ANDRÉ PIRES DO PRADO O PATRIMÔNIO NA ENCRUZILHADA DO SENTIDO: dispositivos de memória entre a chancela e o afeto. ASSIS 2017 ANDRÉ PIRES DO PRADO O PATRIMÔNIO NA ENCRUZILHADA DO SENTIDO: dispositivos de memória entre a chancela e o afeto. Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em História. (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Dr. Eduardo Romero de Oliveira. Bolsista: CAPES ASSIS 2017 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp P896p Prado, André Pires do O patrimônio na encruzilhada do sentido: dispositivos de memória entre a chancela e o afeto / André Pires do Prado. Assis, 2017. 290 f. : il. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Eduardo Romero de Oliveira. 1. Patrimônio. 2. Memória. 3. Afeto (Psicologia). 4. Igreja Adventista do Sétimo Dia. 5. Ourinhos (SP) - História. I. Título. CDD 363.69 À Comunidade IASD - Igreja Adventista do Sétimo Dia de Ourinhos/SP. À Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” de Assis/SP. Ao Município de Ourinhos/SP. AGRADECIMENTOS Este trabalho é resultado de esforço coletivo. As ideias aqui contidas só puderam ser defendidas em virtude das imensas contribuições que recebi de pessoas e instituições. Portanto, agradeço: Ao meu eterno professor, orientador e amigo, Dr. Eduardo Romero de Oliveira, que como bom mestre conduziu-me pelos melhores caminhos, brindou-me com seu conhecimento imensurável e lapidou as arestas de minha ignorância, sempre confiando em meu potencial e inspirando-me. À professora Dra. Célia Reis Camargo, cujos ensinamentos e orientações iluminaram os rumos de minhas pesquisas, nos tempos de graduação, mestrado e, especialmente agora, de doutorado. Aos professores Dra. Fabiana Lopes da Cunha e Dr. Paulo Henrique Martinez, pelas riquíssimas contribuições nos processos de qualificação e defesa. À Dra. Fabiana, pelo livro e depoimento. À professora Dra. Marly Rodrigues, que tão gentilmente aceitou nosso convite para a banca de defesa. Sua presença, como grande intelectual e estudiosa do patrimônio que é, muito nos honra. Ao professor Dr. Rodrigo Modesto Nascimento, pela presença na banca de defesa e por ter feito parte de minha formação acadêmica, pessoa que admiro desde os tempos da Uenp-Jacarezinho. Aos servidores da Secretaria de Pós-Graduação, cuja competência organiza a vida de todos nós. À Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa concedida. Aos servidores do CONDEPHAAT, pelo apoio e atenção que me deram na busca dos processos. À minha querida amiga Isabelle, que desde a dolorosa fase do processo seletivo sempre me deu forças, acreditando em mim. Agradeço, ainda, pelas traduções, enviadas do norte do continente. Aos políticos Belkis Fernandes, Lucas Pocay, Fernando Cavezzale, Júlio Cesar de Oliveira e Neusa Fleury Moraes pelos valiosos depoimentos sobre as políticas de memória em Ourinhos. Aos líderes da Igreja Adventista do Sétimo Dia, pelo acesso aos arquivos documentais e pelos depoimentos concedidos a respeito da história da comunidade, essência e riqueza deste estudo. Aos servidores do Poder Executivo, Isabel, Gregório e Danilo, e do Poder Legislativo, Rodrigo, Heloneida e Eduardo, pelo auxílio que me deram durante o período de pesquisa nos arquivos. À minha amada companheira, Débora, com quem tenho a sorte de viver, aprender, crescer e ser feliz compartilhando os dias. Agradeço pelo apoio e compreensão diante de minhas ausências. À minha estrela da manhã e querida mãe, Dalva, meu eterno porto-seguro, que com sua bondade e amor incondicionais, alimenta o meu espírito e faz de mim o que sou, até o fim dos meus dias. O patrimônio histórico e as condutas a ele associadas encontram-se presos em estratos de significados cujas ambiguidades e contradições articulam e desarticulam dois mundos e duas visões de mundo. (Françoise Choay) PRADO, André Pires. O Patrimônio na Encruzilhada do Sentido: dispositivos de memória entre a chancela e o afeto. 2017. 290 f. Tese (Doutorado em História). - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2017. RESUMO O objetivo desta pesquisa é discutir e relativizar o conceito de patrimônio. As múltiplas formas de produção e valoração do patrimônio, desde a sua origem, evidenciam uma trajetória histórica nômade e polissêmica do conceito. No século XX, com a celebração das convenções da Unesco e tratados internacionais sobre o patrimônio, a polissemia do conceito acentuou-se ainda mais, constituindo, com isso, uma “encruzilhada do sentido”, do significado, aqui trabalhada em duas dimensões: semântica e prática. A primeira diz respeito à própria polissemia ou polivalência da palavra patrimônio. A segunda, refere-se às práticas de produção e valoração dos bens culturais, tendo em vista o papel do Estado (Poder Público), com seus órgãos de defesa do patrimônio, e o papel das comunidades de cultura, produtoras de bens simbólicos. Parte-se do pressuposto de que todo patrimônio é produzido e legitimado no âmbito do espaço público, também trabalhado em duas perspectivas: espaço público-político e espaço público-comunitário. A primeira refere- se ao domínio das ações políticas, do Estado, da legislação, dos órgãos de preservação e defesa do patrimônio, da chancela, das forças políticas e dos conflitos no contexto urbano, levando em conta o cenário de Ourinhos-SP, com as ações da Prefeitura Municipal, da Secretaria Municipal de Cultura e da Comissão Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico. A segunda refere- se ao contexto das comunidades e ao espaço de vida dos grupos de cultura, tendo como exemplo o universo religioso da comunidade Igreja Adventista do Sétimo Dia em Ourinhos. De um lado, os bens culturais consagrados e chancelados pelo Estado, enquanto patrimônio oficial do povo. De outro, os produtos culturais das comunidades, com seu valor simbólico-afetivo. Por um lado, os dispositivos de memória chancelada. Por outro, a memória afetiva das comunidades. A partir disso, busca-se responder: O que é patrimônio? Como ocorre o processo de valoração dos bens? Quem os valora? Se é patrimônio, é patrimônio para quem simbolicamente? Há patrimônio sem valoração? Patrimônio é aquilo que o Estado diz que é e chancela? Bens não-reconhecidos pelo Estado, excluídos e indeferidos em pedidos de tombamento, não são, portanto, patrimônios? O que são, então, os bens produzidos pelos grupos de cultura? O que escondem as chancelas? Para além delas, o que existe? Cabe ao historiador analisar apenas os bens consagrados pelo Estado? Como o pesquisador do patrimônio deve atuar frente à encruzilhada do sentido? Que patrimônio investigar? Tais questões costuram o trabalho do início ao fim. A tese aqui postulada é a de que patrimônio não é somente aquilo que o Estado consagra pela chancela. Há, sobretudo para além do tombamento, patrimônios tão legítimos quanto, porém, consagrados pela percepção afetiva. Palavras-chave: Patrimônio. Encruzilhada do Sentido. Memória. Chancela. Afeto. PRADO, André Pires. The Heritage in the Crossroad of Meaning: dispositives of memory between the seal and the affection. 2017. 290 f. Thesis (Doctorate in History). - São Paulo State University (UNESP), College of Sciences and Letters, Assis, 2017. ABSTRACT The objective of this research is to discuss and to relativize the concept of heritage. The multiple forms of production and valuation of heritage, from its origin, evidence a nomadic and polysemic historical trajectory of the concept. In the 20th century, with the celebration of Unesco conventions and international treaties about the heritage, the polysemy of the concept was further accentuated, thus constituting a "crossroad of meaning", of signification, worked here in two dimensions: semantic and practice. The first concerns the very polysemy or polyvalence of the word heritage. The second refers to the practices of production and valuation of cultural goods, in view of the role of the State (Public Power), with its organs of defense of the heritage, and the role of culture communities, producing symbolic goods. We start from the assumption that all heritage is produced and legitimized within the public space, also,worked in two perspectives: public-political space and public-community space. The first one refers to the domain of political actions, the State, the legislation, the organs of preservation and defense of the heritage, the seal, the political forces and the conflicts in the urban context, taking into account the scenario of Ourinhos-SP, with the actions of the Municipal Prefecture, the Municipal Department of Culture and the Municipal Commission for Preservation of Historic Heritage. The second refers to the context of communities and the life space of culture groups, taking as an example the religious universe of the Seventh-day Adventist Church community in Ourinhos. On the one hand, the cultural goods consecrated and sealed by the State, as official heritage of the people. On the other hand, the cultural products of the communities, with their symbolic-affective value. On the one side of the discussion, the memory dispositives sealed. On the other, the affective memory of the communities. From this, we try to answer: What is heritage? How does the valuation process occur? Who values them? If it is heritage, is it heritage to who symbolically? Is there heritage without valuation? Is heritage what the State says it is and seal? The assets not recognized by the State, excluded and rejected in request of registry, are therefore not heritage? What, then, are the goods produced by the culture groups? What do the seals hide? Beyond them, what does exist? Is it for the historian to analyze only the goods consecrated by the State? How should the heritage researcher act at the crossroad of meaning? What heritage to investigate? These questions drive the work from start to finish. The thesis here defended is that heritage is not only what the State consecrates by the seal. Beyond the act of political seal, there are, above all, heritages as legitimate as, however, consecrated by the affective perception. Keywords: Heritage. Crossroad of Meaning. Memory. Seal. Affection. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1. DISPOSITIVOS DE MEMÓRIA NO ESPAÇO PÚBLICO-POLÍTICO. .................... 24 1.1. O patrimônio sob a égide do Estado e das políticas de preservação. .......................... 24 1.1.1. Pensando o espaço público: noções em Arendt e Habermas. ..................................... 24 1.1.2. Noções de “Poder” e “Estado” segundo Arendt e Habermas. .................................... 27 1.1.3. O patrimônio e a “encruzilhada do sentido”: dimensões de um paradoxo. ................ 30 1.1.3.1. A dimensão semântica do patrimônio. .................................................................... 31 1.1.3.2. A dimensão prática do patrimônio. ......................................................................... 39 1.2. A memória e o patrimônio em Ourinhos: legislações e políticas públicas. ................ 49 1.2.1. Ourinhos: trajetória e formação de um espaço público. ............................................. 49 1.2.2. O Brasão de Armas. .................................................................................................... 52 1.2.3. A Bandeira Municipal. ............................................................................................... 53 1.2.4. O Hino Municipal. ...................................................................................................... 54 1.2.5. O Centro de Convivência Cultural. ............................................................................ 56 1.2.6. O Núcleo de Arte Popular. ......................................................................................... 