UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CAMPUS DE FRANCA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA NATÁLIA FRAZÃO JOSÉ A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO IMPERADOR AUGUSTO NAS OBRAS DE VELÉIO PATÉRCULO, PLUTARCO E SUETÔNIO FRANCA 2011 NATÁLIA FRAZÃO JOSÉ A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO IMPERADOR AUGUSTO NAS OBRAS DE VELÉIO PATÉRCULO, PLUTARCO E SUETÔNIO Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Faculdade Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do Título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Cultura Agência Financiadora: FAPESP Orientadora: Profa.Dra.Margarida Maria de Carvalho BANCA EXAMINADORA Presidente:_________________________________________________ Profa.Dra. Margarida Maria de Carvalho / Unesp – Franca 1°Examinador: _______________________________________________ 2° Examinador: _______________________________________________ Franca, ______ de ________de 2012 Dedico a todos que, de alguma maneira, sempre estiveram ao meu lado durante esta caminhada. “Há pessoas que transformam o sol numa simples mancha amarela, mas há também aquelas que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol.” Pablo Picasso AGRADECIMENTOS Muitas são as pessoas que estiveram ao meu lado durante essa jornada de conhecimento empreendida durante a busca pelo título de Mestre. Algumas permaneceram por todo o percurso; outras deram sua contribuição e partiram. Ainda existem aquelas que, no finalzinho, surgiram para deixar, ao menos, uma pequena marca. Durante esses anos, inúmeras foram as ideias, sugestões, críticas, discussões e correções para que este trabalho fosse realizado. Inicialmente, agradeço a minha orientadora, amiga e confidente Profa. Margarida Maria de Carvalho. Sou-lhe grata por, além de todo apoio durante o desenvolvimento da pesquisa, ter-me aberto um mundo de infinitas possibilidades, enriquecendo-me com seus conselhos e sabedoria. Agradeço por não ter sido apenas minha guia no mundo acadêmico, mas por também ter sido também minha amiga. Sem seu auxílio, generosidade, determinação e confiança, nada disso teria sido possível. A isso, serei eternamente grata, esperando retribuir-lhe algum dia. Em seguida, agradeço ao Programa da Pós Graduação em História, Linha História e Cultura Política, por todo o auxilio e as oportunidades que me possibilitaram no decorrer destes anos. Agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo que, através de seu precioso amparo financeiro desde minha Iniciação Científica, possibilitou a minha dedicação a esta pesquisa, assim como a divulgação desta em Simpósios, Congressos e demais eventos acadêmicos. Por conseguinte, agradeço às valiosas considerações das professoras Ana Teresa Marques Gonçalves e Andréia Lúcia Dorini Carvalho de Oliveira Rossi durante o Exame de Qualificação, considerações estas que muito nos auxiliaram no desenvolvimento do trabalho de pesquisa. Nesse mesmo âmbito, agradeço ao Prof. Fábio Faversani, cujas colaborações acerca de nossa pesquisa realizadas durante congressos e eventos acadêmicos nos foram de grande preciosidade e de muita importância para a composição do presente estudo. Ao Prof. Jean-Michel Carrié, fica aqui minha gratidão. Gratidão esta por este ter me acolhido durante um estágio de pesquisa (entre 18 de março e 18 de abril de 2011) na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, possibilitando a realização de pesquisas na biblioteca Gernet-Glotz, assim como permitindo que frequentasse suas disciplinas e demais encontros acadêmicos. Para além disso, agradeço também as riquíssimas sugestões realizadas sobre nossa pesquisa e também sobre nossas intenções para o doutoramento. Agradeço ao assessor da FAPESP que, mesmo anonimamente, muito nos incentivou, direcionando nossa pesquisa e contribuindo com ricas considerações. Aos funcionários da FCHS, principalmente aos do Departamento de Pós- Graduação, que sempre mostraram-se solícitos e prontos para o nosso auxílio. A Sérgio Drummond Madureira Carvalho que, mesmo correndo contra o tempo, aceitou dedicar-se à árdua correção dessas numerosas páginas. Sem isso, este trabalho não seria o mesmo. Aos amigos Daniel de Figueiredo, Fabrício Trevisan, Profa. Dra. Nathalia Monseff Junqueira, Profa. Ms. Érica C.M. da Silva e Prof. Ms. André Luiz C. Tavares, muito obrigado. De formas diferentes, em inúmeros momentos, vocês estiveram ao meu lado. Seu incentivo, apoio e carinho foram de grande importância durante todo esse trajeto. A Profa. Ms. Helena Amália Papa, que desde a minha graduação esteve presente, sempre pronta a ajudar, a aconselhar e a ensinar. Com você, muito aprendi. Agradeço também pelo “ângulo morto”, sem ele, com certeza, não estaria aqui!!!! A Bruna Campos Gonçalves, amiga e companheira de jornada desde a Iniciação Científica. Agradeço a paciência e carinho que me proporcionou durante todo esse tempo, sempre estando disponível para acalmar minhas crises de ansiedade e de nervos, mesmo quando estas eram infindáveis. Obrigada por sua paciência e compreensão, pelas boas risadas e pelas aventuras em terras além-mar. Sem você, não teria sido a mesma coisa. A Dominique Monge de Souza Rodrigues, grande amiga e companheira de Principado. Muito obrigada pelas horas de conversas, pelas risadas e pelo apoio. Você se tornou uma amiga muito especial em minha vida. A minha família francana, Tia Cida e Marina, pessoas sem quais não sei o que teria feito. Vocês foram essenciais durante todos esses anos, me proporcionando não só um lugar onde ficar, mas amor, carinho e compreensão ilimitados. Vocês fizeram de sua casa, um segundo lar para mim, se transformaram em parte de minha família, e a isso, muito obrigada. Amo vocês! E por último, agradeço a minha família, sem tais pessoas, não teria chegado aonde me encontro. Vocês foram minha base, meu porto seguro. Aos meus pais Luís Carlos Pioli José e Maria de Fátima Fontoura Frazão José. Agradeço por acreditarem em minha capacidade e por toda a ajuda e compreensão durante essa fase de minha vida. Obrigada pelas palavras de apoio, pelo amor e pelo orgulho que sempre demonstraram sentir. Aos meus avós, Euclydes José e Ivone Pioli José, pessoas que sempre me incentivaram nos estudos, no trabalho e no meu desenvolvimento pessoal. Obrigada por estarem ao meu lado em todos os momentos, mesmo quando não entendiam o que estava acontecendo. Ao meu noivo, amigo e confidente Ronaldo Bernardi, companheiro de todos os momentos. A sua calma e paciência, além da confiança em minha capacidade, foram fundamentais para que eu chegasse aonde cheguei. Obrigada por estar sempre ao meu lado, por suportar minhas ausências e por apoiar meus sonhos. Tudo se tornou mais fácil com você ao meu lado. Aos meus padrinhos, Tio Antônio e Tia Ude, obrigada por acreditarem em minha capacidade e por investirem em meu potencial intelectual e pessoal. Vocês acreditaram em mim quando eu mesma não acreditava. Agradeço especialmente a minha madrinha, quem desde o início apoiou minha escolha de seguir os caminhos da História. A todos vocês, muito obrigada! Vocês foram minha base, meu alicerce, minha zona de conforto. De maneiras diversas, se fizeram presentes em minha vida, me deram exemplos, me tornaram quem eu sou. Souberam quando me apoiar, mas também quando me repreender. Se cheguei aonde estou hoje, devo grande parte a vocês. Obrigada JOSÉ, Natália Frazão. A Construção da Imagem do Imperador Augusto nas obras de Veléio Patérculo, Plutarco e Suetônio. 2011. 257f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. RESUMO A construção da imagem de Augusto é algo muito estudado pela historiografia atual. Obras como a Eneida de Virgílio e muitos escritos de Horácio, de escritores contemporâneos a Otávio Augusto, são usadas como referências desta propaganda política, militar, social e ideológica do Principado Romano. Notam-se, a partir de obras como estas, as construções em torno da imagem de Augusto e o uso desta, para legitimar o novo sistema político que surgia em Roma. Ainda, durante este processo de legitimação e propaganda, foi-nos possível perceber como se dá a utilização de imagens de grandes personagens públicos romanos, tais como Júlio César e Marco Antônio, e como é construída a representação de Augusto, como Princeps, em torno de semelhanças e diferenças destes personagens. Sendo assim, nosso objetivo nesta presente pesquisa é analisar como se criaram representações em torno da imagem de Augusto, a partir da oposição das figuras de Júlio César e Marco Antônio. Para tanto, selecionamos obras de períodos e gêneros narrativos distintos, a fim de, com isso, conseguirmos um entendimento mais amplo acerca do período analisado. Trata-se das obras de Veléio Patérculo, História Romana, duas biografias de Plutarco, César e Antônio, presentes na obra Vidas Paralelas, e duas biografias – O Divino Júlio César e O Divino Augusto – de Suetônio, presentes em sua obra A Vida dos Doze Césares. Palavras–chave: Principado Romano – Augusto – Princeps – Veléio Patérculo – Plutarco – Suetônio. JOSÉ, Natália Frazão. The Formation of the Emperor Augustus’ image in the works of Velleius Paterculus, Plutarcus and Suetonius. 2011. 257f. Dissertation (Master in History) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. ABSTRACT The formation of Augustus’ image is something much studied by the historiography nowadays. Works like the Aeneid by Virgil and many Horace’s writings, from contemporary writers in time of Octavius Augustus are used as references from these political, military, social and ideological of the Roman Principality. It is noticed, from works like these, formations around the image of Augustus and the usage of it to legitimate the new political as starting in Rome. Yet, during this process of legitimacy and spreading, it was possible to realize how the usage of images of great Roman political people works, such as Julius Caesar and MarK Antony, how the representation of Augustus is formed like Princeps, around the resemblance and difference of these characters. Thus, our aim in this present research is to analyze how representations around the image of Augustus were formed from the opposition of images of Juius Caesar and Mark Antony. Because of that, we selected works from periods and distinct narrative genres so we could understand better about the analyzed period. It is about Velleius Paterculus’ works. Roman History, two Plutarcus biographies, Caesar and Antony, present in the work Parallel Lives and two biographies – The Divine Julius Caesar and the Divine Augustus – by Suetonius, presented in his work The Twelve Caesars. Keywords: Roman Principality – Augustus – Princeps – Velleius Paterculus – Plutarcus – Suetonius. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 1. GÊNEROS LITERÁRIOS: A CARACTERIZAÇÃO DAS OBRAS DE VELÉIO, PLUTARCO E SUETÔNIO ................................................................ 27 1.1 Considerações preliminares ................................................................ 28 1.2 A produção velleiana: História Romana .............................................. 28 1.2.1 Os vários estilos de Veléio ............................................................. 31 1.2.1.1 O Breviarismo, o Panegírico e a Síntese Universal: a construção de um novo gênero ......................................................................... 31 1.2.2 A historiografia antiga como fonte: a documentação utilizada por Veléio e seu gênero .......................................................................................... 38 1.2.3. As edições posteriores e a recepção da obra Velleiana em tempos recentes .............................................................................................. 39 1.3 O gênero biográfico na Antiguidade: Plutarco e Suetônio ................ 42 1.3.1 A Biografia e a Segunda Sofística: o exemplo de Plutarco ............... 48 1.3. 