem me comprazo todas semanas em nossos treinos. Deixo aqui um grande a caloroso abraço ao Mestre Tião Preto e a todos os demais mestres do Grupo Cativeiro de Capoeira e de todos outros grupos. 6 Sou grato também às senhoras que participaram desta jornada como verdadeiras mães. Neste sentido, agradeço à Dona Fátima pela atenção e o carinho, como também por nossos bate papos e pelos conselhos recebidos sem esquecer tantos auxílios inumeráveis. Expresso imensa gratidão à Dona Creusa Carrer, minha amigona que com seu bom humor e simplicidade tanto me orientou e sempre esteve presente nos momentos vividos na Vila Tibério. Outra destas mães é a Dona Lúcia que na escola Eugênia Villhena e, em sua casa, sempre me recebeu como um amigo e me fez sentir confiança para prosseguir sempre de cabeça erguida. Também recordo aqui em tom de gratidão a senhora Neide Oliveira que tanto me auxiliou com sua audição amiga e seus sábios conselhos. Neste rol ainda coloco a Dona Cidinha Parras que me levou a meditar mais acerca do valor da vida e de nós humanos, trago aqui também Dona Lazinha, mulher guerreira e amiga, de mãos de ouro e coração gigante, pessoa linda que tanto me acolheu. Outra senhora que me fez vibrar pela vida por sua sabedoria, força e amizade foi a Professora Catarina de Centro do Desenvolvimento do Ser, obrigado professora. Agradeço a toda minha família incluindo meus tios, minhas tias e meus primos espalhados pela capital paulista e por este interior do estado. Sou imensamente agradecido à Daiane Ribeiro, um anjo que chegou para me fazer recordar da graça da vida, aproveito aqui e exponho minha gratidão à Geórgia, à Silvani Euclênio, ao Edmilson e ao povo goiano com quem tive o prazer de me relacionar. Mando um grande abraço e muita luz para a Lânia Stefononi, Valquíria Tenório, ao Edmundo e para Flavia Alessandra, pessoas tão importantes para minhas discussões acadêmicas, mas principalmente, para meu amadurecimento afetivo, obrigado. Sou grato a todos funcionários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, principalmente à Iraci, ao pessoal da Pós-Graduação e da biblioteca. Recordo-me com carinho também da Selma e da Cristiana. Agradeço à Capes pela bolsa de estudo concedida, sem a qual não teria disponibilidade para a realização desta longa pesquisa que se tornou meu doutorado. Neste momento paro para deixar meu carinho e gratidão a todos os membros do Cladin e do Nupe por tantas oportunidades de crescimento acadêmico, pelas oportunidades de discutir minhas idéias e, principalmente, pelo clima de cooperação e generosidade que se apresenta entre todos nós. Desta forma, explicito a relevância acadêmica destes grupos de pesquisa tanto pela condição de discutir idéias e produzir conhecimentos quanto pela capacidade de expressar calor humano, consideração e solidariedade. Neste último momento deixo aqui minha gratidão especial àquelas e aqueles com quem tive mais contato nas correrias cotidianas: Basilele Malo Malo, ao grande irmão Leandro por 7 simplesmente tudo, à Simone Loiola, ao professor e hoje amigo Antônio Carlos Petean, à Heloísa Toledo, ao Elielson e sua esposa Sílvia, à Alessandra Santos e à Elisângela Santana, queridíssima amiga. Finalmente, deixo aqui registrada minha gratidão ao meu amigo e orientador, o Professor Dagoberto que é o maior responsável por todo clima de amizade e compreensão que envolve nossos grupos de pesquisa com sua postura serena e sábia. Caro professor, deixo aqui registrada mais uma vez minha alegria e satisfação por todos estes anos de apoio, incentivo e orientação. Muito obrigado, irmão mais velho de jornada! Deus abençoe a todos nós! 8 RESUMO Esta pesquisa está contextualizada nas discussões acerca da diversidade cultural e dos estudos étnico-raciais. Tivemos como foco as organizações negras e os processos sociais de produção da diferença desenvolvidos no nordeste paulista e também no Triângulo Mineiro, onde nos restringimos à cidade de Uberaba, entre a década de 1930 e o final da década de 1980. Buscamos reconstruir e interpretar as redes sociais de significados, as formas de atuação política, assim como os significados e alcances destas atuações para os sujeitos em foco, as populações negras destas regiões. Partimos das organizações negras da cidade de Ribeirão Preto, para estabelecermos quais cidades seriam privilegiadas como foco de nossas incursões em busca de dados. Além desta, foram abordadas mais detidamente as cidades de Araraquara, Batatais, Barretos e São Carlos, além de Uberaba. O critério de escolha se deu em função da existência de interações entre as organizações negras destas cidades com as organizações afro- ribeirão-pretanas. Outras cidades e regiões acabaram por surgir enquanto partícipes desta rede, entretanto, por motivos metodológicos mantivemos o foco inicial de delimitação e abordagem. Os estudos de Muniz Sodré (1983;1988;1999) sobre populações negras, dinâmica cultural e nação no Brasil, também as reflexões de Marilena Chauí (1986; 2000; 2004) acerca da relações entre culturas, democracia, a concepção da nacionalidade e o autoritarismo no contexto brasileiro foram fontes importantes para nossas interpretações. Também os estudos de Babha (1998), Cardoso de Oliveira (1976), Munanga (1981; 2002) e Woodward (2000) estão entre nossas referências para pensarmos o processo social de produção das diferenças e das identidades. As abordagens referentes à teoria da complexidade, à epistemologia da ciência e a transdisciplinaridade de Edgar Morin (1982; 1991) e Fritijof Capra (1982) foram outros referenciais relevantes para pensarmos a construção do conhecimento e a apreensão do universo em estudo. Nossa pesquisa trouxe à tona dimensões para pensarmos os diferentes fatores que incidem na construção das identidades étnico-raciais de forma a podermos afirmar ser a discriminação racial um dos pilares da desigualdade e autoritarismo na sociedade brasileira. Por outro lado, as diversas narrativas produzidas pelas populações negras, a ampla rede social e a gama de formas de organização estabelecidas pelos afro-brasileiros, ensejam a necessidade de olhares mais abrangentes e atentos à diversidade sócio-étnico-racial e às possibilidades da dimensão política contida nos processos socioculturais. Palavras chave: dinâmica cultural, alteridade, populações negras, nordeste paulista, relações étnico-raciais. 9 ABSTRACT This research is contextualized in discussions about cultural diversity and racial- ethnic studies. We focused on afro-descendent organizations and social processes of production of difference developed in the northeast of São Paulo and also in the Triângulo Mineiro, where we restrict ourselves to the city of Uberaba, between the 1930s and late 1980s. We seek to reconstruct and interpret the meanings of social networks, forms of political activity, as well as the meanings and scopes of these performances for the subjects in focus, the afro-descendent populations of these regions. We start from afro-descendent organizations in the city of Ribeirão Preto, to establish which cities would be privileged as the focus of our travels in search of data. Besides this, we addressed in more detail the cities of Araraquara, Batatais, Barretos, São Carlos, and Uberaba. The criterion of choice was based on the existence of interactions between afro-descendent organizations of these cities with afro-descendent organizations from Ribeirão Preto. Other cities and regions eventually emerge as participants in this network, however, for methodological reasons we kept the initial focus of delimitation and approach. Muniz Sodré studies (1983; 1988; 1999) on afro-descendent populations, cultural dynamics and nation in Brazil, also Marilena Chauí reflections (1986; 2000; 2004) about the relations between cultures, democracy, the concept of nationality and authoritarianism in the Brazilian context were important sources for our findings. Also Babha (1998), Cardoso de Oliveira (1976), Munanga (1981; 2002) and Woodward (2000) studies are among our references for thinking the social process of production of differences and identities. The approaches related to complexity theory, the epistemology of science and transdisciplinarity of Edgar Morin (1982; 1991) and Fritijof Capra (1982) were other references relevant for the building of knowledge and understanding of the universe under study. Our research brought up the dimensions for thinking the different factors that affect the construction of ethnic and racial identities so that we can claim to be racial discrimination a mainstay of inequality and authoritarianism in brazilian society. Moreover, the various stories written by afro-descendent populations, the extensive social network and the range of forms of organization established by afro-brazilians, provide the necessity of more comprehension and attention to socio-ethnic-racial diversity and possibilities of the political dimension contained in the sociocultural processes. Keywords: cultural dynamic, otherness, afro-descendent populations, northeast of São Paulo, ethnic-racial relations. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................12 Capítulo I: Acerca Dos Trajetos Teórico-Metodológicos..................................................................................... 17 1.1 As Pretensões Com O Doutorado: Quais Os Horizontes Desta Pesquisa? .............................................. 17 1.2 Considerações Teórico-Metodológicas: Sobre a Perspectiva do Pesquisador e a Memória................................................................................................................................. 30 1.3 Quanto aos entrevistados: procedências e identidades.................................................................................. 35 1.4 Os Relatos Orais e as Possibilidades de interpretação: a superação da Invisibilidade.............................. 49 1.5 Conceituando Cultura, Política, Identidade e Dinâmica Social....................................................................... 58 1.6 Racismo, Nação, Identidade, Memória e Invisibilidade Social.........................................69 1.5 Identidades, Relações De Poder, Hierarquias e Status Social........................................ 86 1.6 Territorialidade e Identidade............................................................................................ 96 1.7 Identidade Essencializada X Pluralidade Das Estratégias: A Alteridade.....................................................101 1.8 Um Campo de Possibilidades: A Capacidade Criativa e a Dimensão Política das Organizações Negras...........................................................................................................109 Capítulo II: O Contexto do Nordeste Paulista nos Entremeios: Negros, Brancos e as Interações Sócio- Étnico-Raciais...............................................................................................................................................................118 2.1 Traçando um Panorama Histórico da Região.................................................................118 2.2 As Diferentes Populações e as Condições Socioeconômicas.......................................134 2.3 Raça-etnia, classe e status: a conformação da hierarquia social.................................. 156 2.4 As Organizações Negras, as Alianças e Disputas Entre os Grupos Étnico-Raciais......167 2.5 Negros, Brancos Nacionais e Imigrantes/Descendentes.............................................. 