62 1.2.7. O Museu Histórico e Pedagógico da Cidade de Ourinhos. ........................................ 64 1.2.8. A “Casinha da Memória” e o “Arquivo de Lembranças”. ......................................... 74 1.2.9. Legislações Suplementares – Projetos Complementares............................................ 76 1.3. A Lei nº 4.813/2003 e a CMPPH: dispositivos jurídico e político. .............................. 81 1.4. A “Casa dos Ingleses”: a CMPPH e o patrimônio tombado. ...................................... 89 1.5. Um patrimônio para além da chancela?...................................................................... 101 2. DISPOSITIVOS DE MEMÓRIA NO ESPAÇO PÚBLICO-COMUNITÁRIO. ....... 102 2.1. Comunidades locais, produção cultural e seus dispositivos de memória. ................ 103 2.1.1. Pluralidade cultural, hibridismo e polifonia na tessitura do espaço urbano. ............ 104 2.1.2. Comunidades de bairro: identidade, memória e pertencimento. .............................. 107 2.2. A formação da Igreja Adventista do Sétimo Dia: breves apontamentos. ................ 110 2.2.1. O Movimento Millerita e a formação da IASD. ....................................................... 111 2.2.2 A organização e a expansão da IASD. ...................................................................... 114 2.2.3. A chegada da IASD no Brasil................................................................................... 114 2.2.4. O adventismo no Estado de São Paulo. .................................................................... 117 2.2.5. A chegada da IASD em Ourinhos-SP....................................................................... 119 2.3. Um espaço público-comunitário: religiosidade, identidade e memória. .................. 122 2.3.1. “Dividir para Multiplicar”: Pastor Mário Cardoso de Oliveira. ............................... 133 2.3.2. Comunidade - Templo da Vila Brasil. ...................................................................... 138 2.3.3. Comunidade - Templo da Vila Musa. ...................................................................... 140 2.3.4. Comunidade - Templo da Vila Santos Dumont. ...................................................... 142 2.3.5. Comunidade - Templo Vila São Luiz. ...................................................................... 145 2.3.6. Comunidade - Templo Vila Boa Esperança. ............................................................ 147 2.3.7. Comunidade - Templo Vila Itamarati. ...................................................................... 149 2.3.8. “Construir para Consolidar”: Pastor Samuel de Mesquita Guimarães. .................... 151 2.4. Ativismo comunitário: suporte de memória e de inserção na esfera pública. ......... 156 2.4.1. Projeto “Escola Cristã de Férias”. ............................................................................ 156 2.4.2. Projeto “Como Deixar de Fumar”. ........................................................................... 157 2.4.3. Projeto “Mutirão de Natal”. ...................................................................................... 158 2.4.4. Projeto “Clube de Desbravadores”. .......................................................................... 159 2.4.5. Projeto “Vidas Por Vidas”. ....................................................................................... 160 2.4.6. Projeto “TV Novo Tempo - Local”. ......................................................................... 161 2.5. A comunidade como lugar de memória e cultura: uma interpretação. .................... 163 2.5.1. Comunidade: um “ethos cultural”. ........................................................................... 163 2.5.2. Comunidade: um “lugar de memória”. ..................................................................... 165 3. O PATRIMÔNIO CHANCELADO E O SEU VALOR POLÍTICO. ......................... 170 3.1. À luz da chancela: a consagração do patrimônio e seu “valor político”. ................. 170 3.1.1. A questão da valoração dos bens culturais. .............................................................. 170 3.1.2. Fabricando um patrimônio: a invenção política da “Casa dos Ingleses”. ................ 172 3.1.3. Homenagem política na “Casa dos Ingleses”: um enxerto de memória. .................. 182 3.1.4. Embates e tensões envolvendo a “Casa dos Ingleses”. ............................................ 190 3.1.5. O “valor político” do patrimônio: discórdia na “Casa dos Ingleses”. ...................... 197 3.1.6. PMO versus CONDEPHAAT: a disputa pela jurisdição do patrimônio. ................. 205 4. O PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO E O SEU VALOR AFETIVO. .......................... 216 4.1. A percepção afetiva como suporte de valoração: para além do tombamento. ........ 216 4.1.1. A comunidade IASD e as percepções afetivas de “amor” e “família”. .................... 222 4.1.2. “Feliz Sábado!”: a essência afetiva da linguagem. ................................................... 223 4.1.3. O “IASD-Social” e a interação afetiva. .................................................................... 224 4.1.4. “Junta-Panela”: um banquete de afetividade. ........................................................... 225 4.2. A memória entre práticas e representações: mutirões e projetos da IASD. ............ 226 4.2.1. O mutirão da comunidade Templo-Vila Perino (Central). ....................................... 230 4.2.2. O mutirão da comunidade Templo-Vila Brasil. ....................................................... 232 4.2.3. O mutirão da comunidade Templo-Vila Musa. ........................................................ 234 4.2.4. O mutirão da comunidade Templo-Vila Santos Dumont. ........................................ 236 4.2.5. O mutirão da comunidade Templo-Vila São Luz. .................................................... 238 4.2.6. O mutirão da comunidade Templo-Vila Boa Esperança. ......................................... 238 4.2.7. O mutirão da comunidade Templo-Vila Itamarati. .................................................. 240 4.2.8. Projeto “Adote uma Praça”....................................................................................... 242 4.3. Patrimônio afetivo-comunitário: a IASD e seus dispositivos de memória. .............. 243 4.3.1. Por uma base na definição de “patrimônio cultural afetivo-comunitário”. .............. 250 4.4. Na encruzilhada do sentido: o dilema da produção/valoração.................................. 251 4.4.1. Lidando com o problema da encruzilhada. ............................................................... 257 4.4.2. Patrimônio como “referência cultural”: por uma noção integral e sinestésica. ........ 262 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 266 FONTES ................................................................................................................................ 277 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 284 11 INTRODUÇÃO As múltiplas formas de configuração e valoração do patrimônio, segundo Choay (2006), denunciam o aspecto “nômade” do conceito e a trajetória “polissêmica” que este percorreu. Um conceito tão antigo quanto as sociedades urbanas, mas que, ao longo dos anos, transformou-se, passando a designar um conjunto variado de produtos materiais e imateriais, naturais e culturais, bem como a estrutura dos valores morais dos grupos que os produzem e os veem como herança. De acordo com Rodrigues (1999), o conceito de patrimônio, incialmente ligado aos bens de riqueza, à estrutura econômica das famílias, passou do campo do “Direito Privado”, dos bens de propriedade privada, para o universo do “Direito Público”, dos bens de interesse coletivo. Para Gonçalves (2009), patrimônio é uma “categoria de pensamento”, e, por essa razão, parece não haver limites para o processo de qualificação da palavra: cultural, natural, biológico, arquitetônico, histórico, documental, arquivístico, bibliográfico, urbano, industrial, ferroviário, paisagístico, etnográfico, etc; um processo que nos conduz a um complexo campo de estudos. Na perspectiva de Choay, para uma compreensão atual do patrimônio, é necessário que levemos em consideração essa trajetória de transformação conceitual e de ampliação semântica. É na marcha do século XVIII para o XIX, no contexto da França, pós-revolução, que as acepções do patrimônio começam a surgir em diversidade e o conceito passa a se polissemizar. Apesar de se atribuir a invenção da noção de patrimônio, em seu teor contemporâneo, à França pós-revolucionária, centrada no ideal de “patrimônio histórico”, de uma República e de Estado- Nação forjados, devemos pensá-la de forma um pouco mais retrospectiva, especialmente ligada à noção de monumento histórico, com a qual veio a se confundir e cujo sentido passou a abarcar. Segundo Choay, o nascimento do “monumento histórico” tem lugar e ano definidos: em Roma, por volta de 1420. Abarcando ruínas, relíquias da antiguidade e iluminado pelo contexto do Renascimento Cultural e das correntes intelectuais-artísticas do Quattrocento, o monumento histórico sairia de sua fase “antiguizante” e atingiria o século XIX para a “consagração” (p. 29), já com a criação, na década de 1830, da “Inspetoria de Monumentos Históricos”, tendo-se como foco principal de trabalho a produção, valorização e difusão de uma história nacional francesa, os monumentos e os institutos de preservação no país (tombamentos, inventários, museus, etc). Nesse segundo momento, as noções de monumento e monumento histórico passariam a ser integradas, portanto, ao conceito de patrimônio histórico como objetos de herança nacional. Eis que, diante dos significados que determinados bens culturais pretéritos viriam a ter, levando em consideração o interesse público, aparece também o problema da “valoração” sobre o patrimônio, seja este o monumento ou qualquer outra coisa rotulada como herança cultural. 12 No século XX, diversos fatores contribuíram para ampliar o campo das acepções e das estruturas de significado do patrimônio. A partir da década de 1960, num contexto pós Segunda Guerra, quando já criadas a ONU e a UNESCO, tendo em foco a paz, a cultura, a educação, os direitos humanos e os legados universais do homem, a noção de patrimônio não só incorporaria a de monumento, entendido como patrimônio monumental, mas ganharia outras terminologias. Segundo Choay, a publicação da Carta de Veneza, em 1964, com a criação do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios – ICOMOS, foi um marco importantíssimo.1 Entretanto, outro fenômeno de destaque foi a “Convenção Para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural” ratificada no dia 16 de novembro de 1972, durante a Conferência Geral da UNESCO, em Paris, pela qual o significado de patrimônio tornar-se-ia bifurcado em “natural” e “cultural”. Em 2003, a “Convenção Para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial”, adotada em 17 de outubro de 2003, na Conferência Geral da UNESCO, também em Paris, reverberaria as ideias contidas na Recomendação da UNESCO para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, de 1989, e na Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, de 2002. Uma nova vertente semântica do conceito de patrimônio despontava, então “imaterial”. Assim, várias noções de patrimônio, tanto cultural quanto natural, tanto material quanto imaterial, foram surgindo conforme a tipologia dos bens, seguidas de suas múltiplas valorações. O presente trabalho parte da premissa de que o patrimônio é um conceito que se encontra no centro de uma “encruzilhada do sentido”, ou seja, está inserido numa condição paradoxal de pluralidade de significados, de múltiplos focos de valoração, tendo em vista os atores ou quem produz e valora determinados bens, estes tangíeis ou intangíveis, concebidos como patrimônio. A “encruzilhada do sentido” pode ser entendida como uma zona paradoxal que abarca, por um lado, as concepções semânticas do patrimônio, e, por outro, as práticas de produção e valoração dos bens patrimoniais. Portanto, são duas dimensões: uma semântica, outra prática. A dimensão semântica refere-se à trajetória de ambiguidade e nomadismo do conceito, composto e representado hoje por várias noções. Trata-se da diversidade do sentido conceitual. A dimensão prática diz respeito à produção e à valoração dos objetos de patrimônio, que figuram condicionados por seus agentes-produtores-consumidores e ligados às temporalidades, às espacialidades, aos valores coletivos, às ideologias e às políticas públicas vigentes e relativas aos seus universos culturais. Neste campo da encruzilhada, identifica-se também a intervenção arbitrária do Estado (Poder Público) e os aspectos econômicos e financeiros relativos aos bens. 1 Vale dizer que o “Quarto Congresso Internacional de Arquitetura de Atenas”, em 1931, já discutia a temática dos monumentos e sua preservação, ocasião que deu origem à “Carta de Atenas”, documento de grande relevância. 