2. A produção plutarquiana: as biografias comparadas ..................... 53 1.3.3 Plutarco através do tempo: as publicações e suas recepções ........ 56 1.4 As obras suetonianas: criação, publicação e repercussão ............... 59 1.4.1 Os escritos de Suetônio: as diversas obras de um biógrafo, erudito e enciclopedista ...................................................................................................... 60 1.4.2 As biografias imperiais: “As Vidas dos Doze Césares” ......................... 62 1.4.3 A documentação utilizada por Suetônio ............................................... 64 1.4.4. Os Doze Césares: publicação e repercussão ...................................... 66 2. ENTRE ENCONTROS E DESENCONTROS: AS VIDAS DE VELÉIO, PLUTARCO E SUETÔNIO E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ......... 68 2.1 Considerações preliminares ................................................................. 69 2.2 Veléio Patérculo: a história romana através do olhar de um militar.. 70 2.2.1 O contexto político de Patérculo: o governo de Tibério e o papel de Sejano .............................................................................................................. 75 2.3 Plutarco: a vida de um biógrafo greco-romano .................................. 81 2.4 Roma de Plutarco e Suetônio ............................................................. 86 2.5 Caio Suetônio Tranquilo e seus Doze Césares .................................. 93 3. OS CÉSARES DE VELÉIO, PLUTARCO E SUETÔNIO ............................... 102 3.1 Considerações preliminares ...................................................................... 103 3.2. Os relatos dos autores sobre Júlio César ............................................. 103 3.2.1. Forma de incorporação ao relato e referências genealógicas de Júlio César ....................................................................................................... 104 3.2.2. Aspectos físicos de César ............................................................... 107 3.2.3. Qualidades morais e intelectuais de Júlio César ............................ 108 4. OS ANTÔNIOS DE VELÉIO, PLUTARCO E SUETÔNIO .............................. 148 4.1. Considerações preliminares .............................................................. 149 4.2. Os relatos dos autores sobre Marco Antônio ................................... 149 4.2.1. Forma de incorporação no relato e referências genealógicas sobre Marco Antônio .......................................................................................... 150 4.2.2. Aspectos físicos de Marco Antônio ................................................ 151 4.2.3. Qualidades morais e intelectuais de Marco Antônio ....................... 152 5. VELÉIO, PLUTARCO E SUETÔNIO E AS CONSTRUÇÕES DA IMAGEM DE AGUSTO ATRAVÉS DE JÚLIO CÉSAR E MARCO ANTÔNIO .................. 181 5.1 Considerações preliminares ................................................................ 182 5.2 Os relatos dos autores sobre Augusto ............................................... 182 5.2.1 Forma de incorporação ao relato e referências genealógicas sobre Augusto ............................................................................................................ 183 5.2.2 Aspectos físicos de Augusto .......................................................... 189 5.2.3 Qualidades Morais e Intelectuais de Augusto ................................. 191 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 215 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 220 ANEXOS .............................................................................................................................. 242 Introdução 13 INTRODUÇÃO A construção da imagem de Augusto1 é algo muito estudado por pesquisadores como Pierre Grimal2, Susan Walker, Andrew Burnett3, Paul Zanker4 e Diane Favre5, entre outros. Obras de diferentes autores inseridos no arco cronológico do Principado Romano, tais como a Eneida de Vírgilio, ou mesmo as obras de Horácio, como as suas Epodes ou as Elegias de Propércio, entre muitas outras, servem de objeto para as pesquisas de tais estudiosos que pretendem enxergá-las como construções capazes de propagar determinadas concepções, elaboradas dentro de sociedades específicas e possuidoras de objetivos próprios. Desta forma, a diversidade de escritos sobre esse homem romano torna possível a existência de inúmeros Augustos, representações elaboradas em diversos períodos, frutos de criadores distintos. Durante nossa Iniciação Científica6, conseguimos perceber que certos autores, que pertencem ao período do Principado Romano, fazem uso das imagens de Júlio César e Marco Antônio para construírem representações em torno de Augusto, construções estas que são frutos de suas épocas e que possuem objetivos próprios. Quando Júlio César faleceu nos Idos de Março do ano de 44 a.C., o seu sobrinho neto, Caio Otávio, contava com pouco mais de dezoito anos. A princípio, como ressalta o pesquisador Zanker (1989, p. 31), não parecia ter grandes chances de vir a desempenhar um papel relevante no complexo jogo político romano. Sua jovem imagem aparecia, de certa forma, apagada. Até então, não se constituía em uma figura imponente, não possuía nenhuma reputação pública ou, ao menos, algum prestígio militar. Com efeito, como nos mostra Karl Galinsky (1996, p. 21), no campo da vida pública, Otávio não possuía nenhuma experiência, estatuto ou influência: era, de resto, muito jovem para tal. Para além disso, mesmo a sua 1 Trataremos este personagem por três nomes distintos: Otávio, quando se tratar de sua juventude decorrida no período republicano; Otaviano após a adoção deste por César; Augusto, após 27 a.C., quando este título lhe é incorporado. 2 Trata-se da obra Vírgílio e o Segundo Nascimento de Roma, cuja primeira publicação é datada de 1985. 3 Susan Walker e Andrew Burnett são os autores de uma obra, publicada em 1981, intitulada The Image of Augustus. 4 Em sua obra The Power of Imagens in the Age of Augustus, datada de 1988. 5 Em seus estudos intitulados The Urban Image of Augustan Rome, de 1996. 6 Acrescentamos que nosso estudo de Iniciação Científica intitulou-se As relações político-amorosas de Cleópatra VII com os militares romanos Júlio César e Marco Antônio: o testemunho de Plutarco, realizado com o financiamento da FAPESP (Bolsa de Iniciação Científica, processo nº07/5009-8), sob a orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho. Introdução 14 constituição física não lhe atribuía nenhuma atenção: era de estatura baixa, de corpo frágil e já então debilitado pelo assombro de algumas enfermidades. No campo militar, não havia desempenhado, até então, grandes funções. Segundo Erich Gruen (2005:34), o jovem filho de Átia e de Otávio teria acompanhado seu tio-avô Júlio César durante algumas campanhas na Hispânia, onde suas façanhas foram de pouca repercussão. Ainda, de acordo com o autor, Otávio, após participar de tais disputas, teria sido enviado a Apolônia, onde usufruiu de ensinamentos sobre as artes liberais e também sobre os artifícios da retórica, lá permanecendo até a morte de seu futuro pai adotivo. Caio Júlio César é um importante personagem político do cenário republicano romano. Nascera no seio de uma antiga família de patrícios, os Iulii Caesarii, por volta de 100 a.C7. Era herdeiro de Mário, opositor a Sila. Segundo Luciano Canfora (2002, p. 34), Júlio César desempenhou inúmeras funções: iniciou carreira militar desde muito jovem, passando a desempenhar diversos cargos e magistraturas no seio da administração romana. Com isso, ascendeu politicamente, militarmente e socialmente. Como nos mostra Zvi Yavetz (1983, p. 44), César demonstrou-se um excelente estrategista político, característica essa que pode ser exemplificada pela formação do Primeiro Triunvirato Romano, onde passou a figurar como um dos principais homens em meio à sociedade romana. Por conseguinte, é após a desagregação deste pacto governamental, que as ações de César aparecem com maior destaque. Nesse momento, sendo o único, com exceção ao senado, frente ao governo de Roma, inicia as bases do sistema político que, a partir de seu herdeiro, viria a ser chamado de Principado Romano. Neste cenário, também podemos encontrar a figuração de Marco Antônio. Este, como salientam Andrew Littot (1994, p. 13) e Sandra Marchetti (2004, p. 10), nascido por volta de 83 a.C., era filho de Marco Antônio Crépido, neto do orador Marco Antônio assassinado por Mário, em 86 a.C. Sua mãe, Júlia Antônia, era uma prima distante de Caio Júlio César. De acordo com Eleanor Huzar (1978, p. 23), a primeira função militar desempenhada por Antônio é sob o comando de Aulo Gabínio, em uma missão em terras sírias. A partir de então, tal personagem teria se destacado nos inúmeros campos de batalha, conquistando, por conseguinte, um lugar em meio às tropas de Caio Júlio César. 7 Autores antigos, como Veléio (História Romana II, 41) e Plutarco (César 69,1), colocam seu nascimento no mês de julho, entre os dias 12 e 13. O nome deste mês seria em sua homenagem. Introdução 15 Suas habilidades e competência nos assuntos militares o elevam a um papel de destaque dentro do exército o que faz com que, segundo John Ramsey (2003, p. 551), Antônio e César criem uma certa relação de amizade. O militar romano transforma-se em uma espécie de braço direito de César, passando a assisti-lo em inúmeros assuntos, participando e comandando muitas operações militares do general. Ao fazer parte do círculo mais íntimo de César, coloca-se em evidência perante a sociedade de seu tempo e, sob a influência do general, começa a adquirir seus primeiros cargos políticos, tais como a nomeação como cônsul8, magistratura que desempenhava no momento do assassinato de César e que o colocava em destaque, nesse momento, em meio à administração romana. Seus traços físicos, assim como sua força e virilidade, são elementos que aparecem evidenciados tanto nas descrições antigas, de autores romanos (tais como o próprio Plutarco), quanto na historiografia atual. Isso porque, desde o período em que viveu, parece-nos haver um certo senso comum sobre suas atribuições físicas, as quais sempre o colocam como um homem de bela presença. Senso este que perdurou por séculos, sendo assimilado e representado de inúmeras formas, chegando aos dias atuais. Em suma, no momento em que o jovem Otávio chega a Roma, este não apresentava nenhuma das características de Júlio César ou mesmo de Marco Antônio, homem em plena ascensão nos meios político e militar romano. Assim, Otávio terá que construir sua imagem pública e política de uma forma totalmente distinta. Se nada possuía no campo da intervenção na vida pública, do prestígio junto ao povo ou na aristocracia romana, do brilho militar ou nos desempenhos de atividades institucionais, fará uso de outros recursos da vida política: utilizará da legitimação através das heranças hereditárias e tradicionais romanas. Para Paulo Alberto (2004:34), o fato de Júlio César tê-lo adotado, meses antes de morrer, em seu testamento, conferia a Otávio, além da herança de seus espólios e bens materiais, o status de herdeiro político. Este pode ter sido um dos principais elementos para a ascensão política, social, econômica e militar daquele que agora passará a ser chamado de Caio Júlio César Otaviano. Por conseguinte, 8 Magistratura suprema estabelecida pelos comícios curiatos. Os cônsules, sempre eram eleitos dois, agiam depois de consultar o Senado, tendo o direito de convocá-lo e presidi-lo, assim como executar seus decretos e apresentar propostas de leis.Também podiam convocar comícios e presidi-los. Podiam concluir tratados com os inimigos em prévio acordo com o Senado; recebiam e apresentavam à instituição senatorial soberanos e embaixadores estrangeiros. No âmbito militar, podiam mobilizar legiões, fixar o contingente dos aliados, comandar o exército e dirigir as operações