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LUANA APARECIDA DE ALMEIDA
TRADUÇÃO ANOTADA DE LES INFORTUNES DE LA VERTU
(1787), DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814)
ASSIS
2013
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LUANA APARECIDA DE ALMEIDA
TRADUÇÃO ANOTADA DE LES INFORTUNES DE LA VERTU (1787), DO
MARQUÊS DE SADE (1740-1814)
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – UNESP –
Universidade Estadual Paulista para a
obtenção do título de Mestre em Letras
(Área de Conhecimento: Literatura e Vida
Social)
Orientadora: Dra Maria Lídia Lichtscheidl
Maretti
Coorientadora: Dra Brigitte Monique
Hervot
ASSIS
2013
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Almeida, Luana Aparecida de
A447t Tradução anotada de Les infortunes de la vertu (1787), do
Marquês de Sade (1740-1814)/ Luana Aparecida de Almeida. Assis, 2013
268 f.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis - Universidade Estadual Paulista.
Orientadora: Dra Maria Lídia Lichtscheidl Maretti
Coorientadora: Dra Brigitte Monique Hervot
1.Marques de Sade, 1740-1814. 2. Literatura francesa – Séc.
XVIII. 3. Tradução anotada. 4. Les infortunes de la vertu 5.
Línguas
I. Título.
CDD 843
418.02
3
A Luciane, ao Jair, a Ivete e ao José P. (in memoriam)
4
AGRADECIMENTOS
A minha família: pai, mãe, vó, irmão, irmã e sobrinhos. Por suportarem a distância,
incentivarem a busca do crescimento e me receberem sempre com tanto carinho.
Aos Amigos: André, Dani, Elisa, Fred Santiago, Henrique, Kátia, Luís, Maurílio,
Stanis, pela companhia valiosa, pelas conversas inspiradoras, por ajudarem (ou não),
enfim, por estarem sempre comigo.
A minha orientadora, Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, por ter me guiado desde
graduação e por ter acreditado em mim.
A minha coorientadora, Dra. Brigitte Monique Hervot, por ter se empenhado num
trabalho em andamento, orientando e ajudando atenciosamente.
Aos professores de graduação pela sabedoria transmitida.
Aos professores integrantes da banca de qualificação: Prof. Carla Cavalcanti e Silva e
Prof. Antônio Roberto Esteves, que com suas contribuições preciosas me ajudaram a
melhor direcionar e concluir meu trabalho.
Aos professores da pós-graduação da FCL de Assis, em especial Dr. Odil José de
Oliveira Filho, Dra. Sandra Aparecida Ferreira, Dra Daniela Mantarro Callipo pela
paciência e pelas aulas enriquecedoras.
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de
Assis e da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa”, pelo atendimento prestativo e eficiente.
A CAPES pela ajuda financeira, imprescindível para a realização deste trabalho.
5
ALMEIDA, L. A. TRADUÇÃO ANOTADA DE LES INFORTUNES DE LA
VERTU (1787), DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814). 247 f. Dissertação
(Mestrado em Letras). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista, Assis, 2012.
RESUMO:
Este trabalho apresenta a tradução anotada do livro Les infortunes de la vertu
(1787) do Marquês de Sade (1740 – 1814), seguido de um estudo introdutório
que tem o objetivo de familiarizar o leitor brasileiro com a narrativa sadiana.
Sabemos que a polêmica que sempre acompanhou o Marquês de Sade era
seguida pela constatação de sua originalidade que produziu, a partir de suas
ideias libertinas, suas polêmicas obras. Les infortunes de la vertu se
caracteriza como uma das obras emblemáticas de Sade, uma narrativa que
apresenta os elementos da perversão denominada a partir do nome do autor, o
sadismo. Na atividade de tradução buscamos valorizar a tendência que
preconiza o sentido e o estilo original, optando pela corrente que defende a
tradução estrageirizadora.
PALAVRAS-CHAVE: Marquês de Sade, 1740-1814; Literatura francesa – Séc.
XVIII; Tradução anotada; Les infortunes de la vertu; Línguas.
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ALMEIDA, L. A. ANNOTATED TRANSLATION OF LES INFORTUNES DE LA
VERTU (1787), OF MARQUIS DE SADE (1740-1814). 247 f. Dissertation (Masters
of Letters). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis,
2013.
