0 LUANA APARECIDA DE ALMEIDA TRADUÇÃO ANOTADA DE LES INFORTUNES DE LA VERTU (1787), DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814) ASSIS 2013 1 LUANA APARECIDA DE ALMEIDA TRADUÇÃO ANOTADA DE LES INFORTUNES DE LA VERTU (1787), DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientadora: Dra Maria Lídia Lichtscheidl Maretti Coorientadora: Dra Brigitte Monique Hervot ASSIS 2013 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Almeida, Luana Aparecida de A447t Tradução anotada de Les infortunes de la vertu (1787), do Marquês de Sade (1740-1814)/ Luana Aparecida de Almeida. Assis, 2013 268 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. Orientadora: Dra Maria Lídia Lichtscheidl Maretti Coorientadora: Dra Brigitte Monique Hervot 1.Marques de Sade, 1740-1814. 2. Literatura francesa – Séc. XVIII. 3. Tradução anotada. 4. Les infortunes de la vertu 5. Línguas I. Título. CDD 843 418.02 3 A Luciane, ao Jair, a Ivete e ao José P. (in memoriam) 4 AGRADECIMENTOS A minha família: pai, mãe, vó, irmão, irmã e sobrinhos. Por suportarem a distância, incentivarem a busca do crescimento e me receberem sempre com tanto carinho. Aos Amigos: André, Dani, Elisa, Fred Santiago, Henrique, Kátia, Luís, Maurílio, Stanis, pela companhia valiosa, pelas conversas inspiradoras, por ajudarem (ou não), enfim, por estarem sempre comigo. A minha orientadora, Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, por ter me guiado desde graduação e por ter acreditado em mim. A minha coorientadora, Dra. Brigitte Monique Hervot, por ter se empenhado num trabalho em andamento, orientando e ajudando atenciosamente. Aos professores de graduação pela sabedoria transmitida. Aos professores integrantes da banca de qualificação: Prof. Carla Cavalcanti e Silva e Prof. Antônio Roberto Esteves, que com suas contribuições preciosas me ajudaram a melhor direcionar e concluir meu trabalho. Aos professores da pós-graduação da FCL de Assis, em especial Dr. Odil José de Oliveira Filho, Dra. Sandra Aparecida Ferreira, Dra Daniela Mantarro Callipo pela paciência e pelas aulas enriquecedoras. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis e da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa”, pelo atendimento prestativo e eficiente. A CAPES pela ajuda financeira, imprescindível para a realização deste trabalho. 5 ALMEIDA, L. A. TRADUÇÃO ANOTADA DE LES INFORTUNES DE LA VERTU (1787), DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814). 247 f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012. RESUMO: Este trabalho apresenta a tradução anotada do livro Les infortunes de la vertu (1787) do Marquês de Sade (1740 – 1814), seguido de um estudo introdutório que tem o objetivo de familiarizar o leitor brasileiro com a narrativa sadiana. Sabemos que a polêmica que sempre acompanhou o Marquês de Sade era seguida pela constatação de sua originalidade que produziu, a partir de suas ideias libertinas, suas polêmicas obras. Les infortunes de la vertu se caracteriza como uma das obras emblemáticas de Sade, uma narrativa que apresenta os elementos da perversão denominada a partir do nome do autor, o sadismo. Na atividade de tradução buscamos valorizar a tendência que preconiza o sentido e o estilo original, optando pela corrente que defende a tradução estrageirizadora. PALAVRAS-CHAVE: Marquês de Sade, 1740-1814; Literatura francesa – Séc. XVIII; Tradução anotada; Les infortunes de la vertu; Línguas. 6 ALMEIDA, L. A. ANNOTATED TRANSLATION OF LES INFORTUNES DE LA VERTU (1787), OF MARQUIS DE SADE (1740-1814). 247 f. Dissertation (Masters of Letters). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013. ABSTRACT: It is presented here the annotated translation of Les infortunes de la vertu (1787) of Marquis de Sade (1740 – 1814), followed by introductory study that intends to familiarize the Brazilian reader with the Sadean narrative. The controversy surrounding Marquis de Sade has always been accompanied by the realization of the originality he produced, sparked his libertine ideals and his infamous works. Les infortunes de la vertu is one of Sade’s emblematic works, with a narrative that presents elements of the perversion named after the author, Sadism. During the translation, we valued the original meanings and style by opting for a foreignizing translation. KEYWORDS: Sade, Marquis de 1740-1814; French literature - XVIII Century; Annotated translation; Les infortunes de la vertu; Languages; 7 O vendaval de liberdade do século XVIII produziu Sade: o século XIX tratou de ignorá-lo ou de censurá-lo; o século XX encarregou-se de demonstrá-lo, em altos brados, pela negativa; o século XXI deverá considerá-lo em sua evidência. Phillipe Sollers 8 SUMÁRIO 1. ESTUDO INTRODUTÓRIO ....................................................................................... 9 1.1 NOTA BIOGRÁFICA ............................................................................................ 9 1.2 A OBRA SADIANA ............................................................................................ 11 1.3 LES INFORTUNES DE LA VERTU ......................................................................... 20 2. A PRESENTE TRADUÇÃO ..................................................................................... 24 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 28 TRADUÇÃO .................................................................................................................. 32 9 1. ESTUDO INTRODUTÓRIO 1.1 NOTA BIOGRÁFICA1 Donatien-Alphonse-François de Sade, o Marquês de Sade nasce em Paris em dois de junho de 1740. Proveniente de uma família da antiga nobreza de Provença, é educado, dos quatro aos sete anos, por seu tio paterno, o historiador e abade Jacques- François-Paul-Aldonse de Sade. Em 1750, vai para um colégio de jesuítas em Paris. Aos quatorze anos ingressa na escola de cavalaria leve e após um ano é nomeado subtenente no regimento da infantaria do rei, o que permite sua participação na Guerra dos Sete Anos em 1757. Posteriormente, em 1759, Sade assume a patente de capitão do regimento da cavalaria da Borgonha. Neste momento, aos dezenove anos, sua fama de licencioso e desregrado já é conhecida. Em maio de 1763 acontece seu casamento - conforme um acordo entre as famílias - com Renée-Pélagie de Montreuil, a qual lhe dará dois filhos e uma filha, e será para ele esposa dedicada e complacente. Cinco meses após o casamento, Sade é preso em Vincennes pela acusação de práticas libertinas, blasfêmias e profanações da imagem de Cristo. Essa é a primeira de uma série de prisões que abrangem trinta anos de sua vida (LELY, 1967, p. 12). Nos anos seguintes, Sade vivencia variados escândalos: casos com atrizes, dançarinas, cortesãs; noitadas em práticas libidinosas na companhia de mulheres e homens. Dentre esses escândalos estão os de Arcueil e de Marselha. No caso de Arcueil, Sade propõe a uma mendicante, Rose Keller, um posto de servente em sua casa, ela aceita, ele a leva, tranca-a num quarto e a partir disso seguem-se sessões de sexo e flagelação. Quando ela consegue escapar, acusa o marquês que por isso sofre um processo no qual ele é acusado e detido. No segundo caso, em Marselha, ele e um empregado, acompanhados de quatro moças, participam de mais uma sessão orgíaca, onde as moças são induzidas a ingerir pastilhas de anis com cantárida (inseto de onde é retirada uma substância de efeito afrodisíaco). Duas das meninas apresentam um quadro de intoxicação, o que ocasiona a condenação do Marquês à morte por crime de envenenamento e sodomia, no entanto, a pena não é executada. Sade foge para Itália com sua cunhada, que é tratada e apresentada como sua esposa legítima; esconde-se em seu castelo em La Coste; é detido continuamente, mas foge e esconde-se sempre que possível. É levado para a Bastilha em 1784, dois anos após concluir seu primeiro texto. (parece meio irreal) Diria apenas: Sua saída dessa 1 Utilizo-me para a elaboração da nota biográfica dos relatos da biografia do Marquês de Sade presentes nos livros de Gabriel Giannattasio (2000), Gilbert Lely, (1967) Guillaume Apollinaire (1909) e Simone de Beauvoir (1972). 10 prisão se dá às vésperas da Revolução Francesa. Sua saída dessa prisão foi impulsionada por seus gritos na janela solicitando a quem passasse que tirassem os presos dali, pois, ás vésperas da eclosão da Revolução Francesa, ameaçavam degolá-los. Em seguida é transferido para o hospício de Charenton e, para sua tristeza, não o deixam levar nada consigo. Nessa ocasião, ele perde parte de seus documentos, manuscritos e outros pertences. Em uma de suas cartas ele declara ter chorado "lágrimas de sangue" em razão dessa perda. (LELY, 1967, p. 211; BATAILLE, 1989, p. 96). Em 1790 o marquês é solto graças ao decreto que suprimia as lettres de cachet2. Livre, intenta "viver da sua pluma" (APOLLINAIRE, 1909, p. 5). O marquês publica suas obras, encena algumas de suas peças teatrais, e vive uma situação financeira difícil. Ele entra para a section des Piques, que era uma sociedade popular, uma das quarenta e oito seções revolucionárias de Paris, subdivisões da cidade criadas a partir da Revolução Francesa, onde os cidadãos deliberavam sobre os assuntos da região; filiando-se aos ideais republicanos da época, ao lado dos jacobinos que conduziam o período do Terror. É neste momento que Sade escreve alguns textos políticos e chega a tornar-se presidente da seção. Convém ressaltar que o marquês se opõe à pena de morte em vigor naquele momento, posição que, entre outras razões, o torna inimigo da revolução. No mesmo período, sua esposa obtém a separação e Sade inicia um relacionamento com Marie- Constance Quesnet que o acompanhará até a morte. Devido a sua intensa atividade antirreligiosa é preso mais uma vez em 1794. Acusado de conspiração contra a república, é condenado à guilhotina pelo 8 Termidor, escapa dela pelo decreto da morte de Robespierre, (que também fazia parte da section de Piques), por meio do 9 Termidor. Por fim, é encarcerado pela última vez no hospício de Charenton, sob a acusação de ter escrito La Nouvelle Justine (1799) e ali morre em dois de dezembro de 1814. A vergonha por parte de sua família fez com que o escritor fosse enterrado sem levar na lápide nenhuma inscrição, e por ordem da mesma, são queimados alguns manuscritos que estavam em seu quarto. 2 No Antigo Regime, carta fechada, assinada pelo, rei pela qual se enviavam mandados, sem julgamento, de prisão ou exílio. (Lettre de cachet . http://littre.reverso.net/dictionnaire-francais/definition/lettre/44144 acesso em 2012.) 11 1.2 A OBRA SADIANA3 O estranhamento causado pela obra do Marquês de Sade era alarmante e a censura enfrentada era ferrenha. O motivo para tamanha indignação se encontrava em sua narrativa: uma linguagem que é um convite à permissividade. Sua obra abarca diversos gêneros dentre os quais figuram contos, novelas, romances, textos políticos, e ainda sua correspondência. Seu primeiro texto, Dialogue entre um prêtre et un moribond (Dialogo entre um padre e um moribundo) é escrito na prisão em Vincennes, em 1782. O texto traz a apreciação do marquês sobre o ateísmo e foi publicado pela primeira vez por Maurice Heine em 1926. Já na Bastilha, Sade escreve em 1785 Cent vingt journées de Sodome ou l'école du libertinage (Cento e vinte dias de Sodoma ou a escola de libertinagem). Escritos e passados a limpo com letras microscópicas, os manuscritos desta obra fazem parte dos textos que foram perdidos na sua transferência para Charenton em 1789. No entanto, sem que Sade jamais soubesse, eles foram encontrados no quarto que era seu e ficaram sob a posse da família Villeneuve-Trans que os vendeu ao psiquiatra alemão Iwan Bloch (1872-1922). A primeira publicação do livro, empreendida pelo psiquiatra, contendo numerosos erros de transcrição, acontece em 1904 sob o pseudônimo de Eugène Düren, sendo publicada posteriormente por Maurice Heine em três volumes de 1931 a 1935. Ainda na Bastilha conclui, em 1787, Les infortunes de la vertu (Os infortúnios da virtude) publicada em 1930, a partir dos manuscritos, também por Maurice Heine. Aline et Valcour ou le Romain philosophique (Aline e Valcour ou o Romance filosófico) 1789 é publicado em 1795. No mesmo ano surge clandestinamente La Philosophie dans le boudoir (A Filosofia na alcova), livro ilustrado com frontispício alegórico e mais quatro figuras eróticas. Seu primeiro livro publicado em vida foi Justine, ou les malheurs de la vertu (1791) (Justine, ou os infortúnios da virtude), versão ampliada de Les infortunes de la vertu que teve outra ampliação La nouvelle Justine, ou les Malheurs de la vertu. Suivie de l'Histoire de Juliette, sa soeur [ou les Prospérités du vice] (A nova Justine, ou os 3 Todas as informações sobre a sua obra foram consultadas no livro de Gilbert Lely (1967). 