militares. Introdução 16 esta hereditariedade será explorada até as suas últimas consequências. Como salienta mais uma vez Zanker: “Quando Caio Otávio entrou na disputa por seu legado em 44 a.C., com a idade de dezoito anos, sua única vantagem era o nome de seu tio-avô e pai adotivo, César.” (1989, p. 33). Desta maneira, logo a princípio, além de adotar o nome de César, o já Otaviano passa a assumir o papel de filho que vinga o pai e que possui a intenção de dar continuidade em seus projetos. Este estatuto de filho de César e, na prática, de seu continuador, era, pois, em nossa visão, uma das questões de maior importância para sua sobrevivência política, sendo um dos elementos que possibilitou a ascensão política do já denominado Otaviano. Tal aspecto ainda é explicitado pela forma através da qual o jovem fez uso do nome que a adoção lhe conferiu: Caio Júlio César Otaviano. Após a sua instituição testamentária como filho de César, passa a omitir o cognome de Otaviano, passando a se autodenominar como Caio Júlio César, ou seja, o nome César que ascendia ao poder. Ao fazer uso de tal nome, dentro desses parâmetros, o herdeiro usufruía ainda mais da herança e da memória política e social que seu tio lhe deixara. Era um nome que transmitia todo seu poder e legitimação. Ainda, para a pesquisadora Anna J. Clark (2007, p. 206), após a deificação de César, em 42 a.C., o seu herdeiro passou a intitular-se como Diui Iulii filius, ou seja, filho do Divino Júlio, atribuindo-se, desta forma, elementos do âmbito mítico e religioso. Assim, a divinação de César constituiu-se em um dos fatores fundamentais para a ascensão política daquele que clamava ser seu herdeiro. Ciente da importância da divinização de César, Otaviano nunca deixou de promover o culto ao Divino Júlio, erguendo em sua homenagem templos, realizando jogos e promovendo ritos, inclusive em territórios estrangeiros. Para Werner Eck (1998, p. 06), assim como para Jean-Pierre Néraudau (1996, p. 42), ao utilizar-se do caráter divino de César, Otaviano pretendia demonstrar a imagem de pietas para com o pai e, simultaneamente, para com o deus. Ser legatário de César, além disso, trazia consigo uma implicação no plano cultural e simbólico. Colocava-o, para além de herdeiro de César, herdeiro dos Júlios, família que atestava possuir ligações ancestrais com Vênus e de Anquises9, 9 Na mitologia greco-romana, Anquises foi um príncipe troiano, primo do rei Príamo. Era tido como o amante mortal de Vênus (Afrodite para os gregos), e, com ela, gerou Enéias, sobrevivente da guerra de Tróia e antepassado de Rômulo e Remo, fundadores de Roma. Introdução 17 uma deusa e um herói. Este aspecto, de grande importância para a sociedade romana, também foi de muita utilidade para o jovem que pretendia ascender ao poder, uma vez que se colocava perante seus cidadãos como pertencente a uma linhagem nobre, a qual descendia dos deuses. Assim, o futuro Augusto irá explorar de forma decisiva sua ascendência mítica, a memória sobre a sua família, sobre seus antepassados. Toda essa construção cultural e ideológica10 será transmitida pelo herdeiro de César por meio de vários artífices. Dentre estes, podemos encontrar a construção de templos, de monumentos e de outros elementos arquitetônicos capazes de comunicar as ligações existentes entre o futuro governante e seu antepassado César, além de também divulgar a concepção do jovem César como descendente dos deuses e heróis. Por conseguinte, tais construções serão difundidas por outros meios, tais como as produções literárias, históricas e artísticas. Desta forma, constroem-se imagens acerca da figura de Otaviano, ao mesmo tempo que são criadas imagens em torno da figura de César e de Antônio. Estas mesmas acepções ideológicas serão utilizadas para legitimar o governo do herdeiro de César em toda Roma. Entendemos legitimar em seu sentido mais amplo, o de tornar legítimo, fazer reconhecer como autêntico um poder, um título, uma dada situação. Logo, concordamos com a visão apresentada por Ana Teresa Marques Gonçalves (1991, p. 83), que todo poder busca ser legítimo, ou seja, busca a adesão daqueles que o obedecem. O vocábulo poder assinala a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir ações e comportamentos. Desta forma, torna-se legítimo o poder que age com a adesão do corpo social ou, ao menos, com o apoio de determinados grupos sociais (GONÇALVES, 1991, p. 83). Contudo, na análise do poder, deve-se levar em consideração, como destaca Georges Balandier (1982:08), o plano simbólico e o imaginário, pois estes são fundamentais para a legitimação do governante e de sua autoridade. Um poder nunca é unicamente coercitivo. Ele só se mantém e se legitima perante a sociedade 10 Entendemos por ideologia um conjunto articulado de ideias, valores, opiniões, crenças, etc. que expressam e reforçam as relações que conferem unidade a um determinado grupo social (classe, partido político, seita religiosa, etc.), seja qual for o grau de consciência que disso tenham seus portadores; ou podemos definir, também, como o conjunto de ideias próprias de um grupo, de uma época, e que traduzem uma situação histórica. Tal conceito adéqua-se aos nossos estudos, uma vez que nossos autores são pertencentes a grupos sociais favorecidos e, por este motivo, podem partilhar de concepções bem próximas. Introdução 18 mediante a produção de imagens, pela manipulação de símbolos, logo, explorando- se o imaginário. Tais operações são realizadas de maneiras diversas, por meio de vários instrumentos e em meio a inúmeras instâncias. Portanto, torna-se possível notar que um poder não se coloca socialmente e politicamente através de uma força coercitiva. Para sua legitimação e, por conseguinte, aceitação por pelo menos parte da sociedade, também se faz necessário dispor de elementos ideológicos que justifiquem os atos e as opções de governo do detentor do poder (GONÇALVES, 1981, p. 84). Para isto, faz uso de um sistema de signos e emblemas, imagens e representações ideológicas que são transformados em fatores determinantes da concepção social. Ainda, este mesmo poder, em sua função legitimadora, reveste-se de várias roupagens, sendo compreendido, dessa maneira, a partir de inúmeros pontos de vista. É com base nos usos destes elementos, que Otaviano passa a colocar-se perante a sociedade romana, legitimando-se como herdeiro de César, usufruindo também destas construções para combater seus oponentes e demais homens que visavam o poder em Roma. Logo, neste momento, é que podemos encontrar a figura de Marco Antônio, homem que se encontrava em uma posição de evidência frente ao cenário político e militar romano após a morte de César. Nesse período, possuía a posição de cônsul, desempenhando um importante papel após o assassinato de César, quando, através de ações que pregavam a concórdia, impediu que novos conflitos civis irrompessem em Roma logo após a violenta cena ocorrida entre as paredes do Senado. Antônio possuía, nesta ocasião, certo destaque e, por esse motivo, esperava ocupar importantes cargos na administração romana. De acordo com Robert Gurval (1995, p. 23), com a chegada do herdeiro de César, os ânimos se exaltam. As disputas pelo poder acirram-se, assim como as contendas entre estes dois homens. Mesmo após a formação do Segundo Triunvirato, onde Otaviano, Antônio e Lépido passam a partilhar o governo de Roma e de suas províncias, as desavenças nunca ficaram de todo esquecidas. É nesse período, em meio aos conturbados elementos que passaram a compor a sociedade romana, que podemos encontrar a produção de construtos ideológicos que representavam de maneiras diversas as figuras de Júlio César, Marco Antônio e Otaviano. Também nesse momento, em nossa concepção, em concordância com a historiografia que aqui analisamos, Otaviano passa a usufruir de certos meios Introdução 19 propagandísticos e ideológicos tanto para legitimar sua posição frente à sociedade romana quanto para denegrir a imagem daquele que considerava como um de seus principais oponentes, Marco Antônio. Tais construções são utilizadas, inclusive durante a instauração da guerra civil entre estes dois homens. O que foi expresso e a forma de sua expressão foram determinados pela luta pelo poder. A concorrência entre os protagonistas do palco político transformou-se em fator decisivo na elaboração de imagens específicas, as quais foram transmitidas por meios artísticos, propagandísticos e culturais. É em meio a isto que podemos encontrar determinadas construções acerca das imagens de Júlio César, Marco Antônio e Augusto. Construções estas que intentam transmitir certos constructos ideológicos, onde, de acordo com Littot (1994, p. 15), César aparece como exemplo de bom governante, modelo a ser seguido e perpetuado por seu herdeiro, enquanto Antônio concentra em si os piores vícios e desvirtuamentos morais, características estas que devem ser afastadas de Roma. Logo, notamos nessas construções novos níveis de sentido, que surgem conforme nos aprofundamos na análise das obras de escritores deste período da História Romana. Tais escritos assimilaram e representaram esta vertente dos acontecimentos de inúmeras formas, com diversos objetivos. Contudo, faz-se necessário salientar que as representações acerca de tais personagens são bastante volumosas e, de certo modo, únicas. Existem inúmeros Júlios Césares, Marcos Antônios e Augustos. Cada representação, assim como nos mostra Roger Chartier (1990, p. 24), é fruto das concepções próprias de seus autores, de seus contextos históricos, de seus objetos e objetivos. Concordamos com a visão do autor supracitado, quando este interpreta as representações como construções que os grupos fazem sobre suas práticas. Sendo que essas práticas não são possíveis de serem percebidas em sua integridade plena, elas somente existem enquanto representações (1990, p. 32). Ao observar as inúmeras representações existentes sobre os personagens romanos, nas quais aqui nos concentramos em análises prévias, chamou-nos a atenção não apenas as diferenças, como também as similaridades existentes nas descrições de autores de períodos diversos do arco cronológico do Principado Romano. Partindo de tais considerações, a Dissertação aqui apresentada tem por finalidade analisar a construção da imagem de Augusto em obras de diferentes Introdução 20 autores, localizados em períodos distintos do Principado Romano. Em outras palavras, investigar como estas representações sobre este personagem foram construídas por esses autores, como se assemelham ou se distanciam. Contudo, fizemos a opção de analisar a construção da imagem de Augusto através das criações desses autores em torno de outros personagens da Roma Republicana, Júlio César e Marco Antônio. Ou seja, como estes são descritos de modo que suas características, virtudes e vícios aproximem-se ou se distanciem daquelas que, posteriormente, comporão a figura de Augusto. Assim, selecionamos as obras de três autores que se inserem no arco cronológico desse sistema político. São estes: Veléio Patérculo, Plutarco de Queronéia e Caio Suetônio Tranquilo. Os documentos utilizados nesta pesquisa consistem na obra de Veléio, História Romana – datada dos finais do século I a.C. e primeira metade do século I d.C –; na obra de Plutarco Vidas Paralelas – que contém as biografias de César e Antônio –, datadas dos séculos I e II d.C.; e nos trabalhos de Suetônio – O Divino César e O Divino Augusto – biografias inseridas em seus escritos do II século d.C., as quais receberam o título de Vida dos Doze Césares. Como já dito, a escolha de tais obras deu-se tanto pelas diferenças quanto pelas semelhanças, uma vez que, ao utilizarmos as obras de um militar do início do Principado e de dois biógrafos (sendo que um possui descêndia beociana) de momentos posteriores, podemos contrapor um autor de cada momento desse sistema de governo, conseguindo uma visão mais ampla do período como um todo. Além disso, abre-se a