179 2.6 O contexto por outros fluxos: As organizações negras e suas formas socioculturais... 192 Capítulo III: Das populações negras entre si: Das diferenças socioeconômicas, de status e de gênero às redes e alianças..............................................................................................204 3.1 Acerca das distâncias: segmentações socioeconômicas e status sociais diferenciados entre negros......................................................................................................................... 204 3.2 Do Puritanismo às Negras formas: Os Fluxos da Alteridade por Entre as Normas do Estado-Nação e a Pluralidade Identitária............................................................................ 223 3.3 Acerca das Relações de Gênero: Moralidade, Mulher, Família e Poder Masculino..... 240 3.4 Das interações entre os negros do Nordeste Paulista e Triângulo Mineiro: As redes de significados nos Fluxos da Alteridade................................................................................. 257 3.5 O Feconezu e os Grupos Negros de Teatro, Dança e Artes......................................... 278 3.6 Entre trilhas e conexões: Os fatores etnoculturais e a afirmação do fenótipo na desconstrução da lógica racista.......................................................................................... 296 Capítulo IV: Das Atuações das organizações negras: Bailes, capoeira, Festas diversas, Festas religiosas, Carnaval, Teatro, etc.............................................................................. 316 4.1 Os Times Negros e os Bailes de Barraca: Os Lugares de Conformação das Identidades e as Linguagens de Apreensão do Urbano......................................................................... 316 11 4.2 As Celebrações das Identidades: Procissões, Batuques e Brincadeiras Dançantes.... 334 4.3 As Brincadeiras Dançantes e os Grupos de Arte e Cultura: Novas Performances das identidades Negras.............................................................................................................. 345 4.4 Os Bailes de Gala: As Reinterpretações da Civilização e da Modernidade.................. 364 4.5 Os Blocos de Carnaval e as Escolas de Samba: Academias das Ruas....................... 391 4.6 Os Bailes Black Power e a Capoeira: novas expressões negras nos anos 1970 no Contexto do Nordeste paulista e do Triângulo Mineiro........................................................ 413 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................ 430 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 443 12 INTRODUÇÃO Esta pesquisa nasceu de nosso intuito de abordarmos as organizações negras do nordeste paulista, os processos identitários e as redes sociais instauradas entre as populações negras das cidades desta região paulista e, também, de outras regiões e Estados a partir destas suas organizações, ao longo do período situado entre a década de 1930 e o final do decênio de 1980. Fluxos da alteridade, organizações negras e processos identitários no Nordeste Paulista e Triângulo Mineiro (1930-1990) surge de um caminho iniciado antes mesmo de nosso mestrado, quando nossas preocupações eram voltadas para a compreensão das relações entre a normatização social e a construção social da loucura na realidade brasileira. Em nossa dissertação de mestrado, ampliamos nosso olhar para além das imposições das normas hegemônicas, inclusive aquelas que constituem a discriminação étnico-racial. Assim, nos voltamos para a apreensão das práticas socioculturais e as formas de territorialização realizadas pelas populações negras na cidade de Ribeirão Preto na primeira metade do século XX. Desta pesquisa surgiram questões e percepções que nos levaram a elaborarmos o projeto com o qual iniciamos esta tese de doutorado, projeto voltado para a interpretação dos processos identitários e as negociações realizadas pelos grupos negros no contexto do interior paulista e mineiro. Ao longo da pesquisa surgiram diferentes desdobramentos e a necessidade de abordagens antes não pensadas, uma destas foi o papel das instituições oficiais na reprodução da discriminação racial. Outro aspecto refere-se às elaborações que foram maturadas e nos deram uma melhor compreensão da dinâmica sóciocultural e das interações constituídas pelos grupos étnico-raciais e outros grupos nesta dinâmica. Entre a normatização autoritária hegemônica e a realidade por ela sonhada existe um universo. O universo de diferença constituída pela diversidade de grupos sociais a demarcarem suas alteridades com nomeações (simbolizações) do mundo e formas de se posicionar diante e com este mundo vivenciado sob múltiplas possibilidades. Estes são os múltiplos caminhos onde também se constituem as diversas identidades geradas por re-interpretações constantes com os recursos possíveis e sob as condições políticas, econômicas e culturais encontradas nas conjunturas em que a existência se realiza, caminhos estes que tornam estes grupos sujeitos produtores de expressões socioculturais e narrativas que vão além das proposituras autoritárias das normas hegemônicas, desta forma sempre a criarem seus próprios caminhos, assim como a interpelá-las com novas e inusitadas respostas. 13 Embora apresentado de forma incipiente e neste momento introdutório, este pensamento que expressamos é fruto das conclusões de nossos contatos com obras diversas, algumas das quais aqui expomos. Obras como as de Sodré (1988; 1999) em que discute as particularidades das populações afro-brasileiras, além de discutir as possibilidades e distinções entre o idem do sempre igual hegemônico e o ipse expressão da diversidade e das singularidades firmadas no fluxo das alteridades. Sob concepções análogas às de Sodré (1999), porém advindas de outros universos de estudo, vieram para nós os estudos de Babha (1998), nos quais o autor apresenta o potencial de tradução cultural e da geração de enunciações paralelas e/ou concorrentes que confundem e exigem sempre novas respostas das narrativas hegemônicas. No mesmo âmbito destes autores, quanto à discussão da dinâmica cultural e dos processos identitários, Woodward (2000) apresentou para nós interessantes avaliações acerca do processo social de produção das diferenças e identidades. Neste diálogo também se encontram as reflexões de Ecléa Bosi (1994) em suas concepções juntamente à Halbwachs (1990) quanto ao potencial e à dimensão transformadora e criativa da memória social. Da mesma forma, em nossas percepções também fazem presença os estudos de Chauí (1986; 2000) acerca do caráter autoritário da formação social brasileira e das possibilidades políticas encontradas nas produções dos grupos que ela denomina populares, com suas capacidades paradoxais em que conformação e resistência entremeiam-se para surgirem como superação e propostas políticas. Os estudos de Munanga (1981, 2002) e Seyferth (2002), no que tange a concepção da nação e nacionalidade no Brasil, à discriminação étnico-racial e às identidades dos diferentes grupos sociais são outros importantes esteios de nossas elaborações. Com o esteio fornecido por estes e por outros autores citados ao longo da pesquisa e com base na metodologia da história oral concebemos os quatro capítulos que compõem esta tese. No primeiro capítulo procuramos explicitar nossa trajetória de pesquisa, nossa perspectiva teórico-metodológica e o lugar deste pesquisador diante do tema e do universo de estudo em questão. Iniciamos com a apresentação de nossas pretensões e quais os horizontes visualizados a princípio. Posteriormente prosseguimos com a perspectiva metodológica e nossas considerações sobre a memória enquanto instrumento metodológico. Na sequência estabelecemos as relações e os conceitos de política, identidade e dinâmica cultural em nossa perspectiva. Na continuidade, procuramos considerar o racismo e a invisibilidade social no seio das concepções de nação e nacionalidade no Brasil, momento em que expressamos nossa compreensão de como se desenvolvem estes aspectos na conformação das relações étnico- 14 raciais, como também a interação destes conceitos com a memória e a formação das identidades. Na mesma direção, prosseguimos para explicitar nossas reflexões sobre as lógicas de poder que perpassam a constituição das identidades, assim como procuramos apresentar considerações relevantes acerca das tensões e disputas inerentes ao estabelecimento das hierarquias e posições de status social. No próximo subcapítulo nos posicionamos quanto ao conceito de territorialidade e sua importância na constituição das identidades dos grupos sociais. A seguir, atentamos para a alteridade no entremeio das identidades essencializadas e das estratégias da pluralidade. Após apreciarmos aspectos da alteridade procuramos nos posicionar acerca da capacidade criativa e das dimensões políticas contidas nas organizações negras. Iniciamos o segundo capítulo com um breve traçado do panorama histórico da região nordeste paulista e também do Triângulo Mineiro. Na sequência passamos a abordar os resultados e as concretizações práticas da política do branqueamento, perpetrada pelo Estado brasileiro e pelos grupos hegemônicos regionais, na conformação social do nordeste paulista e do Triângulo Mineiro com o olhar mais atento às condições socioeconômicas experimentadas pelos diferentes grupos étnico-raciais ao longo do período em foco. Prosseguindo nosso trajeto realizamos uma interpretação da gramática das relações étnico-raciais ao observarmos as migrações, da ocupação urbana no período posterior à década de 1940 e as ações das instituições públicas entre outros fatores na conformação sócio-étnico-racial. Posteriormente, vamos atentar para as conexões existentes entre os fatores étnico-raciais, de classe e de status na conformação da hierarquia social com o intuito de melhor compreendermos o estabelecimento da hegemonia na realidade societária brasileira. O próximo subcapítulo refere- se ao papel que as diferentes organizações negras desempenharam nas alianças e disputas com os demais grupos étnico-raciais presentes nos contextos em foco. Dando prosseguimento ao estudo, nos voltamos para a ordem e a hierarquia social com atenção dirigida às interações estabelecidas entre negros, brancos nacionais e imigrantes/descendentes em diferentes espaços sociais como bairros, clubes e escolas. Encaminhamos as discussões mais adiante com a percepção voltada para o papel das organizações negras na constituição de suas práticas socioculturais de geração de narrativas identitárias e sociabilidades diversas às definidas pelos padrões hegemônicos. O terceiro capítulo refere-se às relações que os diferentes segmentos dos grupos negros estabeleceram entre si. Desta forma, este capítulo inicia-se com a interpretação acerca das distinções socioeconômicas e de status social existentes entre estes segmentos dos grupos negros. Continuamos nossas interpretações ao procurarmos explicitar os diálogos que as organizações negras realizaram com as normas puritanas burguesas e com as concepções de 15 nação no Brasil, uma vez que estas normas foram fundamento da noção de comunidade nacional que sustentou o ideário da nacionalidade predominante desde a década de 1930. Outro aspecto relevante refere-se às distinções de gênero recorrentes entre as populações negras, e estas também foram objeto de nossas reflexões, que aqui apresentamos em mais um subcapítulo. A continuidade de nossas elaborações acerca das relações entre as populações negras se desenvolve com