13 Na dimensão prática da encruzilhada, pode-se perceber como agentes: os grupos sociais de cultura, que produzem e valoram seus bens culturais; e o Estado (o Poder Público), que atua de forma interventora, selecionando, chancelando e inculcando na sociedade determinados bens como patrimônio legítimo - para isso, fazendo uso de seus instrumentos legais e de seus órgãos de deliberação, validação e fiscalização - Estado que age em função de um patrimônio oficial. Tais dimensões transformam o estudo do patrimônio numa tarefa complexa e paradoxal, pois ampliam a margem de interpretação, fertilizando o debate para além do senso comum, isto é, das noções já cristalizadas e sedimentadas, especialmente de uma visão de patrimônio oficial. O que é patrimônio? Como se dá o processo de valoração dos objetos? Quem os valora? Se é patrimônio, é patrimônio para quem simbolicamente? Existe patrimônio sem valoração? Isso significa perguntar também: Patrimônio é somente aquilo que o Estado diz que é e chancela? Bens não-reconhecidos pelo Estado, não-selecionados e excluídos ou indeferidos em pedidos de tombamento não são, portanto, patrimônios? O que seriam então os bens produzidos pelos grupos de cultura? O que escondem as chancelas? Para além delas, o que existe? Cabe ao historiador refletir somente diante dos bens consagrados pelo Estado? De que modo deve atuar o pesquisador do patrimônio em meio à “encruzilhada do sentido”? Que patrimônio investigar? Defende-se aqui a premissa de que todo patrimônio é constituído no “espaço público” e que é resultado da interação de atores que o valoram, tendo em vista determinados bens, sejam estes de natureza tangível ou intangível. Assim, buscou-se desenvolver um raciocínio acerca do “espaço público” em duas perspectivas: espaço público-político e espaço público-comunitário. O conceito de “espaço público” que aqui foi trabalhado teve como referência a filosofia de Arendt (2010) e Habermas (2003). Por espaço público, compreende-se o âmbito das relações humanas, entre sujeitos que constroem para si um domínio comum, de interação, materialidade e sentido explicativo de mundo. A condição pública da vida humana nasce no momento em que os homens aparecem uns aos outros, e, livres, compartilham, objetos, atos, discursos e crenças. O espaço público é o domínio da pluralidade, da aparência, da artificialidade e da ação humana. Partindo dessa matriz conceitual, buscamos desenvolver as seguintes categorias: a) “espaço público-político”, entendido como a dimensão pública da vida marcada pelas relações políticas, aqui analisada em nível local, enquanto universo da cidade, do município de Ourinhos-SP; lugar do comum, da interação, da pluralidade, da visibilidade, da fabricação e do discurso. O espaço público-político é composto também pela presença do Estado, da legislação, dos agentes políticos, dos partidos, dos bens públicos, dos grupos, do mercado e da imprensa. Com base nesta categoria e com foco para um espaço público-político local, analisamos as atividades da Comissão Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico - CMPPH, órgão 14 consultivo, deliberativo e fiscalizador dos bens culturais no contexto da cidade de Ourinhos, e a presença do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo - CONDEPHAAT na cidade, intervindo sobre bens ferroviários locais. b) “espaço público-comunitário”, compreendido como o campo existencial intra-grupos e comunidades, aqui pensado, também, localmente, tendo em vista os grupos e comunidades de cultura. Em nosso caso, uma comunidade de cultura religiosa: Igreja Adventista do Sétimo Dia - IASD. O espaço público-comunitário também é lugar da interação, da pluralidade, do comum, da visibilidade, da fabricação, do discurso e da vida coletiva. Neste universo, buscou-se detectar o papel da Instituição Religiosa, burocrática e administrativa, e, num plano normativo, das leis e dos rituais religiosos, que cumprem a função de organizar a vida comunitária e conduzir ações. Assim, parte-se da premissa de que os agentes-produtores do patrimônio atuam tanto no espaço público-político quanto no espaço público-comunitário, tendo em vista que eles valoram os bens de patrimônio que produzem. Premissa de que há bens culturais pensados como símbolo de patrimônio histórico e de memória em ambos os espaços, contudo, diferentemente valorados. Noutras palavras, buscou-se analisar aqui, no âmbito do espaço público, dois contextos e dois agentes na produção-valoração do patrimônio: a CMPPH-PMO e a comunidade IASD. Além disso, outra noção básica da presente tese é a de “dispositivo de memória”. Aqui, por dispositivos de memória, compreendemos os vários bens culturais, os patrimônios, as leis, os projetos de preservação, as políticas públicas e as estratégias de fomento cultural, enquanto suportes de acesso à memória ou ativadores de lembranças do passado. Pretendeu-se investigar esses “dispositivos” tanto no espaço público-político, quanto no espaço público-comunitário. Pensamos ainda que a consciência histórica, a identidade, o pertencimento e a lembrança do passado ganham concretude nos dispositivos de memória, seja uma memória municipal, seja uma memória adventista. Acreditamos que tais dispositivos, à luz de Halbwachs (2006), podem representar memórias coletivas, e que, conforme Nora (1993), podem figurar como lugares de memória, entendendo que, tanto no espaço público-político, quanto no público-comunitário, a valoração dos patrimônios, ou dispositivos de memória, é prática de seus próprios produtores. É diante da encruzilhada do sentido, portanto, que traçamos duas vertentes. Por um lado, uma análise sobre as políticas públicas de preservação do patrimônio cultural e dispositivos de memória que dão suporte à história oficial na cidade de Ourinhos-SP, chancelada e consagrada publicamente. Por outro lado, a concepção de uma outra noção de “patrimônio”, paralela àquela fabricada através da seleção pelos agentes públicos municipais e da intervenção do Estado sobre a cultura - uma noção de patrimônio para além do tombamento, para além da chancela oficial; uma noção fixada na percepção afetiva adventista, um patrimônio cultural afetivo-comunitário. 15 Ao longo deste estudo, o leitor encontrará, implícito, um convite, uma provocação para compreender o conceito de patrimônio para além daquilo que o Estado consagra. Das questões- chaves aqui levantadas, para as quais buscou-se resposta, destacou-se: Para se afirmar que algo é “patrimônio” deve-se considerar, num sentido último, apenas aquilo que o Estado chancela? A metodologia utilizada é diversificada, tendo em vista as diferentes fontes obtidas e os modos de tratá-las, conforme as especificidades de cada uma. A análise bibliográfica, o trabalho com os arquivos documentais, a coleta dos inúmeros depoimentos, o registro sobre a cultura da Comunidade IASD, a avaliação das leis e políticas de preservação de memória e do patrimônio no município e a interpretação dos Processos de Tombamento nº 17.813-1/2008 (no âmbito da CMPPH-PMO) e nº 64.201/2010 (no âmbito do CONDEPHAAT), foram ações fundamentais. No arquivo da Câmara Municipal de Ourinhos, realizou-se o trabalho de coleta das Leis promulgadas pelo Poder Legislativo, relativas à preservação da memória na cidade. No arquivo da Prefeitura Municipal, coletou-se Decretos do Poder Executivo, relativos às políticas públicas e aos projetos de memória propostos na gestão de diferentes prefeitos. No arquivo da Secretaria Municipal de Cultura, acessou-se o primeiro processo de tombamento de bens culturais movido na cidade, relativo à “Casa dos Ingleses” - documento-chave. No arquivo do CONDEPHAAT, obteve-se acesso ao processo de tombamento do conjunto de bens ferroviários da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, cujo trâmite revelou a disputa política entre a Prefeitura e o Conselho pela jurisdição do patrimônio local. Já no arquivo da comunidade adventista, acessou-se Livros de Atos e Eventos, cartas, ofícios, fotografias e programas institucionais, documentos úteis para o estudo da cultura adventista, da história dos templos nos bairros e dos projetos sociais da Igreja. Além dos referidos documentos obtidos com o trabalho nos arquivos, o leitor encontrará fotografias antigas e contemporâneas, tanto da cidade de Ourinhos, como da comunidade IASD, estas retiradas de blogs na Internet, como o de José Carlos Neves Lopes; de livros, como o de Fabiana Lopes da Cunha (“Memórias dos Trilhos”); de sites institucionais; ou mesmo cedidas pelos fiéis adventistas ou até por nós mesmos produzidas; além disso, matérias de jornais locais e informações da imprensa a respeito do contexto histórico da cidade e da Comunidade IASD. Por tratar-se esta pesquisa, também, de uma análise sobre a constituição da “memória”, tanto de Ourinhos, quanto dos adventistas, mereceu destaque o método de trabalho com história oral. Segundo Eduardo Romero de Oliveira (2010), a discussão sobre a memória e a elaboração de relatos orais “coloca-nos o destaque que estes têm assumido como um conjunto de fontes documentais” (p. 144). Aqui, o leitor conseguirá ver uma ligação entre memória e história oral, percebendo que a pesquisa se refere a uma construção social de memória, ligada aos contextos afetivos e simbólicos, às experiências de vida comunitária e aos valores sociais compartilhados. 