12 Infortúnios da virtude. Seguida da História de Juliette, sua irmã [ou as Prosperidades do vício]) publicada em 1799 na Holanda com a falsa data de 1797, ornada de um frontispício e mais cem figuras obscenas. Sade nunca declarou a autoria das três versões da história de Justine e Juliette, porém foi preso por escrever a última versão. A obra sadiana e a arte literária do século XVIII podem ser caracterizadas como uma literatura que se insere num momento em que a crise movimentava os setores políticos, sociais, econômicos e intelectuais. Para compreendê-la é conveniente observar alguns elementos do período. O clima de contestação era predominante, assistia-se à crise que culminaria no declínio do Antigo Regime. Na contrapartida da França, que apresentava um sistema econômico calcado na agricultura, com uma cultura baseada em preceitos da religião católica e sob um governo absolutista, o progresso dos ingleses despontava como um modelo, devido às suas práticas em relação à economia pautada no sistema industrial. Além da liberdade de crença, que leva ao surgimento da teoria do Deísmo, teoria essa que influenciou alguns pensadores franceses, assiste-se também a uma liberdade política que, sob a influência da burguesia já estabelecida, ajuda a instalar a monarquia parlamentar. As ideias dos pensadores ingleses vão se tornar modelo para os franceses, sobretudo aquelas fundamentadas no racionalismo e no empirismo. Dessas circunstâncias eclode a Revolução Francesa, que foi embasada no movimento intelectual e filosófico do momento. 4 Os filósofos do Século das Luzes agiam de maneira peculiar. Ser filósofo no século XVIII tinha um sentido diferente do que se concebia em relação aos antigos gregos: significava “opor-se a tudo o que fosse irracional”. Assim, eles contestaram tudo, reivindicando liberdade para que todos pudessem fazer o mesmo. Dessa racionalidade imperiosa, nasce a Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des metiers, que dentre tantos outros colaboradores, tinha como autores principais Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond D'Alembert (1717-1783). Essa obra "monumental" foi símbolo do espírito filosófico do século XVIII, pois pretendia reunir todos os saberes num só lugar, e por isso, segundo Michel Delon (DELON, 2007, p. 175) foi determinante na vida intelectual europeia. 4 Todas as informações sobre o momento histórico foram consultadas nos livros: Dix siècles de littérature française: du Moyen Âge au XVIIIeme siècle, de Deshusses e XVIIe: Les grands auteurs français du programme, de André Lagarde e Laurent Michard conforme constam na bibliografia. 13 O Marquês de Sade foi um contumaz representante desse período. Sua ojeriza à ideia de Deus, embasada na filosofia materialista5, bem como sua excessiva apologia à prática dos vícios em detrimento das virtudes, pregadas pela moral e pelos bons costumes, se constituem como indícios de sua contestação à ordem vigente. Sua vida de libertinagem e os reflexos em sua obra são provas desse desdém à moralidade. Por Libertinagem tomemos a elucidação do verbete do Dictionnaire de la Pornographie (FOLCO, 2005, p. 260) que declara que libertinage é oriunda de libertinus, palavra inicialmente utilizada em latim com sentido duplo: um deles servia para denominar o escravo liberto, emancipado, o segundo, para marcar a posição social que a pessoa ocupava, a saber a de filho de escravo. Na Idade Média o termo também se reportava ao homem liberto, no entanto, a acepção de "escravo sarraceno convertido ao cristianismo" prevalecia. Já no século XVI, com as guerras religiosas, o vocábulo se referia às "pessoas sem fé", que manifestavam uma oposição ao cristianismo. No século XVII, ele serviu para identificar aqueles que possuíam liberdade de espírito e pensamento. Com a chegada do Século das Luzes, caracterizada por essa aversão ao cristianismo e a uma autonomia das ideias, o termo passa a reportar-se a uma liberação das regras morais da sociedade e à libidinosidade de modos . O libertino pode ser exemplificado na figura do Dom Juan, e posteriormente pelo personagem Valmont de As ligações perigosas (1782), que "ávido por destruir a psique de suas conquistas para alongar sua lista. Ele prefigura o que será, no fim do século, a emergência das crueldades revolucionarias de Sade.” (FOLCO, 2005, p. 261, tradução nossa)6. Pode-se dizer que As ligaçoes perigosas, de Choderlos de Laclos (1741-1803), de fato prefiguraram a obra de Sade. De referências também libertinas, o romance epistolar trata da história de conquistadores que, apoiados num discurso manipulador, seduziam suas vítimas pelo prazer de fazê-lo. Apesar do sucesso, a referida obra foi recriminada pela sociedade (DARCOS, 1992, p. 236), como o foram os escritos do marquês. É conveniente destacar que a publicação clandestina da segunda versão de Justine teve autoria atruibuída a Laclos pelo jornal Le Spectateur du Nord e pelo dicionário satírico Le Tribunal d'Apollon (DELON, 2007, p. 236) por causar 5 Ser materialista no sentido filosófico é, com efeito, pensar que tudo é matéria ou produto da matéria e que os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais não têm, em consequência, uma realidade que auxilie ou determine. (CANTO-SPERBER, 2003, p. 143) 6 No original: "Il est avide de détruire la psyqué de ses conquêtes pour allonger sa liste. Il préfigure ce que sera, à la fin du siècle, l'émergence des cruautés révolutionnaires de Sade." (FOLCO, 2005, p. 261) 14 reação semelhante a do romance epistolar deste escritor. Contudo, segundo Delon, (2007, p. 236) é espantoso relacionar os dois livro visto que suas linguagens são díspares. O crítico afirma que Laclos tem uma linguagem contida enquanto Sade rompe essa contenção. E continua o contejo: Se o tédio das guarnições e as insatisfaçoes da sua carreira militar contribuiram para o amadurecimento das Ligações perigosas, é o desarranjo de um aristocrata e a solidão das prisões que nutriram a paixão literária de Sade. Laclos é de Amiens, homem do norte, de uma família de uma nobreza muito recente e muito pequena. Nascido em Paris, Sade é originario de Avignon, homem do Midi, de uma antiga linhagem, aparentada com os Condé. Laclos compôs um só livro, enigmático e perfeito. Sade provou todos os gêneros, do teatro ao romance, em todos os tons, da discrição alusiva ao furor pornográfico. (DELON, 2007, p. 236-237, tradução nossa)7 Dada a sua radicalidade, a libertinagem de Sade era inovadora e perturbante. Todavia, mesmo chocando a todos com sua arte, seria inadequado pensar que ele pretendesse falar mal de seu tempo, pois, na verdade, ele "propunha uma reflexão sem precedentes sobre a liberdade individual" (MORAES, 2011, p. 130), examinando o ser humano na sua profundidade, no que este tinha de mais indigno a revelar. Nesse sentido, tanto os estudiosos da literatura quanto os estudiosos da psique humana são unânimes em afirmar a originalidade das obras sadianas. Na maior parte da obra de Sade são retratadas histórias em que a depravação ultrapassa os limites da imaginação. Com seus livros, ele instaura uma escritura que revela toda libidinosidade possível de ser transmitida por meio da linguagem, associando-se assim ao erotismo. Georges Bataille (1897-1962) em L'érotisme (1957) analisa as variadas configurações do erotismo. Fundamentando a sua análise na proibição e na transgressão, ele parte da ideia de que o erotismo "é a aprovação da vida até mesmo na morte" (1957, p. 15) e o define como uma forma particular da atividade sexual de reprodução. Ele diz ainda que, sendo o sexo um atividade normal aos animais sexuados, só o homem é 7No original : "Si l'ennui des garnisons et les insatisfactions de sa carrière militaire ont contribué à la maturation des Liaisons dangereuses, c'est le déclassement d'un aristocrate et la solitude des prisons qui ont nourri la passion littéraire de Sade. Laclos est d'Amiens, homme du Nord, dans une famille de toute récente et toute petite noblesse. Né à Paris, Sade est originaire d'Avignon, homme du Midi, dans une ancienne lignée, apparentée aux Condé. Laclos a composé an seul livre, énigmatique et parfait. Sade s'est essayé à tous les genres, du théâtre au roman, à tous les tons, de la retenue allusive au déchaînement pornographique". (DELON, 2007, p. 236-237) 15 capaz de transformá-lo numa atividade érotica, neste ponto, Octavio Paz (1914-1998) concorda com Bataille, pois relata que " o erotismo não se deixa reduzir à pura sexualidade animal" e também o define: "O erotismo é desejo sexual e alguma coisa mais" (1999, p.22). Ao relacionar a morte ao erotismo, Bataille toma o marquês de Sade como um referencial e alega que este possui uma sensualidade aberrante. Tal sensualidade, presente nos livros do escritor em questão, somada à violência, que sempre acompanha as cenas de sexo, caracterizam a patologia cunhada a partir do nome do marquês, o Sadismo. A palavra surgiu oficialmente quando o psiquiatra alemão Richard Krafft-Ebing (1840-1902) a utilizou na sexta edição da sua obra Psychopatia sexualis, de 1886, para cunhar a perversão que até então se nomeava algolagnia8 ativa, que consiste na sensação de prazer proporcionada mediante a contemplação e submissão do sofrimento alheio. Há que se considerar, inicialmente, que perversão (do latim pervertere) liga-se a noção de desviar, subverter, cujo estudo principal realizado por Freud (1856-1939) a caracteriza como uma subordinação do orgasmo a outros objetos sexuais que não os considerados normais (FOLCO, 2005, p. 360). Depois do psiquiatra alemão, a palavra foi utilizada em estudos de Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e outros. Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ao falar do sadismo e do seu companheiro, o masoquismo, afirma: “A inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida, que são as mais frequentes e significativas de todas as perversões, foram denominadas por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de ‘sadismo’ e ‘masoquismo’ (passivo).” (FREUD, 1984, p. 148). Nesse mesmo estudo, Freud se questiona acerca do surgimento do masoquismo, se este surge como um comportamento primário ou se deriva do sadismo, e ele conclui que “o masoquismo não é outra coisa senão uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa, que com isso assume, para começar, o lugar do objeto sexual.” (FREUD, 1984, p. 149) Gilles Deleuze também se preocupou com as perversões. Na obra Présentation de Sacher-Masoch - Le froid et le cruel (1970, p. 15), ele reitera: “Para que serve a literatura? Os nomes de Sade e de Masoch servem ao menos para designar duas 8 Algolagnia, (do grego álgos dor, lagneía, cópula, coito) palavra utilizada pelo médico alemão Albert Von Schrenck-Notzing (1862 – 1929), para designar as anomalias sexuais. (LELY, 1967, p. 18) 16 perversões de base” 9. Contudo, o que se observa é que a literatura sadiana não serviu somente para designações. Com base nas obras do Divino Marquês e de Sacher- Masoch, Deleuze traçou aspectos da linguagem abordada por estes autores, suas descrições e ironias, discorreu sobre a complementaridade das duas perversões e de suas aplicações psicanalíticas. O autor ainda observa as circunstâncias em que ambos os comportamentos se desenvolvem, suas implicações encaradas não somente como sintomas de perversão, mas também como estilos de vida, apontando que a literatura desses autores ultrapassa o linguajar erótico. É o que constatamos neste trecho, em que o autor define o papel dos dois escritores: Em todo caso, doentes ou clínicos, e os dois ao mesmo tempo, Sade e Masoch são também grandes antropólogos à maneira daqueles que sabem engajar na sua obra toda uma concepção do homem, da cultura e da natureza ─ grandes artistas, à maneira daqueles que sabem extrair novas formas, e criar novas maneiras de sentir e de pensar uma nova linguagem.10 (DELEUZE, 1970, p.16, tradução nossa) A larga utilização das obras de Sade como estudo da psicologia, da psicanalise e mesmo da psiquiatria contribuem para o fato delas terem por muito tempo um reconhecimento apenas nessas áreas e não como um texto literário. Aliás, no que tange à literatura, seus livros foram repudiados desde a publicação, e por tempos depois, ao ponto de serem relegados ao ostracismo, já que eles foram encerrados no Enfer 11, onde permaneceram por quase duzentos anos, ocasionando assim o (quase) desconhecimento deles, e fazendo de Sade um escritor à margem do cânone. Mario Praz, em seu livro A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, nos fala sobre o crédito dado a Sade no século XIX, e nos lembra de que mesmo seu nome estando ainda numa espécie de limbo, não fora totalmente esquecido: 9 No original: “À quoi sert la littérature? Les noms de Sade et de Masoch servent au moins à désigner deux perversions de base.” (DELEUZE,1970, p. 15) 10 No original: “En tout cas, “malades” ou “cliniciens”, et les deux à la fois, Sade et Masoch sont aussi de grands antropologues à la manière de ceux qui savent engager dans leur oeuvre toute une conception de l’homme, de la culture et de la nature ─de grands artistes, à la manière de ceux qui savent extraire de nouvelles formes, et créer de nouvelles manières de sentir et de penser, tout un nouveau langage.” (DELEUZE, 1970, p.16) 11 Enfer, inferno em francês, designa o departamento de uma biblioteca onde são colocados os livros que pelo seu teor são proibidos ao público. (ROBERT, 2000, p. 1991) 17 Sade, um “sub-romântico”? não, mas eminência parda do romantismo sim, certamente, espiritozinho familiar sussurrante ao ouvido de mauvais maîtres e de poètes maudits; pois que, em resumo, ele só deu nome a um impulso que está em todo homem, impulso misterioso como as forças da própria vida e da morte com as quais está inextrincavelmente conectado. (PRAZ, 1996, p. 13) No que diz respeito aos aspectos literários do texto sadiano, temos as apreciações de Roland Barthes que, no livro Sade Fourier Loyola (1971), discorre sobre a linguagem dos três escritores relacionados no título da obra, considerando-os formuladores ou inventores de uma escritura do texto. Sobre Sade, o teórico diz que ele é fundador da linguagem do prazer e discorre sobre aspectos temáticos como a viagem, que se insere na obra como um tema iniciador, passando em seguida a falar sobre a clausura que, ao mesmo tempo em que isola os personagens e suas luxúrias das censuras morais, cria uma nova sociedade: A clausura sadiana é então cruel; ela tem uma dupla função, em primeiro lugar, evidentemente, isola, protege a luxúria dos organismos censores do mundo; [...] A clausura do lugar sadiano tem outra função: ela funda uma autarquia social. Uma vez fechados, os libertinos, suas ajudas, seus sujeitos formam uma sociedade completa, provida de economias, de uma moral, de uma linguagem e de um tempo articulado em horários, em trabalhos e em festas.12 (BARTHES, 1967, p. 22-23, tradução nossa) Em Sade et Restif de la Bretonne (1986), Maurice Blanchot analisa o gênio de Sade, afirmando que escrever era sua loucura peculiar. Salienta que sua filosofia é baseada no interesse, no egoísmo e que por isso vemos seus personagens fazendo o que lhes agrada sem se importar com o interesse do outro. Esclarece que o único erro humano, segundo Sade, era a crença em Deus, que se sugere ser um fator indicativo para ele descrever seus personagens clérigos tão devassos quanto quaisquer outros. 12 No original: La clôture sadienne est donc acharnée; elle a une double fonction, d’abord, bien entendu, isole, abrite la luxure des entreprises punitiers du monde; [...] La clôture du lieu sadien a une autre fonction: elle fonde une autarcie sociale. Une fois enfermés, les libertins, leurs aides et leurs sujets forment une société complète, pourvue d’économies, d’une morale, d’une parole et d’un temps articulé en horaires, en travaux et en fêtes. (BARTHES, 1967, p. 22-23) 18 Blanchot destaca a seguinte fala de Sade: “Que mal faço eu, que ofensa cometo, dizendo a uma bela criatura, quando eu a encontro: empreste-me a parte do seu corpo que pode me satisfazer um instante e desfrute, se isso te agrada, da parte do meu que pode lhe ser agradável.”13 (SADE apud BLANCHOT, 1986, p.15, tradução nossa). Blanchot classifica esse pensamento de Sade como uma espécie de declaração dos direitos do erotismo. Convém lembrar também que o crítico evidencia que, em várias páginas sadianas, é evocada uma igualdade dos indivíduos. A mesma observação sobre a existência de uma igualdade dos direitos é feita pela escritora inglesa Angela Carter. Ela, que defendia os direitos feministas, afirma que o ambiente erótico, espaço comumente negado às mulheres, é em Sade um veículo de denúncia e onde ele descreve a sociedade de sua época de forma satírica. Ela afirma também que ele cria, em seus escritos, um “museu de mulheres monstros”, ou seja, mulheres dotadas de certa liberdade moral, vivendo numa sociedade não livre. Carter lembra que Sade criou suas personagens femininas dotadas de liberdade sexual, diz que ele acredita que somente através do sexo as mulheres poderão se livrar da sua condição de subjugadas. Ainda falando das personagens femininas, ela acentua que o escritor francês as descreve mais cruéis que os personagens masculinos, pois elas usam desse poder como vingança. (CARTER, 1979) No inicio do século XX, a obra sadiana começou a se estabelecer com maior evidência. Guillaume Apollinaire (1880-1918), que conservava uma grande afeição pelos romances sadianos, recuperou oficialmente a obra do autor do limbo em que ela se encontrava. (BEAUVOIR, 1972, p. 7). Ele editou e publicou uma antologia das obras do autor de Justine, homenageando a coragem do homem que ele dizia ser o espírito mais livre que já existiu. Os surrealistas também contribuíram para o (re)conhecimento de Sade, sob a alcunha de “Divino Marquês”, endeusaram-no, pois viam nele um precursor (MORAES, 2011, p. 113). Em 1930, foi Maurice Heine quem trabalhou na publicação das obras de Sade. Gilbert Lely, além de publicar uma biografia do escritor, também publicou algumas de suas obras. Jean-Jacques Pauvert, o primeiro a publicar a obra completa do marquês, em 1956 sofreu um processo no qual a obra era acusada de 13 No original: “Quel mal fais-je, quelle offense commets-je, en disant à une belle créature, quand je la rencontre: prêtez-moi la partie de votre corps qui peut me satisfaire un instant et jouissez, si cela vous plaît, de celle du mien qui peut vous être agréable?” (BLANCHOT, 1986, p.15). 19 imoral e proibida para juventude. E mediante a constatação da sua originalidade o período de repúdio foi interrompido, ratificando as palavras de Antoine Compagnon: Por outro lado, o próprio cânone dos grandes escritores não é estável, mas conhece entradas (e saídas): a poesia barroca, Sade, Lautréamont, os romancistas do século XVIII são bons exemplos de redescobertas que modificaram nossa definição de literatura. (COMPAGNON, 2006, p. 34) O que não impede que sua obra cause o mesmo estranhamento, já que recentemente, a obra de Sade foi censurada pela Comissão Coreana de Ética Editorial que proibiu a venda e ordenou a destruição dos exemplares de Os 120 dias de Sodoma, publicado no último mês de agosto na Coreia do Sul. 20 1.3 LES INFORTUNES DE LA VERTU A sociedade apresentada pelo marquês de Sade em suas obras tem como característica principal o vício em todas as suas manifestações. Os hábitos, situações ou qualquer ideia que promova a devassidão são sempre estimulados e recompensados, ao passo que as virtudes ou qualquer comportamento que sugira retidão são execrados e rigorosamente punidos. Dentre seus escritos, tomamos como modelo dessas declarações as experiências das irmãs Justine e Juliette, descritas em Les infortunes de la vertu. Trata-se da primeira versão da história das duas irmãs. Tudo começa quando seus pais morrem após entrarem em falência. Elas, que viviam num mosteiro, e foram igualmente educadas, são colocadas na rua, e, mediante a incompatibilidade existente entre elas, cada uma segue um caminho diferente. Juliette, que trazia uma inclinação pelas perversões, inicia uma vida de prostituição, assassinatos e outros tantos outros comportamentos que podem ser apontados como viciosos, e obtém êxito em tudo o que faz; Justine, buscando preservar sua integridade religiosa, moral e física, vai amargar todos os suplícios, os quais anteriormente jamais imaginara, confirmando assim a máxima apregoada por Sade, que consiste no sucesso sempre alcançado pelos que optam pelo vício, em oposição à desventura que constantemente acompanha os que se mantêm na virtude. Após observarmos esses preceitos sadianos, percebemos que o binômio vício-virtude não é apenas recorrente em sua obra, mas se constitui como elemento basilar dela. A manifestação de sua oposição se estabelece na inversão dos valores atribuídos aos componentes do binômio. Valendo-nos de uma apresentação clássica sobre vício versus virtude, recorremos a Aristóteles que, em seu livro Ética a Nicômacos, vai discorrer a respeito das questões que os envolvem. Segundo ele, as virtudes, nomeadas de excelências humanas, caracterizam-se como uma predisposição moral às práticas louváveis, sendo que ele ressalta ainda que elas são qualidades arbitrárias que se adquirem e que, portanto, devem ser praticadas para alcançá-las. Numa diferenciação das virtudes e dos vícios − deficiências morais – o autor propõe que imaginemos uma linha horizontal. Nos extremos dessa linha estão os vícios, que serão a falta ou o excesso de determinada característica, e no meio estará a justa medida, o meio termo que marca o nível adequado de excelência moral. (ARITOTELES, 1985, p. 35 - 47). Vemos a partir daí que é relevante destacar a importância do papel que as virtudes desempenham nas sociedades, já que elas vão regulamentar os princípios considerados adequados à moral 21 e à religião. O Marquês de Sade, num ato contestatório, vai ao ponto onde acredita que desestabilizaria, desorganizaria o sistema em vigor, defendendo o inverso do que era visto como conveniente. A história das duas irmãs demonstra o desenvolvimento da inversão de valores apresentada por Sade desde o título. Por meio de uma leitura paratextual podemos relacionar o título da terceira versão da obra, La Nouvelle Justine, ou les Malheurs de la Vertu (A Nova Justine ou os Infortúnios da Virtude) com os títulos Julie ou La Nouvelle Héloïse (1743), de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e com Pamela, ou a Virtude Recompensada (1740), de Samuel Richardson (1689-1761). Tais obras, genericamente falando, revelam personagens que se conservam em integridade, apesar das situações adversas pelas quais passam e que as instigam a fazer o contrário do comme il faut. Ao fim, elas são recompensadas, o oposto do que satiricamente o escritor pornógrafo descreve em seus textos. A dualidade, da qual tratamos, foi determinante também na concepção das personagens sadianas. Justine, a casta, apresentará um discurso que assumirá invariavelmente um tom de súplica e reclamação, o que é justificado, já que seu comportamento é sempre reprovado, e por isso ela está constantemente em posição inferior aos que praticam as perversões. Abaixo, vemos um exemplo de sua fala, que acontece assim que ela sai do convento, já separada de sua irmã, decidida a buscar o apoio de uma velha conhecida, que se nega a ajudá-la: Oh, céu!» disse a pobre criatura, «é necessário que o primeiro passo que eu dê no mundo me conduza só às tristezas... essa mulher gostava de mim antes, por que ela me rejeita agora? Infelizmente, é porque sou órfã e pobre... é porque não tenho mais recursos no mundo e só se estimam as pessoas em razão dos seus recursos, ou dos agrados que se imaginam receber.