a apreciação das interações das redes sociais constituídas entre os negros do nordeste paulista e do Triângulo Mineiro por meio de diversas expressões socioculturais e ao longo de diferentes momentos do período em foco. No próximo passo desta jornada na apreciação dos fluxos da alteridade, porém neste momento, de forma mais particular entre os afro-brasileiros da cidade de Uberaba e aqueles da cidade de Ribeirão Preto. Em mais um ponto deste percurso, abordamos os intercâmbios constituintes das alianças e do fluxo de experiências e significados entre os negros do nordeste paulista e triangulo mineiro por meio dos festivais de cultura, e dos grupos de teatro, dança e outras artes por estes organizados. No desenrolar de nossas elaborações apresentam-se também as atuações negras de desconstrução das narrativas da discriminação pela afirmação do fenótipo e de fatores etnoculturais que permeiam a inauguração e o funcionamento do primeiro salão de beleza especializado em estética afro na cidade de Ribeirão Preto, o “Zimbábue Black Power”. Finalmente chegamos ao quarto e último capítulo em que trouxemos à tona os caminhos de organização das populações negras em seus mais diversos formatos. Expressões socioculturais múltiplas que propiciaram atuações e resultados políticos importantes para o posicionamento destes grupos de forma mais autônoma em meio ao contexto das relações sócio-étnico-raciais brasileiras e do nordeste paulista e Triângulo Mineiro em particular. Nesta direção, apresentamos primeiramente os times negros e os bailes de barraca importantes formas de apreensão do espaço urbano e de delimitação das identidades e fronteiras étnico-raciais. Outras importantes linguagens sociais de apreensão do espaço urbano e construção das identidades negras foram as festas religiosas realizadas geralmente nos arrabaldes das cidades, as procissões em louvor a santos negros (principalmente São Benedito) e as denominadas brincadeiras dançantes, reuniões residenciais ao som de Long Plays e vitrolas surgidas em diferentes cidades a partir dos anos 1960. Posteriormente vamos atentar para as relações entre as brincadeiras dançantes e os grupos de teatro, dança e outras artes, mais uma faceta das performances dos grupos negros na elaboração de suas identidades. Continuamos mais adiante com nossas reflexões no que tange aos “Bailes de Gala” realizados pelos clubes e sociedades negras em todo o século XX. Expressões identitárias que, entre outros aspectos, apresentaram- se como importantes fontes de re-interpretação dos conceitos de modernidade e civilização 16 realizados pelos contingentes negros. O próximo aspecto por nós apresentado refere-se às nossas percepções referentes aos blocos de carnaval e escolas de samba em suas diferentes dimensões, inclusive enquanto lugares de demarcação da territorialidade negra no espaço urbano, na construção das memórias e identidades. Finalizamos este capítulo em meio às narrativas tecidas pelas organizações negras ao som dos “Bailes Black” e dos Berimbaus e cantigas das rodas de capoeira. Os bailes realizados pelas equipes de som e o Grupo de Capoeira Cativeiro foram fontes ricas de onde emanaram muitas representações e valores de auto-estima, construção de identidades autônomas e, por extensão, de onde se produziu um grande fluxo de narrativas para desconstrução dos discursos de sustentação da discriminação étnico-racial. No último ponto deste percurso permeado por inúmeras formas, cores e ritmos, memórias, identidades, valores, representações e vivências realizamos nossas considerações finais. 17 CAPITÚLO I: ACERCA DOS TRAJETOS TEÓRICO- METODOLÓGICOS Neste primeiro capítulo, apresentamos nossa perspectiva teórico-metodológica e o lugar do pesquisador diante do tema e do universo de estudo em questão. Expomos nossas percepções acerca da memória, das relações entre os conceitos de política, identidade e dinâmica cultural, além de considerarmos as relações étnico-raciais, o racismo e a invisibilidade social no seio das concepções de nação e nacionalidade no Brasil. Também atentamos para as lógicas de poder que perpassam a constituição das identidades, assim como nos posicionamos acerca das tensões que permeiam o estabelecimento das hierarquias e posições de status social. Consideramos o conceito de territorialidade e sua relevância na constituição das identidades, ainda apresentamos apreciações quanto às inter-relações entre a alteridade, as identidades essencializadas e as estratégias da singularidade. As pretensões com o doutorado: quais os horizontes desta pesquisa? Esta pesquisa de doutorado é fruto das reflexões e questionamentos suscitados em minha dissertação de mestrado cujo título foi (RE) vivências negras: entre batuques, bailados e devoções — práticas culturais e territórios negros em Ribeirão Preto (1910 – 1950), dissertação desenvolvida sob a orientação do professor Dr. Dagoberto José Fonseca com o financiamento da Capes. Inicialmente, o estudo da população negra em Ribeirão Preto visou apenas reconstruir a história e a memória de um grupo humano invisibilizado pelo silêncio acadêmico e social em relação à sua participação na constituição do processo histórico desta cidade. Realizar um estudo com o foco em Ribeirão Preto reafirmou nossas intenções de apreendermos fatores fundantes da dinâmica sociohistórica mais ampla da sociedade brasileira a partir da abordagem das relações sócio-étnico-raciais desta localidade. Como um dos principais centros de produção da riqueza nacional e como um espaço político central durante grande parte da primeira metade do século XX, esta cidade trouxe em sua historicidade aspectos ricos para nossa pesquisa. Neste contexto, além de conseguirmos reconstruir a história e a memória da população negra, também foi possível trazer à tona os significados das práticas culturais e os processos de territorialidade que estabeleceram os afro-brasileiros na cidade de Ribeirão Preto durante o período estudado. Ressaltamos também o fato de termos conseguido compreender nexos 18 importantes existentes entre a urbanização local e os significados e representações constitutivos da organização do Brasil republicano de forma geral. Nesta atual pesquisa, temos o objetivo de estudar as organizações negras, os processos identitários e as interações sociopolíticas, culturais e econômicas que envolvem estes processos na região do Nordeste paulista. Pretendemos realizar esta abordagem a partir do estudo das organizações negras de Ribeirão Preto e de mais quatro cidades da região que mantiveram contatos com os negros ribeirão-pretanos, além de também buscarmos dados acerca de organizações negras da cidade de Uberaba, em Minas Gerais. Partimos das formas de atuação das populações negras de Ribeirão Preto em seus caminhos de afirmação de suas identidades e formas de sociabilidade, como também em suas relações com a lógica hegemônica pautada na discriminação racial e nos contatos com as populações brancas locais. Da mesma forma que são relevantes para nossa a interpretação desta dinâmica do nordeste paulista, os contatos com populações negras de outras cidades da região, e também da citada cidade mineira. Desta forma podemos afirmar que nossa pesquisa, tratando em termos gerais, por um lado, visa contribuir para as discussões a respeito das organizações sócio-culturais desenvolvidas pela população negra no nordeste paulista, focalizando os processos identitários, as relações políticas entre negros e outros grupos presentes em Ribeirão Preto e outras cidades do nordeste paulista. Assim como estudar os processos de construção das fronteiras étnicas a partir da compreensão dos discursos identitários produzidos pelos afro-brasileiros em seus espaços de vida e por suas organizações. Procuraremos também comparar os valores culturais utilizados em duas diferentes conjunturas, compreendidas notadamente entre as décadas de 1930 e 1950 e entre a década de 1960 e o final da década de 1980. Por outro lado, pretendemos contribuir com as discussões sobre identidade/alteridade, presentes nos estudos relativos ao processo de construção do Estado-Nação no Brasil. Temos o intuito de contribuir com estas discussões no que tange ao ideário do “caldeamento racial” (SEYFERTH, 2002) e da política assimilacionista implementada pelo Estado Brasileiro e suas instituições a partir da década de 1930 (MUNANGA, 1999; CHAUÍ, 2000) 1. Questionamos a pretensa formação de uma cultura e uma identidade nacional homogêneas a partir da 1 A noção de caldeamento racial é pensada por Seyferth (2002) como caminho de homogeneização das identidades e culturas, organizado pelo Estado brasileiro com o intuito de construir uma identidade e uma cultura nacional. Munanga (1999) e Chauí (2000; 2004) remetem-se a formação autoritária da sociedade e do Estado brasileiro. Munanga (1999) traz a noção de modelo unicultural onde uma cultura é colocada como único parâmetro ao qual todas as outras devem se adequar. Chauí (2000; 2004) reflete a respeito do fortalecimento dos Especialistas tecnocráticos que justificam a ordem social autoritária e, também, sobre a base mítica, os semióforos que sustentam as narrativas autoritárias da ideologia nacional dos grupos hegemônicos. Mais adiante explicitaremos estas discussões. 19 interpretação das práticas culturais negras no nordeste paulista, particularmente de seus discursos identitários e do processo de negociação que envolveu a construção destes discursos. Situamos o conjunto de transformações ocorridas nas relações sociais do nordeste paulista, e nas práticas culturais negras, também em concordância ao contexto mais amplo das transformações da organização do Estado-Nação brasileiro. A organização política do Estado nacional, a partir da década de 1930, orientou-se por um projeto de construção de uma nação homogênea, projeto este pautado pelo estabelecimento de uma identidade e cultura nacionais sob uma perspectiva assimilacionista, que percebia como problema a pluralidade étnico-racial existente no país (MUNANGA, 1999; DA MATTA, 1987). Neste sentido, pretendemos apreender os diálogos estabelecidos pelos negros com esta perspectiva identitária oficial, para assim podermos interpretar em que medida os grupos negros, na elaboração de suas práticas socioculturais, resistiram e/ou conformaram-se aos anseios de homogeneização do projeto hegemônico. Consideramos que, a partir dos anos 1930, embora as concepções advindas do racismo biologizado tenham deixado de ter preponderância na organização do Estado Brasileiro e de suas instituições, as relações dos órgãos oficiais com os grupos étnico-raciais (basicamente negros e brancos) e suas práticas culturais mantiveram-se pautadas por uma hierarquia concebida a partir da naturalização das diferenças étnicas e culturais, e sob a égide da dicotomia atraso-progresso, que supõe a inferioridade dos negros (SEYFERTH, 2002; CHAUI, 2004). Nesta direção, também focamos as relações estabelecidas entre os grupos étnico-raciais presentes no nordeste paulista entre as décadas de 1930 e o final da década de 1980, com o objetivo de apreendermos os diálogos constituídos pelos movimentos de aceitação e/ou resistência por parte destes grupos, nas diferentes conjunturas do período, em relação ao projeto de formação de uma cultura e de uma identidade nacional homogêneas (NASCIMENTO, 2005). Em nosso estudo de mestrado um dos aspectos mais relevantes a respeito das práticas culturais e da construção da territorialidade negra em Ribeirão Preto foram as Sociedades e os Clubes