ABSTRACT:
It is presented here the annotated translation of Les infortunes de la vertu
(1787) of Marquis de Sade (1740 – 1814), followed by introductory study that
intends to familiarize the Brazilian reader with the Sadean narrative. The
controversy surrounding Marquis de Sade has always been accompanied by
the realization of the originality he produced, sparked his libertine ideals and
his infamous works. Les infortunes de la vertu is one of Sade’s emblematic
works, with a narrative that presents elements of the perversion named after
the author, Sadism. During the translation, we valued the original meanings
and style by opting for a foreignizing translation.
KEYWORDS: Sade, Marquis de 1740-1814; French literature - XVIII Century;
Annotated translation; Les infortunes de la vertu; Languages;
7
O vendaval de liberdade do século XVIII produziu
Sade: o século XIX tratou de ignorá-lo ou de
censurá-lo; o século XX encarregou-se de
demonstrá-lo, em altos brados, pela negativa; o
século XXI deverá considerá-lo em sua evidência.
Phillipe Sollers
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SUMÁRIO
1. ESTUDO INTRODUTÓRIO ....................................................................................... 9
1.1 NOTA BIOGRÁFICA ............................................................................................ 9
1.2 A OBRA SADIANA ............................................................................................ 11
1.3 LES INFORTUNES DE LA VERTU ......................................................................... 20
2. A PRESENTE TRADUÇÃO ..................................................................................... 24
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 28
TRADUÇÃO .................................................................................................................. 32
9
1. ESTUDO INTRODUTÓRIO
1.1 NOTA BIOGRÁFICA1
Donatien-Alphonse-François de Sade, o Marquês de Sade nasce em Paris em
dois de junho de 1740. Proveniente de uma família da antiga nobreza de Provença, é
educado, dos quatro aos sete anos, por seu tio paterno, o historiador e abade Jacques-
François-Paul-Aldonse de Sade. Em 1750, vai para um colégio de jesuítas em Paris.
Aos quatorze anos ingressa na escola de cavalaria leve e após um ano é nomeado
subtenente no regimento da infantaria do rei, o que permite sua participação na Guerra
dos Sete Anos em 1757. Posteriormente, em 1759, Sade assume a patente de capitão do
regimento da cavalaria da Borgonha. Neste momento, aos dezenove anos, sua fama de
licencioso e desregrado já é conhecida. Em maio de 1763 acontece seu casamento -
conforme um acordo entre as famílias - com Renée-Pélagie de Montreuil, a qual lhe
dará dois filhos e uma filha, e será para ele esposa dedicada e complacente. Cinco meses
após o casamento, Sade é preso em Vincennes pela acusação de práticas libertinas,
blasfêmias e profanações da imagem de Cristo. Essa é a primeira de uma série de
prisões que abrangem trinta anos de sua vida (LELY, 1967, p. 12). Nos anos seguintes,
Sade vivencia variados escândalos: casos com atrizes, dançarinas, cortesãs; noitadas em
práticas libidinosas na companhia de mulheres e homens. Dentre esses escândalos estão
os de Arcueil e de Marselha. No caso de Arcueil, Sade propõe a uma mendicante, Rose
Keller, um posto de servente em sua casa, ela aceita, ele a leva, tranca-a num quarto e a
partir disso seguem-se sessões de sexo e flagelação. Quando ela consegue escapar,
acusa o marquês que por isso sofre um processo no qual ele é acusado e detido. No
segundo caso, em Marselha, ele e um empregado, acompanhados de quatro moças,
participam de mais uma sessão orgíaca, onde as moças são induzidas a ingerir pastilhas
de anis com cantárida (inseto de onde é retirada uma substância de efeito afrodisíaco).
Duas das meninas apresentam um quadro de intoxicação, o que ocasiona a condenação
do Marquês à morte por crime de envenenamento e sodomia, no entanto, a pena não é
executada. Sade foge para Itália com sua cunhada, que é tratada e apresentada como sua
esposa legítima; esconde-se em seu castelo em La Coste; é detido continuamente, mas
foge e esconde-se sempre que possível. É levado para a Bastilha em 1784, dois anos
após concluir seu primeiro texto. (parece meio irreal) Diria apenas: Sua saída dessa
1 Utilizo-me para a elaboração da nota biográfica dos relatos da biografia do Marquês de Sade presentes
nos livros de Gabriel Giannattasio (2000), Gilbert Lely, (1967) Guillaume Apollinaire (1909) e Simone
de Beauvoir (1972).