(SADE, 1995, P. 6, tradução nossa) 14 O fato de associar esse estilo de discurso que alude à humilhação à personagem que durante toda a narrativa se manterá firme no propósito de preservar sua virtude, evidencia as desgraças sofridas por ela, por causa dessa posição inferior, numa confirmação de que atitudes como a dela não compensam. 14 No original: «Oh, ciel»! dit cette pauvre petite créature, «faut-il que le premier pas que je fais dans le monde ne me conduise déjà qu’aux chagrins… cette femme m’aimait autrefois, pourquoi donc me repousse-t-elle aujourd’hui?… Hélas, c’est que je suis orpheline et pauvre… c’est que je n’ai plus de ressource dans le monde et qu’on n’estime les gens qu’en raison des secours, ou des agréments que l’on s’imagine en recevoir.» (SADE, 1995, p.6) 22 Se o estilo de Justine é suplicante, o de Juliette, e o de todos aqueles que, como ela, são adeptos da depravação, será imperativo, sugerindo, previamente, a superioridade que os vícios têm sobre as virtudes. Como podemos perceber neste trecho em que religiosos falam com Justine: “Pegue essa vadia, Antonin, disse ele franzindo a testa, e despindo-a naquele momento aos nossos olhos, ensine-a que não é somente na casa de homens como nós que a compaixão pode ter direitos.”15 (SADE, 1995, p.60, tradução nossa). E aí sobressaem a crueza e o tom imperativo, que contrastam imediatamente com o tom piedoso, ingênuo e dogmático da anterior. Embora o livro organizado por Lynn Hunt (1999, p. 330) diga que a literatura com fins sexuais e como um gênero distinto só surgiu, na Europa ocidental, a partir da década de 1830, a obra sadiana notoriamente traz elementos do erotismo. No entanto, além disso, por conter aspectos questionadores o texto, assume uma peculiaridade filosófica. Na introdução ao livro da história de Justine, o narrador, que conta os fatos na terceira pessoa, nos demonstra a natureza da ideia que perpassa toda a obra. “Não acrescentaram eles, com alguma certeza, que é indiferente ao plano geral, que um ou outro seja bom ou mau por preferência; que se o mal persegue a virtude, e a prosperidade acompanha o crime, as coisas sendo iguais às intenções da natureza, vale infinitamente mais tomar partido dos maus que prosperam, que dos virtuosos que fracassam?” (tradução nossa) 16 Como no trecho acima, Sade vai se valer da oposição relatada, para revelar e debater a hipocrisia patente, instaurada na época, visto que, teoricamente, o exercício das excelências morais era superestimado, porém na prática, as deficiências imperavam tanto nos setores da sociedade, como nos meios religiosos, nos quais a reprovação por parte do escritor era mais veemente. Várias personagens, com o intuito de desvendar os olhos de Justine, revelarão em suas falas esse tom filosófico, que estabelecem Les 15 No original: «Prenez cette gueuse, Antonin», dit-il en fronçant le sourcil, «et en la mettant nue à l’instant sous nos yeux, apprenez lui que ce n’est pas chez des hommes comme nous que la compassion peut avoir des droits.» (SADE, 1995, p.60) 16 No original: “N’ajouteront-ils pas, avec quelque certitude, qu’il est indifférent au plan général, que tel ou tel soit bon ou méchant de préférence; que si le malheur persécute la vertu, et que la prospérité accompagne le crime, les choses étant égales aux intentions de la nature, il vaut infiniment mieux prendre parti parmi les méchants qui prosèrent, que parmi les vertueux qui échouent ? ” (SADE, 1995, p. 396). 23 infortunes de la vertu como um texto que incita à reflexão, inserindo o Marquês de Sade entre os pensadores do seu tempo. Por isso, declaramos que o texto sadiano nos faz ainda refletir acerca das implicações que envolvem o binômio apresentado. Uma das implicações seria se há mesmo como viver em completa virtude, ou em plena devassidão, já que a observação de que eles são inseparáveis, desfaz tal ideia. O fato de serem inseparáveis consiste no pensamento de que a moralidade às vezes requer vícios, sendo que um não exclui o outro, aliás, um precisa da outro para subsistir. 24 2. A PRESENTE TRADUÇÃO Les infortunes de la vertu, como já dissemos, é a primeira versão da história de Justine e Juliette, ela foi escrita em 1787, vindo a ser publicada apenas em 1930, por Maurice Heine. O texto foi encontrado na Bastilha e levado ao Enfer da Biblioteca nacional francesa, ninguém nunca tocara no texto até ser encontrado por Guillaume Apollinaire em 1909, onde se liam as seguintes inscrições: “Terminado ao fim de quinze dias, 8 de julho de 1787”17. Junto aos manuscritos do texto, havia cadernos preparatórios onde Sade fazia um roteiro da narrativa. A partir destes cadernos e dos manuscritos podemos observar o trabalho filológico do Marquês, as marcas das correções, as notas que as acompanham, serviram para compor as notas ao relato e para a escritura das outras versões, Justine ou les Malheurs de la vertu, de 1791, e La nouvelle Justine, ou les malheurs de la vertu, de 1799, em que a ampliação dos males sofridos por Justine, bem como as depravações praticadas por Juliette se intensificam. Mesmo com toda censura sofrida, a obra sadiana teve, no período de sua publicação, bastantes leitores; conforme afirma Gilberto Lely, foi um “livro de venda ativa e pública” (LELY, 1967, p. 261). Entretanto, adiante, com a censura sofrida, não só os livreiros foram coagidos por causa do livro, como o próprio Sade negou categoricamente tê-lo escrito, com intuito frustrado de escapar a prisão, onde, de fato foi parar em abril de 1801 desta vez sob a acusação de ter escrito La nouvelle Justine (LELY, 1967, p. 261-262). A partir de então, assistiu-se ao período de repúdio, o qual já citamos. Possivelmente, devemos a esse período o desconhecimento dos livros do Marquês de Sade no Brasil. Sabemos que o primeiro livro foi traduzido em 1961, talvez, devido às ideias de contracultura que alteravam os valores socioculturais do momento. Desde então, algumas obras do escritor francês em questão tiveram algumas edições no Brasil, sem, contudo, abranger toda a obra do autor. Abaixo segue uma lista dos livros já traduzidos: 1961. Novelas do marquês de Sade. Trad: Augusto de Souza. Ed: Difusão Européia do Livro. 1967. Justine. Trad: D. Accioly. Ed: Saga. 1968. A Filosofia na Alcova. Trad: Martha A. Haecker. Ed: JCM. 17 No original: “Fini au bout de quinze jours, le 18 juillet 1877. ” (SADE, p. 1113) 25 1968. Zoloé e suas duas amantes. Trad: Maria José Fíalho Londres. Ed: Record. 1969. Os 120 dias de Sodoma. Trad: João M. P. de Albuquerque. Ed: Hemus. 1969. A Filosofia na Alcova. Trad: Aloísio Costa. Ed: Coordenada. 1969. Aline e Valcour. Trad: Rubem Rocha Filho. Ed: José Álvaro. 1969. O livro negro do amor. Trad: não mencionado. Ed: Hemus. 1970. Os crimes do amor. Trad: Regina Richard; Lino Tavares. Ed: Coordenada. 1975. A divina marquesa. Trad: Aluísio F. Ciano. Ed: Golfinho. 1980. A Filosofia na Alcova. Trad: R. G. Ed: Gama. 1980. Escola de libertinagem. Trad: Aloísio Costa. Ed: Esquina. 1988. Ciranda dos Libertinos. Trad: L. A. Contador Borges. Ed: Max Limonad. 1988. A Filosofia na Alcova. Trad: Mary A. Leite de Barros. Ed: Circulo do Livro. 1989. Justine: Os sofrimentos da virtude. Trad: Gilda Stuart. Ed: Circulo do Livro. 1992. Eugénie de Franval. Trad: Eliane R. Moraes. Ed: Educ. 1992. Contos libertinos. Trad: Plínio A. Coelho; Alípio C. de F. Neto. Ed: Imaginário. 1995. A Filosofia na Alcova. Trad: Anônimo da década de 40 revisada por Eliane Robert Moraes. Ed: Àlgama. 1995. A Filosofia na Alcova. Trad: Aloísio Costa. Ed: Thesaurus. 1998. Discursos ímpios. Trad: Plínio Augusto Coelho. Ed: Imaginário. 1998. O marido complacente. Trad: Paulo Hecker Filho. Ed: L&PM. 1999. A Filosofia na Alcova. Trad: Augusto C. Borges. Ed: Iluminuras. 1999. O presidente ludibriado. Trad: Sérgio Coelho. Ed: Imaginário. 2000. Os crimes do amor. Trad: Magnólia Costa Santos. Ed: L&PM. 2001. Dialogo entre um padre e um moribundo. Trad: Alain François e Contados Borges. Ed: Iluminuras. 2006. Os 120 dias de Sodoma ou A Escola da Libertinagem. Trad.: Alain François. Ed: Iluminuras. 2009. Cartas de Vincennes: um libertino na prisão. Trad.: Gabriel Giannattasio. Eduel. 2009. Os infortúnios da virtude. Trad.: Mauro Paciornik. Ed: Iluminuras. Este trabalho de tradução é feito a partir da edição proposta pela editora Gallimard que publicou as obras completas sob a organização de Michel Delon. A opção pela tradução de Les infortunes de la vertu deu-se por ter sido este o primeiro livro que lemos do autor e por se tratar da versão embrionária da história de Justine e Juliette. 26 Partimos do pressuposto de que a tradução assume a função de reproduzir em outra língua, a língua receptora, a mensagem da língua de origem, da maneira mais equivalente e natural possível, respeitando o sentido e o estilo do autor. (LADMIRAL, 1980, p. 88) Nas diversas teorias referentes à tradução, a maioria dos estudiosos concorda com fato de que traduzir o sentido do texto no original seria o mais apropriado fazer. Valery Larbaud ressalta que São Jerônimo, tradutor da Vulgata já em seu tempo prezava por esse ponto.(LARBAUD, 2001, p. 47) Como se trata de uma tradução literária é conveniente lembrar que as discussões acerca da traduzibilidade de tais textos são variadas. Paulo Ronai é um dos que aborda tal tema e associa essa ideia ao clássico pensamento de traditore / tradutore, dizendo que o tradutor trai a ideia do autor já que o pensamento está condicionado ao idioma de origem. (RONAI, 1976, p. 18) Ao constatar a impossibilidade da equivalência absoluta numa tradução, ele nos orienta: “Desde então, em matéria de traduzir, contentamo-nos de aproximações. Procuremos, por um esforço da imaginação, meter-nos na pele do autor e dizer o que ele diria se falasse a nossa língua.” Além dessas observações, lemos também que a tradução não se preocupa apenas com o mero transporte de significados de um idioma ao outro; sendo antes uma atividade criadora de significados, é próprio do tradutor o papel de mediador com a função de produzir esses significados, de forma que alcance a comunidade cultural a que pertence o leitor. (ARROJO, 1996, p. 77) Considerando essas apreciações, podemos observar a proposta de Antoine Berman (1942-1991), tradutor e estudioso da tradução, que comtemplando a ética na tradução, destaca que o estrangeiro será sempre estrangeiro, numa tradução ele deveria ser convidado a entrar em outra cultura sem perder suas características próprias. Na mesma lógica, ele reprova a tradução que denomina como etnocêntrica que consiste em fazer o inverso, naturalizar o texto, trazendo tudo para sua própria cultura. (2007, p.29). Nisso, Berman propõe uma "fidelidade à letra" (2007, p. 70) que consiste em acolher o estrangeiro. Essa mesma ideia foi proposta por Friedrich Schleiermacher e desenvolvida por Lawrence Venuti, que designou a tradução estrangeirizadora, como aquela em que há a manutenção dos aspectos textuais do texto de partida, aceitando a diferença do outro, e a tradução domesticadora, onde o texto traduzido é adaptado às características 27 culturais da língua de chegada, minimizando qualquer traço que possa causar estranhamento ao leitor. (VENUTI, 2002, p. 150-165) Levando em conta a distância temporal e cultural do momento em que foi escrito Les infortunes de la vertu, procedemos aqui à tradução estrangeirizadora, privilegiando o texto de partida, observando as indicações que se fazem para seguir o sentido e estilo dados pelo autor original, mas sem esquecer que a tradução pode ser considerada também um processo de recriação. 