organizados pelos negros ribeirão-pretanos. Ao longo de nossa pesquisa surgiram o Clube Recreativo e Beneficente dos Homens de Cor, de 1910, a Sociedade das Cozinheiras que realizava o baile das cozinheiras por volta da década de 1910, a Sociedade Carvão de Pedra Nacional, fundada pelos negros ferroviários por volta de 1920, a Sociedade Beneficente Estrela Ditosa, fundada em 1930 por uma dissidência da Carvão de Pedra Nacional, o Centro Recreativo e Literário “Machado de Assis”, fundado em 1932, o Clube 20 Negro de Cultura Física e Social fundado em 1942, a Sociedade Recreativa e Carnavalesca Bambas, fundada em 1927, a Sociedade Recreativa e Carnavalesca Meninos e Meninas Lá de Casa, surgida de uma dissidência dos Bambas em 1935 e o Clube Negro dos Aliados, fundado em 1954. A respeito da atuação destas organizações, de algumas apenas obtivemos dados suficientes para melhor entender o contexto, entretanto, de outras como Bambas, Meninos e Meninas Lá de Casa, Aliados, e Estrela Ditosa, conseguimos um volume considerável de informações que nos remeteu a alguns de seus meandros. A relevância destas entidades negras evidencia-se, entre outros aspectos, pela sua atuação na superação de condições sociais encontradas em grande parte das cidades brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, que se constituíram enquanto realidades socioculturais hostis para a população negra ao longo do século XX. O caso de Ribeirão Preto encontra-se nesse conjunto de cidades com o perfil acima referido, acentuado inclusive, pelo enorme contingente de europeus e seus descendentes e pelo poder dos grupos hegemônicos que desejavam varrer da sociedade a memória negra. Na esteira deste processo é que as sociedades negras tomaram relevo para instauração de significados nos espaços urbanos que fossem diversos às representações hegemônicas. No sentido da transformação dos negros em cidadãos plenos (não mais estrangeiros), diferentemente dos valores universalistas etnocêntricos sob os quais foram erigidas muitas cidades como monumentos a uma memória única, que expressavam o estranhamento às práticas culturais e à presença física dos afro-brasileiros (CARDOSO, 1993). Conseguimos apreender ricas dimensões contidas na organização e na atuação destas sociedades e clubes negros em nossa dissertação, porém tenhamos apenas tangenciado os nexos e a relevância política destas. Nesta pesquisa de doutorado nos propomos a ampliar a interpretação, estabelecer outros nexos e compreendê-las, com o auxílio de um corpo teórico mais denso, além do fato de nos focarmos mais detidamente a estes significados e à relevância política destas sociedades e suas atuações não somente em Ribeirão Preto, mas no contexto do nordeste paulista. Percebemos os diferentes grupos (negros e não negros) como grupos segmentados com características diversas, não enquanto grupos homogêneos; portanto, quando pensamos 21 nas populações negras do Nordeste Paulista e nos demais contingentes populacionais, temos em mente a multiplicidade dos segmentos populacionais que são atravessados por linhas étnicas que discriminam e conferem acessos diferenciados aos recursos sociais. Em nosso estudo anterior, percebemos que entre os negros ribeirão-pretanos, até a década de 1950, alguns possuíam maior trânsito entre os setores hegemônicos assim como maior acesso aos bens sociais (na forma de cargos públicos ou proteção contra possíveis repressões políticas, por exemplo), geralmente por serem apadrinhados de líderes políticos locais, ou alguns pelo fato de terem conquistado algum tipo de ascensão econômica. As sociedades negras produziram uma multiplicidade de ações socioculturais e cada uma destas interferiu com efeitos políticos e tramas sociais particulares nas interações entre negros e outros grupos presentes no contexto. Uma vez mais, antes de nos atermos a estas ações, ressaltamos mais uma das facetas a respeito das sociedades e clubes negros a ser desenvolvida nesta tese. Esta faceta diz respeito às distinções existentes entre setores deste grupo social. Distinções estas que foram trazidas à tona pelos dados ao longo da pesquisa anterior e explicitaram o seguinte: “o povo negro” somente poderia ser pensado na pluralidade de suas inserções econômicas e de suas escolhas socioculturais, não enquanto grupo coeso e unificado. Entretanto, mesmo com a consciência da ocorrência de segmentações importantes no seio da população negra, optamos por não abordá-las e, de certa forma, tratamos este contingente populacional sem considerar as segmentações presentes no seu seio. É neste sentido que perceber as distinções existentes no cerne das populações negras é outro aspecto importante a ser aprofundado nesta nossa tese de doutoramento. Tivemos acesso a estudos como o de Cardoso (1993) e Gomes da Silva (1998) que demonstram dissensões entre parcelas dos negros que viam com menosprezo as atividades das sociedades recreativas e enxergavam com reservas as práticas socioculturais da maioria da população afro-brasileira por entenderem o mundo e se organizarem com base nos padrões eurocêntricos veiculados pelos setores hegemônicos. Em nosso estudo apontamos dissonâncias entre algumas sociedades negras com práticas estruturadas a partir de valores próprios dos anseios universalistas dos grupos hegemônicos de melhorarem “o nível intelectual e moral” da maioria negra (SOUZA, 2007). Nesta direção, entidades organizadas nos moldes do Clube Negro e Cultura Física e Social ou do Centro Literário e Recreativo Machado de Assis, não descartando outras organizações com diferentes 22 orientações, devem ser mais bem estudadas nesta pesquisa. Tanto no que diz respeito às relações entre negros quanto à reprodução ou não de padrões culturais derivados da noção de cultura e identidade nacional disseminados com intensidade a partir dos anos 1930 pelas elites e pelo Estado. Quais foram os referenciais que orientaram as práticas destas organizações e como elas se situaram na configuração social do nordeste paulista, tanto no que diz respeito aos grupos brancos quanto na relação com segmentos negros mais excluídos da estrutura socioeconômica? Neste sentido, como podemos interpretar a inserção de organizações com este perfil na dinâmica sociocultural e nos processos identitários desta advindos? Este conjunto de negros, no que tange às relações étnico-raciais, trilhava dois caminhos basicamente; parte deles tornou-se líder entre os próprios negros e outra parcela procurou distanciar-se da maioria negra, sendo tratados pela população negra com hostilidade por representarem “negros metidos a branco”. Em nossa atual pesquisa pretendemos estudar o quanto este conjunto de afro-brasileiros foi portador das “ambigüidades das fronteiras étnicas”, concretizadas pelas representações sociais e pelos valores dos diferentes grupos com que mantiveram contato. Pretendemos também apreender as interpenetrações culturais expressas em algumas diretrizes dadas pelos líderes negros provenientes desta situação de “dupla pertença” às organizações negras. Outro aspecto a ser desenvolvido refere-se ao estudo da relevância das alianças dos negros com parcelas da população branca. Como o caso da ação de alguns brancos na formação destes líderes negros e, também, em algumas organizações negras: alguns destes brancos foram pais adotivos, outros foram líderes políticos (vereadores e prefeitos) que incentivaram práticas negras. Desta forma, também pretendemos avaliar em que medida as populações negras incorporaram as premissas culturais e identitárias dos grupos hegemônicos regionais e/ou aquelas propugnadas pelo Estado. Tanto na construção de suas práticas culturais quanto na efetivação de suas relações sociopolíticas, as quais observaremos a partir das negociações realizadas. Buscamos apreender estas negociações, constituídas por alianças e conflitos, que as populações negras de Ribeirão Preto desenvolveram com outros grupos étnico-raciais na cidade e, com populações negras de outras cidades da região, ao longo do período situado entre a década de 1930 e o final da década de 1980. 23 Como anteriormente apontado estamos aprofundando o estudo acerca da produção das diferenças no seio da dinâmica sociocultural (onde inclusive situam-se também as fronteiras étnico-raciais) e a formação das identidades, no que se refere às distinções (no sentido de apartações e diferenciações), como também as alianças entre negros e brancos, principalmente os descendentes de europeus no nordeste paulista. Quanto às disputas e expressões de discriminação étnico-racial, não nos referimos apenas às apartações nos espaços públicos, clubes e bares comumente havidos como espaços de exclusividade étnico-racial para os brancos. Temos em vista as distinções ocorridas em espaços comuns a ambos os grupos, como a separação nos cortiços em Ribeirão Preto, a separação entre os ferroviários em São Carlos e Araraquara, a divisão dos times entre pretos e brancos, as disputas entre negros e “comunistas” (brancos) na União Geral dos Trabalhadores em Ribeirão Preto e, também, às separações e formas de discriminação ocorridas nas praças públicas e outros espaços como escolas públicas, por exemplo, ainda na década de 1970, em diferentes cidades da região como Barretos e Batatais, São Carlos e na própria localidade de Ribeirão Preto. Desta forma, objetivamos avaliar quais foram os diferentes elementos diacríticos (BARTH 1998; CUNHA, 1987) e os traços culturais incorporados na constituição das organizações negras nas diferentes conjunturas que o período abarca. Em outro âmbito situa-se nosso interesse em abordarmos as relações de intercâmbios ocorridos entre os grupos negros e suas organizações no nordeste paulista. Durante o mestrado tangenciamos este aspecto das sociedades negras ribeirão-pretanas. Nesta tese coloca-se como nosso objetivo, a reconstrução das redes estabelecidas entre os negros da região e, até com negros e organizações de outras regiões, como a capital paulista e a região de Campinas. Entretanto, no caso deste estudo e pelos dados conseguidos, o foco é a região do Triângulo Mineiro, devido aos estreitos contatos entre as populações negras de Ribeirão Preto, Uberlândia e Uberaba2. 2 Embora tenhamos consciência dos contatos entre negros de Ribeirão Preto e destas duas cidades mineiras, devido a dificuldades de tempo na coleta de dados, nos ateremos mais detidamente à cidade de Uberaba. Ainda em relação aos contatos que compõem a rede de relações e a configuração social a ser estudada para interpretarmos a sócio-dinâmica do nordeste paulista, deixamos apontado que pelos dados poderíamos ir em busca de organizações negras de outras cidades como Bebedouro, Casa Branca e Franca, entretanto precisamos reduzir as organizações negras e respectivas cidades a serem abordadas de acordo com o critério de maior incidência de dados surgidos, quanto às ações realizadas e contatos com outras localidades, a partir das falas de sujeitos entrevistados em Ribeirão Preto. 