possibilidade de constatarmos como se dão as similaridades e as disparidades de opiniões acerca dos personagens descritos. Ainda, poderemos perceber como tais características são formadas e concebidas a partir do meio social em que cada autor estava inserido, através da peculiaridade de seus olhares e de suas formas de análise dos fatos. Adotar o conceito de discurso ao nos referir às documentações estudadas torna-se imprescíndivel para definir a própria maneira como as tratamos. Sobre esse conceito, adotamos a acepção elaborada por Helena Naganime Brandão (1995), que se refere aos discursos como operadores de conexões entre o nível extralínguístico e o linguístico. Para a autora, o discurso é o resultado do percurso que o indivíduo faz desde a elaboração mental daquilo que intenta expressar até a enunciação Introdução 21 desse conteúdo, o qual, por sua vez, é socialmente orientado (BRANDÃO, 1995, p. 10-12). Assim, fica evidente que em uma análise do documento que adote esta perspectiva, apenas o estudo linguístico interno não é capaz de abordar todas as características do discurso. É necessário que façamos uma articulação entre o processo linguístico com o social, com as intenções da escrita do texto. De acordo com Eni Pucinelli Orlandi (1999, p. 233), o conceito de discurso é um conceito teórico-metodológico usado para definir a maneira de se analisar um texto, a unidade de análise. Na análise do discurso, é necessário se levar em conta as condições de sua produção, interpretando as características discursivas que situam o texto em sua formação discursiva. Portanto, a autora supracitada mostra que a análise do discurso não pode prescindir jamais da análise do contexto histórico, político, social e cultural, pois as informações retiradas da documentação não têm sentido próprio se não forem referidos ao seu tempo, espaço e lugar de onde fala o autor. É em concordância com tais perspectivas que nos propomos a analisar os discursos de Veléio, Plutarco e Suetônio, compreendendo a exterioridade do que é anunciado. Em meio aos escritos desses três autores, pretendemos encontrar as semelhanças e diferenças nas descrições de Augusto. Tais discursos, orais ou escritos, são representativos de uma ideologia, de um imaginário social e político; são atores de difusão, de propagação. Transmitem a herança memorial, a reconstrução ou representação do passado a fim de produzir laços de confluência cultural, de acordo com os objetivos do próprio autor dentro de seu contexto e dos valores defendidos por este. São inseridos nestes discursos que, em nossa visão, podemos encontrar os resquícios de uma construção acerca da imagem de um governante, que por sua vez, responde às questões e necessidades próprias da época. Fazia-se necessário a legitimação do sistema político do Principado Romano que aparecia em solo romano, assim como a legitimação do homem que se colocava como seu detentor. Para nós, a construção da imagem de Augusto servirá também para a tentativa de legitimação de todo o sistema político do Principado Romano, não só de sua época, mas também em períodos posteriores, tais como aqueles em que se inserem nossos autores. Introdução 22 Logo, os relatos discursivos são fundamentais: criam, recriam e propagam; fundamentam ideais através de abordagens que prefiguram a imagem do Imperador, resgatam vínculos e estabelecem ligações entre o passado e o presente. Utilizam da tradição11 como fonte legitimadora do novo contexto político e social. Tradição esta que, em Roma, era representada pelo Mos Maiorum, o qual, segundo Pierre Grimal (1993, p. 54), significava os costumes ancestrais e os valores tradicionais romanos que permeavam a sociedade. É em detrimento de tais considerações que propomos a análise da imagem do Imperador Augusto passada pelas obras de Veléio, Plutarco e Suetônio, sempre as compreendendo como reflexos de uma criação imagética, representativa e ideológica própria de um dado momento da história da sociedade romana. Criação esta que não se restringe ao período do governo de Augusto, mas espalha-se pelos anos posteriores, sendo utilizada para explicar, exemplificar e justificar as transformações do sistema político do Principado Romano e a ascensão de novos Princeps. Trata-se ainda de percebermos como essa concepção e criação em torno de Augusto faz uso da tradição romana, do Mos Maiorum, de seus valores e crenças: é neste momento que se nota a figuração de César e Antônio, importantes personagens romanos, atores principais do período republicano. Estamos cientes das dificuldades apresentadas pela documentação escolhida. Trataremos de obras que são datadas de períodos cronológicos diferentes e que apresentam uma forma de escrita distinta. Veléio, um militar romano, escreve um Compendium da História Romana onde deixa claro, desde o início de sua fala, que tem por objetivo narrar toda a trajetória enfrentada pelos romanos, desde a fundação da cidade até o governo de Tibério, proporcionando aos seus leitores um panorama geral sobre a história que envolve a cidade de Roma. Por sua vez, Plutarco e Suetônio escrevem biografias. Porém, apesar de direcionarem seus escritos a um mesmo gênero, suas maneiras de relatar não se confundem. Plutarco, em suas Vidas Paralelas, ao narrar a vida de um homem grego ilustre, sempre narra a vida de um romano ilustre, tecendo, no final de suas biografias, breves comparações entre as vidas, os valores morais e os feitos de cada personagem. Suetônio se atém a descrever a vida de doze Imperadores Romanos, 11 Entendemos tradição em seu significado mais amplo, ou seja, que significa trazer, entregar, transmitir, ensinar. Logo, tradição é a transmissão de fatos culturais de um povo, é a sua memória cultural. È um conjunto de ideias, símbolos, práticas e representações que permeiam uma dada sociedade, sendo passados entre as gerações de seus habitantes. Introdução 23 iniciando com Júlio César, preocupando-se em narrar informações diversas, de âmbitos público e privado. Porém, como já demonstramos, nosso interesse em analisar obras de caráter narrativos distintos está na percepção de que nelas podemos encontrar, em tempos e em concepções diferentes, inúmeras semelhanças e dissemelhanças, que são representantes de toda uma construção ideológica imperial que se encontrava enraizada em solo romano: a criação de uma figura específica de Augusto, a edificação de sua imagem como bom governante, herdeiro de César, oponente de Antônio, defensor de Roma, criação esta que serviu também para legitimar todo o sistema político do Principado Romano. Além disso, trata-se de percebermos se os escritores citados, com origens diferentes e formas particulares de escrita, constroem ou não confluências culturais. Sendo que semelhanças e dissemelhanças são representantes de uma ideologia, de uma representação simbólica criada com o intuito de legitimar tanto o poder do governante quanto o novo sistema de governo que se colocava frente à sociedade romana. Acreditamos ainda que tais características das obras de Veléio, Plutarco e Suetônio podem exprimir uma memória. A memória, no sentido primário da expressão, é a presença do passado, a faculdade de reter e recordar este passado. Assim, a memória é uma construção psíquica e intelectual, a qual acarreta uma representação do passado de acordo com a pessoa que relembra, que nunca é somente aquela do indivíduo, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, político e cultural. Na perspectiva de Maurice Halbwachs (2006, p. 35), toda memória é “coletiva”. A questão central na obra de Halbwachs consiste na afirmação de que as lembranças podem se organizar de duas maneiras: agrupando-se em torno de uma determinada pessoa que as enxerga de seu próprio ponto de vista, ou distribuindo- se dentro de uma sociedade, grande ou pequena, da qual são imagens parciais. A partir desta concepção, existiram memórias individuais e memórias coletivas. No entanto, as duas memórias mantêm um diálogo constante, interpenetrando-se com frequência. Logo, o indivíduo participaria dos dois tipos de memória. Por conseguinte, a memória individual não está inteiramente isolada e fechada. No intuito de evocar o próprio passado, o indivíduo necessita recorrer às lembranças de outros indivíduos, transportando-se para pontos de referências determinados pela sociedade. Para este autor, a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no Introdução 24 interior de um grupo. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo grupo. Além de concepções sobre a memória, Halbwachs também assinala o papel da lembrança (2006, p. 43). Esta seria uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo. Portanto, podem-se criar representações do passado baseadas nas percepções de outra pessoa ou de uma sociedade. As lembranças podem ser simuladas quando entram em contato com as lembranças de outros. Por outro lado, afirma o autor, não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo este processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito (HALBWACHS, 2006, p. 78). Mais uma vez, o escritor demonstra que a memória individual não está isolada, encontra-se em constante relação com a memória coletiva e, com o que ele denomina com certa cautela, de memória histórica. Com essa perspectiva, concorda o historiador Peter Burke (2000, p. 69), o qual nos fala que a memória individual é condicionada pelo coletivo, por aquilo que denomina como memória coletiva e social. Em outras palavras, o meio político, social e cultural, direciona a forma de se recordar de algo e a maneira como esta recordação será utilizada. Partindo-se da premissa de que a memória social, como a individual, é seletiva, faz-se necessário identificar os princípios de seleção e observar como os mesmos variam de lugar para lugar, ou de um grupo para o outro, e como se transformam na passagem do tempo. “As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade” (BURKE, 2000, p. 73). Contudo, devemos ter em mente que a memória coletiva não é homogeneizante. Ela é uma somatória das memórias individuais existentes em uma sociedade e sobre determinados aspectos destas. É trabalhando dentro dessa perspectiva que abordaremos as obras e as opiniões passadas pelos nossos três autores: Veléio, Plutarco e Suetônio. Para além de suas próprias convicções, certas ideias foram transmitidas através do tempo, propagadas em meio à sociedade romana, atingindo pessoas diferentes, de origens diversas e ordens sociais distintas. Obviamente, as diferenças são aparentes em meio às obras dos autores aqui analisados; entretanto, há, ao menos, alguns pontos que se assemelham, convergem-se. Dentre tais pontos, podemos encontrar a idealização da imagem de Augusto, a maneira como este Imperador é relatado, o modo como sua lembrança é retratada, como a memória deste personagem é Introdução 25 construída. Ao apresentarem aspectos semelhantes nas representações sobre Augusto, Júlio César e Marco Antônio, podemos notar que, além de nossos autores compartilharem de certos elementos memoriais sobre tais homens, também se apresentam como detentores daquilo que chamamos de hibridismo cultural. Nesse quesito, concordamos mais uma vez com Burke (2003, p. 28), o qual nos fala que culturas distintas não permanecem imóveis. O que ele chama de práticas híbridas (2003, p. 28) – a fusão ou assimilação de práticas culturais semelhantes em culturas consideradas distintas – podem ser identificadas na religião, na música, na linguagem, nas festividades, nas artes, na literatura e, até mesmo nas questões ideológicas e nas práticas sociais. Logo, mesmo homens de sociedades consideradas distintas podem partilhar concepções semelhantes acerca de determinados pontos, sobre determinadas questões, tais como encontramos em Veléio, Plutarco e Suetônio. Apoiando-nos em todas as considerações acima arroladas, elaboramos nossa pesquisa. Para uma melhor sistematização do trabalho, dividimos esta Dissertação em cinco