16 No universo da “história oral”, buscou-se autores-chaves, como Paul Thompson (2002), referência, como diz Oliveira, “não apenas pela narrativa clara com que apresenta uma teoria da história oral, mas também pela sua defesa e aplicação educativa. Para este autor, trata-se eminentemente de falar num ‘método de história oral’” (p. 137). Adotamos também, como base norteadora, as reflexões de Ecléa Bosi (1994, 2003), ligadas à perspectiva psicossociológica de Halbwachs. Bosi trabalha com a memória dos velhos na sociedade contemporânea, as relações afetivas da memória e os relatos orais como fontes. Vale citar, ainda, Verena Alberti (2005), ao falar da história oral como “método” para a escrita da história; e ainda Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira (1996), na coletânea “Usos e Abusos da História Oral”, de autores que falam da história oral, de sua importância, das características como método e também de seus limites. Aparecerá, no entanto, em destaque, como perceberá o leitor, o nosso diálogo com Ecléa Bosi, principalmente porque optamos, no campo da memória, por uma reflexão em Halbwachs. Portanto, a história oral foi o método para lidarmos, primeiramente, no campo do espaço público-político, com as políticas de preservação da memória na cidade de Ourinhos, colhendo depoimentos dos principais atores políticos da gestão municipal, como a Prefeita Belkis Santos Fernandes, o Secretário Municipal de Cultura Fernando Cavezzale, a Ex-Secretária de Cultura Neusa Fleury Moraes, o Chefe de Cultura na Secretaria Municipal Júlio César de Oliveira, bem como o Vereador e Ex-Presidente da Câmara Municipal Lucas Pocay Alves da Silva, todos eles protagonistas nos processos jurídicos, nas tensões e nas vicissitudes políticas aqui recortadas. No âmbito do espaço público-comunitário, utilizamos a história oral para coletar relatos dos fiéis adventistas do sétimo dia acerca do cotidiano da comunidade, dos valores, das práticas e das experiências que constituem a história da IASD na cidade, desde a década de 1950, tendo por base as recordações dos líderes mais velhos nos templos, daqueles que coordenam a Igreja. Quanto ao tratamento das demais fontes, alguns textos de referência, por serem didáticos e explicativos das metodologias utilizadas, merecem ser citados. Na lida com os arquivos, tanto públicos (Prefeitura Municipal, Câmara Municipal, Secretaria de Cultura e CONDEPHAAT), quanto eclesiásticos (IASD), Bacellar (2005), com artigo sobre “fontes documentais”, foi muito útil. Ao lidarmos com jornais, revistas e periódicos, tanto no contexto da imprensa de Ourinhos quanto no das publicações institucionais adventistas, foi útil o artigo de De Luca (2005). Para as fotografias e imagens dos cenários mais antigos da cidade e da comunidade IASD, o trabalho de Lima e Carvalho (2012), ensinando como tratar as fotos, foi fundamental. Por fim, na análise dos monumentos arquitetônicos e dos prédios históricos da cidade de Ourinhos, como a “Casa dos Ingleses” e o “Cento de Convivência Cultural”, bem como dos “templos” da Comunidade IASD, Martins (2012) nos ajudou com texto sobre bens patrimoniais como fontes de pesquisa. 17 No que tange à estrutura ou organização do trabalho, a tese está dividida em 4 capítulos. No primeiro capítulo, buscamos realizar uma análise dos “dispositivos de memória” no “espaço público-político”, isto é, do patrimônio como produto das ações políticas, constituído e administrado pelos órgãos públicos de preservação, sob interferência ou cuidado do Estado e das leis. Aqui, o Estado está representado na figura da Prefeitura Municipal de Ourinhos - PMO, da Comissão Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico - CMPPH e na legislação local. Optou-se por fracionar o capítulo em cinco seções. A primeira, intitulada “O patrimônio sob a égide do Estado e das políticas de preservação”, diz respeito aos conceitos que embasam nossa linha de raciocínio no decorrer do trabalho e à forma como o Estado age sobre a cultura. O conceito de “espaço público, primeiro conceito trabalhado, foi compreendido à luz da filosofia de Arendt (2010) e Habermas (2003), num sentido de se apontar as características que constituem a “dimensão púbica da vida humana” enquanto espaço do comum, da aparência, da visibilidade, da fabricação, da ação e do discurso. Foi com Arendt e Habermas que buscamos também compreender o papel do Estado como instituição de gestão e controle da sociedade, do espaço público e daquilo que tende a ser visto como “bem púbico”, ligado ao interesse comum. Utilizando a definição de “espaço público” em Arendt e Habermas, procuramos ampliar o conceito para as noções de: “espaço público-político”, este desenvolvido no primeiro capítulo, e “espaço público-comunitário”, este trabalhado no segundo capítulo juntamente com a IASD. Realizou-se ainda uma reflexão sobre o “campo semântico do patrimônio” e as acepções do conceito, tendo em vista as transformações ao longo do tempo e as formas com as quais está definido, internacionalmente, pelas convenções da Unesco, e, nacionalmente, pelas legislações e órgãos de preservação brasileiros. Isso diz respeito a uma “encruzilhada do sentido”, retratada em duas dimensões, uma semântica e outra prática, onde situamos o problema do patrimônio. Para o desenvolvimento de nosso raciocínio a respeito do conceito de “patrimônio” e de sua trajetória polissêmica, bem como de sua aplicabilidade via políticas públicas de preservação e órgãos públicos de salvaguarda, dialogaremos com Françoise Choay, Marly Rodrigues, José R. Gonçalves, Sandra Pelegrini, Eduardo R. de Oliveira, Dominique Poulot, Célia R. Camargo, Márcia Chuva, Maria C. Londres Fonseca, etc, e com Convenções da Unesco e leis nacionais. Na segunda seção do Capítulo 1, intitulada “A memória e o patrimônio em Ourinhos: legislações e políticas públicas”, o leitor encontrará uma reflexão já direcionada para o contexto do espaço público-político ourinhense e sua gestão feita pela Prefeitura (Estado/Poder Público). Serão apresentados alguns dos principais elementos históricos da trajetória do município de Ourinhos, visto como espaço público-político e como parte de nosso objeto, em recorte local. Neste sentido, buscou-se um estudo a respeito das principais ações da Prefeitura Municipal para 18 a construção da memória e a defesa do patrimônio histórico local, isto é, um estudo da trajetória da legislação e das políticas públicas de preservação na cidade. Nesta etapa, serão apresentados os projetos oficiais da PMO, bem como os principais lugares e pontos históricos da cidade. Será visto também um resumido percurso genealógico da cidade, tratando dos símbolos municipais, Brasão, Bandeira e Hino, e, em seguida, dos lugares históricos já consagrados na cidade, como o “Centro de Convivência Jornalista Benedicto da Silva Eloy”, o “Núcleo de Arte popular”, o “Museu Histórico e Pedagógico de Ourinhos”, a “Casinha da Memória” - com seu “Arquivo de Lembranças” - bem como dos projetos de impacto local, como o “Memória em Movimento”. Na terceira seção do capítulo, intitulada “A Lei nº 4.813/2003 e a CMPPH: dispositivos jurídico e político”, buscamos interpretar o principal instrumento jurídico de “Tombamento de Bens Culturais, Ambientais e Paisagísticos do Município”, bem como o Órgão responsável pela preservação em nível local: a CMPPH, criada e regulamentada em dispositivo da referida Lei. Trata-se de um ponto fundamental do capítulo, pois buscou-se averiguar o conteúdo da norma, suas limitações e clivagens em relação às categorias de bens e à composição da CMPPH. Na quarta seção do capítulo, intitulada “A Casa dos Ingleses: a CMPPH e o patrimônio tombado”, o leitor encontrará uma explanação a respeito do tombamento da “Casa dos Ingleses” no município de Ourinhos, um antigo imóvel, utilizado por agentes ferroviários ingleses, e que, no entendimento da Prefeitura, deveria ser transformado num objeto de referência histórica para a cidade. E verá, ainda, uma análise acerca do trabalho feito pela CMPPH. A Casa dos Ingleses é o primeiro objeto cultural chancelado como patrimônio histórico oficial pela PMO/CMPPH. Por fim, na quinta seção, intitulada “Um patrimônio para além da chancela?”, parte-se para uma breve consideração sobre o capítulo e lança-se algumas questões cruciais para a tese. O primeiro capítulo foi desenvolvido com base em fontes variadas, como: leis, decretos, depoimentos orais, documentos encontrados nos arquivos da Câmara Municipal e da Secretaria Municipal de Administração, no processo de tombamento da Casa dos Ingleses, bem como em referências bibliográficas fundamentais, a maior parte relativa aos autores que já mencionamos. No segundo capítulo, o leitor já será conduzido para o universo simbólico e cultural da comunidade religiosa IASD - Igreja Adventista do Sétimo Dia, em Ourinhos. Aqui, encontrar- se-á uma reflexão sobre os dispositivos de memória concebidos no espaço público-comunitário, dispositivos que têm por função representar a religiosidade, a cultura e a identidade desse grupo. Optou-se por dividir o capítulo em cinco etapas. Na primeira, intitulada “Comunidades locais, produção cultural e seus dispositivos de memória”, buscou-se compreender o contexto urbano enquanto lugar de variadas expressões culturais, de múltiplas comunidades e memórias. 19 Nossa interpretação sobre a noção de comunidade levou em conta a pluralidade cultural no âmbito do espaço público urbano. Assim, buscamos, primeiramente, fundamentar as noções de comunidade, produção cultural e dispositivos de memória de grupo; tecendo considerações a respeito da pluralidade, do hibridismo e da polifonia cultural existentes no espaço da cidade. Acerca das noções de comunidade, cidade, identidade cultural, pluralidade, hibridismo e polifonia, buscou-se um diálogo (além de Arendt e Habermas) com Antônio Augusto Arantes, José D’Assunção Barros, Néstor Garcia Canclini, Serge Gruzinski, Clifford Geertz, Stuart Hall, Michel de Certeau, Zygmunt Bauman, entre outros, procurando situar nossa linha de reflexão. Na segunda seção do Capítulo 2, intitulada “A formação da Igreja Adventista do Sétimo Dia: breves apontamentos”, direcionamos um olhar para a vida cultural da Comunidade IASD. Aqui, aproximando-se da comunidade adventista, o leitor encontrará uma breve história da IASD, desde seu surgimento nos EUA à sua chegada no Brasil, bem como no Estado de São Paulo e, por fim, à cidade de Ourinhos, compreendendo a IASD como um fenômeno religioso. Na terceira seção, intitulada “Um espaço público-comunitário: religiosidade, identidade e memória”, buscamos apresentar uma discussão a respeito da vida comunitária dos adventistas do sétimo dia propriamente dita, retratando suas peculiaridades e práticas culturais na cidade. Tratou-se, então, da história da comunidade adventista do sétimo dia em Ourinhos, que se divide em 7 (sete) instâncias, distribuídas estrategicamente pela cidade, cada uma delas com seu respectivo templo, construído, reformado ou organizado por meio do trabalho em mutirão. O leitor compreenderá a trajetória da Comunidade IASD tendo em vista seus processos de implantação, consolidação, fragmentação e expansão pelos bairros. Nesta etapa, analisamos o fenômeno de construção dos templos pautado no método do “mutirão”, atividade vista como um ponto chave na pesquisa. O processo de implantação, consolidação e expansão da IASD foi visto segundo a dinâmica de urbanização pela qual passou a cidade e segundo os lemas “dividir para multiplicar” e “construir para consolidar” usados pela Igreja como diretrizes missionárias. O leitor poderá compreender que o processo de origem das comunidades periféricas da IASD em Ourinhos se deu a partir da fragmentação da Igreja-Vila Perino (central). Assim, verá que o formato de sua organização, do corpo institucional local, compõe-se de sete comunidades e seus respectivos templos nos bairros periféricos: Vila Brasil, Vila Musa, Vila Santos Dumont, Vila São Luiz, Vila Boa Esperança e Vila Itamarati; totalizando sete pontos de congregação. Na quarta seção do Capítulo 2, intitulada “Ativismo comunitário: suporte de memória e inserção na esfera pública”, o leitor poderá observar, em relação ao que chamamos de “ativismo comunitário”, um estudo sobre os principais projetos sociais adventistas no município, ou seja, 20 uma análise acerca das ações beneficentes realizadas pela IASD e que representam não apenas o cotidiano prático da comunidade, mas também a inserção desta na esfera pública municipal. A IASD em Ourinhos, no decorrer de seus mais de sessenta e cinco anos, vem realizando diversos projetos de cunho social. Em nossos recortes, destacamos apenas os mais importantes, que representam, com mais clareza, o papel ativo da comunidade, como por exemplo: a “Escola Cristã de Férias”, o “Mutirão de Natal”, o “Clube de Desbravadores”, o “Vidas Por Vidas”, o “Como Deixar de Fumar” e o projeto “TV Novo Tempo - Local”, todos com relativo impacto. Na quinta seção do segundo capítulo, intitulado “A comunidade como lugar de memória e cultura: uma interpretação”, buscamos construir uma reflexão teórica e pensar a comunidade IASD do ponto de vista da cultura e da memória. Noutras palavras, trata-se da perspectiva pela qual enxergamos a comunidade e o seu universo, pela qual tentamos interpretá-la. Usamos para isso os conceitos de “ethos cultural”, em Geertz (2008), e “lugar de memória”, em Nora (1993). O segundo capítulo também foi produzido com base em fontes diversificadas, todas elas extraídas dos arquivos dos templos, como os Livros de Atos e Eventos, Programas Cerimoniais, escrituras de compra e venda, fotografias, cartas pastorais, panfletos missionários, revistas, etc. Porém, como o leitor acabará notando, nossa principal fonte foi constituída pelos depoimentos orais colhidos dos líderes das comunidades IASD, entre diáconos e pastores, todos responsáveis pela implantação, consolidação e expansão da obra adventista na cidade desde os anos 1950. Nos capítulos 3º e 4º, tratamos do problema central, isto é, da “encruzilhada do sentido” tentando exemplificá-lo com casos concretos locais. Pensou-se a questão do patrimônio cultural entre a “chancela” e a “percepção afetiva”, situada, em justaposição ou paralelo, entre o espaço público-político e o público-comunitário, entre o contexto das políticas municipais de memória e o universo simbólico da comunidade adventista, isto é, entre duas instâncias de legitimação. Assim, os dois últimos capítulos visam conectar os dois capítulos anteriores e sustentar, por meio de alguns casos concretos, em recorte local, os conceitos formulados ou defendidos. O terceiro capítulo, intitulado “O patrimônio chancelado e seu valor político”, se resume na seção “À luz da chancela: a consagração do patrimônio e seu ‘valor político’”, que trata do patrimônio no âmbito do espaço público-político de Ourinhos, com as leis e Órgão de proteção. Ver-se-á, primeiramente, o exemplo de um patrimônio produzido sob a luz da chancela, sob os rituais de consagração, pelos quais se nota o valor político dos bens. Para isso analisamos o caso do tombamento da “Casa dos Ingleses” e de sua invenção simbólica, enquanto “Espaço Cultural”, pelo Poder Público, ou seja, como um discurso fabricado e difundido publicamente. Buscamos demonstrar ao leitor o fato de a “Casa dos Ingleses”, num primeiro momento, em sua época de tombamento, ser apenas um imóvel antigo e deteriorado pelo tempo. Contudo, 21 logo após a salvaguarda jurídica do imóvel, a Prefeitura Municipal, por meio de sua Secretaria de Cultura, empenhou-se na invenção da “Casa dos Ingleses” como patrimônio histórico local, desde a revitalização do imóvel com medidas de restauro, até o ritual de sua inauguração solene. Assim, buscamos analisar esse bem cultural tombado enquanto objeto de um discurso político. Apontamos, também, a forma como um “patrimônio consagrado” pode servir de suporte para se conceder privilégios políticos, para se realizar homenagens e para fazer aquilo que aqui chamaremos de “enxerto de memória”, tendo em vista o poder de agentes políticos e de famílias elitistas influentes, como o caso da “família Eloy”, em Ourinhos. Tentamos demostrar ao leitor o “valor político” dos bens patrimoniais, em especial, ao tratarmos da “Casa dos Ingleses” como objeto de discórdia, de tensões e de atritos políticos, envolvendo, além dos moradores-invasores do imóvel, também os agentes políticos locais, como a Prefeita, Belkis Fernandes, e o Vereador e Ex-Presidente da Câmara Lucas Pocay, envolvidos num inquérito junto ao Ministério Público. Ainda nos exemplos concretos acerca do “valor político” do patrimônio, o leitor também verá uma análise do Processo de Tombamento nº 64.201/2010, tendo em foco a disputa entre a Prefeitura Municipal e o CONDEPHAAT pela jurisdição de bens ferroviários salvaguardados. Buscar-se-á neste momento sustentar a premissa de que o patrimônio cultural, inventado ou forjado no âmbito do espaço público-político, esconde, por detrás de sua chancela, interesses e privilégios políticos ligados àqueles que o forjam, denunciando com isso o seu valor político. O quarto e último capítulo, intitulado “O patrimônio comunitário e o seu valor afetivo”, divide-se em 4 seções. Na primeira, “A percepção afetiva como suporte de valoração: para além do tombamento”, concentramos esforços em demonstrar ao leitor o que de fato constitui o ponto crucial de nossa tese: um olhar sobre o conceito de patrimônio para além de sua chancela, para além de seu tombamento, apontando a “percepção afetiva” como princípio de sua legitimação. Ou seja, neste ponto, o leitor verá um patrimônio cultural diferente, este constituído pela perspectiva da “percepção afetiva”, ou seja, do afeto como suporte de valoração. Trata-se, pois, da provocação central desta presente tese: o estudo do patrimônio para além do tombamento. Para o conceito de “percepção”, buscamos fazer um diálogo com a filosofia de Merleau- Ponty, para quem o ato de “perceber” é a “tomada de consciência” do mundo e das coisas pelo sujeito cognoscente, pautado na relação empírica e corpórea com a realidade sensível-temporal. A percepção é o fenômeno da apreensão cognitiva do mundo pelo sujeito por intermédio dos sentidos (tato, olfato, audição, visão e paladar, como propriedades do corpo) e da sensação (ato de sentir) tendo o corpo como princípio. A percepção é o resultado da experiência do corpo e do intelecto com o mundo e os outros corpos. Quem apreende é o sujeito da percepção. Assim, “corpo”, “tempo”, o “outro” e a “materialidade” do mundo são constituintes da percepção. Por 22 ser a percepção a relação dos homens entre si e o mundo, esta ancora-se também na afetividade, que representa a amálgama das relações. A percepção afetiva, quando observada em locais de socialização e ligada aos bens culturais, permite-nos entendê-la como suporte de valoração de tais bens, buscando, como Chuva (2010), uma concepção integral e sinestésica de patrimônio. O olhar do leitor será conduzido para uma percepção afetiva dos adventistas em relação aos seus templos, construídos em forma de mutirão, bem como aos seus projetos e ações sociais, percepção que faz do espaço comunitário um lugar de “topofilia”, segundo Yi-Fu Tuan (2012). Na segunda seção, esta intitulada “A memória entre práticas e representações: mutirões e projetos da IASD”, buscamos apontar as práticas adventistas enquanto suporte de memória. À luz de Halbwachs (2006), fizemos uma reflexão acerca da memória adventista. Uma “memória coletiva” vista entre “práticas e representações”, citando Chartier (1988). Buscamos analisar o caráter simbólico do mutirão de edificação e dos projetos sociais da IASD, tentando reconhecê-los como patrimônio cultural afetivo-comunitário e como dispositivos de memória. Além de Halbwachs, dialogamos também com David Lowenthal, Michel Pollack, Ecléa Bosi, Eduardo Romero de Oliveira, dentre outros, no que tange às relações sociais de memória e à materialização de lembranças nos objetos, bem como às práticas na comunidade adventista. Em outros termos, por meio do estudo a respeito dos mutirões de edificação dos templos, vistos como exemplos de ativismo comunitário, bem como dos projetos sociais (“Escola Cristã de Férias”, “Como Deixar de Fumar”, “Mutirão de Natal”, “Clube de Desbravadores”, “Vidas Por Vidas”, “TV Novo Tempo - Local” e “Adote Uma Praça”), buscamos demostrar que uma prática social não só é objeto de memória, como também a sustenta; que um mutirão, enquanto ativismo comunitário, funciona como dispositivo simbólico de representação, autoconstrução e fixação de identidade de grupo, este que pensa a si mesmo não apenas em seu próprio universo, mas que também se projeta, como agente participativo, dentro do espaço público-municipal. Na seção 4.3, intitulada “Patrimônio afetivo-comunitário: a IASD e seus dispositivos de memória”, buscamos situar os bens culturais da comunidade adventista enquanto constituintes de um “patrimônio cultural afetivo-comunitário”, isto é, bens culturais produzidos num espaço público singular, tendo como suporte valorativo e legitimador a percepção afetiva dos membros da comunidade, patrimônio este que, visto em seu conjunto, tanto material (templos construídos em processo de mutirão) quanto imaterial (projetos beneficentes no âmbito das “práticas”), vem representar um conjunto de dispositivos de memória, de pertencimento e identidade religiosa. A seção final, intitulada “Na encruzilhada do sentido: o dilema da produção/valoração”, é uma síntese de nosso trabalho, articulado como um todo. É neste tópico que o leitor encontrará a amarração final dos conceitos e da proposta aqui defendida. Procuramos demonstrar como a 23 questão da produção e da valoração de bens culturais representa um eixo paradoxal no campo de estudo do patrimônio, esclarecendo que o próprio conceito de “patrimônio”, visto como uma “categoria de pensamento”, num diálogo com José Reginaldo Gonçalves (2009), representa um horizonte aberto, um ponto de intersecção, uma verdadeira “encruzilhada do sentido” para nós. A questão da produção e da valoração ficará evidenciada ao leitor ao situarmos as duas formas de concepção e legitimação de bens culturais aqui recortadas e apresentadas, isto é, uma no âmbito do “espaço público-político”, marcado pela presença do Estado (Poder Público), aqui representado na figura da Prefeitura Municipal de Ourinhos, da legislação, dos Órgãos oficiais de preservação (neste caso a CMPPH local) e dos atores políticos; outra, no âmbito do “espaço público-comunitário”, referente ao universo de ação intra-grupos de cultura, constituído pelas ações comunitárias e seus agentes, por seus bens culturais produzidos e pela percepção afetiva. De um lado, um conceito de patrimônio chancelado pelo Estado e impregnado de “valor político”, de tensões e de disputa por memória. De outro, um conceito de patrimônio legitimado na “percepção afetiva comunitária”, impregnado de sentimento de pertencimento e identidade. As fontes dos capítulos 3 e 4 advém dos referidos arquivos, depoimentos, revistas, leis, fotografias, decretos, jornais, processos de tombamento, atas, documentos institucionais, etc. 24 1. DISPOSITIVOS DE MEMÓRIA NO ESPAÇO PÚBLICO-POLÍTICO. O Estado Novo foi capaz de reunir as condições para a implantação e consolidação das práticas de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, demarcando a gênese da noção de “patrimônio nacional” no Brasil como parte integrante do processo de formação do Estado e construção da nação. (Márcia R. R. Chuva) – Sobre o Estado e a invenção do patrimônio nacional. A constituição de patrimônios históricos e artísticos nacionais é uma prática característica dos Estados modernos que, através de determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e com base em instrumentos jurídicos específicos, determinam um conjunto de bens no espaço público. (Maria C. L. Fonseca) – Sobre a consagração do patrimônio no espaço público. 1.1. O patrimônio sob a égide do Estado e das políticas de preservação. Analisar patrimônios consagrados ou dispositivos de memória2 enquanto expressões de identidades sociais no espaço público, exige-nos atenção não só quanto à acepção dos conceitos abordados - espaço público e patrimônio - mas, sobretudo, às formas pelas quais esse espaço e esse patrimônio são configurados em meio às ações políticas; estas que, por sua vez, fundam o Estado como aparelho de gestão da coisa pública. Ademais, atenção ao sentido - e às variações desse sentido - atribuído à palavra patrimônio, que vem representar, no universo dos enunciados (semânticos, conceituais, discursivos), um lugar de polissemia, uma encruzilhada de sentidos. A noção de patrimônio, no âmbito do espaço público e das políticas públicas, está sujeita não só às determinações ou normas do Estado enquanto aparelho gestor dos bens públicos, mas também aos anseios de grupos, às seleções, aos crivos e ao poder exercido por atores políticos. 