24 Com relação ao período abordado e suas conjunturas pensamos em dois planos distintos. Um referente às transformações do próprio nordeste paulista e o outro pensado em função das transformações políticas do Estado brasileiro. Com referência ao plano nacional, em princípio orientamo-nos por pensá-lo de acordo com as concepções de Guimarães (2002) que o recorta em dois momentos: o primeiro marcado pelo “pacto populista” entre 1930 e 1964, e o segundo definido a partir do golpe militar de 1964. Para distinção das conjunturas tendo em mente as transformações do próprio nordeste paulista, vislumbramos dois momentos. O primeiro momento, situado entre as décadas de 1930 e 1950, marcado por uma relativa estabilidade demográfica, pouco alterada desde o início do século, tanto em termos de crescimento quanto em termos de composição étnico-racial, com uma intensa presença dos descendentes de europeus e uma menor expressão de afro- brasileiros. Também consideramos, em concordância com nossa pesquisa anterior e com Pereira (2008) que, nas décadas de 1930 e 1940, as populações negras encontravam-se em uma postura mais defensiva, motivadas pelo contexto de discriminação racial ainda consideravelmente explícito e amplo. Consideramos que nestas décadas ainda era percebido como prioridade para os segmentos negros desconstruírem estigmas, desviarem-se da repressão e des-hierarquizarem as relações, no sentido de superar a subalternidade econômica e social extrema a eles imposta (Souza, 2007). Na década de 1950, no plano nacional, a lei Afonso Arinos, as denúncias contra o racismo provocadas pelos estudos da UNESCO, aparecem como fatores que, juntamente com as maiores chances de trabalho geradas pela industrialização e urbanização, constituíram um momento de inflexão nas interações sócio- étnico-raciais e nas formas de discriminação. O segundo momento pensado cronologicamente entre as décadas de 1960 e o final da década de 1980, distingue-se do anterior pelo novo ciclo de crescimento econômico e demográfico ocorrido na região, com um grande afluxo de migrantes para o nordeste paulista e também uma expansão populacional e urbana acentuada, inclusive com uma alteração na proporcionalidade entre nacionais e descendentes diretos de europeus. Além disso, apontamos o surgimento de novas posturas na construção das identidades com as populações negras rearticulando suas narrativas. Neste período, houve maior referência à afirmação da alteridade a partir da exposição mais recorrente de particularidades negras e a referência à africanidade como fator cultural relevante nos discursos dos grupos negros. Neste quadro, além das práticas culturais e organizações negras estabelecidas até a década de 1960 (estudadas em minha pesquisa de mestrado); entre esta última década e o final dos anos 1980, os grupos negros criaram novas organizações e práticas culturais. Estas se 25 desenvolveram sob a influência do novo quadro social regional, como também sob o impacto das mudanças mais gerais ocorridas no país, como a expansão dos meios de comunicação e transporte e as mudanças do sistema político nacional a partir do golpe militar de 1964. Outro fator importante refere-se ao quadro internacional com a repercussão, nos anos 1960, das lutas pelos direitos civis dos negros nos EUA e pela descolonização da África, que causaram mudanças importantes na percepção dos afro-descendentes em toda diáspora negra, inclusive no Brasil. Levando-se em conta este quadro geral das relações, bem como as transformações ocorridas no nordeste paulista ao longo deste período, formulamos algumas questões de relevância para este estudo. Nas diferentes conjunturas políticas, quais foram as alianças e/ou conflitos, ou seja, os caminhos de negociação política ocorridos entre a população negra e os demais grupos étnicos presentes na cidade de Ribeirão Preto e em outras cidades da região? Quais foram as condições vivenciadas pela população negra do nordeste paulista para afirmar sua alteridade? Como a intensa migração ocorrida a partir da década de 1950, marcada pela vinda de novos contingentes populacionais (novos atores sociais) influenciou, tanto nas práticas e organizações culturais das populações negras quanto nas relações entre negros e não-negros na região? Quais foram os caminhos e estratégias utilizados pelos diferentes segmentos da população negra para construírem sua identidade e estabelecerem as fronteiras étnicas com os demais grupos nas diferentes conjunturas? Quais foram os discursos identitários gerados a partir das práticas culturais e das organizações negras nas diferentes conjunturas? Ou seja, em suas práticas culturais e organizações constituídas, quais foram os sinais diacríticos ressaltados e/ou descartados por estes grupos na caracterização de si mesmos e de suas culturas, nas diferentes conjunturas ao longo do período abordado? Entre as populações negras ocorriam diferenciações econômicas e políticas? Em que medida estas diferenciações de status social e econômicas influenciaram na organização sócio-cultural e política das populações negras? Quais divergências e/ou convergências no processo de construção da identidade entre os segmentos da população negra podemos perceber, tanto na cidade de Ribeirão Preto quanto nas demais cidades da região em diferentes conjunturas? A partir desta contextualização percebemos as novas organizações negras a serem estudadas em Ribeirão Preto, que são as seguintes: O grupo negro de Teatro Travessia, constituído nos anos 1970, o Clube José do Patrocínio, primeiro com uma sede de campo em 1971 e, depois, também organizado na antiga sede da União Geral dos Trabalhadores; a Escola de Samba Acadêmicos de Vila Paulista, liderada por um carnavalesco branco carioca, vindo para 26 a região na década de 1950; a Escola de Samba Acadêmicos do Ipiranga, fundada em 1969 por Mestre Oscarzinho, vindo de Barretos; e a Embaixadores dos Campos Elíseos, liderada por um Mestre-Sala saído da Acadêmicos da Vila Paulista em meados da década de 1960. Os grupos negros estabeleceram outras práticas culturais e organizações, como os terreiros de Umbanda que se disseminaram a partir da década de 1950. Além de outras que pretendemos abordar, como o grupo Cativeiro de Capoeira, fundado por um mestre baiano na década de 1970, grupo este que, atualmente, desenvolve atividades em mais de 12 Estados brasileiros e 15 países do mundo. No contexto desta pesquisa também situamos o “Baile das Dez Mais”, um baile de gala realizado entre as décadas de 1950 e meados da década de 1970, e novos bailes negros, como o Black Beautiful Song, que ocorria todos os sábados, na Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, entre 1974 e 1979, no final da década de 1970, o baile do “Metal”, no sindicato dos metalúrgicos, ambos tendo como base musical o samba, o soul e o Rhythm’n Blues. Todas estas organizações negras ribeirão-pretanas. Além destes bailes, também destacamos como organizações negras relevantes os bailes de barraca e as brincadeiras dançantes ocorridas tanto em Ribeirão Preto quanto em cidades como Batatais, São Carlos, Araraquara, Barretos e Uberaba. Tratando-se particularmente de organizações negras de outras cidades do nordeste paulista e, também da cidade mineira de Uberaba, neste momento assinalamos que nosso critério de escolha define-se de acordo com a existência de vínculos com os negros ribeirão- pretanos. Surgiram ao longo da pesquisa as seguintes: o Baile do Carmo, a Academia Araraquarense de Samba e o Grupo de Divulgação da Arte e Cultura Negra -GANA, todas de Araraquara; o Clube Flor de Maio fundado pelos negros ferroviários na década de 1920 e o grupo de Centro de Cultura Afro-Brasileira Congada fundado em meados da década de 1970 em São Carlos; o Clube Princesa Isabel, organizado pela população negra de Batatais no início da década de !950 e o Clube Estrela do Oeste de Barretos, organizado naquela cidade desde a década de 1930, além dos clubes negros Grêmio e Elite, ambos de Uberaba. Buscamos também verificar as diferentes posturas dos grupos hegemônicos e das instituições por eles dominadas com relação aos grupos negros ao longo do século XX. Nesta direção, entre o final do século XIX e a década de 1930, já percebemos alterações significativas na imagem de órgãos de imprensa e de autoridades públicas em relação aos negros. Nas primeiras décadas do século XX encontram-se representações pautadas na animalização do ser negro e, ainda, propostas e ações no sentido de pedidos de apartação social explícita entre negros 27 e brancos. Separação no espaço dos jardins públicos, nos clubes, bares, entre outros locais. Na década de 1930, já encontramos discursos positivos sobre os negros, exaltando os bons costumes e os grupos “ordeiros” em Ribeirão Preto, em coberturas, por parte da imprensa, de atividades dos negros, como bailes, desfiles e blocos carnavalescos. Na década de 1960, os radialistas promoviam o concurso da bonequinha do café, como também a coroação da rainha do carnaval e, além disso, os poderes públicos passaram a incentivar os desfiles de carnaval. Por outro lado, continuaram ocorrendo, ao longo de todo período e, pelo menos, até meados da década de 1970, o impedimento de negros entrarem em clubes em Araraquara, Batatais, Ribeirão Preto, São Carlos, Barretos e Uberaba, a perseguição da polícia às umbandas, com a prisão de negros na década de 1930. Além disso, ações de discriminação étnico-racial em clubes sociais, em instituições públicas como a escola e o preterimento de negros em funções profissionais diversas até a década de 1980, com grande incidência, nas diferentes cidades abordadas, entre outras expressões de discriminação étnico-racial. Surgem algumas questões que buscamos responder quanto a este aspecto: nas cidades abordadas em que medida estas transformações também podem ser percebidas e que particularidades podemos apreender? Como podemos relacionar esta ambigüidade de postura dos setores e instituições hegemônicas com a ambigüidade da lógica do projeto nacional de identidade mestiça homogênea e de democracia racial? Por parte dos negros, como eles se posicionaram em relação a estas mudanças de postura dos setores hegemônicos? Todas estas indagações que surgem a partir de duas questões mais gerais que emolduram o quadro de nossas percepções. Como as populações negras se posicionaram em meio às condições adversas da sociedade brasileira quanto a sua condição humana? Como constituíram suas identidades, desvencilharam-se dos estereótipos-estigmas atribuídos pelas narrativas hegemônicas, firmaram suas expressões culturais e definiram ou redefiniram seus papéis sociais na hierarquia autoritária estabelecida? Como momento particular desta exposição de nosso universo de estudo e a explicitação de algumas de suas características, deixamos agora marcada nossa posição, o lugar de onde falamos, nossa perspectiva a respeito desta pesquisa. Primeiramente, colocamos que abordar um universo de estudo é conceber e realizar o ofício de pesquisador a partir de um olhar que perpassa os dados que nos 28 chegam aparentemente como elementos fragmentados, sempre compreendidos sob um pano de fundo e fundamento de uma percepção da totalidade sui generis que transmuta os sentidos que as partes poderiam ter enquanto dados isolados. A dinâmica sociocultural por nós percebida, neste quadro, vai ao encontro das orientações de Chauí (1986) em suas reflexões acerca da capacidade política dos grupos por ela denominados populares. Ela nos adverte que toda realidade a ser abordada é muito mais do que meros dados, elementos fragmentados a serem rearticulados pelo intelecto ou apreendidos pelo empirismo, posto que as produções humanas, as realizações e todos os fatores socioculturais que ensejam são constituídos: (...) por práticas sociais e históricas determinadas, por formas de sociabilidade, relações intersubjetivas, grupais e de classe, da relação com o invisível e o visível, com o tempo e o espaço, com o possível e o impossível, com o necessário e o contingente (Chauí, 1986, p. 122). Fundados