capítulos. Com o propósito de ajudar na compreensão da pesquisa, inserimos anexos, cuja visualização é guiada no decorrer dos capítulos. Em um número variado, os anexos englobam mapas, árvores genealógicas, fotos e imagens diversas, que auxiliam na observação e na compreensão de determinados dados. No primeiro capítulo, discorremos acerca das obras de nossos autores, concentrando-nos em suas características particulares e no gênero literário adotado em cada uma delas. Assim, para entendermos a particularidade de cada autor e de sua obra, abordarmos seus gêneros literários, seus principais elementos e expoentes, compreendendo, desta forma, a maneira como cada autor desenvolve suas narrativas. As questões relacionadas às especificidades de cada autor também deram início ao segundo capítulo, onde tratamos do contexto histórico, político, social e cultural dos períodos do arco cronológico de cada um deles, identificando, por conseguinte, à suas posições e ocupações, dentro e fora do centro político romano, para que, deste modo, possamos perceber se suas posições sociais e cargos exercidos influenciaram na maneira de relatar os fatos. Logo, nesse capítulo, nos apronfudaremos nas biografias dos autores Veléio Patérculo, Plutarco e Suetônio. Procuraremos nos focar em suas vidas, ressaltanto as sociedades em que estes se inserem. Ainda, trataremos de suas formações educacionais, as funções Introdução 26 desempenhadas dentro do Império, as famílias, as amizades e os laços sociais adquiridos no decorrer de suas vidas, com isso, tentamos distinguir como as concepções de suas épocas aparecem submersas em suas obras. Conforme Paul Veyne (1998), o autor é fruto de sua época, mesmo quando este tenta retratar personagens e períodos anteriores ao seu. O autor é subjetivo e essa subjetividade é expressa por toda sua obra, o que pode aparecer na maneira como relata determinados fatos ou certos aspectos da sociedade, ou na forma que passa uma ideologia presente na sociedade em que vive. No terceiro e no quarto capítulos, trataremos das concepções de nossos autores sobre as figuras de Júlio César e Marco Antônio. Nesse momento, faz-se necessário salientar que ao compreendermos como nossos autores descrevem esses dois personagens, conseguimos alcançar nosso objetivo: perceber como Veléio, Plutarco e Suetônio constroem a imagem do Imperador Augusto e como, nestas construções, as figuras de Júlio César e Marco Antônio são utilizadas. Para tanto, nesses capítulos realizamos uma análise pormenorizada de nossa documentação, destacando as semelhanças e diferenças entre as narrações de nossos autores. No quinto, e último capítulo, trataremos propriamente da construção da imagem de Augusto nas obras de nossos autores. Aqui, além de percebermos como são construídas as representações sobre este imperador, podemos perceber também, após as análises dos capítulos anteriores, como os autores fazem uso das figuras de Júlio César e Marco Antônio para criarem a de Augusto. Assim, mais uma vez, realizamos uma descrição pormenorizada, salientando os pontos em comum e os díspares nas obras velleiana, plutarqueana e suetoniana. Por fim, faremos as considerações finais sobre a investigação proposta, pretendendo, desta maneira, colocar as conclusões a que chegamos no decorrer de nossa pesquisa histórica. Capítulo 1. Gêneros Literários... 28 1. GÊNEROS LITERÁRIOS: A CARACTERIZAÇÃO DAS OBRAS DE VELÉIO, PLUTARCO E SUETÔNIO 1.1. Considerações preliminares Como procuramos destacar em nossas considerações anteriores, cada autor é pertencente a períodos distintos dentro daquilo que entendemos como Principado Romano, transformando-se, desta maneira, em expoentes de um contexto cultural, político e social, além de transmitirem seus próprios valores e opiniões acerca dos assuntos que abordam. O meio social e as funções desempenhadas pelos escritores também direcionam seus relatos, os quais possuem objetos e objetivos próprios, condizentes com aquilo que seu criador pretende passar. Os moldes sobre os quais as obras serão criadas, seus estilos literários e gêneros, igualmente, são fatores representativos da concepção dos autores, assim como dos ideais presentes em suas épocas e sociedades. Ao escolher seu estilo de escrita, o autor opta pela forma através da qual pretende transmitir o seu relato, assim como também o direciona a um determinado público. Logo, para que possamos compreender as descrições de Veléio Patérculo (séculos I a.C. a II d.C.), Plutarco de Queronéia (séculos I e II d.C) e Caio Suetônio Tranquilo (séculos I e II d.C), faz-se necessário que também entendamos os estilos literários que cada autor adota, suas principais características, modelos e objetivos. Com base nisso, propomos, neste capítulo, a análise do gênero biográfico com referência a Plutarco e Suetônio, além dos vários estilos que são atribuídos a Veléio. Por conseguinte, já tendo relacionado os gêneros de cada autor, nos ateremos às características principais de suas obras, suas repercussões e posteriores publicações. 1.2 A produção velleiana: História Romana Não sabemos ao certo a data em que Veléio escreveu a única obra com a qual hoje temos contato. Para muitos pesquisadores, isso ocorreu no intervalo temporal sobre o qual não temos substanciais notícias em relação à carreira política do autor, ou seja, de 14 d.C. até o possível ano de sua morte, em 31 d.C. Capítulo 1. Gêneros Literários... 29 Para G. V. Sumner (1970, p. 284) e Anthony John Woodman (1975, p. 275), ao dedicar a obra a Marco Vinício1, o próprio autor nos dá certa luz sobre a data em que produz seu relato. Vinício inicia seu consulado em janeiro do ano 30 d.C., sendo assim, Veléio teria começado a produzir no momento de sua nomeação, no verão de 29 d.C. Esta suposição pode ser corroborada pelos dados que o próprio autor relata, os quais terminam com a morte de Lívia, mãe de Tibério, ocorrida em 29 d.C.: A amargura destes anos aumentou ao perder sua mãe, uma mulher excelente e mais parecida em tudo com os deuses do que com os homens, cujo poder ninguém sentiu, exceto quando aliviava um perigo e aumentava sua dignidade. (Veléio Patérculo, História Romana II, 130) Além disso, Veléio sempre menciona a pressa da escrita: “Apesar do rápido avanço de nossa narrativa, não devemos deixar de mencionar este homem.” Veléio Patérculo, História Romana II, 108). Tal fato, segundo alguns pesquisadores, condiz com a suposição de que sua obra teria sido elaborada em um curto espaço de tempo. Já na concepção de Raymond Starr (1981, p. 171), tais argumentos não provam que a escrita da obra ocorreu entre 29 e 30 d.C.. De acordo com este pesquisador, o autor teria inserido a dedicatória após a obra já estar completa, ou seja, após a nomeação. Nesta perspectiva, a obra teria sido escrita anos antes de 29 d.C. e acrescida de informações pertencentes a este período após estar finalizada. Em nossa análise da documentação, notamos que Veléio é muito elogioso ao tratar de Tibério. O futuro Imperador é tratado como um homem valoroso, predestinado ao governo de Roma. Em suas palavras: “Escuta-me agora, Marco Vinício, de um grande homem tanto na guerra quanto em tempos de paz (...)”. (História Romana II, 113). Ou ainda: “Que atitude irrelevante para se relatar, mas que expressão máxima de uma virtude forte e autêntica e vantajosa, experiência muito agradável e incomparável na humanidade”. (Veléio Patérculo, História Romana II, 114). 1 Mesmo estando o prefácio original perdido, Veléio sempre nos recorda em meio a seus escritos que a obra é dedicada a Marco Vinício. Para a historiografia aqui analisada, tal dedicação tem seu quê de mistério, uma vez que as informações encontradas sobre a relação entre o autor e Vinício são restritas. Sabemos que este intercedeu pelo autor nas eleições de 14 d.C. para Pretores. Esta pode ser uma das razões da obra ter-lhe sido dedicada. Capítulo 1. Gêneros Literários... 30 Os elogios a Tibério podem ser vistos no decorrer de grande parte de História Romana II. A vida do futuro governante, assim como a trajetória do próprio autor, é mesclada à história coletiva. O mesmo acontece com a vida de outros personagens que aparecem em sua narrativa, tais como Júlio César e Augusto. Em meio aos acontecimentos da sociedade romana, Veléio conta-nos sobre as suas instruções, carreiras militar e política. Relata também a escolha de Augusto pelo seu predecessor, assinalando que o Imperador não teve dúvidas ao optar por Tibério como seu sucessor, características que podemos notar no trecho abaixo: Porém, o destino, que havia arrebatado as esperanças de um grande homem, havia então devolvido sua proteção ao estado2, porque antes da morte dos irmãos, o retorno de Tibério Nero de Rodes, durante o consulado de teu pai Plúbio Vinício3, havia enchido de felicidade sua pátria. Augusto César não hesitou mais, pois não teria que buscar a quem escolher, mas escolher o mais brilhante (...). (Veléio Patérculo, História Romana II, 103) Nota-se que, em meio aos elogios a Tibério, também podemos entrever as opiniões do escritor a respeito de Augusto, o predecessor e pai adotivo do novo Princeps. As figuras de Augusto e de Tibério são exaltadas, assinalando um estilo semelhante aos dos escritores que propagandearam a imagem de Augusto em períodos anteriores. Portanto, podemos interpretar os elogios a Tibério como sendo uma prática adulatória4 e, até mesmo, propagandista, o que nos leva a crer que Veléio escrevia, senão sob o consentimento desse Imperador, ao menos o fez durante o seu governo. Também em meio aos seus escritos, podemos encontrar volumosas referências a Sejano5 e à sua ascensão dentro da política imperial. É necessário explicitar que, em nossa visão, isto não quer dizer que Veléio estava em concordância com os atos de traição que tal personagem viria a praticar, anos mais tarde, contra o poder imperial tiberiano. Tal fato apenas assinala que, na época em 2 Termos de cunhagem moderna como Estado, Pátria e Nação podem ser encontrados em meio às traduções de que fazemos uso. Sabemos que tais termos podem não ser aplicados, de forma integral, na análise das sociedades antigas, o que nos leva a crer que estes, pelos menos em parte, não foram utilizados pelo autor no ato da escrita,sendo frutos das inúmeras traduções e edições do documento velleiano. 3 Públio Vinício até 1 de julho do ano 2 d.C.. Tibério retornou a Roma um pouco antes do falecimento de Lúcio César. 4 Referências sobre práticas adulatórias são encontradas durante o governo de vários Imperadores, principalmente em meio à literatura. 5 Falaremos deste no decorrer do Segundo Capítulo. Capítulo 1. Gêneros Literários... 31 que Veléio redigia sua obra, Sejano mostrava ser um importante personagem dentro do jogo político romano. Entretanto, todos os fatores aqui agregados não se fazem suficientes para que determinemos a data precisa da construção do relato de Veléio Patérculo. A única informação que sua descrição nos passa é o contexto histórico em que se insere sua narração, sem limitá-la em dias, meses ou anos. 1.2.1 Os vários estilos de Veléio Relacionar a obra velleiana com a tradição escrita da História em Roma não pode ser denominada como uma simples empreitada. O relato conciso, centrado em uma seleção subjetiva de descrições que enfatizam o papel dos personagens em meio aos acontecimentos políticos, além da citação, em meio aos escritos, de documentações inseridas em diferentes gêneros, levam os pesquisadores a catalogarem História Romana de inúmeras formas. Para Ernst Bickel (1960, p. 423) e Rafael da Costa Campos (2010, p. 93), o estilo velleiano reflete a receptividade do autor para com vários estilos literários, demonstrando um peculiar padrão biográfico, uma vez que Veléio se centrava, na maioria das vezes, nas ações de determinados homens romanos. Ainda, sua obra agregaria aspectos de outros estilos, tais como a retórica, o panegírico e o breviarismo, todos presentes em Roma do século I d.C. e, na maioria das vezes, diferentes em seus cernes. Desta forma, tratar-se-ia de uma obra híbrida, com vários padrões de escrita. 