1.1.1. Pensando o espaço público: noções em Arendt e Habermas. O uso frequente dos termos público e esfera pública, “denuncia uma multiplicidade de significados concorrentes. Eles se originam de diferentes fases históricas e, em sua aplicação sincrônica sobre as relações da sociedade burguesa industrial, organizada sócio-estatalmente, 2 No dicionário, a palavra “dispositivo” tem as seguintes definições: 1 - (adjetivo) “que encerra disposição, ordem ou preceito”; 2 - (substantivo masculino) “mecanismo ou arranjo adaptado para se atingir um determinado fim” (FERREIRA, 2004). Seu uso é variado em diversos campos do saber (Aeronáutica, Filosofia, Informática, Direito, Matemática, Medicina, Teatro, Militar, etc) e seus sinônimos retratam a sua polivalência: a) invento, instrumento, utensílio, produto, artefato, equipamento, máquina, mecanismo, aparelhagem, engenhoca, maquinismo, robô, autômato, petrecho, ferramenta, apetrecho, engenho, aparelho, aparato, invenção – quando relativo a uma peça ou conjunto de peças. b) modo, recurso, meio, expediente, método – quando relativo a um meio para atingir um fim. c) norma, preceito, regulamento, regra, regimento, artigo, trecho, parágrafo, item, decisório – quando relativo a uma lei ou parte dela. Em nossa reflexão, o termo “dispositivo de memória”, no singular ou no plural, será utilizado, ora em referência aos bens materiais e imateriais de cultura, ora às práticas culturais, leis, projetos e órgãos de preservação de memória. Dispositivo enquanto algo que acione, remeta ou se refira à memória. 25 entram num turvo conúbio”, orienta-nos Habermas (2003, p. 13). O conceito de espaço público remete-nos às cidades antigas de Atenas e Roma, esvazia-se na Idade Média, ressurge no século XIV, revigora-se com os Estados Monárquicos no século XVI e se expande nos séculos XIX e XX, diante de um cenário marcado pela mídia e pelos regimes democráticos e republicanos. À luz da Filosofia, pode-se afirmar que o espaço público se constitui das interações entre os homens num plano comum de ação, de materialidade e sentido. A condição pública da vida se dá no instante em que os homens se apresentam uns aos outros, e, livres, compartilham atos, produtos e crenças. Os gregos e romanos antigos atuavam no plano da esfera pública na medida em que as famílias se associavam, dando origem a núcleos maiores de interação. Certo número de famílias, explica Coulanges (2003), “formou um grupo, ao qual a língua grega deu o nome de frátria e a latina o de cúria”. O associar prosseguiu. Muitas cúrias ou frátrias “se agruparam, formando-se a tribo”. E assim, pelas associações das “tribos”, originou-se a “Cidade” (p. 151). Em Atenas, tornar-se cidadão significava seguir, simbolicamente, a genealogia da polis por meio dos “ritos iniciáticos” e “cultos de apresentação”, transportando-se do espaço privado da família para o dos assuntos comuns ou públicos da polis, numa sequência social ascendente: família-frátria-tribo-cidade. A última instância, diz Chauí (1999), na maturidade, era a própria vida pública - um engajamento na ta politika, este sob o domínio sofisticado do logos (p. 371). Em Arendt (2010), o público e o privado são entendidos como instâncias que abrigam aspectos últimos da condição existencial humana - a “vita activa”3, dividida em três categorias ontológicas básicas: “trabalho” (ou labor), “obra” (ou fabricação) e “ação”. Pensemos a ação. A ação é a atividade que corresponde ao plano da pluralidade. É, também, a atividade política por excelência, que se dá pela interação, sem mediação da matéria, ou seja, enraíza-se no plano abstrato dos discursos e da razão humanas. É no espaço público que a ação ganha seu lugar primordial. A vida política se sustenta, de modo geral, na atividade livre e na pluralidade dos sujeitos únicos. O espaço público é o espaço da política enquanto ação humana no mundo. A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política, essa pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política. (ARENDT, 2010, p. 08) 3 Arendt utiliza o termo “vita activa” para designar a condição de existência prática (práxis) do homem no mundo, em contraponto à “vita contemplativa”, muito comum entre os gregos (mas sem ver a primeira como derivativa da segunda ou hierarquicamente inferior). O interesse de Arendt pela atividade humana diz respeito às razões de ser, às temporalidades, aos limites e formas como essa atividade acontece no cotidiano, envolvendo pensamento e comportamento no decorrer da história, no plano da vida moderna e da vida ativa enquanto expressão do devir. 26 O espaço público é o espaço do viver, do estar-entre-os-homens, iguais em humanidade, porém, plurais em suas subjetividades, no âmbito de suas paixões. “A pluralidade é a condição da ação humana porque todos nós somos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu ou viverá”, diz Arendt (p. 10). A ação entre sujeitos únicos e plurais seria desnecessária se a existência humana fosse apenas uma repetição modelar, negando a condição da diferença. O espaço público é, potencialmente, o espaço da diferença. É na esfera pública que a realidade mundana e a objetividade da vida ganham sentido. Isso porque a significação das produções só passa a ter efeito quando compartilhada. Assim, a esfera pública é entendida como o espaço primordial do encontro e da interação entre sujeitos únicos e plurais; os que fabricam, que constroem, que simbolizam - artífices da mundanidade. A ação é a capacidade humana de instaurar no mundo a novidade, sendo isso a própria tradução da liberdade, condição que também desata o horizonte para o acaso, para o imprevisto. Na filosofia de Arendt, o domínio público, além de ser o espaço primordial da ação, dos discursos, da liberdade e da pluralidade dos sujeitos únicos, abarca dois fenômenos correlatos. O primeiro fenômeno é o da “aparência”. Ou seja: “tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência - aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos - constitui a realidade”, diz Arendt (p. 61). É por isso que o espaço público, dos homens no plural, só contém o que é relevante, o que é coletivamente importante, o que possui sentido e utilidade à vida comum. O irrelevante e subjetivo, ou seja, o particular ou o íntimo, se mantém restrito à esfera privada do lar, do oikos. Em Habermas (2003), também podemos encontrar a definição de espaço público como sendo o espaço dos encontros, entendido numa relação de oposição à esfera privada do oikos. Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da polis que é comum aos cidadãos livres (koiné) é rigorosamente separada da esfera do oikos, que é particular a cada indivíduo (idia). A vida pública, bios politikos, não é, no entanto, restrita a um local: o caráter público constitui-se na conversação (lexis). (HABERMAS, 2003, p. 15) Segundo fenômeno: o espaço público é o universo do “comum”.4 O comum, diz Arendt, é o aspecto do mundo compartilhado (p. 64). Isso tem a ver com aquilo que é “fabricado”5 pelas mãos humanas e com os negócios realizados nesse plano reificado. Segundo Arendt, “conviver” é o relacionar-se num “mundo de coisas interposto entre os que possuem em comum” (p. 64). 4 Historicamente, em alguns momentos, é possível observar o sentido do “comum”: Grécia - bem comum da polis, eudaimonia (felicidade), ta politika (negócios da polis). Roma - cidadania romana, civilidade. Idade Média – cristandade, fraternidade, comunhão. Modernidade - espírito de nacionalismo, bem da nação, solo da pátria. 5 O conceito de “fabricação” em Arendt refere-se à capacidade humana de produzir, fazer, construir, obrar. 27 A esfera pública como espaço do comum e da fabricação, que aproxima os homens, não pode ser efêmera, transitória, mas sim um legado permanente a ser deixado às novas gerações. A existência de um domínio público e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles dependem inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos, mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais. (ARENDT, 2010, p. 67) O espaço público é o domínio que os homens têm em comum com aqueles que viveram, que vivem e viverão. Passado, presente e futuro se interconectam na artificialidade do mundo. No anseio pela imortalidade terrena, a permanência da fabricação do real condiciona o existir humano. É a “publicidade do domínio público” que “pode fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo”, explica Arendt (p. 67). Eis, aliás, o papel da “memória coletiva” no espaço público. Discutiremos isso adiante. A modernidade intensificou ainda mais o desejo dos homens pela “admiração pública”, que faz brilhar e perdurar no tempo, às novas gerações, o legado histórico através da visibilidade e da lembrança pública. E vale dizer: essa visibilidade pública só é importante quando acontece sob diversas perspectivas. A importância de ser “visto e ouvido por outros”, salienta Arendt, “provém do fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes” (p. 70). O comum, contudo, só existe na medida em que todos demonstram interesse pelo mesmo objeto “compartilhado”. É no domínio da cidade - polis e civita - que a fabricação enquanto atividade do homo faber, consistir-se-á em coisificação do mundo, num fluxo de objetivação da realidade, capaz de gerar durabilidade, e, por sua vez, de certo modo, atenuar a finitude humana. A cidade não é o limite físico, o território urbano apenas, mas uma disposição dos sujeitos de viverem numa comunidade organizada, enquanto mundo resultante do pensar, do agir e do falar em conjunto. É um “espaço da aparência”, para que os homens apareçam para si na interação e pelo discurso. Portanto, tudo o que resulta do fazer, do pensar, do agir e do falar coletivo do homem é, sobretudo, a expressão de seu universo social e de sua cultura publicamente compartilhada. 1.1.2. Noções de “Poder” e “Estado” segundo Arendt e Habermas. A cidade é espaço do exercício do “poder”. O poder é um fenômeno sui generis, pois é produto da ação, encontrando referência na vida política, discursiva e deliberativa dos homens. 28 O poder só é efetivado onde a palavra e o ato não se divorciam, onde as palavras não são vazias e os atos não são brutais, onde as palavras não são empregadas para velar intensões, mas para desvelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para estabelecer relações e criar novas realidades. (AREDNT, 2010, p. 250) O poder é resultado da ação porque advém das atividades feitas na pluralidade. Sua base é a persuasão porque consiste no convencimento pelas discussões e debates, e, necessariamente por isso, depende da pluralidade para que aconteça. O poder é uma potência atualizada todas as vezes que uma ação é realizada para fins comuns, de comunicação, de divulgação e explicitação de intenções. O poder é uma potencialidade artificial publicamente convencionada, que torna o homem capaz de fundar mundos e instituições de comando, obediência, gestão, guerra e paz. Portanto, é o “poder” que “mantém a existência do domínio público”, explica Arendt (p. 251). O espaço público é o espaço do poder como potencialidade de deliberação e de comando por meio do consenso, como predicado racional, político e comunicativo do homem. A geração do poder requer, enquanto fator indispensável, explica Arendt, “a conivência entre os homens” (p. 251). Isso quer dizer que o poder, como produto da deliberação e da convenção coletiva, só existe enquanto os homens permanecerem em estado de interação. Amálgama da vida social. Aquilo que os homens da antiguidade entendiam por “Cidade-Estado”, hoje chamamos apenas de “Estado”; instituição de controle social - aparato de gestão convencionado, fundado nos acordos e nos pactos. Algo fabricado e artificial. Um produto. O advento dessa instituição, diz Arendt, “que como cidades-Estados se converteram em paradigmas para toda a organização política ocidental, é, na verdade, a condição prévia material mais importante do poder” (p. 251). O Estado, diferente daquilo que postula o senso-comum, não é um ente autônomo, mas um instrumento público utilizado por pessoas públicas no exercício do poder. O Estado é, por isso, um aparelho político, um produto deliberado, resultante do consenso e da aceitação social da dominação. O poder político, atrelado aos cargos burocráticos e exercido por aqueles que os ocupam, quando se materializa por intermédio do Estado é, assim, um “Poder Público”, pois é resultado da vontade coletiva, visando um bem comum. Este, por sua vez, firma-se nos âmbitos do visível e do representativo, onde vigoram os discursos, as alianças, as votações e as escolhas. O que preserva a unidade política e os instrumentos de controle da vida social (o Estado) depois do “momento fugaz da ação” (aquilo que hoje chamamos de “organização”) e o que elas ao mesmo tempo “mantém vivo ao permanecerem unidas” é o poder, afirma Arendt (p. 251). 