nesta concepção, nós procuramos superar o estreitamento do olhar do intelectualismo e do empirismo com bases cartesianas para a geração de uma “racionalidade alargada” que visa as dimensões simultâneas constitutivas do mundo percebido e apreendido (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 461). Entretanto, na esteira de Morin (1982), questionamos: Como manter a legitimidade de interrogações globais com a consciência de que “a totalidade não é a verdade”? Esta resposta se apresenta para nós com a aceitação da incompletude e de uma dose importante de relatividade presente na construção de nossas interpretações acerca dos universos estudados. Neste sentido, estamos assumindo que produzimos um saber a partir de um lugar concretizado por nossa formação enquanto pesquisador e enquanto pessoa, portanto um lugar marcado por nossa história de vida e por nossa inserção particular na sociedade, fatores que, junto com nossa sensibilidade, marcam nossa subjetividade, nesta condição temos certo que: Confessando a nossa subjetividade, as nossas fraquezas e as nossas incertezas, sabemos que estamos mais perto da objetividade do que aqueles que crêem que as suas palavras refletem a ordem das coisas (Morin, 1982, p. 10). Minha confissão neste momento refere-se à grande vontade de realizar um estudo que se confirme como referência pelo menos para uma parcela da comunidade acadêmica e da sociedade do nordeste paulista, vontade esta 29 acompanhada de grande insegurança que incomoda o pesquisador diante de tamanha diversidade e riqueza de dados e interações a serem abordadas que, de certa forma, atordoam-nos quanto a quais fatores socioculturais priorizar para abarcar a maior amplitude e com maior acuidade as experiências de vida estudadas. Resta-nos assumir a incompletude de todo conhecimento e a realidade de que toda percepção é proveniente de um olhar socialmente construído portanto carregado de juízos de valor. Diante desta assunção é que colocamos a relevância de nosso caminho teórico-metodológico, para minimizar as incompletudes e a relatividade de nossas interpretações e de nossos resultados finais, para que sejam dignos de serem percebidos como resultados de uma pesquisa científica. Aqui outra questão levantada por Edgar Morin, no referente à nossa capacidade de apreensão das realidades surge, oportuna: Como designar este mundo onde o princípio primeiro nunca é totalmente um, mas se apresenta sempre de algum modo desdobrado; onde não há ser que não seja desmembrado, cavernoso, fragmentário; este mundo onde o logos, discurso coerente é incapaz de constituir por si só a realidade, onde há um elo originário entre regulação e proliferação, destruição e criação (Morin, 1982, p. 11)? Como resposta a esta questão e mais uma expressão de nossa posição, colocamo-nos pelo entendimento do ofício e artifício da ciência enquanto produto em que, tanto o poder da técnica quanto o poder do imaginário incidem, para situá-la na “dialética global da sociedade” (Morin, 1982, p. 14) na qual estamos inseridos e, portanto, igualmente produtos e produtores. A partir destas considerações é que nos posicionamos para a realização deste estudo das relações estabelecidas por negros e outros grupos no nordeste paulista. Com uma apreensão das múltiplas dimensões elucidativas dos fenômenos em foco e com a indicação dos vínculos e interações com outros fenômenos para formular as ambivalências e os múltiplos sentidos e simultaneidades. Neste momento, em confluência ao pensamento de Fritjof Capra quanto à concepção sistêmica do pensamento e o foco nas interconexões e interações que constituem toda e qualquer realidade (CAPRA, 1982, p. 260). Inclusa aí a atuação das organizações negras, a dinâmica sociocultural e os processos que as envolveram no nordeste paulista, os quais estamos a interpretar. 30 Para um melhor esclarecimento aponto os pontos fundantes desta pesquisa de doutorado: 1 Discutir a relação entre raça e classe social. 2 Explicitar a cultura enquanto dimensão do fazer político. 3 Criticar a idéia de sociedade mestiça homogeneizada. Concomitantemente discutir a noção de sociedade brasileira plural, cultural e etnicamente. 4 Criticar as concepções de identidade negra essencializada e estática. Demonstrar as limitações das ditas práticas africanizadas (ou outras) colocadas como padrão identitário. 4.1 Compreender e discutir a relevância sociopolítica das diferentes práticas culturais e de construção identitária desenvolvidas pelas populações negras do nordeste paulista. Discutir os limites das concepções acadêmicas que atribuem alienação, “embranquecimento” e/ou aculturação às diversas formas de ser negro, por não reconhecerem a relevância de práticas identitárias diversificadas como parte do processo de inserção sócio-político-cultural das populações negras na realidade da diáspora brasileira. Considerações Teórico-Metodológicas: sobre a perspectiva do pesquisador e a memória Pretendemos estabelecer um corpo teórico-metodológico capaz de nos orientar na tarefa de interpretar as realizações das organizações negras no nordeste paulista em seu devir, para além da perspectiva sócio-histórica e cultural hegemônica, buscando perceber as maneiras pelas quais as populações negras criaram estratégias que lhes permitiram forjar suas territorialidades, reconstruíram suas culturas e suas identidades num processo dinâmico e ativo. E que no transcorrer do processo social, em suas interações e a partir de suas organizações, os grupos humanos foram produtores de significados. Assim, de modo incessante, ainda, estão sempre transformando significados em outros significados de acordo com seus propósitos políticos (PEREIRA, 2008, p.22). Em nossa trajetória metodológica nos diferenciamos de leituras dicotômicas, produzidas pelas ciências humanas desde o século XIX, concepções fundamentadas em uma história linear, universal e progressiva, como também da relação entre as culturas a partir de uma hierarquização baseada em padrões 31 societários e identitários excludentes da maioria. Ambas as concepções, ainda hoje com forte influência na sociedade e no pensamento acadêmico. Nesta direção podem ser colocados estudos de Rodrigues (1957), Romero (1975) e Vianna (1933) que partem da inferioridade do negro pautados em concepções do racismo com fundamentos biológicos. Também outros estudos pautados em uma visão historicista mais ortodoxa, como os estudos de Furtado (1970) e Prado Júnior (1987) que atribuem incapacidade ao negro devido à suas heranças culturais advindas da escravidão e /ou de suas origens africanas. Neste ponto, nossas concepções vão ao encontro das críticas que Balandier (1969) apresenta quanto a propostas teóricas (como parte do estruturalismo e do funcionalismo, como também de marxismos ortodoxos) que por fixarem-se em alguns aspectos das realidades em estudo, deixam escapar “as relações complexas e instáveis” que regem os contextos sociais e suas condições políticas (BALANDIER, 1969, p. 178). Por um lado, estas concepções orientaram os projetos coloniais, naturalizaram as desigualdades e os processos de dominação. Por outro lado, tornaram predominantes na produção acadêmica teorias e métodos que limitaram a percepção dos pesquisadores quanto às possibilidades de compreensão das relações sociais. Por este caminho, produziram-se interpretações que além de gerar leituras míopes acerca da realidade social e do processo histórico, estigmatizaram povos e grupos sociais a partir da desqualificação de seus atributos físicos, de suas culturas, de suas memórias. Enfim, tanto a partir de seu fenótipo quanto de seu patrimônio histórico-cultural. Nesta direção, pretendemos apreender os processos identitários e de negociação entre negros e outros grupos na composição societária do nordeste paulista distantes de propostas teóricas que Balandier (1969) denomina orgânico- mecanicistas, regidas apenas por fatores internos e pré-determinados por funções atribuídas aos sistemas simbólicos, práticas e organizações sempre sob um equilíbrio estático e/ou linear. Procuramos, assim, perceber as relações sociais na decorrência do processo social. Vislumbrar as estratégias, conjunturas, interesses e atuações dos sujeitos sociais com a compreensão das dimensões simbólicas, das interações entre os atores e as organizações (instituições) num processo tenso e dinâmico, próprio da historicidade do jogo social marcado por estratégias e resultados múltiplos. Por este entendimento nos posicionamos pela busca de 32 apreender o “sistema de relações complexas e instáveis” que fundamentam os fenômenos dinâmicos componentes de qualquer realidade social (Balandier, 1969, p. 178, 179). Em busca destas possibilidades, o presente estudo tem sido desenvolvido por meio de um levantamento bibliográfico a respeito das cidades de Ribeirão Preto e região; de entrevistas realizadas com afro-brasileiros que mantiveram relações de alianças e/ou conflitos com a população afro-ribeirão-pretana; de pesquisa em acervos públicos e em arquivos pessoais, principalmente em jornais, mantidos nos arquivos públicos e, ainda, fotos e outros documentos mantidos sob a guarda de particulares. Realizamos parte do recolhimento de depoimentos de indivíduos que participaram das instituições e/ou conviveram em espaços sociais comuns aos grupos, por meio de entrevistas gravadas (QUEIROZ, 1998). Optamos por realizar entrevistas semi-estruturadas, pois, de acordo com nossos interesses de reconstruir redes de interações e pela realidade estudada composta de diversas instituições, temos a necessidade de efetuá-las a partir do roteiro e do questionário previamente definido. Entretanto, ele é flexível o suficiente para abordar as vivências e a inserção própria de cada um dos sujeitos da pesquisa. Posteriormente, realizamos a transcrição e a interpretação dos conteúdos. Estes procedimentos metodológicos são orientados por um conjunto de compreensões relevantes, orientadas por desconstruir a ilusão de concepções fundamentadas em um olhar dicotômico que não concebe as complementaridades e contradições constituintes da diversidade do social. Uma ilusão que se tornou objeto de consenso, a partir de noções estreitas de objetividade e de racionalidade que negam valor à diversidade de experiências componentes do social, assim como também negam a estas experiências capacidade política e status de saber (CHAUÍ, 2000, p. 2). Enquanto pesquisador, tomo a posição de que a produção de saber é um trabalho de lidar com a indeterminação dos fluxos próprios da diversidade de atuações e saberes existentes na sociedade, a própria alteridade. Desta forma, procuro distinguir-me de considerações teórico- metodológicas que compreendem como não-saber os conhecimentos que habitam na experiência em função de uma pretensa objetividade e uma racionalidade particular que busca abolir as diferenças. Busca também ocultar as contradições e desarmar todo tipo de interrogação por meio de representações e normas prévias que não abordam as realidades sociais para interpretá-las e compreendê-las, mas sim para fixar uma ordem previamente instituída, não com a produção de um saber, mas sim com a reprodução de verdades absolutas (CHAUÍ, 2000, p. 5). 