1.2.1.1 O Breviarismo, o Panegírico e a Síntese Universal: a construção de um novo gênero Como já salientamos no decorrer deste capítulo, existe certo nível de dificuldade em estabelecer diferenças entre gêneros na Antiguidade romana. É certo que cada gênero possui as suas especificidades. No entanto, o contato permanente entre estes e as múltiplas relações estabelecidas entre os homens dos saberes e, por sua vez, entre estes e seus públicos, permitiam trocas, apropriações, reapropriações e recriações literárias. Toda essa situação favorecia a criação de Capítulo 1. Gêneros Literários... 32 obras com marcas predominantes, mas permeadas por um, dois ou, até mesmo, mais gêneros. Esse é o caso de Veléio Patérculo. A multiplicidade de estilos presentes na obra velleiana atribui a ela caracteres particulares. Logo, para entender o autor e aquilo que ele descreve, faz-se necessário que compreendamos as diversas tradições literárias presentes em seu relato, para que, desta maneira, possamos compreendê-lo da melhor forma possível. Uma das marcas predominantes na criação de Veléio é a sua aproximação com a escrita breviária. Os Breviários tornaram-se famosos, principalmente, entre os séculos III e IV d.C., em outras palavras, durante a Antiguidade Tardia. No entanto, é possível encontrar suas raízes em séculos anteriores, no início do Império, quando a anexação de terras ao território romano atingiu novas proporções e a aristocracia passou a inserir membros provincianos. De acordo com Gian Bagio Conte (1994, p. 52), o estilo de escrita breviarista foi criado com a intenção de preencher as lacunas de conhecimento que muitos romanos e provincianos possuíam sobre a História de Roma. Ainda, sua escrita fácil e concisa possibilitaria a leitura por parte de diversos segmentos sociais, sendo estes embebidos na tradição cultural romana ou não. Tratava-se de uma forma mais rápida e fácil de apreender os trajetos históricos essenciais do Império Romano6. Ainda, como ressalvam Arnaldo Momigliano (1953, p. 53) e Gonçalves (2005, p. 01), os breviários também atendiam a certos interesses dos novos imperadores, os quais se preocupavam em conhecer, de maneira rápida, os feitos, glórias e insucessos de seus antecessores. A escrita breviária seria a responsável por condensar, por assim dizer, anos de História em poucas páginas, ressaltando os principais eventos, destacando personagens e sintetizando grandes obras. Era fruto das necessidades de seu tempo, objeto de conhecimento para os novos habitantes do Império, assim como para aqueles que não tiveram a oportunidade de contato com as extensas obras. Por seu relato conciso, em poucas linhas, sobressaltando os eventos principais, Veléio se encaixaria dentro de certos parâmetros do Breviário. Entretanto, sua única obra expressa outras características, expoentes de outros gêneros. Dentre essas, podemos encontrar certas similaridades com a escrita panegírica. 6 É importante ressaltar que é a utilização de diversos documentos na formulação da obra que diferencia um Breviário ou Compêndio de um Epitome ou Resumo, pois este último, como o próprio nome indica, é apenas um breve resumo de uma só obra mais extensa. Capítulo 1. Gêneros Literários... 33 O nome panegírico é fruto da linguagem retórica grega, sendo designado, originalmente, como um discurso de caráter encomiástico ou laudatório, normalmente pronunciado em assembleias solenes ou em reuniões festivas7. Para Gilvan Ventura da Silva (2006, p. 385): Na sua origem, os panegíricos eram discursos pronunciados, na Grécia, por ocasião de determinadas assembléias solenes, como as que tinham lugar durante as Panatenaicas e os Jogos Olímpicos. A partir de 380 a.C., com o discurso de Isócrates em louvor a Atenas, os panegíricos convertem-se em orações laudatórias destinadas a celebrar a glória das cidades ou a de indivíduos excepcionais. Logo, tais discursos possuíam suas bases na oratória e na retórica, sendo, na maioria das vezes, pronunciados pelos principais expoentes de tais movimentos. Transpassado para a cultura romana, esse gênero também passa a denominar um modelo discursivo elaborado para homenagear a vida de uma pessoa ilustre, ou, como mostra Margarida Maria de Carvalho (2010, p. 24), para criticá-la ou denegri-la. Com o tempo, devido à importância denotada à retórica e à oratória, oficializa-se como gênero literário, adquirindo contornos particulares, passando a ser empregado em uma educação mais avançada, voltada para a formação aristocrática. Como consequência, o Panegírico passa a ser utilizado por determinados grupos sociais, obtendo, neste meio, funções mais específicas, direcionadas a ações de cunho político. Durante o período imperial, segundo a pesquisadora Susanna Braund (1998, p. 55), os panegíricos eram utilizados para fundamentar a política imperial, tendo, para isto, como principal característica o elogio aos imperadores através da laudatio. De tal forma, os escritos panegíricos transformaram-se em importantes instrumentos propagandísticos, sendo pronunciados, por exemplo, após campanhas militares vitoriosas ou na ocasião de ascensão ao poder imperial. Armas políticas e ideológicas, os panegíricos espalharam-se pelo Império, revelando um exponencial aumento das produções. Muitos discursos podiam ser previamente encomendados aos melhores oradores8, que já possuíam certas metas a serem cumpridas por seu relato, tais como a consolidação da ideologia imperial: 7 A palavra Panegírico descende do termo grego , o qual significaria “reunião”. 8 Muitas vezes, o orador chegava a ser indicado pelo próprio Imperador, o que pode significar que a maioria dos discursos teria o seu conteúdo orientado por declarações políticas direcionadas pelo governante. Capítulo 1. Gêneros Literários... 34 Os panegiristas buscavam fundamentar estes ideais através de abordagens que prefiguram a imagem do homenageado em questão, por meio do resgate de vínculos que estabelecem ligações entre o presente e o passado, utilizando-se do ideal da tradição enquanto fonte legitimadora deste novo contexto político. (FRANCHI, 2007:101) Nos primórdios dos anos imperiais, o discurso panegírico alicerçava o novo contexto político que se colocava a frente da sociedade romana. Criava suas bases históricas, buscava a sua tradição e a hereditariedade. Em suas linhas, Imperadores encontravam seus grandes ancestrais, antepassados célebres, defensores de Roma; origens dos novos governantes, de seu poder, de sua autoridade e sabedoria. As inúmeras obras panegíricas inseriam-se em todos os níveis de relações sociais, mesclando-se com outros gêneros literários, criando formas diferenciadas de escrita, de produção literária. O estilo laudatório adentrou a outros campos de saber, como se faz possível notar na obra velleiana. Veléio Patérculo não pode ser denominado, propriamente, como um panegirista. No entanto, para alguns pesquisadores como Bickel (1960, p. 231), sua obra possui certas características panegíricas, principalmente quando trata das figuras de Augusto e Tibério. Ao tratar de tais personagens, o autor aparenta tons adulatórios, sempre mostrando o primeiro como um sábio governante e o segundo como seu herdeiro. Tais características também se aplicariam aos relatos velleianos sobre Sejano, importante personagem da época, homem que é valorizado no decorrer da obra. Mostra-se, até então, que a criação de Veléio apresenta características de dois gêneros de escrita diferentes: o breviário e o panegírico. Entretanto, estas não são as últimas. O já citado estudioso Bickel (1960, p. 423), nota, ainda, um peculiar padrão biográfico em meio aos escritos velleianos. Estes estariam exemplificados a partir da importância dada pelo autor a certos personagens, relatando suas ações individuais em detrimento dos aspectos gerais dos acontecimentos. Desta forma, o caráter e a personalidade dos biografados compõem a essência dos relatos, celebrados pelos cargos, triunfos, obituários e vínculos ancestrais; pontos constitutivos de uma escrita biográfica9. 9 Sobre este gênero, tratamos no início deste mesmo capítulo. Capítulo 1. Gêneros Literários... 35 Assim, podemos notar em História Romana, de Patérculo, caracteres múltiplos, pertencentes a diferentes estilos de escrita vigentes na sociedade em que o autor se insere. Este hibridismo estilístico, por assim dizer, teria sido o responsável por atribuir à obra velleiana certo descrédito entre historiadores de séculos distintos que, ao compararem seus relatos com os de outros autores do mesmo período, tais como Tito Lívio e Salústio10, caracterizaram-no como algo anedótico e, por vezes, dissonante. No entanto, é a partir de meados do século XX, com novos olhares, objetos e métodos de pesquisa trazidos ao campo histórico pela revolução na historiografia, que a criação velleiana passa a aderir a um novo sentido, uma nova significação. Woodman (1975, p. 285) e Ronald Syme (1978, p. 45), em meio a seus profusos estudos, passam a enxergar em Veléio peculiaridades que lhe atribuíam uma nova especificidade, uma característica que se destacava perante as outras. A sua escrita deixou de ser somente uma combinação de estilos. Passou a ser analisada como tendo contornos próprios, seletivos, marcados por interesses especiais e sobrecarregados de intenções. Logo, a reabilitação de História Romana como obra histórica começou a basear-se na constatação da presença de características predominantes de uma tradição literária específica, comportando novos estudos e novos pesquisadores. De acordo com tais pesquisadores, o escritor latino propõe-se a escrever uma espécie de história universal. As histórias universais em Roma pretendem, com base no relato mais abrangente, registrar toda a história desta sociedade. Têm o objetivo de registrar toda a história do mundo, ou pelo menos toda a história do mundo romano, que, para os romanos ou os que tomam seu partido, confunde-se com a história de Roma. A particularidade de Veléio notada por seus novos estudiosos estaria em sua tentativa de criar uma história universal com ênfase total na brevidade, combinação que é única em sua obra. Em outras palavras, ele escreveu uma breve história universal, na qual incluiu outros povos, outras regiões além das romanas. Nesta maneira peculiar de escrever, o autor teria sumarizado os eventos de Sociedades Antigas (Grécia e Roma) paralelamente dispostos em assuntos romanos 10 Tito Lívio viveu entre 59 a.C. e 17 d.C. e Salústio, entre 86 a.C. e 35 d.C. Capítulo 1. Gêneros Literários... 36 e não romanos, apresentando determinadas técnicas estilísticas presentes no desenvolvimento de seu texto. Isto é, argumentado por meio de quatro proposições fundamentais: a) um alinhamento sincronizado da história de gregos e romanos; b) a disposição cronológica das personagens em relação à localidade na medida em que aparecem na narrativa; c) o tratamento relativamente equilibrado de uma documentação romana e não romana, embora Roma predomine na segunda parte e; d) uma discussão de assuntos diversos, cujo alcance mostra-se bem mais amplo do que uma típica História Romana, ascendendo a um gênero de história “Universal.” (SYME, 1978, p. 167). Desta maneira, a brevidade do relato de Veléio não é fruto da limitação temporal da escrita, ou pura assimilação de aspectos literários de outros movimentos, tais como o breviarismo. Seria muito mais, uma escolha do próprio autor, o qual é direcionado por sua sociedade, por seu período histórico e político. O relato escrito de maneira breve e concisa, prometido pelas palavras do autor latino: “Nós, recordando o que temos dito, presenteamos frente aos olhos e às mentes de nossos leitores, uma imagem geral do Principado.” (História Romana II, 89), não é algo a se estranhar neste período, podendo, como demonstra Michael Von Albrecht (1997, p. 1061), ser uma tendência da literatura tiberiana, sendo que esta se apresenta em outras obras, anteriores e posteriores a Veléio. Segundo Woodman: (…) a brevidade parece ter sido igualmente popular no período em que o próprio Veléio escrevia. Nós já observarmos seus contemporâneos Vitrúvio e Valério Máximo, ambos escritores de compêndios e de obras que se referem explicitamente à brevidade. (WOODMAN, 1975, p. 286) Em concordância com tal acepção sobre a obra velleiana, ainda podemos encontrar Raymond Starr que, em suas palavras: “A conclusão deve ser que a história de Veléio tem um âmbito mais vasto que a típica história romana, a qual poderia ser mais exatamente denominada como uma história universal.” (1981, p. 165). O autor chega a ir mais longe na classificação do gênero literário de Veléio Patérculo. Segundo ele, ao usar elementos breviários, panegíricos e biográficos, o romano cria um novo gênero de escrita, o qual pode ser chamado de modelo transcursus (1981, p. 166). Neste, a história é contada a partir da ressalva de seus Capítulo 1. Gêneros Literários... 