28 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS “120 DIAS de Sodoma” é banido na Coreia do Sul. Revista Cult. Disponível em: Acesso em: outubro de 2012. APOLLINAIRE, Guillaume. L'oeuvre du Marquis de Sade. Paris: Bibliothèque des curieux, 1909. ARISTOTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 91- 114. ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 3 ed. São Paulo: Ática, 1996. BARTHES, Roland. Sade Fourier Loyola. Paris: Éditions du Seuil, 1971. BATAILLE, Georges. L’Érotisme: l’interdit et la transgression. Paris: Éditions de Minuit, 1957. BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris Gallimard 1995 BERMAN, Antoine. A tradução e a letra, ou, O albergue do longínquo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. BEAUVOIR, Simone de. Faut-il brûler Sade? La pensée de droit aujourd’hui. Paris: Gallimard, 1955. BLANCHOT, Maurice. Sade et Restif de la Bretonne. Paris: Éditions Complexe, 1986. CANTO-SPERBER, Monique. (Org.) “Materialismo”. In. Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 143-148. CARTER, Angela. The Sadein Woman: an exercise in cultural history. London: Wrago, 1979. 29 COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. DARCOS, Xavier. Histoire de la littérature française. Paris: Hachette, 1992, p. 113- 258. DELEUZE, Gilles. Présentation de Sacher-Masoch - Le froid et le cruel. Paris: Éditions de Minuit, 1970. DELON, Michel." XVIIIe siècle". In: ________. Et al Sous la direction de J.-Y. Tadié. La littérature française: dynamique & histoire II. Paris: Éditions Gallimard, 2007, p. 09-273. DESHUSSES, Pierre. Dix siècles de littérature française: du Moyen Âge au XVIIIeme siècle. Paris: Bordas, 1984, p. 223-317. DICTIONNAIRE Electronique des Synonymes (DES). Disponível em: < http://www.crisco.unicaen.fr/des/>. Acesso em: 2011. DICTTIONNAIRE de français "Littré". Disponível em: . Acesso em: 2012. FOLCO, Philippe di. (org.) Dictionnaire de la Pornographie. Paris: Presses Universitaires de France, 2005. FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XII. Trad.; Jayme Salomão. 2 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1984. GIANNATTASIO, Gabriel. Sade: um anjo negro da modernidade. São Paulo: Editora Imaginário, 2000. HUNT, Lynn. (Org.) A Invenção da Pornografia: Obscenidade e as Origens da Modernidade. São Paulo: Hedra, 1999. LADMIRAL, Jean-René. A tradução e seus problemas. Trad. de Luísa Azuaga. São Paulo: Edições 70, 1980. LARBAUD, Valery. Sob a invocação de São Jerônimo. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Editora Mandarim, 2001. 30 LAGARDE, André; MICHARD, Laurent. XVIIIe: Les grands auteurs français du programme. Paris: Bordas, 1959. LE DICTIONNAIRE de la Zone: tout l'argot des banlieues. Disponível em http://www.dictionnairedelazone.fr/. 2000-2010. Acesso em: 2012. LELY, Gilbert. Vie du Marquis de Sade. Paris: Mercure de France, 1989. MORAES, Eliane Robert. A felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994. MORAES, Eliane Robert. O que é pornografia. São Paulo: Brasiliense, 1984. MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Iluminuras, 2011. PAZ, Octávio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999. ROBERT, Paul. Petit Robert: dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2000. RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores. 4 ed. Rio de Janeiro: Educom, 1976. RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. SADE, Marquis de. Oeuvres II. Paris: Galliamard, 1995. SOLLERS, Philippe. Sade - contra o ser supremo precedido de Sade no tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Bauru: EDUSC, 2002. 31 TRADUÇÃO 32 LES INFORTUNES DE LA VERTU Le triomphe de la philosophie serait de dêmeler l’obscurité des voies dont la Providence se sert pour parvenir aux fins qu’elle se propose sur l’homme, et de tracer d’après cela quelque plan de conduite qui pût faire connaître à ce malheureux individu bipède, perpétuellement ballotté par les caprices de cet être qui, dit-on, le dirige aussi despotiquement, la manière dont il faut qu’il interprète les décrets de cette Providence sur lui, la route qu’il faut qu’il tienne pour prévenir les caprices bizarres de cette fatalité à laquelle on donne vingt noms différents, sans être encore parvenu à la définir. Car si, partant de nos conventions sociales et ne s’écartant jamais du respect qu’on nous inculqua pour elles dans l’éducation, il vient malheureusement à arriver que par la perversité des autres, nous n’ayons pourtant jamais rencontré que des épines18, lorsque les méchants ne cueillaient que des roses, des gens faibles et sans un fonds de vertu assez constaté pour se mettre au-dessus des réflexions fournies par ces tristes circonstances, ne calculeront-ils pas qu’alors il vaut mieux s’abandonner au torrent que d’y résister, ne diront-ils pas que la vertu telle belle qu’elle soit, quand malheureusement elle devient trop faible pour lutter contre le vice, devient le plus mauvais parti qu’on puisse prendre un être quelconque et que dans un siècle entièrement corrompu le plus sûr est de faire comme les autres? Un peu plus instruits si l’on veut, et abusant des lumières qu’ils ont acquises, ne diront-ils pas avec l’ange Jesrad de Zadig19 qu’il n’y a aucun mal dont il ne naisse un bien; n’ajouteront-ils pas à cela d’eux-mêmes que puisqu’il y a dans la constitution imparfaite de notre mauvais monde une somme de maux égale à celle du bien, il est essentiel pour le maintien de l’équilibre qu’il y ait autant de bons que de méchants, et que d’après cela il devien t égal au plan général que tel ou tel soit bon ou méchant de préférence; que si le malheur persécute la vertu, et que la prospérité accompagne presque toujours le vice, la chose étant égale aux vues de la nature, il vaut infiniment mieux prendre parti parmi les méchants qui prospèrent que 18 Le point de vue du narrateur est ici celui de la vertu, par opposition aux méchants et même aux "gens faibles et sans un fonds de vertu assez constaté". (Nota do editor = N. E.) 19Sade détourne la leçon de Voltaire qui ne met pas em doute la nécessité d'une morale. Zadig, dans le conte qui porte son nom, va consulter un ermite qui se révèle être l'ange Jesrad. "Mais quoi! Dit Zadig, il est donc nécessaire qu'il y ait des crimes et des malheurs, et les malheurs tombent sur les gens de bien? – Les mechants, repondit Jesrad, sont toujours malheureux: ils servent à éprouver un petit nombre de justes répandus sur la terre, et il n'y a point de mal dont il ne naisse un bien" (Zadig ou la destinée, Romans et contes, Bibl. de la Pléiade, p. 113-114) Le conte de Voltaire apparaît souvent dans la fiction de l'époque. On le trouve sur la table d'une aristocrate contrainte à l'exil ou entre les mains d'une future libertine. (N. E) 33 OS INFORTÚNIOS DA VIRTUDE O triunfo da filosofia seria o de esclarecer os caminhos dos quais a Providência se serve para chegar aos fins que ela se propõe em relação ao homem, e traçar, depois disso, algum plano de conduta que possa revelar a esse infeliz indivíduo bípede, perpetuamente balançado pelos caprichos desse ser que, como dizem, o dirige tão despoticamente, a maneira pela qual é necessário que ele interprete os decretos desta Providência sobre si; o caminho que se deve seguir para prevenir os bizarros caprichos desta fatalidade, que é nomeada com vinte nomes diferentes, sem, contudo, ser definida. Pois se, partindo de nossas convenções sociais e nunca nos afastando do respeito que nos foi inculcado por elas na educação, é possível infelizmente que, pela perversidade dos outros, nunca encontremos nada a não ser espinhos20, enquanto os maus só colhem rosas, pessoas fracas e sem nenhuma virtude para se colocar acima das reflexões fornecidas por estas tristes circunstâncias, será que não vão avaliar, então, que é melhor deixar-se levar pela corrente do que resistir a ela? Será que não vão dizer que a virtude, por mais bela que seja, quando, infelizmente, se torna fraca demais para lutar contra o vício, torna-se o pior partido que qualquer ser possa tomar e que, em um século inteiramente corrompido, o mais seguro é fazer como os outros? Admitindo que sejam um pouco mais instruídos e que abusem dos conhecimentos que adquiriram, será que não vão dizer juntamente com o anjo Jesrad de Zadig, que não há nenhum mal de onde não nasça um bem21; será que por eles próprios não vão acrescentar a isso que, da mesma forma que existe na constituição imperfeita do nosso mundo mau uma soma de males igual à do bem, é essencial para a manutenção do equilíbrio que haja o mesmo tanto de bons e de maus, e que, a partir disso, é indiferente ao plano geral, que um ou outro seja bom ou mau por preferência; que se o mal persegue a virtude e que a prosperidade acompanha quase sempre o vício, essa situação sendo igual aos olhos da natureza, é infinitamente melhor ficar ao lado dos maus que prosperam que 20 O ponto de vista do narrador é o da virtude, em oposição aos maus, e mesmo "às pessoas fracas e privadas de um pouco de virtude". (N. E.) 21 Com a citação do conto Zadig ou la Déstinée (1747), de Voltaire, Sade se opõe à lição proposta por ele, que não punha em dúvida a necessidade de uma moral. Zadig, no conto homônimo, consulta um ermitão que se revela ser o anjo Jesrad. "Mas, o quê! disse Zadig, então é necessário que haja crimes e infortúnios, e os infortúnios recaem sobre as pessoas de bem? – Os maus, respondeu Jesrad, são sempre infelizes: eles servem para enfrentar um pequeno número de justos espalhados pela terra, e não há nenhuma mal de onde não nasça um bem". (Zadig ou la destinée, Romans et contes, Bibl. de la Pléiade, p. 113-114) O conto de Voltaire aparece frequentemente nas ficções da época. Ele é encontrado tanto na mesa de um aristocrata aprisionado no exilo, como nas mãos de uma futura libertina.