33 Com esta postura foi que, ao invés de utilizarmos questionários que nos remeteriam a dados fragmentados e sujeitos a posicionamentos enviesados dos agentes, buscou-se trabalhar com as entrevistas por possibilitarem discursos mais integrais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976). As entrevistas nos deram maior possibilidade de uma leitura multilinear surgida no discurso, mais próxima do contexto em que se dão as relações étnico-raciais no qual diversos aspectos do social interconectam-se e, a partir do cruzamento de dados, estamos a realizar nossas interpretações. Do empirismo dos dados ao formalismo das puras construções dos “modelos” científicos, ocorre a manutenção da dicotomia sujeito-objeto e a ciência como reprodutora de mecanismos de dominação. Uma postura que, ao recusar a dialógica das realidades abordadas, torna o mundo objeto previsível e morto, ao invés de produzir saber e apreender a multiplicidade de referenciais que compõem os fluxos da alteridade: A racionalidade científica, ao construir a objetividade, realiza a operação chamada determinação completa, pela qual uma realidade é convertida em conhecimento. Algo é conhecido objetivamente quando é possível dominá-lo inteiramente pelas operações do entendimento. [...] Esta noção de objetividade é inseparável da idéia do exercício da dominação [...] Nessa medida, a determinação é completa, de um lado, porque pretende dizer tudo o que o objeto é ou deve ser e, por outro lado, porque exclui toda possibilidade de que haja um movimento interno ao objeto, sua reflexão, pelo qual ele se ponha e se reponha, se transforme e desapareça, isto é, recusa o objeto dialeticamente desenvolvido (CHAUÍ, 2000, p. 34-35). Esta idéia de que, mediante procedimentos adequados faz-se possível um conhecimento absoluto do universo estudado, pode nos impedir de perceber a multiplicidade de fatores e as ambigüidade constituinte dos processos sociais abordados. Devido à ilusão da objetividade e da racionalidade absoluta deixamos de reconhecer a dualidade entre os fatos e os valores que constituem o pensamento do pesquisador. Procuramos estar atentos, portanto, ao processo de percepção e de pensamento que têm seus próprios mecanismos de compreensão e produção. Neste sentido, ressaltamos como relevante o fato de não buscarmos produzir operações cognitivas que esgotem o real, ou seja, não temos a pretensão de realizar a verdade sobre a dinâmica sociocultural e política, os processos identitários e as organizações negras do nordeste paulista. Partimos da assunção de que não existe correspondência absoluta entre a realidade e a representação da mesma, posto que 34 nem tudo que existe é representável, passível de uma apreensão cognitiva total (FARIA in FERREIRA & ORRICO, 2002, p. 54). Nesta dimensão, estamos atentos para o processo relacional homem/mundo e à produção do conhecimento perpassada por este processo em que a racionalidade pura da proposta cartesiana é tida como uma representação ideal em que o sujeito do conhecimento é destituído metodologicamente de sua existência concreta. A sensibilidade do pesquisador responsável pela produção de conhecimentos é, de fato, instituída por sentimentos, pensamentos, sonhos, seduções e desejos, além de sua própria corporalidade. Procuramos, então, ouvir e perceber o mundo humanamente. Assim, concebermos que: É o olhar e não o olho que informa a existência mundana das coisas. Isto quer dizer que o olho é natural, mas o olhar é socialmente desenvolvido. Por isso mesmo é questionável a idéia de que fazer ciência é identificar as regularidades dos fenômenos e elaborar as equações que as expressem como se fosse falar o mundo a partir de uma única linguagem (FARIA In FERREIRA & ORRICO, 2002, p. 55). Para a realização da interpretação dos conteúdos trazidos pelos dados dos documentos em geral, inclusive das entrevistas, procuramos nos colocar em uma perspectiva dialógica, sustentada por uma relação epistemológica em que esteja ausente a imposição de paradigmas e dos determinismos na construção das relações a serem estudadas e na interpretação dos dados (MORIN, 1991). Nesta lógica, é importante termos em mente que o estudo de qualquer autor não é uma totalidade fechada em si mesma. Partimos da compreensão de que em toda produção de conhecimento está presente uma multiplicidade de referenciais da vivência do autor, inclusive diversidade de referenciais teóricos, com os quais podemos dialogar de forma autônoma, sem necessariamente estarmos aderindo a esta ou aquela “escola do pensamento”, mas sim nos posicionando em uma dialógica produtiva e aberta, seja em relação às diferentes reflexões apresentadas na obra de um autor, seja pelas obras de diferentes autores. Por este caminho, também estamos em concordância com a postura de Roberto Cardoso de Oliveira quando este acentua que o cientista social (o antropólogo, nas palavras dele) precisa ir acima do nível de observação, além da observação empírica, para realizar uma leitura crítica dos fatos. Para o sucesso do empreendimento científico não é preciso filiar-se incondicionalmente e integralmente a uma corrente teórico-metodológica qualquer para utilizar aspectos que inspirem e sustentem uma posição teórica. Podemos dialogar com Lévi-Strauss sem sermos 35 estruturalistas e com Marcel Mauss sem intentarmos o renascimento de uma sociologia maussiana (CARDOSO DE OLIVIERA, 1976). Quanto à escolha dos entrevistados e à definição dos conteúdos de cada entrevista deixamos registrados alguns esclarecimentos relevantes. Quanto aos entrevistados: procedências e identidades. Os sujeitos a serem entrevistados foram definidos com base em informações conseguidas acerca do contexto de atuação das organizações negras e da inserção de cada entrevistado(a) nas diferentes organizações e espaços de vida (bairros e/ou cidades) do período em que nasceu. Informações geralmente obtidas com outros depoentes, como também em registros escritos, principalmente jornais. A cada entrevista as perguntas básicas foram as seguintes: Qual o nome e quando nasceu? Onde o senhor(a) nasceu? Qual a trajetória familiar? O que sabe sobre a vida dos avós e pais no trabalho, no cotidiano e quanto à participação em eventos realizados por negros? De quais cidades vieram, sempre moraram na mesma cidade? Em quais bairros? O que se lembra de como eram as condições de vida de sua família? Do que sente saudades de sua infância, adolescência e juventude? Quais aspectos da vida durante a infância e adolescência mais te desagradavam? Por quais razões? Qual sua trajetória profissional? Quando começou a trabalhar? Como eram suas condições de trabalho durante a infância ou adolescência? Quais foram suas ocupações ao longo da vida? Como, quando e de quais organizações negras participou? Qual sua posição nas formas de organização que participou? Foi dirigente de alguma delas? Que aspectos das práticas que participou lhe interessavam e/ou chamavam a atenção? Estabeleceu contatos com populações negras de outras cidades? Em quais ocasiões? Com qual freqüência e em que épocas? Como foram seus contatos com outros grupos étnico-raciais (nacionais e imigrantes)? As demais questões foram feitas em função dos conteúdos trazidos à baila em cada entrevista, em conformidade com dados de outras fontes (orais e escritas) 36 a respeito daquele(a) entrevistado(a), e, também, em função dos objetivos da pesquisa. Embora remetamos nosso estudo à outras cidades do Nordeste Paulista e à cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro, partimos das ações produzidas pelas organizações negras de Ribeirão Preto para definir as demais cidades a serem estudadas3. Desta forma, estas questões foram válidas tanto para negros e indivíduos pertencentes às populações negras de Ribeirão Preto quanto das demais cidades presentes no estudo. Quanto aos sujeitos entrevistados deixamos aqui um breve registro de suas procedências e algum aspecto de suas histórias de vida. Deixamos registrado que, com exceção da entrevista feita em novembro de 2007 com Luis Henrique Monteiro (Mestre Monteiro), todas as demais entrevistas foram realizadas entre maio de 2008 e novembro de 2009. Luis Henrique Monteiro. Nascido em 03 de junho de 1957, na cidade de Franca- SP. Mudou para Ribeirão Preto com um ano de idade. Foi morador do bairro da Vila Tibério durante muito tempo. Durante a infância trabalhou como engraxate e em outras atividades informais. Desde 1974 participou do Grupo Cativeiro de capoeira, de Ribeirão Preto no qual se tornou Mestre. Ádria Maria Bezerra Ferreira, nascida em 01 de novembro de 1949, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Filha da senhora Alaíde Bezerra Ferreira e do senhor Paulo Francisco Ferreira, capitão do exército brasileiro e um dos fundadores do clube ribeirão-pretano José do Patrocínio. Ádria participou de pastorais da igreja católica, foi professora de história em Ribeirão Preto e atuou em organizações negras como o Grupo Quênia, do Clube José do Patrocínio, Grupo de Teatro Travessia e outras organizações em Ribeirão Preto e São Paulo. Com Ádria conseguimos um grande conjunto de fotografias, recortes de jornais, documentos de Sociedades e outras organizações negras. João Bento da Silva, nasceu em Tambaú, em 24 de junho de 1929 onde jogou no time do Operário até 1950, data em que mudou-se para Ribeirão Preto. Nesta última cidade foi jogador do time negro da Ponte Preta e passou a ser membro da Sociedade Recreativa dos Bambas, onde atualmente é dirigente. Por 3 As cidades escolhidas foram Araraquara, Batatais, São Carlos e Barretos, além da cidade mineira de Uberaba. Nosso critério principal foi a evidência de trocas sócio-político-culturais estabelecidas entre negros de Ribeirão Preto com negros e grupos destas cidades. 37 meio de sua ação juto ao Bloco e posterior Escola de Samba dos Bambas travou alianças com organizações negras de diferentes cidades e Estados. Foi membro da União Geral dos Trabalhadores e dirigente do Clube José do Patrocínio, ambas organizações ribeirão-pretanas. Luiz Carlos Bento, nascido em Ribeirão Preto em 10 de novembro de 1955. Formou-se em Direito, profissão em que atua desde 1978. Freqüentava a antiga União Geral dos Trabalhadores, foi presidente do Clube José do Patrocínio e manteve contatos com entidades negras de outras cidades e Estados. Maria Isabel Cesário Francisco Miguel. Nascida em Ribeirão Preto em 13 de agosto de 1961. Participou de atividades realizadas pela Sociedade dos Aliados, da cidade de Ribeirão Preto e do Clube José do Patrocínio, ambas dirigidas por seu pai, Geraldo José Miguel. Além de muitas recordações da vida de seu pai, a senhora Isabel nos colocou em contato com um rico acervo fotográfico deixado por seu pai que foi dirigente de diferentes organizações negras entre as décadas de 1950 e 1990. Jarbas José Cesário Miguel. Nascido em 18 de setembro de 1962, Nos trouxe muitas informações das atuações de seu pai, de bailes de gala mas, principalmente, dos bailes Black que muito freqüentou. Maria Aparecida Silva de Brito, nascida em 9 de abril de 1927 em Ribeirão Preto. Nos colocou em contato com ricos relatos sobre bailes realizados nas décadas de 1940 e 1950. Também trouxe muitos elementos das relações entre negros e brancos na cidade entre as décadas de 1930 e 1980. Regina Brito de Sousa, nasceu no dia 18 de janeiro de 1952, em Ribeirão Preto. Participou do grupo Quênia, nos trouxe muitos relatos acerca de bailes das décadas de 1960 e 1970, em Ribeirão Preto e Araraquara e, também, acerca do tratamento reservado aos afro-brasileiros pelos clubes da cidade. Dulce Helena de Brito, nascida em 1957, em Ribeirão Preto. Teve participação no Grupo de Teatro Travessia do qual nos trouxe muitos relatos. Colocou-nos em contato com elementos das relações étnico-raciais na cidade de Ribeirão Preto. Ismael