10
prisão se dá às vésperas da Revolução Francesa. Sua saída dessa prisão foi
impulsionada por seus gritos na janela solicitando a quem passasse que tirassem os
presos dali, pois, ás vésperas da eclosão da Revolução Francesa, ameaçavam degolá-los.
Em seguida é transferido para o hospício de Charenton e, para sua tristeza, não o
deixam levar nada consigo. Nessa ocasião, ele perde parte de seus documentos,
manuscritos e outros pertences. Em uma de suas cartas ele declara ter chorado "lágrimas
de sangue" em razão dessa perda. (LELY, 1967, p. 211; BATAILLE, 1989, p. 96). Em
1790 o marquês é solto graças ao decreto que suprimia as lettres de cachet2. Livre,
intenta "viver da sua pluma" (APOLLINAIRE, 1909, p. 5). O marquês publica suas
obras, encena algumas de suas peças teatrais, e vive uma situação financeira difícil. Ele
entra para a section des Piques, que era uma sociedade popular, uma das quarenta e oito
seções revolucionárias de Paris, subdivisões da cidade criadas a partir da Revolução
Francesa, onde os cidadãos deliberavam sobre os assuntos da região; filiando-se aos
ideais republicanos da época, ao lado dos jacobinos que conduziam o período do Terror.
É neste momento que Sade escreve alguns textos políticos e chega a tornar-se presidente
da seção. Convém ressaltar que o marquês se opõe à pena de morte em vigor naquele
momento, posição que, entre outras razões, o torna inimigo da revolução. No mesmo
período, sua esposa obtém a separação e Sade inicia um relacionamento com Marie-
Constance Quesnet que o acompanhará até a morte. Devido a sua intensa atividade
antirreligiosa é preso mais uma vez em 1794. Acusado de conspiração contra a
república, é condenado à guilhotina pelo 8 Termidor, escapa dela pelo decreto da morte
de Robespierre, (que também fazia parte da section de Piques), por meio do 9 Termidor.
Por fim, é encarcerado pela última vez no hospício de Charenton, sob a acusação de ter
escrito La Nouvelle Justine (1799) e ali morre em dois de dezembro de 1814. A
vergonha por parte de sua família fez com que o escritor fosse enterrado sem levar na
lápide nenhuma inscrição, e por ordem da mesma, são queimados alguns manuscritos
que estavam em seu quarto.
2 No Antigo Regime, carta fechada, assinada pelo, rei pela qual se enviavam mandados, sem julgamento,
de prisão ou exílio. (Lettre de cachet . http://littre.reverso.net/dictionnaire-francais/definition/lettre/44144
acesso em 2012.)
11
1.2 A OBRA SADIANA3
O estranhamento causado pela obra do Marquês de Sade era alarmante e a
censura enfrentada era ferrenha. O motivo para tamanha indignação se encontrava em
sua narrativa: uma linguagem que é um convite à permissividade. Sua obra abarca
diversos gêneros dentre os quais figuram contos, novelas, romances, textos políticos, e
ainda sua correspondência.
Seu primeiro texto, Dialogue entre um prêtre et un moribond (Dialogo entre um
padre e um moribundo) é escrito na prisão em Vincennes, em 1782. O texto traz a
apreciação do marquês sobre o ateísmo e foi publicado pela primeira vez por Maurice
Heine em 1926.
Já na Bastilha, Sade escreve em 1785 Cent vingt journées de Sodome ou l'école
du libertinage (Cento e vinte dias de Sodoma ou a escola de libertinagem). Escritos e
passados a limpo com letras microscópicas, os manuscritos desta obra fazem parte dos
textos que foram perdidos na sua transferência para Charenton em 1789. No entanto,
sem que Sade jamais soubesse, eles foram encontrados no quarto que era seu e ficaram
sob a posse da família Villeneuve-Trans que os vendeu ao psiquiatra alemão Iwan
Bloch (1872-1922). A primeira publicação do livro, empreendida pelo psiquiatra,
contendo numerosos erros de transcrição, acontece em 1904 sob o pseudônimo de
Eugène Düren, sendo publicada posteriormente por Maurice Heine em três volumes de
1931 a 1935.