(N. E.) 34 parmi les vertueux qui périssent? Il est donc important de prévenir ces sophismes dangereux de la philosophie, essentiel de faire voir que les exemples de la vertu malheureuse présentés à une âme corrompue dans laquelle il reste encore pourtant quelques bons principes, peuvent ramener cette âme au bien tout aussi sûrement que si on lui eût offert dans cette route de la vertu les palmes les plus brillantes et les plus flatteuses récompenses. Il est cruel sans doute d’avoir à peindre une foule de malheurs accablant la femme douce et sensible qui respecte le mieux la vertu, et d’une autre part la plus brillante fortune chez celle qui la méprise toute sa vie; mais s’il naît cependant un bien de l’esquisse de ces deux tableaux, aura-t-on à se reprocher de les avoir offerts au public? pourra-t-on former quelque remords d’avoir établi un fait, d’où il résultera pour le sage qui lit avec fruit la leçon si utile de la soumission aux ordres de la providence, une partie du développement de ses plus secrètes énigmes et l’avertissement fatal que c’est souvent pour nous ramener à nos devoirs que le ciel frappe à côté de nous les êtres qui paraissent même avoir le mieux rempli les leurs? Tels sont les sentiments qui nous mettent la plume à la main, et c’est en considération de leur bonne foi que nous demandons à nos lecteurs un peu d’attention mêlé d’intérêt pour les infortunes de la triste et misérable Justine. Mme la comtesse de Lorsange était une de ces prêtresses de Vénus, dont la fortune est l’ouvrage d’une figure enchanteresse, de beaucoup d’inconduite et de fourberie, et dont les titres quelque pompeux qu’ils soient ne se trouvent que dans les archives de Cythère, forgés par l’impertinence qui les prend et soutenus par la sotte crédulité qui les donne. Brune, fort vive, une belle taille, des yeux noirs d’une expression prodigieuse, de l’esprit et surtout cette incrédulité de mode qui, prêtant un sel de plus aux passions, fait rechercher avec bien plus de soin la femme en qui l’on la soupçonne; elle avait reçu néanmoins la plus brillante éducation possible; fille d’un très gros commerçant de la rue Saint-Honoré22, elle avait été élevée avec une soeur plus jeune qu’elle de trois ans dans un des meilleurs couvents de Paris, où jusqu’à l’âge de quinze ans, aucun conseil, aucun maître, aucun bon livre, aucun talent ne lui avait été refusé. 22 La rue Saint-Honoré est au XVIIIe siècle une des plus riches de la capitale. (N. E.) 35 entre os virtuosos que morrem? É importante, portanto, evitar esses sofismas perigosos da filosofia; é essencial revelar que os exemplos da virtude infeliz, apresentados a uma alma corrompida, na qual, contudo, restam ainda alguns bons princípios, podem trazer de volta essa alma ao bem tão certamente que se lhe tivessem ofertado neste caminho da virtude os louros mais brilhantes e as mais lisonjeiras recompensas. Talvez seja cruel ter de retratar inúmeros males pesando sobre a mulher doce e sensível que respeita ao máximo a virtude, e por outro lado, a mais brilhante fortuna daquela mulher que a despreza toda a sua vida; mas, se do esboço desses dois quadros, nascer um bem, teremos que nos repreender de tê-los ofertado ao público? Poderemos ficar com algum remorso de ter estabelecido um fato, de onde resultará para o sábio que lê com proveito a lição tão útil da submissão às ordens da providência, uma parte do desenvolvimento dos seus mais secretos enigmas e a advertência fatal segundo a qual é frequentemente para nos trazer de volta aos nossos deveres que o céu atinge, ao nosso lado, os seres que parecem até mesmo ter cumprido melhor seus deveres? Tais são os sentimentos que nos colocam a pena na mão e é em consideração à boa fé dos nossos leitores que nós lhes pedimos um pouco de atenção misturado com interesse pelos infortúnios da triste e miserável Justine. A condessa de Lorsange era uma dessas sacerdotisas de Vênus, cuja fortuna era obra de uma aparência encantadora, de muita leviandade e dissimulação, cujos títulos, por mais pomposos que sejam, encontram-se apenas nos arquivos de Citera23, forjados pela impertinência de quem os assume e sustentados pela estúpida credulidade de quem os dá. Morena, cheia de vida, bem modelada, uns olhos negros de uma expressão prodigiosa, uma inteligência e, sobretudo, modos libertinos que, ao apimentar um pouco mais as paixões, leva a procurar muito mais a mulher que se sente nela. Ela recebera, no entanto, a mais brilhante educação possível. Filha de um riquíssimo comerciante da Rua Saint-Honoré24, fora educada, junto com uma irmã três anos mais nova que ela, em um dos melhores conventos de Paris, onde, até a idade de quinze anos, nenhum conselho, nenhum mestre, nenhum bom livro, nenhum talento lhe fora negado. 23 Ilha da Grécia, referida como a ilha do amor. (Nota do tradutor = N. T.) 24 No século XVIII, a Rua Saint-Honoré era uma das mais ricas da capital. (N. E.) 36 A cette époque fatale pour la vertu d’une jeune fille, tout lui manqua dans un seul jour. Une banqueroute affreuse précipita son père dans une situation si cruelle que tout ce qu’il put faire pour échapper au sort le plus sinistre fut de passer promptement en Angleterre, laissant ses filles à sa femme qui mourut de chagrin huit jours après le départ de son mari. Un ou deux parents qui restaient au plus délibérèrent sur ce qu’ils feraient des filles, et leur part faite se montant à environ cent écus chacune, la résolution fut de leur ouvrir la porte, de leur donner ce qui leur revenait et de les rendre maîtresses de leurs actions. Mme de Lorsange qui se nommait alors Juliette et dont le caractère et l’esprit étaient à fort peu de chose près aussi formés qu’à l’âge de trente ans, époque où elle était lors de l’anecdote que nous racontons, ne parut sensible qu’au plaisir d’être libre, sans réfléchir un instant aux cruels revers qui brisaient ses chaînes. Pour Justine, sa soeur, venant d’atteindre sa douzième année, d’un caractère sombre et mélancolique, douée d’une tendresse, d’une sensibilité surprenantes, n’ayant au lieu de l’art et de la finesse de sa soeur, qu’une ingénuité, une candeur, une bonne foi qui devaient la faire tomber dans bien des pièges, elle sentit toute l’horreur de sa position. Cette jeune fille avait une physionomie toute différente de celle de Juliette; autant on voyait d’artifice, de manège, de coquetterie dans les traits de l’une, autant on admirait de pudeur, de délicatesse et de timidité dans l’autre. Un air de vierge, de grands yeux bleus pleins d’intérêt, une peau éblouissante, une taille fine et légère, un son de voix touchant, des dents d’ivoire et de beaux cheveux blonds, telle est l’esquisse de cette cadette charmante dont les grâces naïves et les traits délicieux sont d’une touche trop fine et trop délicate pour ne pas échapper au pinceau qui voudrait les réaliser. On leur donna vingt-quatre heures à l’une et à l’autre pour quitter le couvent, leur laissant le soin de se pourvoir avec leurs cent écus où bon leur semblerait. Juliette, enchantée d’être sa maîtresse, voulut un moment essuyer les pleurs de Justine, mais voyant qu’elle n’y réussirait pas, elle se mit à la gronder au lieu de la consoler, elle lui dit qu’elle était une bête et qu’avec l’âge et les figures qu’elles avaient, il n’y avait point d’exemple que des fille mourussent de faim; elle lui cita la fille d’une de leurs voisines, qui s’étant échappée de la maison paternelle, était maintenant richement entretenue par un fermier général et roulait carrosse à Paris. 37 Nesta época fatal para a virtude de uma moça, tudo lhe faltou em um único dia. Uma bancarrota terrível deixou seu pai em uma situação tão cruel que tudo o que ele pode fazer para escapar desse destino desastroso foi ir imediatamente para Inglaterra, deixando suas filhas com sua esposa que morreu de desgosto oito dias após a partida de seu marido. Um ou dois parentes que restaram decidiram o que fazer com as meninas e com a parte delas da herança, que chegava a cerca de cem escudos25 para cada uma, a resolução foi de lhes abrir a porta e lhes dar o que tinham de direito e torná-las donas de suas ações. A Senhora de Lorsange, que se nomeava na época Juliette, cujo caráter e inteligência eram praticamente tão formados quanto os de uma mulher de trinta anos, situação em que se encontrava por ocasião do caso que estamos contando, parecia ser sensível apenas ao prazer de ser livre, sem refletir um instante nas cruéis desventuras que rompiam suas amarras. Justine, sua irmã, que acabava de atingir os seus doze anos, de um caráter sombrio e melancólico, dotada de uma ternura e de uma sensibilidade surpreendentes, que, ao invés da destreza e da perspicácia de sua irmã, tinha apenas uma candura, uma boa fé que iam fazê-la cair em muitas armadilhas, sentiu todo o horror de sua posição. Essa moça tinha uma fisionomia completamente diferente da de Juliette; quanto mais artifícios, astúcias e sedução víamos nos traços de uma, mais pudor, delicadeza e timidez admirávamos na outra. Um ar de virgem, com grandes olhos azuis cheios de curiosidade, uma pele deslumbrante, uma estatura delicada, de uma voz comovente, dentes de marfim e lindos cabelos loiros, assim é o esboço dessa caçula encantadora cuja graça inocente e cujos traços fascinantes apresentam um toque demasiado fino e delicado para não escapar ao pincel que desejaria desenhá-los. Deram a ambas vinte e quatro horas para sair do convento, deixando-lhes a responsabilidade de se sustentarem com os seus cem escudos onde bem quisessem. Juliette, entusiasmada por ser dona de si mesma, quis por um momento enxugar as lágrimas de Justine, mas ao ver que não conseguiria, começou a repreendê-la ao invés de consolá-la. Disse-lhe que era uma boba, que com a idade e a fisionomia que elas tinham não havia nenhum registro de menina que morrera de fome. Citou a filha de uma de suas vizinhas, que após ter fugido da casa paterna era sustentada ricamente por um fazendeiro e andava de carruagem em Paris. 25 Écu em francês, antiga moeda francesa, cunhada em 1263, esteve em vigor até a Revolução Francesa. Um escudo antigo valia três francos. (N. T.) 38 Justine eut horreur de ce pernicieux exemple, elle dit qu’elle aimerait mieux mourir que de le suivre et refusa décidément d’accepter un logement avec sa soeur sitôt qu’elle la vit décidée au genre de vie abominable dont Juliette lui faisait l’éloge. Les deux soeurs se séparèrent donc sans aucune promesse de se revoir, dès que leurs intentions se trouvaient si différentes. Juliette qui allait, prétendait-elle, devenir une grande dame, consentirait-elle à revoir une petite fille défît les inclinations vertueuses et basses allaient la déshonora, et de son côté Justine voudrait-elle risquer ses moeurs dans la société d’une créature perverse qui allait devenir victime de la crapule et de la débauche publique? Chacune chercha donc des ressources et quitta le couvent dès le lendemain ainsi que cela était convenu. Justine caressée étant enfant par la couturière de sa mère, s’imagina que cette femme serait sensible à son sort, elle fut la trouver, elle lui raconta sa malheureuse position, lui demanda de l’ouvrage et en fut durement rejetée… «Oh, ciel»! dit cette pauvre petite créature, «faut-il que le premier pas que je fais dans le monde ne me conduise déjà qu’aux chagrins… cette femme m’aimait autrefois, pourquoi donc me repousse-t-elle aujourd’hui?