37 pontos principais, ou seja, apenas os acontecimentos de maior importância são narrados pelo autor. Como podemos notar em suas próprias palavras: A forma em que se compõe nosso relato nos permite narrar a batalha de Farsália e aquele crudelíssimo dia para os romanos, a quantidade de sangue derramada pelos dois exércitos, a colisão entre os dois príncipes do Estado (...). (VELÉIO PATÉRCULO, História Romana II, 52.) A obra de Veléio consistiria no primeiro trabalho latino inserido no modelo transcursus de que temos notícias. Seria originário de características próprias de seu tempo, de apropriações, assimilações e representações entre as diversas maneiras de escrita presentes na sociedade romana dos séculos I a.C. e I d.C. Assim, se constituiria em uma modalidade de escrita híbrida e, por isso mesmo, nova, singular. Esse hibridismo da obra velleiana, permite que encontremos em suas linhas inúmeras facetas, objetos e objetivos, tais como a construção da imagem de Augusto. Ainda, a maneira escolhida por Patérculo de redigir sua história pode estar relacionada com o público que pretendia atingir. Starr (1981, p. 173) enumera três prováveis grupos de leitores. O primeiro, por motivos diversos, teria tido preferência pela brevidade de seus escritos, uma vez que eles descrevem de maneira sucinta a história universal permeada pelos principais acontecimentos. O segundo grupo seria constituído de leitores que possuíam pouca ou nenhuma educação formal, mas que gostariam de ter ao menos um conhecimento geral sobre História. A escrita em termos mais fáceis e curtos de Veléio seria a melhor forma deste conhecimento ser adquirido por estas pessoas. O terceiro e último grupo seria formado por jovens estudantes, os quais usariam, no início de sua educação, a obra velleiana para obter uma visão rápida e útil sobre a história universal e seus principais personagens, os quais poderiam ser usados como exemplos em suas aulas de Retórica. Logo, podemos notar que os motivos para a forma específica de escrita de Veléio são muitos e abarcam vários aspectos da sociedade em que este vivia. Com sua peculiar obra, o autor poderia, além da tentativa de agraciar e agradar determinados personagens políticos, estar tentando responder às necessidades que seu próprio tempo colocava em sua frente, tais como a legitimação do sistema político do Principado Romano, a qual realiza através das figuras dos imperadores Augusto e Tibério, além de também fazer uso da de Caio Júlio César. Capítulo 1. Gêneros Literários... 38 Exatamente por possuir tais características que a obra velleiana nos atraiu. Veléio Patérculo viveu em um período de transição da sociedade romana. Vivenciou parte da época de Augusto, passando pelo governo de Tibério, bem como por sua fase da adoção. Ao elogiar este último, evidencia as características que tinha em comum com seu predecessor, o primeiro Princeps, um bom Princeps. Tal caráter de sua obra é pouco evidenciado e muito pouco analisado pelos pesquisadores atuais. Em nossa opinião, isso se dá por dois motivos: primeiro, a maneira peculiar de sua escrita, de forma concisa, direta e rápida, a qual pode ser vista como algo incompleto, inacabado. Em segundo lugar, a obra velleiana foi elaborada durante o Império tiberiano e está repleta de elogios e menções a este governante. Sendo assim, pouco se analisa os elogios feitos a Augusto, a idealização de tal Imperador, em meio às descrições adulatórias de seu sucessor. Tal análise será um de nossos objetivos, o qual tentaremos atingir no decorrer de nossa Dissertação. 1.2.2 A historiografia antiga como fonte: a documentação utilizada por Veléio e seu gênero Em meio aos seus escritos, Veléio menciona, ocasionalmente, alguns documentos de que faz uso para basear os acontecimentos que relata. Muitos, atualmente, não nos são conhecidos ou até conhecemos, através de citações de outros autores, porém eles não sobreviveram até os dias de hoje, como são os casos dos Anais de Emílio Sura: “Emilio Sura expõe em seus Anais do povo romano o seguinte: os soberanos da Assíria dominaram todas as nações; depois os medos, mais tarde os persas, e, depois destes, os macedônios.” (VELÉIO PATÉRCULO, História Romana I, 6.) Ainda, podemos encontrar referências aos Anais de Quinto Hortênsio Hórtalo: “Alguns autores e, de maneira muito brilhante, Quinto Hortênsio em seus Anais deram a conhecer suas virtudes.” (História Romana II, 16). Entretanto, Patérculo também se refere a documentos comuns na historiografia antiga. Para compor seu relato sobre a fundação de Cápua, o autor utiliza a obra Origenes, de Catão: Depois, alguns dizem que neste momento os etruscos fundaram Cápua e Nola, há quase oitocentos e trinta anos. Estaria de acordo com eles, mas quanto difere da visão de Marco Catão! Este chega a dizer que Cápua foi fundada pelos os etruscos e depois Nola; porém Capítulo 1. Gêneros Literários... 39 Cápua existia há cerca de duzentos e sessenta anos quando os romanos a conquistaram. (VELÉIO PATÉRCULO, História Romana I, 7). O autor também aparenta fazer uso de alguns testemunhos de Quinto Fábio Pictor sobre os primeiros anos de Roma, os quais são notados por seus tradutores em meio a seus escritos, inclusive por Maria Asunción Sanchez Manzano (2001, p. 12). Veléio teria baseado sua produção, igualmente, em documentos biográficos, panegíricos, arquivos pessoais de famílias romanas de destaque, documentos oficiais11, tais como a Acta Senatus e a Acta Pública, e na história oral, sendo este seu próprio testemunho ou de terceiros que vivenciaram os acontecimentos. É possível notar certa semelhança em dados descritos por Veléio e aqueles relatados por Apiano e Tito Lívio, apesar de esses autores não serem citados no corpo da obra. A coincidência com Apiano teria explicação no fato de ambos os autores terem usufruído de uma mesma fonte: Asínio Polião12. O mesmo poderia ocorrer ao se tratar de Tito Lívio, em sua obra Periochae, que apresenta certas analogias com a obra velleiana. Percebe-se que Patérculo cita documentações de gêneros variáveis, o que abre espaço para a discussão a respeito do gênero em que sua própria obra se encaixa, como já salientamos acima. 1.2.3. As edições posteriores e a recepção da obra Velleiana em tempos recentes Concordamos com as análises de Starr (1981, p. 172) e de Manzano (2001, p. 20) quando estes apontam que é bem provável que a obra de Veléio tenha tido alguma repercussão durante seu próprio tempo. A historiografia contemporânea levanta, ainda, a hipótese que a dedicação a Marco Vinício teria sido a causa da morte de seu autor, o que nos mostra que História Romana fez parte da lista de leituras de pelo menos alguns de seus contemporâneos. Para David Potter, o alcance da obra velleiana teria sido um pouco mais amplo: 11 O autor parece ter utilizado os Commentarii de Augusto juntamente com a Res Gestae na composição dos relatos sobre a vida deste Imperador e de seu Principado. 12 Este autor romano também é muito referenciado na obra suetoniana. De acordo com Antônio da Silveira Mendonça (2007, p. 37), este homem era um militar que serviu sob o comando de César, participando, inclusive das campanhas nas Gálias e na Bretanha. De suas inúmeras obras, citadas tanto por Veléio quanto por Suetônio, nada nos chegou aos dias de hoje. Capítulo 1. Gêneros Literários... 40 Veléio teve alguns poucos leitores durante a Antiguidade Tardia e foi o último autor clássico a ser redescoberto no Renascimento. Uma linha de parte de sua história (agora perdida) foi citada por Prisciano, ele foi citado duas vezes por um comentarista em Lucas, e alcançou, em certa medida, fama nas Crônicas de Sulpício Severo. Sulpício o admirou como um imitador de Salústio. O interesse deste é importante, pois demonstra que o texto de Veléio também tem repercussão nas Gálias. (POTTER, 1997, p. 01) Originalmente escrito em latim, o manuscrito13 da obra velleiana foi reencontrado por um monge beneditino em um monastério de Murbach em 1515, ou seja, início do século XVI. Segundo Eckhard Bernstein (2004, p. 1477), Bilde Beat von Rheinau, também conhecido por Beatus Rhenanus, foi um humanista de descendência alemã, discípulo de Erasmus de Rotterdam14. Neste momento, teria sido realizada uma cópia do texto. A primeira edição da obra da qual temos relato teria sido realizada por Rhenanus entre 1520 e 1521. Esta levava o título de História Romana e continha uma carta aos eleitores, uma introdução que tratava da vida de Veléio, um prólogo sobre esta edição, além de comentários ao longo do texto de autoria de Albert Bürer, secretário do humanista. A nomeação da obra é algo muito criticado pela historiografia atual. Segundo Sumner (1970, p. 280), Beatus Rhenanus foi o responsável por a obra de velleiana receber o título de História Romana. De acordo com esse autor, não é possível saber se a obra possuía algum título definido, pois este não foi encontrado no manuscrito original nem é citado em toda a extensão da obra. Como a primeira parte da obra trata da colonização helênica, este título não seria completamente apropriado. Após a edição de Rhenanus, outros editores direcionaram sua atenção para a obra. Dentre estes, podemos encontrar Gelenius (Basiléia - 1546), Aldo Manucio (Veneza – 1571) e Jano Gruter (Frankfurt – 1607). Em finais do século XVII, há referências de uma edição da obra de Veléio com uma finalidade pedagógica. Ela 13 O manuscrito original em latim é citado pela historiografia como (M), a primeira cópia realizada recebe a alcunha de (R) e a primeira edição, editio princeps, é nomeada por (P). O apógrafo de Amerbach é citado como (A). Estas titulações explicativas aparecem, normalmente, nas traduções da documentação velleiana. 14 Desiderius Erasmus, também conhecido como Erasmus de Rotterdam, foi um humanista de origem holandesa, além de agostiniano e teólogo. Era um erudito, responsável por uma nova edição do Novo Testamento, além de ter escrito O Elogio da Loucura, obra muito apreciada. Viveu durante o período da Reforma, tendo criticado certas crenças cristãs de sua época. Sua defesa a favor do livre-arbítrio enfureceu tanto cristãos como protestantes, colocando-o, de certa forma, em atrito com Lutero. Capítulo 1. Gêneros Literários... 