29 O “poder” está na base de toda comunidade política. Os pactos, que suscitam poder, dão legitimidade aos regimes governamentais e aos meios políticos com os quais institui-se a ordem social, as leis e os serviços oferecidos pelo Estado. O Estado materializa o “poder político”.6 Segundo Habermas, a concepção clássica e grega de “esfera pública” se mantém, desde a Renascença, “de autêntica força normativa até os nossos dias” (p. 16). Entretanto, ocorreram mudanças significativas na organização social, política, intelectual e econômica dos homens na Modernidade, ampliando as noções de Estado e bem comum, e, com elas, a de espaço público. No decorrer da Idade Média, as categorias de público e privado seguiram a remanência do Direito Romano, entretanto, sem o brilho que tiveram nos tempos antigos da polis e da civita. Potencialmente, tais categorias só voltariam a ter efetivas aplicações política e jurídica a partir dos séculos XV e XVI, com a formação do Estado nacional e da esfera do social ou da chamada sociedade civil, separada dele (Estado). A partir daí, fenômenos imprescindíveis para uma análise histórica do conceito de espaço público começam a aparecer, como: a formação da classe burguesa; o surgimento da imprensa; as reformas protestantes; o racionalismo; o direito burguês; o liberalismo político-econômico; as revoluções Industrial, Tecnológica e Francesa; os ideais republicanos e democráticos; os partidos políticos; a imprensa já profissionalizada; a opinião pública; os meios de comunicação em massa; etc.; enriquecendo tal campo de estudo. No século XVI, com a origem do Estado Nacional Monárquico, o conceito de “privado” passou a ser utilizado como referência a algo “excluído, privado do aparelho do Estado formado com o Absolutismo e que se objetivava perante a pessoa do Soberano”, diz Habermas (p. 23). O “poder privado” passaria a ser uma antítese do “poder público” (representado pelo “Estado”). Surge a noção do “privado” relacionado aos negócios realizados pela classe burguesa, como setor autônomo e composto de sujeitos privados reunidos no espaço público do mercado. O Estado moderno, ao contrapor-se à sociedade, passaria a apresentar características e funções próprias, representadas pela burocracia racional, pelo parlamento ou assembleia, pelo sistema judiciário, pelo exército (armas) e pelos órgãos de gestão de patrimônios e serviços. A ascensão da classe burguesa durante os séculos XIV e XV, no ritmo do capitalismo, da imprensa tipográfica e do Renascimento Cultural, representou um marco na configuração da esfera pública moderna e um impulso na sua ampliação. A “camada burguesa”, diz Habermas, “é o autêntico sustentáculo do público, que desde o início, é um público que lê” (p. 37). Ao lado dos fundamentos econômico-mercantis do capitalismo, multiplicaram-se os grupos de editores, dos donos de negócios e mercadorias, portadores de “opinião” numa esfera pública burguesa. 6 Vale lembrar que o termo “pacto social”, que no início da Idade Moderna passou embasar a teoria contratualista da sociedade, fala da origem não só do poder político, das leis e do Direito, mas sobretudo do próprio Estado. 30 No fluxo de racionalização da esfera pública e do próprio Estado, a classe burguesa se apoderaria da imprensa como instrumento de opinião, fortalecendo “ideais de classe” ao mesmo tempo em que também lançaria suas críticas ao intervencionismo estatal, controlador dos preços e das “rotas de mercado”. Constituía-se, assim, um espaço público burguês, ou seja, uma esfera de visibilidade, de publicidade e discursos, estes com características essencialmente burguesas. Da Revolução Industrial à Revolução Francesa, o século XVIII definitivamente marcou a fase de consolidação da ideologia burguesa e da implantação do Estado de direito burguês na modernidade, estes sustentados, principalmente, pela filosofia liberal inglesa, tendo expoentes como J. Locke (1632-1704) e A. Smith (1723-1790). Dessa maneira, ainda sob as reverberações do discurso iluminista, inaugura-se um século XIX ainda mais burguês, com a queda do Ancien Régime, a extinção do intervencionismo absolutista e o advento da República e da Democracia. A partir do século XIX, a noção de “estado-de-bem-estar-social” (enquanto condição de vida digna à população) passou a estar diretamente ligada ao papel ocupado pelo Estado perante os homens. Um Estado mantenedor da paz, da justiça, da ordem e dos serviços básicos ao existir coletivo. Nesse contexto, cabe destacar, portanto, o papel do Estado como gestor da sociedade, agindo, por meio de seus dispositivos legais e burocráticos, de forma intervencionista sobre os diversos aspectos da vida social e cultural. Interessa-nos, aqui, a intervenção sobre a cultura. Isso porque, é a partir do século XIX que os ideais de “nação” e de “identidade nacional” serão apropriados pelos Estados-Nacionais tendo em vista um projeto de valor simbólico, isto é, um discurso histórico ancorado em objetos de referência de passado, especialmente os bens de natureza material, capazes de representar uma herança cultural forjada como “patrimônio”. 1.1.3. O patrimônio e a “encruzilhada do sentido”: dimensões de um paradoxo. Por “encruzilhada do sentido” entendemos a zona paradoxal de pluralidade que abrange, por um lado, as acepções semânticas e significados do conceito de patrimônio, e, por outro, as formas de produção e valoração de bens culturais vistos como patrimônio. Duas dimensões se nos apresentam nessa encruzilhada: a primeira é de caráter semântico, a outra de caráter prático. Quanto à dimensão semântica, percebe-se que a palavra patrimônio, ao longo do tempo, percorreu um trajeto consideravelmente complexo, de ambiguidades e nomadismos, até chegar ao que hoje entendemos por patrimônio em sentido lato, composto e representado por diversas noções que revelam, como princípio elementar, as formas de categorização dos bens culturais. Quanto à dimensão prática, percebe-se que a produção dos bens patrimoniais, aparece condicionada por seus agentes-produtores, ou seja, pelos grupos de cultura e pelo Estado (Poder 31 Público), segundo temporalidades, localidades, valores, ideologias e políticas públicas vigentes. Trata-se de uma dimensão prática tanto da produção quanto da valoração de bens patrimoniais. Ambas as dimensões transformam o campo de estudo do patrimônio em lugar complexo e paradoxal, ampliando a margem das interpretações e fertilizando o debate para além do senso comum e das noções já cristalizadas. Afinal, o que é “patrimônio”? Quem chancela ou qualifica bens culturais como sendo ou não patrimônio? Iniciemos pela primeira dimensão: a semântica. 1.1.3.1. A dimensão semântica do patrimônio. Segundo Choay (2006), a palavra “patrimônio” possui origem antiga. Era utilizada nos âmbitos familiar, econômico e jurídico para designar bens de “herança” transmitidos de geração em geração, dos pais aos filhos, conforme leis, contextos culturais e temporalidades. Ao longo dos anos, a noção de “patrimônio” foi sendo ampliada e requalificada, tornando-se um conceito “nômade”. Hoje, concebemos “patrimônio” adjetivado em diferentes sentidos, explica Choay. Patrimônio. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo. Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, etc.) que fizeram dela um conceito “nômade”, ela segue hoje uma trajetória diferente e retumbante. (CHOAY, 2006, p. 11) Na virada do século XVIII para o XIX, a palavra passou a designar a produção de bens destinados ao relativo usufruto de uma comunidade: objetos capazes de representar instituições, deliberações, memórias coletivas, valores e efemérides de um passado em comum. Assim, tudo que representasse herança histórica e social carregaria um sentido de “patrimônio histórico”. Patrimônio histórico. A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. (CHOAY, 2006, p. 11) Na sociedade contemporânea, urbana, industrial, marcada pelos meios de comunicação, pela velocidade, pelo devir transformador, pela figura do Estado na gestão do social e da coisa pública, pelo papel da história na construção das identidades nacionais, pelo presentismo vivido na instantaneidade e atualidade do novo, “patrimônio histórico”, diz Choay: “tornou-se uma das palavras-chave da tribo midiática. Ela remete a uma instituição e a uma mentalidade” (p. 11). 32 Percebe-se que a acepção semântica da palavra “patrimônio” ultrapassou, hoje, o campo do Direito Privado, legitimador das propriedades particulares, para adentrar o campo do Direito Público, marcado pelos interesses coletivos, pelo papel do Estado e das leis de tombamento na proteção dos bens de memória. Sobre tal mutação semântica, Marly Rodrigues (1999) afirma: Originalmente relacionada à herança material de famílias, a palavra patrimônio há muito designa também o conjunto de bens culturais herdados pelas sociedades. Ampliada da esfera do direito privado para o público, no século XVIII, “patrimônio” passaria a expressar o conjunto de bens materiais – edifícios, logradouros, obras de arte e coleções documentais – cujo valor foi reconhecido pelo poder público, tornando-se, por isso, objeto de proteção jurídica advinda do tombamento. (RODRIGUES, 1999, p. 95) Para José Reginaldo Gonçalves (2009), “patrimônio” é uma “categoria de pensamento”, uma construção intelectual, um conceito ou representação mental, e, por esse motivo, plural. “Patrimônio” está entre as palavras que mais usamos com frequência no cotidiano. Falamos dos patrimônios econômicos e financeiros, [...] usamos também a noção de patrimônios culturais, arquitetônicos, históricos, artísticos, ecológicos, genéticos; sem falar nos chamados patrimônios intangíveis, de recente e oportuna formulação no Brasil. Parece não haver limite para o processo de qualificação da palavra. (GONÇALVES, 2009, p. 25) A compreensão que hoje temos sobre o patrimônio como aquilo que o Estado chancela enquanto herança comum da nação, salvaguardado juridicamente por deter um valor coletivo, tem origem nas mudanças sociopolíticas pós Revolução Francesa, principalmente no que tange ao legado artístico-cultural do mundo ocidental. Até o fim do século XVIII, as obras de arte e as relíquias da Antiguidade vinham sendo protegidas por vontades particulares, mas foi apenas com as deliberações do Estado revolucionário francês que as ações preservacionistas ganharam força. Ações que depois transcenderiam França e Europa. A partir daí, afirma Pelegrini (2009): [...] vem se ampliando as formas de tratamento