Ainda na Bastilha conclui, em 1787, Les infortunes de la vertu (Os infortúnios
da virtude) publicada em 1930, a partir dos manuscritos, também por Maurice Heine.
Aline et Valcour ou le Romain philosophique (Aline e Valcour ou o Romance
filosófico) 1789 é publicado em 1795. No mesmo ano surge clandestinamente La
Philosophie dans le boudoir (A Filosofia na alcova), livro ilustrado com frontispício
alegórico e mais quatro figuras eróticas.
Seu primeiro livro publicado em vida foi Justine, ou les malheurs de la vertu
(1791) (Justine, ou os infortúnios da virtude), versão ampliada de Les infortunes de la
vertu que teve outra ampliação La nouvelle Justine, ou les Malheurs de la vertu. Suivie
de l'Histoire de Juliette, sa soeur [ou les Prospérités du vice] (A nova Justine, ou os
3 Todas as informações sobre a sua obra foram consultadas no livro de Gilbert Lely (1967).
12
Infortúnios da virtude. Seguida da História de Juliette, sua irmã [ou as Prosperidades do
vício]) publicada em 1799 na Holanda com a falsa data de 1797, ornada de um
frontispício e mais cem figuras obscenas. Sade nunca declarou a autoria das três versões
da história de Justine e Juliette, porém foi preso por escrever a última versão.
A obra sadiana e a arte literária do século XVIII podem ser caracterizadas como
uma literatura que se insere num momento em que a crise movimentava os setores
políticos, sociais, econômicos e intelectuais. Para compreendê-la é conveniente observar
alguns elementos do período.
O clima de contestação era predominante, assistia-se à crise que culminaria no
declínio do Antigo Regime. Na contrapartida da França, que apresentava um sistema
econômico calcado na agricultura, com uma cultura baseada em preceitos da religião
católica e sob um governo absolutista, o progresso dos ingleses despontava como um
modelo, devido às suas práticas em relação à economia pautada no sistema industrial.
Além da liberdade de crença, que leva ao surgimento da teoria do Deísmo, teoria essa
que influenciou alguns pensadores franceses, assiste-se também a uma liberdade política
que, sob a influência da burguesia já estabelecida, ajuda a instalar a monarquia
parlamentar. As ideias dos pensadores ingleses vão se tornar modelo para os franceses,
sobretudo aquelas fundamentadas no racionalismo e no empirismo. Dessas
circunstâncias eclode a Revolução Francesa, que foi embasada no movimento
intelectual e filosófico do momento. 4
Os filósofos do Século das Luzes agiam de maneira peculiar. Ser filósofo no
século XVIII tinha um sentido diferente do que se concebia em relação aos antigos
gregos: significava “opor-se a tudo o que fosse irracional”. Assim, eles contestaram
tudo, reivindicando liberdade para que todos pudessem fazer o mesmo. Dessa
racionalidade imperiosa, nasce a Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences,
des arts et des metiers, que dentre tantos outros colaboradores, tinha como autores
principais Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond D'Alembert (1717-1783). Essa
obra "monumental" foi símbolo do espírito filosófico do século XVIII, pois pretendia
reunir todos os saberes num só lugar, e por isso, segundo Michel Delon (DELON, 2007,
p. 175) foi determinante na vida intelectual europeia.
4 Todas as informações sobre o momento histórico foram consultadas nos livros: Dix siècles de littérature
française: du Moyen Âge au XVIIIeme siècle, de Deshusses e XVIIe: Les grands auteurs français du
programme, de André Lagarde e Laurent Michard conforme constam na bibliografia.
13
O Marquês de Sade foi um contumaz representante desse período. Sua ojeriza à
ideia de Deus, embasada na filosofia materialista5, bem como sua excessiva apologia à
prática dos vícios em detrimento das virtudes, pregadas pela moral e pelos bons
costumes, se constituem como indícios de sua contestação à ordem vigente. Sua vida de
libertinagem e os reflexos em sua obra são provas desse desdém à moralidade.