… Hélas, c’est que je suis orpheline et pauvre… c’est que je n’ai plus de ressource dans le monde et qu’on n’estime les gens qu’en raison des secours, ou des agréments que l’on s’imagine en recevoir.» Justine voyant cela fut trouver le curé de sa paroisse, elle lui demanda quelques conseils, mais le charitable ecclésiastique lui répondit équivoquement que la paroisse était surchargée, qu’il était impossible qu’elle pût avoir part aux aumônes, que cependant si elle voulait le servir, il la logerait volontiers chez lui; mais comme en disant cela le saint homme lui avait passé la main sous le menton en lui donnant un baiser beaucoup trop mondain pour un homme d’Église, Justine qui ne l’avait que trop compris se retira fort vite, en lui disant : «Monsieur, je ne vous demande ni l’aumône, ni une place de servante, il y a trop peu de temps que je quitte un état au-dessus de celui qui peut faire solliciter ces deux grâces, pour en être encore réduite là; je vous demande les conseils dont ma jeunesse et mon malheur ont besoin, et vous voulez me les faire acheter par un crime…» Le curé révolté de ce terme ouvre la porte, la chasse brutalement, et Justine, deux fois repoussée dès le premier jour qu’elle est condamnée à 39 Justine ficou horrorizada com este pernicioso exemplo, disse que ela preferia morrer a segui-lo e negou-se definitivamente a morar com sua irmã, logo que a viu decidida a levar essa vida abominável a qual Juliette elogiava. As duas irmãs se separaram, portanto, sem nenhuma promessa de se rever, visto que suas intenções eram tão diferentes. Será que Juliette, que, conforme suas intenções, ia se tornar uma grande dama, consentiria em rever uma menina entregue às inclinações virtuosas e inferiores, que a desonravam? Por sua vez, Justine, aceitaria arriscar seus bons modos na companhia de uma criatura perversa que ia se tornar vítima da escória e da devassidão pública? Cada uma, então, procurou seus recursos e deixou o convento no dia seguinte, conforme o combinado. Justine, bajulada pela costureira de sua mãe quando criança, imaginou que esta mulher seria sensível a sua sorte e foi encontrá-la, contou-lhe sua infeliz posição, lhe pediu trabalho e foi duramente rejeitada... «Oh, céu!» disse a pobre criatura, «é necessário que o primeiro passo que eu dê no mundo me conduza só às tristezas... essa mulher gostava de mim antes, por que ela me rejeita agora? Infelizmente, é porque sou órfã e pobre... é porque não tenho mais recursos no mundo e só se estimam as pessoas em razão dos seus recursos, ou dos agrados que se imagina delas receber.» Ao ver isso, Justine foi procurar o padre de sua paróquia, ela lhe pediu alguns conselhos, mas o caridoso eclesiástico lhe respondeu equivocadamente que a paróquia estava sobrecarregada, que era impossível que ela pudesse se beneficiar das esmolas, que, no entanto, se ela quisesse servi-lo, ele a abrigaria voluntariamente em sua casa. Mas ao dizer isso, o santo homem passou a mão no queixo da menina, dando-lhe um beijo demasiadamente mundano para um homem de igreja. Justine, entendendo o que acontecia, afastou-se rapidamente, dizendo-lhe: «Senhor, não lhe peço nem esmola, nem um emprego de doméstica. Há muito pouco tempo eu deixei um estado acima desse que poderia fazer solicitar esses dois favores, para já ser submetida a essa situação; peço-lhe os conselhos, dos quais a minha juventude e o meu infortúnio precisam, e o senhor quer que eu os compre com um crime...» O padre, revoltado com essas palavras, abre a porta e a expulsa brutalmente, e Justine, pela segunda vez rejeitada logo no primeiro dia em que foi condenada ao 40 l’isolisme26, entre dans une maison où elle voit un écriteau, loue une petite chambre garnie, la paye d’avance et s’y livre tout à l’aise au chagrin que lui inspirent son état et la cruauté du peu d’individus auxquels sa malheureuse étoile l’a contrainte d’avoir affaire. Le lecteur nous permettra de l’abandonner quelque temps dans ce réduit obscur, pour retourner à Juliette et pour lui apprendre le plus brièvement possible comment du simple état où nous la voyons sortir, elle devint en quinze ans femme titrée, possédant plus de trente mille livres de rentes, de très beaux bijoux, deux ou trois maisons tant à la campagne qu’à Paris, et pour l’instant, le coeur, la richesse et la confiance de M. de Corville, conseiller d’État, homme dans le plus grand crédit et à la veille d’entrer dans le ministère… La route fut épineuse… on n’en doute assurément pas, c’est par l’apprentissage le plus honteux et le plus dur, que ces demoiselles-là font leur chemin, et telle est dans le lit d’un prince aujourd’hui qui porte peut-être encore sur elle les marques humiliantes de la brutalité des libertins dépravés, entre les mains desquels son début, sa jeunesse et son inexpérience la jetèrent. En sortant du couvent, Juliette fut tout simplement trouver une femme qu’elle avait entendu nommer à cette amie de son voisinage qui s’était pervertie et dont elle avait retenu l’adresse; elle y arrive effrontément avec son paquet sous le bras, une petite robe en désordre, la plus jolie figure du monde, et l’air bien écolière; elle conte son histoire à cette femme, elle la supplie de la protéger comme elle a fait il y a quelques années de son ancienne amie. «Quel âge avez-vous, mon enfant?» lui demande Mme Du Buisson. «Quinze ans dans quelques jours, madame.» – Et jamais personne… – Oh non, madame, je vous le jure. – Mais c’est que quelquefois dans ces couvents un aumônier… une religieuse, une camarade… il me faut des preuves sûres. – Il ne tient qu’à vous de vous les procurer, madame… 26 D'après l'enquete historique menée par Érica-Marie Benabou, si certaines courtisanes jouissent plus ou moins longtemps d'un mode de vie semblable à celui de Juliette, rares sont celles qui s'assurent u tel revenu (La Prostitution et la Police de moeurs au XVIIIe siècle, Perrin, 1987, p 330-383). (N. E.) 41 isolismo27, entra em uma casa onde vê um letreiro, aluga um quarto mobiliado, paga adiantado e se entrega sem constrangimento à tristeza que lhe inspiram seu estado e a crueldade dos poucos indivíduos com os quais sua estrela infeliz a obrigou a cruzar. O leitor nos permitirá abandoná-la algum tempo nesse lugar obscuro, para retornar a Juliette e para lhe comunicar, o mais brevemente possível, como, do simples estado de onde nós a vimos sair, ela se tornou em quinze anos uma mulher com título, possuindo mais de trinta mil libras de rendas28, joias muito lindas, duas ou três casas, tanto no campo, como em Paris, e no momento, o coração, a riqueza e a confiança do senhor de Corville, conselheiro do Estado, homem de maior prestígio e às vésperas de entrar no ministério... A estrada foi espinhosa... Certamente não duvidamos disso, é pela aprendizagem, a mais vergonhosa e a mais dura, que essas moças fazem seu caminho, e assim, hoje, encontra-se Juliette na cama de um príncipe que talvez a submeta às marcas humilhantes da brutalidade dos libertinos depravados, nas mãos dos quais seus primeiros passos, sua juventude e sua falta de experiência a jogaram. Quando saiu do convento, Juliette foi simplesmente à casa de uma mulher de quem tinha ouvido falar por uma amiga de sua vizinhança que se pervertera, e de quem ela havia guardado o endereço; chegou lá, sem constrangimento nenhum, carregando sua trouxa, um vestidinho desalinhado, a mais bela aparência do mundo, e o jeito bem colegial. Contou sua historia a essa mulher, lhe suplicou proteção, a mesma que dera há alguns anos à sua antiga amiga. «Qual a sua idade, minha criança?» Perguntou-lhe a senhora Du Buisson. «Farei quinze anos em alguns dias, senhora. - E nunca ninguém... - Oh, não, senhora, eu juro. - Mas acontece que às vezes nesses conventos um capelão... uma religiosa, uma colega... eu preciso de provas concretas. - Cabe à senhora procurá-las...» 27 No texto em francês, Sade usa o termo isolisme, um neologismo dele que aparece também em Aline et Valcour (1793) (N. E.), optamos por traduzir para isolismo, também um neologismo, que se assemelha a palavra isolar que apresenta a mesma carga semântica que a palavra que Sade utilizou. (N. T.) 28 Segundo a enquete histórica feita por Érica-Marie Benabou (1935-1985) historiadora francesa, se uma prostituta tivesse o modo de vida parecido com o de Juliette por bastante tempo, seriam raras as que chegariam a obter uma renda como a dela (La Prostitution et la Police de moeurs au XVIIIe siècle, Perrin, 1987, p 330-383) . (N. E.) 42 Et la Du Buisson, s’étant affublée d’une paire de lunettes et ayant vérifié par elle-même l’état exact des choses, dit à Juliette : «Eh bien mon enfant, vous n’avez qu’à rester ici, beaucoup de soumission à mes conseils, un grand fonds de complaisance pour mes pratiques, de la propreté, de l’économie, de la candeur vis-à-vis de moi, de l’urbanité avec vos compagnes et de la fourberie envers les hommes, dans quelques années d’ici je vous mettrai en état de vous retirer dans une chambre avec une commode, un trumeau29, une servante, et l’art que vous aurez acquis chez moi vous donnera de quoi vous procurer le reste.» La Du Buisson s’empara du petit paquet de Juliette, elle lui demanda si elle n’avait point d’argent et celle-ci ayant trop franchement avoué qu’elle avait cent écus, la chère maman s’en empara en assurant sa jeune élève qu’elle placerait ce petit fonds à son profit, mais qu’il ne fallait pas qu’une jeune fille eût d’argent… c’était un moyen de faire mal et dans un siècle aussi corrompu, une fille sage et bien née devait éviter avec soin tout ce qui pouvait la faire tomber dans quelque piège. Ce sermon fini, la nouvelle venue fut présentée à ses compagnes, on lui indiqua sa chambre dans la maison et dès le lendemain, ses prémices furent en vente; en quatre mois de temps, la même marchandise fut successivement vendue à quatre-vingts personnes qui toutes la payèrent comme neuve, et ce fut qu’au bout de cet épineux noviciat que Juliette prit des patentes de soeur converse30. De ce moment elle fut réellement reconnue comme fille de la maison et en partagea les libidineuses fatigues… autre noviciat; si dans l’un à quelques écarts près Juliette avait servi la nature, elle en oublia les lois dans le second : des recherches criminelles, de honteux plaisirs, de sourdes et crapuleuses débauches, des goûts scandaleux et bizarres, des fantaisies humiliantes, et tout cela finit d’une part du désir de jouir sans risquer sa santé, de l’autre, d’une satiété pernicieuse qui blasant l’imagination, ne la laisse plus s’épanouir que par des excès et se rassasier que de dissolutions… 29 Trumeau, d'après l'Encyclopédie, "se dit des glaces qui se placent dans l'entre-deux des croisées que les architectes nomment trumeaux, d'où ces miroirs ont pris leur nom" (t. XVI, p. 728, col. a). (N. E.) 30 "Convers, erse, adj. C'est um nom qu'on donne en plusiers couvents aus frères lais qui n'ont point d'ordres, et qui ne chantent point dans le choeur, mais qui servent en divers offices de la maison" (Trevoux). Les maison de prostitution sont traditionellement comparées à des couvents. D'où le vocabulaire qui file la métaphore: sermon, noviciat, soeur converse... (N. E.) 43 E Du Buisson, colocou os óculos, e após verificar, ela própria, o estado exato das coisas, disse a Juliette: «Bem, minha criança, é só você ficar aqui, mostrar muita submissão aos meus conselhos, um fundo grande de complacência para com meus procedimentos, limpeza, economia, sinceridade para comigo, delicadeza com suas companheiras e esperteza com os homens, e em alguns anos eu a ajudarei a ter seu quarto com uma cômoda, um espelho31, uma criada, e a arte que tiver adquirido na minha casa lhe dará os meios para procurar o resto.» A senhora Du Buisson pegou a trouxinha de Juliette, perguntou-lhe se não tinha mesmo dinheiro, e como ela confessou com demasiada sinceridade que tinha cem escudos, a cara madre pegou o dinheiro, assegurando à sua jovem aluna que ela o aplicaria em seu nome, mas que uma mocinha não devia estar com dinheiro... era uma forma de se machucar, e em um século tão corrompido, uma menina sábia e de boa família devia evitar com cuidado tudo o que podia fazê-la cair em alguma armadilha. Terminado esse sermão, a recém-chegada foi apresentada às suas companheiras, indicaram-lhe o seu quarto na casa, e a partir do dia seguinte sua virgindade foi colocada à venda. Em quatro meses, a mesma mercadoria foi sucessivamente vendida a oitenta pessoas, pagaram-na todos como se fosse nova, e foi somente no fim desse espinhoso noviciado que Juliette pegou a patente de irmã de entretenimento32. A partir desse momento, ficou verdadeiramente reconhecida como sendo moça da casa e compartilhou das libidinosas fadigas... outro noviciado; se em um deles, fora algumas exceções, Juliette servira à natureza, ela esqueceu essas leis no segundo noviciado: vontades criminais, prazeres vergonhosos, orgias secretas e infames, gostos escandalosos e bizarros, fantasias humilhantes, e tudo isso vem, por um lado, do desejo de gozar sem arriscar sua saúde e, por outro, de uma saciedade perniciosa que, ao esgotar a imaginação, só a deixa ter prazer por meio de excessos e se saciar apenas com dissoluções... 