Carlos Rodrigues, nascido em 29 de Maio de 1956. Freqüentou muitos bailes de barraca, festas de São Gonçalo e, quando adolescente, formou a primeira equipe de som, com a qual realizou os primeiros bailes Black ribeirão-pretanos. Foi membro do Grupo Cativeiro de Capoeira e do Grupo Travessia. Trouxe-nos muitos 38 dados referentes aos contatos de negros ribeirão-pretanos com negros de outras cidades e estados. Parte destes dados vieram com recortes de jornais e convites de bailes das décadas de 1970 e 1980, fotos e outros documentos a nós fornecidos. Cândida Emiliano de Almeida, nascida a 2 de maio de 1927, em Ribeirão Preto. Foi criada por uma família branca local. Por este motivo colocou-nos em contato com meandros ricos das relações étnico-raciais locais. Trouxe à tona recordações dos antigos bailes de gala ocorridos entre as décadas de 1940 e 1970, das procissões e da devoção a São Benedito e sobre os blocos de carnaval. Marilda de Almeida, nascida em novembro de 1959. Relatou-nos muitas memórias deixadas por seu avô e por seu pai. Participou das brincadeiras dançantes e foi funcionária da Câmara Municipal de Vereadores de Ribeirão Preto. Osvaldo Joaquim Maria, nascido em 6 de julho de 1940, em Sales e Oliveira. Veio para ribeirão Preto em 1961 e tornou-se comissário de menores. Relatou sobre bailes negros em diversas partes de Ribeirão Preto e em outras cidades. Também acerca das relações entre negros desta cidade com negros de outras cidades e regiões. Madalena Nascimento Marques, nascida em Colina - SP, em 1930. Forneceu-nos muitos dados sobre as relações étnico-raciais de sua cidade natal, da cidade de Orlândia e de Ribeirão Preto. Muitas lembranças também compartilhou sobre bailes de barraca e outras expressões culturais realizadas pelos negros. João Batista Alexandre, nascida em 24 de junho de 1944 em Marília. Morou em Barrinha e Sertãozinho de onde nos propiciou lembranças ricas a respeito das condições de trabalho dos negros e das relações étnico-raciais. Ainda propiciou-nos relatos sobre clubes e bailes negros em Ribeirão Preto. Oscar Severiano de Almeida, nascido em 1 de janeiro de 1926 em um antigo reduto negro da cidade de Ribeirão Preto, a região conhecida por Bangu. Foi jogador do time da Ponte Preta local nas décadas de 1940 e 1950, freqüentou bailes e outras eventos realizados pela população negra. Tornou-se funcionário da companhia dos correios onde aposentou-se. Maria de Brito Severiano de Almeida (Iraci), nascida em 8 de outubro de 1931 em Ribeirão Preto. Trouxe muitos relatos sobre os bailes de gala, as disputas do time da Ponte Preta contra os times “dos brancos”, dos bailes de gala, dos blocos de carnaval e de grandes batuques realizados por famílias negras durante as décadas de 1930, 1940 e 1950. 39 Luiz Antônio de Brito, nascido em 15 de junho de 1950, em Ribeirão Preto. Filho de um antigo sambista ribeirão-pretano, o senhor Francisco Brito que também foi entrevistado em nossa pesquisa de mestrado. O senhor Luiz Antônio nos propiciou o contato com lembranças de diversas práticas como as festas e batuques promovidos por grupos de famílias negras, as brincadeiras dançantes e as práticas de devoção a São Benedito. Com este depoente, tivemos contatos com conteúdos acerca dos bailes negros realizados por Sociedades e clubes em outras cidades como Batatais, Araraquara e Barretos. Outro aspecto relevante foram suas ações no Clube José do Patrocínio e em atividades do denominado “movimento negro”. Sebastião Donizete Adelino, nascido em 1961, na cidade de Orlândia. Veio para Ribeirão Preto em 1964 com sua família proveniente de Minas Gerais, por parte de sua mãe era uma família de remanescentes de quilombo. Durante muitos anos residiu em um bairro afastado rodeado de chácaras e fazendas. Bairro no qual sua família, que era extensa, realizava festas religiosas, das quais nos ofereceu muitas lembranças. Sebastião também participou do Grupo Cativeiro de Capoeira no qual é Mestre, além disso foi muito atuante no Grupo Travessia de Teatro e, em atividades do, por ele denominado, “movimento negro”. Aluízio José da Costa (Caju) nascido em de 6 julho de 1960, na cidade de Franca. Veio para Ribeirão Preto em 1964 por seu pai, ferroviário, ter sido transferido para esta cidade. Aluízio, mais conhecido por Caju, foi membro junto com Ismael Carlos da primeira equipe de som e realizou muitos bailes Black em Ribeirão Preto, Uberaba, e outras cidades. Foi membro do Grupo de Teatro Travessia e do Clube José do Patrocínio. Durante a infância foi engraxate e, posteriormente, tornou- se dono, junto com Ádria Bezerra, do primeiro salão de beleza destinado ao público afro-brasileiro em Ribeirão Preto, em 1979. Aluízio enriqueceu esta pesquisa com o empréstimo de um rico acervo de fotos. Célia Aparecida Pereira, nascida em São Carlos em 9 de setembro de 1956. Nos trouxe muitas informações referentes ao contexto das relações étnico-raciais desta cidade e da atuação dos negros em seus clubes e grupos. Foi membro do Grupo Rebu de Teatro Negro e do Grupo Congada de Arte e Cultura afro-brasileira, ambos de São Carlos, durante as décadas de 1970 e 1980. Participou da organização do primeiro Festival Comunitário Negro Zumbi, ocorrido em Araraquara, em 1978. Também nos forneceu muitas informações das relações de negros de São Carlos com negros de Ribeirão Preto, Araraquara, São Paulo e outras cidades. 40 Dulcinéia Aparecida Pereira, nascida em São Carlos, em 3 de abril de 1948. Nos relatou sobre as relações entre negros e brancos em São Carlos e sobre os clubes negros locais. Vera Aparecida Pereira, nascida em São Carlos, em 23 de dezembro de 1951. Além de muitas informações do contexto são-carlense, apresentou-nos dados acerca das redes sociais existentes entre organizações negras do nordeste paulista e de outras regiões, inclusive da capital paulista. Sebastiana da Silva Faustino, nascida na cidade de Jardinópolis no dia 22 de abril de 1930. Mudou-se para Ribeirão Preto em 1949 quando passou a ser empregada doméstica e casou-se. Entre as décadas de 1960 e 1980 foi uma das organizadoras do “Baile das Dez” que ocorria em Ribeirão Preto, também organizava caravanas para o “Baile do Carmo”, em Araraquara. Marli Aparecida Faustino, nascida em 25 de fevereiro de 1952, em Ribeirão Preto. Compartilhou muitas lembranças sobre a presença dos negros na União Geral dos Trabalhadores e sobre os bailes de Ribeirão Preto e outras cidades. Foi candidata em concursos de beleza negra durante a década de 1970. Trouxe à tona muitas informações acerca do racismo nas escolas e na sociedade de uma forma geral. Marivone Faustino Alcântara, nascida em 5 de janeiro de 1954, em Ribeirão Preto. Também compartilhou muitas informações sobre bailes, concursos de beleza e blocos de carnaval conosco. Ela e outras mulheres e homens expuseram muitas informações sobre as relações de gênero e sobre a condição feminina das negras. João Luis Pinto, nascido no dia 16 de outubro de 1951, em Ribeirão Preto. Filho de um tipógrafo negro atuante em diferentes organizações, o senhor Mário Pinto, nos relatou acerca das vivências de seu pai. Suas lembranças também abarcaram a organização de blocos e escolas de samba ribeirão-pretanas, assim como sobre os bailes de gala e os bailes Black. Apresentou muitas informações acerca das relações entre negros de Ribeirão Preto com organizações de outras cidades como Uberaba, Araraquara e Batatais, entre outras. José Antônio de Brito, nascido em 13 de junho de 1948, em Ribeirão Preto. Foi jogador de basquete da Sociedade Recreativa de Esportes. Participou da formação do Grupo Quênia de Ribeirão Preto, de brincadeiras dançantes e das experiências teatrais dos negros durante estas brincadeiras ao longo da década de 1960. Também propiciou-nos muitas informações a respeito da presença de negros 41 na União Geral dos Trabalhadores e dos blocos carnavalescos e escolas de samba. Além disso, trouxe dados sobre os concursos de beleza e os bailes, na cidade de Ribeirão e em outras cidades. Maria Aparecida de Almeida Caldas (Cici), nascida no dia 4 de agosto de 1936. Freqüentou muitos bailes durante sua adolescência, em diversos espaços. Foi moradora da antiga região do Bangu onde participou do Bloco dos Aliados e, posteriormente, da escola de samba “Acadêmicos do jardim Paulista”, fundada por seu marido Carlinhos Durão. Apresentou-nos muitas informações acerca dos blocos e escolas de samba, sobre a condição feminina das negras e, ainda, acerca dos bailes de gala. Maria Nazaré Salvador, nascida em 2 de junho de 1952, em Araraquara. Propiciou-nos muitas informações referentes ao contexto étnico-racial araraquarense e sobre organizações negras da cidade. Foi organizadora do GANA (Grupo de Divulgação de Arte e Cultura Negra Araraquarense) durante á década de 1970 com o qual participou de muitas atividades da população negra local, do nordeste paulista e de outras regiões. Um dos eventos que integrou a organização foi Festival Comunitário Zumbi (FECONEZU), a partir de 1978. Maria do Carmo Luiz, nascida em 6 de julho de 1952 em Araraquara. Também trouxe muitas informações sobre o contexto étnico-racial araraquarense e sobre organizações negras locais. Foi membro do grupo Gana e participou de eventos diversos que envolveram as populações negras do nordeste paulista e de outras regiões. Maria Aparecida da Silva, nascida em 8 de outubro de 1959, em Tarumã - SP. Recordou-se de muitas atividades de organizações negras em Araraquara e na região nordeste. Mestre em Educação pela UNESP de Araraquara. Também trouxe dados relativos às relações étnico-raciais em Araraquara. José Albino Zacarias nascido em 21 de setembro de 1958, em Araraquara. Foi membro do Grupo Gana. Recordou-se da dinâmica de outras organizações negras locais e das distinções entre os afro-brasileiros na cidade. Assim como outros membros do Gana participou, juntamente com organizações negras de São Carlos, Ribeirão Preto, São Paulo e outras cidades, da organização do Feconezu, a partir de 1978. Apresentou dados relevantes acerca dos contatos com organizações negras ribeirão-pretanas e de demais cidades. 42 Neusa Maria Luiz, nascida em 6 de julho de 1952, em Araraquara. Outra organizadora do Grupo Gana e do Feconezu. Apresentou-nos informações sobre a situação de marginalização dos negros nas escolas de samba e outros espaços de Araraquara, assim como das conquistas do carnaval em parceria com a Academia Araraquarense de Samba, durante a década de 1980. Luiz Carlos do Nascimento (senhor Nascimento), nascido no dia 08 de maio de 1942, em Ribeirão Preto. Desde criança foi membro de blocos e escolas de samba em Ribeirão Preto, foi passista dos Bambas, da Escola de samba Acadêmicos de Vila Paulista e fundador da Embaixadores dos Campos Elíseos, em 1967. Apresentou-nos muitas informações referentes aos clubes e sociedades negras locais, como também sobre as questões de gênero, foi filho criado apenas por sua mãe. Shirley Delcides, nascida em Batatais, no dia 15 de janeiro de 1945. Foi cabeleireira desde muito jovem em Batatais e sempre participou do Clube Princesa Isabel, organizado e freqüentado pela população negra batataense a partir de 1952. Colocou-nos em contato com recordações de bailes e outros eventos realizados por negros nesta cidade. Também recordou-se de sua profissão e da relevância do trato com os cabelos para a identidade da população negra. Izabel Cristina Rafael Vieira, nascida em Batatais, no dia 4 de Julho de 1966. Izabel é uma grande estudiosa e pesquisadora sobre a h