dos bens dotados de valor histórico e cultural, orientadas por práticas preservacionistas e legislação específicas para a restauração e reabilitação do patrimônio. (PELEGRINI, 2009, p. 19) Segundo Eduardo Romero de Oliveira (2010), se antes os bens remetiam à arquitetura, à arqueologia e à história da arte, hoje, com tal “ampliação”, configuram-se em “novos tipos”: Se durante o século XIX foram inventariadas as edificações vinculadas à arqueologia e a história da arte erudita; após a década de 1950, ampliou-se esta catalogação para diferentes formas de arte de construir, seja erudita ou popular. E em diferentes países na Europa, América e outras partes do mundo ocidental, esta herança não pára de crescer com novos tipos de bens. (OLIVEIRA, 2010, p. 145) 33 Segundo o historiador francês Dominique Poulot (2009), em seu livro “Uma história do patrimônio no Ocidente”, tendo em vista a diversidade das categorias de bens patrimoniais, não cansamos de “evocar patrimônios a serem conservados e transmitidos”, e, estes, “relacionados com universos absolutamente heterogêneos” (p. 10). Para Poulot, um “ecletismo” até nocivo: Fala-se de um patrimônio não só histórico, artístico ou arqueológico, mas ainda etnológico, biológico ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações redunda em contradições ou leva à incoerência. (POULOT, 2009, p.10) O processo revolucionário francês de 1789, marcado pelas lutas e motins, comprometeu a integridade de diversos objetos históricos, implicando no trabalho do Estado, pós-revolução, de conservar esses testemunhos da trajetória do povo francês, entendidos a partir de então como elementos representativos da história nacional e do interesse comum ou público da “nação”. A emergência do conceito de patrimônio histórico, portanto, situa-se entre o crepúsculo do século XVIII e a aurora do XIX, na França, ainda sob as reverberações da Revolução naquele lugar. De acordo com Choay, esse patrimônio tombado, ou melhor, “inventado” pelo Estado francês, revelou, num primeiro momento, o caráter econômico implícito nos bens confiscados, estes entendidos como patrimônio, que, justamente por seu valor financeiro, exigiam a proteção contra pilhagens, roubos e usos particulares. Uma das primeiras ações jurídicas da Constituinte francesa, no dia 2 de outubro de 1789, foi a de “colocar os bens do clero ‘à disposição da nação’. Vieram em seguida os dos emigrados, depois os da Coroa” (p. 98), salienta Françoise Choay. Os bens confiscados e salvaguardados pelo Estado francês, em sua maioria de gênero arquitetônico e arqueológico, só foram vistos enquanto bens históricos num segundo momento. Isso significa que, separadamente do valor econômico, o valor histórico desses bens entendidos como patrimônio só foi atribuído a posteriori, na medida em que foram inventados como tais. O termo monumento histórico “só entrou nos dicionários franceses na segunda metade do século XIX”, esclarece Choay (p. 28). Em 1837, já havia sido instituído o cargo de “Inspetor de Monumentos” e também já ocorriam as primeiras comissões da “Inspetoria de Monumentos Históricos”, tomando como eixo principal a valorização de uma história nacional francesa, os monumentos e os institutos de preservação no país (museus, inventários, tombamentos, etc.). Entretanto, a gênese mesma do conceito de monumento histórico nos remete um pouco mais ao passado. O monumento histórico, diz Choay, é uma invenção ocidental, e bem datada: 34 “Pode-se situar o nascimento do monumento histórico em Roma, por volta do ano de 1420”. (p. 31), num contexto intelectual inspirado pelo valor histórico das antigas ruínas da cidade. Teve início a partir de então, na trajetória do conceito, a fase que por Choay foi chamada de “antiguizante”, fortemente atrelada ao contexto do Quattrocento e afinada ao movimento do Renascimento Cultural que alimentava o pensamento filosófico e artístico na Itália. Desse ponto em diante, a trajetória conceitual do monumento histórico seguiria até o século XIX, para a sua “fase de consagração”, que institucionaliza, diz Choay, “a conservação do monumento histórico estabelecendo uma jurisdição de proteção e fazendo da restauração uma disciplina autônoma”. (p. 29) Daí sim, o monumento histórico seria abarcado pela noção de “patrimônio histórico”. Da segunda metade do século XX em diante, diversos fatores contribuíram para ampliar o campo de sentidos ou acepções relacionadas à noção de “patrimônio”, significando, portanto, uma ampliação das possíveis direções valorativas a serem tomadas no meio da encruzilhada. Os monumentos, de caráter memorativo, volitivos ou não em suas origens, tornaram-se uma dentre diversas outras categorias de elementos culturais ou novos bens históricos, levando em conta as temporalidades e a posição geográfica do patrimônio, visto de modo “ampliado”. A partir da década de 1960, os monumentos históricos já não representam senão parte de uma herança que não para de crescer com a inclusão de novos tipos de bens e com o alargamento do quadro cronológico e das áreas geográficas no interior das quais esses bens se inscrevem. (CHOAY, 2006, p. 12) Esse raciocínio também é postulado por Poulot, ao explicar que, “no decorrer do século XX, o patrimônio assume, cada vez mais explicitamente, sua implementação positiva, segundo juízos de valor que afirmam uma verdadeira escolha” (2009, p. 09). Além disso, diz Poulot: Os desafios ideológicos, econômicos e sociais extrapolam amplamente as fronteiras disciplinares (entre história, estética ou história da arte, folclore ou antropologia) -, como pode ser notado, no decorrer das décadas de 1970-1980, pelo reconhecimento de ‘novos patrimônios’, que abrange uma profusão de esforços públicos e privados em favor de múltiplas comunidades. Progressivamente, o entusiasmo pela promoção e valorização do patrimônio passa por uma verdadeira ‘cruzada’ no âmago do mundo ocidental. (POULOT, 2009, p. 09) No século XX, a partir da década de 1960, num contexto pós Segunda Guerra, já criadas a ONU e a UNESCO, no centro de uma preocupação com a paz, com a cultura, com a educação, com os direitos humanos e os legados da humanidade, o conceito de patrimônio não só passaria a incorporar as acepções dos monumentos, enquadrando-as no rol do patrimônio monumental, como também passaria a ganhar novas terminologias, ou seja: outras categorias de significado. 35 No século XX, um dos marcos importantes para a noção de patrimônio foi a “Convenção Para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, adotada em 16 de novembro de 1972, durante a Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris. Pelo documento, podemos observar a definição de dois sentidos atribuídos ao conceito de patrimônio: cultural e natural. O Artigo 1º da Convenção define “patrimônio cultural” como sendo: os “monumentos”, os “conjuntos de construções” e os “locais de interesse de valor histórico e etnológico” (p. 02). Viu-se o conceito para além do “patrimônio histórico”, criado na França revolucionária. O Artigo 2º, definindo o “patrimônio natural”, ampliou ainda mais a noção, abarcando: as “formações biológicas, geológicas e fisiográficas” e o “habitat de espécies ameaçadas”, com “valor excepcional” do ponto de vista da “ciência, da conservação e da beleza natural” (p. 02). Percebe-se, pela ótica da UNESCO, que o conceito de patrimônio se estende em direção aos elementos de caráter natural, à biodiversidade e aos recursos vitais ao existir dos homens. As décadas de 1980 e 1990, fechariam o século XX com importantes debates acerca das terminologias criadas em 1972, principalmente no que tange às limitações, já que se havia dado primazia apenas aos bens de essências material e natural. Tal cenário mudaria em 2003, com a “Convenção Para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial”, adotada em 17 de outubro de 2003, durante a Conferência Geral da UNESCO, realizada também em Paris, reverberando as ideias presentes na Recomendação da UNESCO para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, de 1989, e na Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, de 2002. Acontecia, portanto, uma nova abertura semântica de patrimônio, agora “imaterial”. Na Carta, a UNESCO levava em conta a “profunda interdependência entre o património cultural imaterial e o património material cultural e natural” (p. 02), bem como uma necessidade de se combater os “fenômenos de intolerância, graves ameaças de degradação, desaparecimento e destruição do património cultural imaterial”, já tendo em vista “o grande alcance da atividade desenvolvida na elaboração de instrumentos normativos à proteção do patrimônio cultural”, em especial a Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, de 1972. No Artigo 2º da Convenção, vemos o “patrimônio imaterial” definido como as “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, que comunidades, grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural” (p. 03). Um patrimônio transmitido e “recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua história e relação com a natureza, gerando sentimento de identidade e continuidade” (p. 03). Definiu-se, também, no âmbito do Artigo 2º, as formas de manifestação dessa categoria, como: “a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos 36 e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais” (p. 03). De acordo com Fonseca (2009), podemos dizer que o conceito ficou “para além da pedra e cal”. Desde a sua fundação, a UNESCO vem desempenhando, em nível internacional, o papel de instituição norteadora das ações de salvaguarda e promoção do patrimônio em sentido lato. As definições que ela propõe passam a ser adotadas pelos países membros, servindo de suporte aos dispositivos legais e às políticas públicas de gestão em níveis: nacional, regional e local. As categorias da UNESCO, em escala global, impactaram nessa construção semântica da noção de patrimônio. Assim, com as novas adições, o conceito tornou-se polissêmico, como se constituísse uma “encruzilhada do sentido”, apontando para múltiplas vias de valoração. De suas características mais básicas, destacam-se os vieses da materialidade e da imaterialidade. A partir daí, podemos situar o campo semântico do patrimônio e suas principais noções: Patrimônio Material (ou Tangível) Diz respeito à totalidade dos bens de natureza física, material, concreta ou manipulável, produzidos pelo homem. Dentro desta categoria, podemos distinguir ainda os elementos de caráter “móvel” ou “imóvel”. Patrimônio Imaterial (ou Intangível) Diz respeito, com base na definição da UNESCO, às práticas, às representações, às expressões, conhecimentos e competências ligadas aos instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais de comunidades e grupos, transmitidos às novas gerações. Patrimônio Cultural Após a Convenção da UNESCO promulgada em 2003, refere-se a tudo aquilo que os homens produzem de tangível ou intangível em determinados espaços de cultura ou de vida social. Patrimônio Natural Diz respeito aos “bens naturais” em sua multiplicidade. Abarca, conforme as definições da Convenção da UNESCO, os recursos naturais, a biodiversidade e as zonas geológicas e fisiográficas. Patrimônio Histórico Diz respeito aos bens tangíveis ou intangíveis de valor histórico, que representam herança coletiva na trajetória de determinados grupos ou comunidades. Por remeter ao valor de memória, alia-se também à esta categoria a noção de “monumento histórico”. Tabela 01 – Categorias de Patrimônio. (Categorização Nossa) Atentas às categorias da UNESCO, as reflexões sobre o campo do patrimônio passaram, ao longo do século XX, a levar em conta a natureza dos bens em si e os tipos de valores que os determinam. Sinteticamente, ainda poderíamos apontar outras importantes noções que surgi