31 Trumeau, de acordo com a Enciclopédia, “se referia espelhos que se colocava nos vidros das janelas que os arquitetos nomeavam trumeaux, de onde vem o nome desses espelhos” (t. XVI, p. 728, col. a). (N. E.) 32 Soeur converse, em francês, em muitos conventos, era um nome dado às freiras que não eram destinadas aos votos sagrados, mas que serviam em diversos serviços da casa. As casas de prostituição são tradicionalmente comparadas aos conventos. Daí o vocabulário utilizado neste trecho (sermão, noviciado, irmã...) que sugere a metáfora. (N. E.) 44 Juliette corrompit entièrement ses moeurs dans cette seconde école et les triomphes qu’elle vit obtenir au vice dégradèrent totalement son âme; elle sentit que née pour le crime, au moins devait-elle aller au grand33, et renoncer à languir dans un état subalterne qui en lui faisant faire les mêmes fautes, en l’avilissant également, ne lui rapportait pas à beaucoup près le même profit. Elle plut à un vieux seigneur fort débauché quid’abord ne l’avait fait venir que pour l’aventure d’un quart d’heure, elle eut l’art de s’en faire magnifiquement entretenir et parut enfin aux spectacles, aux promenades à côté des cordons bleus34 de l’ordre de Cythère; on la regarda, on la cita, on l’envia et la friponne sut si bien s’y prendre qu’en quatre ans elle mina trois hommes, dont le plus pauvre avait cent mille écus de rentes. Il n’en fallut pas davantage pour faire sa réputation; l’aveuglement des gens du siècle est tel, que plus une de ces malheureuses a prouvé sa malhonnêteté, plus on est envieux d’être sur sa liste35, il semble que le degré de son avilissement et de sa corruption devienne la mesure des sentiments que l’on ose afficher pour elle. Juliette venait d’atteindre sa vingtième année lorsqu’un comte de Lorsange, gentilhomme angevin âgé d’environ quarante ans, devint si tellement épris d’elle qu’il se résolut de lui donner son nom, n’étant pas assez riche pour l’entretenir; il lui reconnut douze mille livres de rentes, lui assura le reste de sa fortune qui allait à huit, s’il venait à mourir avant elle, lui donna une maison, des gens, une livrée, et une sorte de considération dans le monde qui parvint en deux ou trois ans à faire oublier ses débuts. Ce fut ici où la malheureuse Juliette oubliant tous les sentiments de sa naissance honnête et de sa bonne éducation, pervertie par de mauvais livres36 et de mauvais conseils, pressée de jouir seule, d’avoir un nom, et point de chaîne, osa se livrer à la coupable pensée d’abréger les jours de son mari… 33 Aller au grand est une expression d'époque pour caractériser l'ambition mondaine. (N. E.) 34 Le cordon bleu est "le ruban que portent les chavaliers du Saint-Esprit [...]". Les cordons bleu de l'ordre de Cythère désignent les vétérans du libertinage. (N. E.) 35 Telle liste de Mme de Lorsange on peut comparer à celle de Don Juan de Molière. (N. E.) 36 On n'avait refusez à la jeune fille "aucun bon livre". Elle se livre ensuite aux "mauvais livres", c'est à dire aux livres philosophiques dans le doubles sens du temps (traités diffusant la philosophie des Lumières et fictions pornographiques). Comme ses contemporains, Sade croit à l'influence pédagogique des livres. (N. E.) 45 Juliette corrompeu completamente seus modos nesta segunda escola e os triunfos que ela obteve no vício degradaram totalmente a sua alma. Sentiu que uma vez nascida para o crime, no mínimo, devia ir longe37, e deixar de se comprazer em um estado subalterno que, ao lhe fazer cometer os mesmo erros, ao degradá-la igualmente, não lhe trazia nem de perto o mesmo proveito. Ela agradou a um velho senhor muito devasso que, de início, a trouxera apenas para uma aventura de quinze minutos, ela teve a artimanha de ser mantida magnificamente por ele, e por fim, compareceu aos espetáculos, aos passeios ao lado dos cavaleiros da ordem de Citera38; olharam-na, citaram-na, invejaram-na e a malandra foi tão esperta que, em quatro anos, destruiu três homens, dos quais o mais pobre possuía cem mil escudos de renda39. Não precisou de mais nada para ganhar fama, a cegueira das pessoas deste século é tanta que quanto mais uma dessas infelizes provar sua desonestidade, mais se tem vontade de estar na sua lista40, parece que o nível de sua degradação e de sua corrupção se torna a medida dos sentimentos que ousam revelar por ela. Juliette acabava de completar seus vinte anos, quando um conde de Lorsange, cavalheiro de Anjou, com aproximadamente quarenta anos de idade, apaixonou-se tão perdidamente por ela que resolveu lhe dar o seu nome, já que não era suficientemente rico para sustentá-la; concedeu a ela doze mil libras de rendas, prometeu-lhe o resto de sua fortuna que chegava a oito mil, se ele viesse a morrer antes dela, deu-lhe uma casa, criados, empregados, e uma espécie de consideração no mundo por meio da qual, em dois ou três anos, foi esquecido como ela debutou. Foi aí que a infeliz Juliette, esquecendo todos os sentimentos de sua linhagem honesta e de sua boa educação, pervertida por maus livros41 e maus conselhos, ansiosa para aproveitar a vida sozinha, para ter um nome, e sem amarras, ousou entregar-se ao pensamento criminoso de abreviar os dias do seu marido... 37 No texto em francês é utilizada uma expressão da época ‘aller au grand’ que servia para caracterizar a ambição mundana. (N. E.) Traduzimos em português por ‘ir longe’, que conserva o sentido, guardando também a semelhança na construção da expressão, já que ir e aller tem o mesmo significado em ambas as línguas, e grand e longe, dividem o mesmo campo semântico. (N. T.) 38 Cordon bleu, fita que os chevaliers du Saint-Esprit usavam [..]. Os cordons bleus da ordem de Citera designam os veteranos da libertinagem. (N. E.) 39 Cem mil escudos de renda representavam um rendimento alto. (N. T.) 40 Tal lista da Senhora de Lorsange podemos comparar a lista do Don Juan de Molière. (N. E.) 41 Não recusaram á moça nenhum "bom livro". Ela se rende em seguida aos "maus livros", ou seja, os livros filosóficos, com o duplo sentido do tempo (tratados que difundiam a filosofia das Luzes e ficções pornográficas). Como seus contemporâneos, Sade acreditava na influência pedagógica dos livros. (N. E.) 46 Elle la conçut et elle l’exécuta avec assez de secret malheureusement pour se mettre à l’abri des poursuites, et pour ensevelir avec cet époux qui la gênait toutes les traces de son abominable forfait. Redevenue libre et comtesse, Mme de Lorsange reprit ses anciennes habitudes mais se croyant quelque chose dans le monde, elle y mit un peu plus de décence; ce n’était plus une fille entretenue, c’était une riche veuve qui donnait de jolis soupers, chez laquelle la ville et la cour étaient trop heureuses d’être admises, et qui néanmoins couchait pour deux cents louis et se donnait pour cinq cents par mois. Jusqu’à vingt-six ans elle fit encore de brillantes conquêtes, mina trois ambassadeurs, quatre fermiers généraux, deux évêques et trois chevaliers des ordres du roi, et comme il est rare de s’arrêter après un premier crime surtout quand il a tourné heureusement, Juliette, la malheureuse et coupable Juliette, se noircit de deux nouveaux crimes semblables au premier, l’un pour voler un de ses amants qui lui avait confié une somme considérable que toute la famille de cet homme ignorait et que Mme de Lorsange put mettre à l’abri par ce crime odieux, l’autre pour avoir plus tôt un legs de cent mille francs qu’un de ses adorateurs avait mis sur son testament en sa faveur au nom d’un tiers qui devait rendre la somme au moyen d’une légère rétribution. A ces horreurs, Mme de Lorsange joignait deux ou trois infanticides; la crainte de gâter sa jolie taille, le désir de cacher une double intrigue, tout lui fit prendre la résolution de se faire avorter plusieurs fois, et ces crimes ignorés comme les autres n’empêchèrent pas cette créature adroite et ambitieuse de trouver journellement de nouvelles dupes et de grossir à tout moment sa fortune tout en accumulant ses crimes. Il n’est donc malheureusement que trop vrai que la prospérité peut accompagner le crime et qu’au sein même du désordre et de la corruption la plus réfléchie, tout ce que les hommes appellent le bonheur peut dorer le fil de la vie; mais que cette cruelle et fatale vérité n’alarme pas, que celle dont nous allons bientôt offrir l’exemple, du malheur au contraire poursuivant partout la vertu, ne tourmente pas davantage l’âme des honnêtes gens. Cette prospérité du crime n’est qu’apparente; indépendamment de la providence qui doit nécessairement punir de tels succès, le coupable nourrit au fond de son coeur un ver qui, le rongeant sans cesse, l’empêche de jouir de cette lueur de félicité qui l’environne et ne lui laisse au lieu d’elle que le souvenir déchirant des crimes qui la lui ont acquise. 47 Ela o concebeu e o executou com tanto segredo, infelizmente para se por a salvo das investigações, e para enterrar com esse esposo que a incomodava todos os vestígios de seu abominável crime. Novamente livre e condessa, a senhora de Lorsange retomou os seus velhos hábitos, mas como acreditava ter um lugar no mundo, o fazia com um pouco mais de decência. Não era mais uma moça sustentada, era uma rica viúva que dava belos jantares em sua casa, da qual a cidade e a corte adoravam fazer parte, e que, contudo, deitava-se por duzentos luíses42 e se dava por quinhentos por mês. Até os vinte e seis anos ainda fez brilhantes conquistas, destruiu três embaixadores, quatro fazendeiros, dois bispos e três cavalheiros das ordens do rei. E como é raro parar após o primeiro crime, sobretudo quando ele deu certo, a infeliz e culpada Juliette, se maculou com dois novos crimes semelhantes ao primeiro, um para roubar um de seus amantes que lhe havia confiado uma soma considerável, cuja existência toda família do homem ignorava e que a Senhora de Lorsange pode colocar a salvo por meio deste crime odioso; o outro, para ter logo uma herança de cem mil francos que um dos seus adoradores colocara num testamento em seu favor, no nome de um terceiro que devolveria a soma por meio de uma pequena retribuição. A esses horrores, a senhora de Lorsange acrescentava dois ou três infanticídios; o medo de desfigurar sua bela cintura, o desejo de esconder uma dupla intriga, tudo a levou a tomar a resolução de abortar várias vezes, e esses crimes, ignorados como os outros, não impediram esta criatura habilidosa e ambiciosa de encontrar, dia após dia, novas vítimas, e de ampliar a todo o momento sua fortuna, acumulando seus crimes. Portanto, é lamentável e absolutamente verdade que a prosperidade pode acompanhar o crime e que, no meio da desordem e da corrupção mais premeditada tudo o que os homens chamam de felicidade pode enfeitar a vida; mas esta cruel e fatal verdade não assusta mais do que o exemplo que vamos oferecer, o do infortúnio que persegue por todos os lados a virtude, e que não atormenta tanto a alma das pessoas honestas. Essa prosperidade do crime é apenas aparente; independentemente da providência que necessariamente deve punir tais sucessos, o criminoso nutre no fundo de seu coração um verme que, ao corroê-lo sem parar, o impede de aproveitar desse brilho de felicidade que o envolve e deixa no lugar dela apenas a lembrança terrível dos crimes que conquistaram. 42 Um luís por mês representava oito escudos por mês, ou seja, oitenta e seis escudos por ano. Desta forma Justine ganharia o que Juliette ganhava em um dos seus casos amorosos. (N. T.) 48 A l’égard du malheur qui tourmente la vertu