41 teria sido editada pelo jesuíta Roberto Riguez e era utilizada na Inglaterra como texto escolar, tendo sido reimpressa, posteriormente, também em língua francesa. Em 1835, J.C. Orelli, encontrou na biblioteca da Universidade de Basiléia um apógrafo15 do códice murbacense, o qual seria de autoria de Bonifacio Amerbach, datado de 1516 (WOODMAN, 1975, p. 272; MANZANO, 2001, p. 11). Esta cópia aparece nomeada como Vellei Paterculi ad M. Vinicium libri e é a única remanescente na atualidade. Ela apresenta falhas em sua correção, assim como defeitos em meio ao seu texto. Por estes motivos, a identificação desta com a edição de Rhenanus é vista como problemática, além disso, partes integrantes da obra encontram-se perdidas. Não possuímos mais o Prefácio escrito em 1520, o qual conteria algumas poucas informações a respeito do autor e do propósito da obra. Também estariam perdidas uma seção da narração que conteria o relato sobre o retorno à pátria dos heróis mais importantes da Guerra de Tróia e uma parte que abarcaria cerca de quinhentos e oitenta anos entre a fundação de Roma e a terceira Guerra Macedônica. As edições derivadas desta cópia apresentam-se divididas em duas partes: Livro I e Livro II. Do primeiro livro, restam apenas fragmentos, os quais abordam, principalmente, uma parte da colonização grega. O livro II encontra-se relativamente bem conservado e trata dos assuntos concernentes à história romana16. Somente em finais do século XIX, podemos encontrar edições que possuam prefácios e introduções baseadas em proeminentes pesquisas históricas, tais como a F. Rockwood (New York – 1893), na qual foram publicadas algumas partes da obra velleiana, precedidas por uma introdução e notas explicativas. A partir de então, são notadas diversas impressões e reimpressões ao logo do século XIX e início do século XX, sendo o último marcado pela edição da Loeb Classical, tendo a tradução e os comentários críticos de autoria de F.W. Shipley, em 1929 e, em 1982, a publicação por parte de Les Belles Lettres, com prefácio, tradução e notas explicativas de Joseph Hellegouarc’h. Em meio a essas edições, encontramos uma proliferação de trabalhos acadêmicos sobre Veléio Patérculo e sua obra, o que também é ajudado pelo aumento de estudos sobre Tibério e da sociedade imperial de sua época. Pesquisas como as de Sumner (1970), Woodman (1975, 1983 e 1988) e Starr (1980 e 1981), 15 Cópia executada a partir do original. 16 Em nossas análises, utilizaremos, principalmente, esta parte da obra velleiana. Capítulo 1. Gêneros Literários... 42 publicadas em períodos semelhantes, constituem-se como referências obrigatórias em estudos sobre o autor latino, sua obra e as principais características dela. A última publicação da obra História Romana, com a qual temos contato, é a da Editorial Gredos, em 2001, que apresenta introdução, tradução e notas da pesquisadora Maria Asunción Sánchez Manzano. Temos consciência, no decorrer de nossa pesquisa, que a narrativa de Veléio apresenta críticas e concepções diversas, frutos dos diferentes tradutores, editores e investigadores que a modificam desde o Renascimento. Na opinião do editor de uma das publicações realizadas em 1924, F. W. Shipley, a menos que fôssemos surpreendidos por algum manuscrito misterioso, a obra de Veléio seria um dos escritos sobreviventes mais corrompidos da Antiguidade (1924, p. XIX). No entanto, restam-nos se não todas, algumas das palavras e ideias do autor. São estas que nos permitem identificar a documentação de que faz uso, além de suas influências. Podemos perceber ainda a maneira de o autor de escrever a História de sua sociedade. A interpretação do passado por um escritor deve, invariavelmente, ter consequências para o presente, pois exprime uma visão única de uma sociedade, de um tempo. O estudo sobre a obra de Veléio faz-se importante, porque é construído em um período singular da História romana: o início do Principado, quando as instituições e ideais republicanos se mesclam e, até mesmo, confundem- se com o novo sistema político, social e cultural. Isto nos é passado pelo próprio autor, que enxerga no Principado não uma quebra com a República, mas uma continuidade, um desenvolvimento de sua política e sociedade, que agora eram encabeçadas pelo Princeps. 1.3 O gênero biográfico na Antiguidade: Plutarco e Suetônio As discussões a respeito da origem biográfica são muitas e, em certos pontos, apresentam diferenciações. Nos estudos de Momigliano (2004, p. 33), os princípios da biografia são arcaicos, pertencendo à sociedade persa. Para este pesquisador, Dario, ao deixar um relato sobre si mesmo em uma rocha a 300 pés de altura, teria sido o autor da primeira autobiografia17. A tradição biográfica grega seria 17 Estas inscrições ficaram conhecidas como Behistun e possuíam, acredita-se, a intenção de autoglorificação do governante. Capítulo 1. Gêneros Literários... 43 tributária desta, ou seja, em outras palavras, descendia dos persas neste sentido18. Em suas palavras: Scylax escreveu uma biografia de Heráclides, o tirano de Milasa. Tanto o escritor quanto o seu objeto viveram na esfera persa. Em Heródoto as melhores histórias pessoais (por exemplo, a biografia de Democedes) provêm do Leste. A Grécia metropolitana forneceu a Heródoto muito pouco material biográfico. Até mesmo Tucídides dá atenção aos detalhes biográficos apenas quando seus heróis – Pausânias e Temístocles – estão nas fronteiras do Império persa. Suspeitamos que os gregos da Ásia Menor estivessem mais interessados em detalhes biográficos do que os gregos, por exemplo, de Esparta ou de Atenas (MOMIGLIANO, 2004, p.34). Também na concepção de Marcel Benabou: “As origens desse gênero são antigas, relacionadas, sem dúvidas, ao desejo de tornar, através da escrita, memoriais às vidas de grandes personagens mortos.” (1975, p. 15). Logo, para tais pesquisadores, o gênero biográfico helenístico, surgido no florescer do século V a.C., seria descendente de uma tradição um pouco mais antiga, oriunda de outros povos, outras sociedades. Ao atingir terras gregas, no entanto, em nossa concepção, a escrita biográfica adquire alguns contornos específicos. A biografia grega orienta-se pela análise do personagem na sua sociedade, suas atitudes, seus valores, seus méritos e suas falhas. Enquanto a História era situada ao lado dos acontecimentos coletivos, a biografia era colocada à parte, como uma análise dos fatos e atitudes de um indivíduo. A palavra utilizada para denominar esse tipo particular de escrita era a βιοι19 (bios), que tinha como principal meta o esboço de um caráter, de uma personalidade, sendo esta individual ou, até mesmo, coletiva, como a análise de um povo inteiro (Silva, 2008, p. 73). De acordo com Isidro Pereira (1998, p. 104), a bios relaciona-se com o aspecto mais existencial da vida, a vida enquanto existência, descrita com seus valores culturais. Exatamente por tal significação, a palavra βιοι é a utilizada ao mencionar o estilo biográfico. O discurso da bios também se relacionava com a filosofia, uma vez que buscava um sentido no desenvolvimento do caráter do indivíduo biografado. Ela 18 Mesmo que a historiografia grega tenha rompido com o tipo de história proposto pelos persas – que se voltava à atuação de grandes personagens –, e passado a se orientar pela ótica de grupos que se pautavam por uma sociedade que se orientava pelo caráter local, e não internacional, não se pode, contudo, descartar a existência dessa influência. 19 A bios atribuiria a escrita biográfica um caráter mais genérico, sem definir esse tipo de escrita da maneira que a definidos hoje. Capítulo 1. Gêneros Literários... 44 procurava apresentar a descrição desse caráter de forma neutra20, tornando-se assim instrumento de pesquisa da investigação filosófica mais ampla, tanto como para outras formas de investigação que fizessem uso da erudição em seus relatos. Tal ligação filosófica se opunha a outro tipo de discurso, o enkomion Elaborado em meio a Retórica, esse tipo particular de escrita buscava o elogio e a valorização do personagem, utilizando-se de todas as técnicas, tomando a precaução de evitar a descrição de acontecimentos e características que pudessem denegrir a imagem do indivíduo selecionado. Para Mikhail Bahktin (1988, p. 250-251), essa forma de descrição baseava-se no discurso civil, fúnebre e laudatório. Para este mesmo pesquisador, suas primeiras manifestações encontram-se nos encômios de Isócrates e Xenofontes (Euagoras, do primeiro; e, Agesilaus, do segundo), uma novela filosófica (Cyropaedia), também de Xenofontes, todas escritas no V século a.C.. Contudo, a escrita biográfica grega sofre modificações após o século IV a.C. Segundo Bruno Gentili e Giovanni Cerri (1988, p. 13), o sentido atribuído a bios transforma-se junto com as novas constituições políticas e econômicas helênicas, principalmente nos séculos III e II a.C., quando há o fortalecimento das monarquias gregas em detrimento do surgimento das potências macedônicas. Assim, maior importância assumiam os indivíduos nos relatos históricos e biográficos, o que fez com que houvesse uma valorização do enkomion. Ainda, segundo Bahktin: Ao falar sobre esse tipo clássico, é preciso antes de tudo notar o seguinte: essas formas clássicas de autobiografias e biografias não eram obras de caráter livresco, desligadas do acontecimento político social concreto, e de sua publicidade retumbante. Ao contrário, elas eram inteiramente definidas por esse acontecimento, eram atos verbais cívicos – políticos, de glorificação ou de autoglorificação públicas.É justamente nas condições desse cronotopo real que se revela ( se publica) a sua vida ou a dos outros, que se especificam as facetas da figura do homem e da sua vida, que se dão esclarecimentos definidos a respeito delas (1988, p. 251) Apesar de discordar da existência de uma autobiografia clássica21, Uiran Silva (2008, p. 68) também concorda com um ponto da análise de Bahktin: a biografia 20 Atualmente, temos consciência de que nenhum relato se apresenta de forma neutra, pois a subjetividade de quem escreve sempre está presente em meio as suas palavras. Entretanto, tal concepção não se apresentava nas formulações helênicas desse período. 21 Uiran Silva, assim como Momigliano, defende a inexistência da autobiografia como gênero literário no mundo greco-romano antigo. Capítulo 1. Gêneros Literários... 45 helênica, mesmo não sendo considerada como parte integrante da Escrita da História, passa a desempenhar uma nova função, conseguindo um papel de maior destaque dentro da sociedade grega, assim como os que eram biografados. Tais personalidades não possuíam nada de privado, de íntimo, de sigiloso22. Não havia nada em sua vida que não estivesse exposto, sujeito à avaliação pública da sociedade. A escrita biográfica ocupava-se com o individual, com a trajetória de um homem em sua sociedade, seus feitos, suas glórias, vitórias e derrotas. Tal modelo espalhou-se pelo mundo antigo, atingindo diversas sociedades, criando novas formas e novas abordagens. Segundo Mary Del Priore (2009, p. 07), o modelo grego inspirou profundamente os modelos biográficos do mundo romano. Todavia, apesar de todas as trocas culturais existentes entre estas sociedades, suas biografias apresentam certas singularidades. Para Nigel Hamilton (2007, p. 11), as raízes biográficas romanas encontram- se inseridas em sua autêntica tradição, as “laudationes” fúnebres e os “tituli”, que, por um longo período, ritualizaram a liturgia do poder da aristocracia dominante. Na ocasião da morte de membro aristocrático, sendo este um magistrado ou parte da família de um, era costume, durante a realização do cerimonial, o proferimento de um discurso, onde as glórias do morto se uniam às de seus antepassados23. Antes do sepultamento, fazia-se reproduzir em cera uma espécie de máscara funerária, a que, posteriormente, seria mantida exposta no átrio da casa familiar, seguida de uma inscrição sobre o falecido, seus feitos e seus méritos. Logo, tais registros fúnebres, são considerados por muitos estudiosos, como cerne embrionário da biografia romana. Com esta visão concorda Bahktin (1988, p. 256), o qual ressalta que as biografias romanas foram fundamentas no seio da família romana, iniciando-se com as memórias, passando pelos ritos fúnebres e culminando em algo mais público, ou seja, os escritos biográficos. 22 Ao falarmos de exteriorização do homem grego, é através do ponto de vista de nossa sociedade. Os gregos não possuíam essa divisão entre interior e exterior presente nos dias de hoje. O interior humano encontrava-se no mesmo plano que o exterior, ou seja, era visível, impossí