Por Libertinagem tomemos a elucidação do verbete do Dictionnaire de la
Pornographie (FOLCO, 2005, p. 260) que declara que libertinage é oriunda de
libertinus, palavra inicialmente utilizada em latim com sentido duplo: um deles servia
para denominar o escravo liberto, emancipado, o segundo, para marcar a posição social
que a pessoa ocupava, a saber a de filho de escravo. Na Idade Média o termo também se
reportava ao homem liberto, no entanto, a acepção de "escravo sarraceno convertido ao
cristianismo" prevalecia. Já no século XVI, com as guerras religiosas, o vocábulo se
referia às "pessoas sem fé", que manifestavam uma oposição ao cristianismo. No século
XVII, ele serviu para identificar aqueles que possuíam liberdade de espírito e
pensamento. Com a chegada do Século das Luzes, caracterizada por essa aversão ao
cristianismo e a uma autonomia das ideias, o termo passa a reportar-se a uma liberação
das regras morais da sociedade e à libidinosidade de modos .
O libertino pode ser exemplificado na figura do Dom Juan, e posteriormente
pelo personagem Valmont de As ligações perigosas (1782), que "ávido por destruir a
psique de suas conquistas para alongar sua lista. Ele prefigura o que será, no fim do
século, a emergência das crueldades revolucionarias de Sade.” (FOLCO, 2005, p. 261,
tradução nossa)6. Pode-se dizer que As ligaçoes perigosas, de Choderlos de Laclos
(1741-1803), de fato prefiguraram a obra de Sade. De referências também libertinas, o
romance epistolar trata da história de conquistadores que, apoiados num discurso
manipulador, seduziam suas vítimas pelo prazer de fazê-lo. Apesar do sucesso, a
referida obra foi recriminada pela sociedade (DARCOS, 1992, p. 236), como o foram os
escritos do marquês. É conveniente destacar que a publicação clandestina da segunda
versão de Justine teve autoria atruibuída a Laclos pelo jornal Le Spectateur du Nord e
pelo dicionário satírico Le Tribunal d'Apollon (DELON, 2007, p. 236) por causar
5 Ser materialista no sentido filosófico é, com efeito, pensar que tudo é matéria ou produto da matéria e
que os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais não têm, em consequência, uma realidade que auxilie
ou determine. (CANTO-SPERBER, 2003, p. 143)
6 No original: "Il est avide de détruire la psyqué de ses conquêtes pour allonger sa liste. Il préfigure ce que
sera, à la fin du siècle, l'émergence des cruautés révolutionnaires de Sade." (FOLCO, 2005, p. 261)
14
reação semelhante a do romance epistolar deste escritor. Contudo, segundo Delon,
(2007, p. 236) é espantoso relacionar os dois livro visto que suas linguagens são
díspares. O crítico afirma que Laclos tem uma linguagem contida enquanto Sade rompe
essa contenção. E continua o contejo:
Se o tédio das guarnições e as insatisfaçoes da sua carreira militar
contribuiram para o amadurecimento das Ligações perigosas, é o
desarranjo de um aristocrata e a solidão das prisões que nutriram a
paixão literária de Sade. Laclos é de Amiens, homem do norte, de uma
família de uma nobreza muito recente e muito pequena. Nascido em
Paris, Sade é originario de Avignon, homem do Midi, de uma antiga
linhagem, aparentada com os Condé. Laclos compôs um só livro,
enigmático e perfeito. Sade provou todos os gêneros, do teatro ao
romance, em todos os tons, da discrição alusiva ao furor pornográfico.
(DELON, 2007, p. 236-237, tradução nossa)7
Dada a sua radicalidade, a libertinagem de Sade era inovadora e perturbante.
Todavia, mesmo chocando a todos com sua arte, seria inadequado pensar que ele
pretendesse falar mal de seu tempo, pois, na verdade, ele "propunha uma reflexão sem
precedentes sobre a liberdade individual" (MORAES, 2011, p. 130), examinando o ser
humano na sua profundidade, no que este tinha de mais indigno a revelar. Nesse
sentido, tanto os estudiosos da literatura quanto os estudiosos da psique humana são
unânimes em afirmar a originalidade das obras sadianas.
Na maior parte da obra de Sade são retratadas histórias em que a depravação
ultrapassa os limites da imaginação. Com seus livros, ele instaura uma escritura que
revela toda libidinosidade possível de ser transmitida por meio da linguagem,
associando-se assim ao erotismo.
Georges Bataille (1897-1962) em L'érotisme (1957) analisa as variadas
configurações do erotismo. Fundamentando a sua análise na proibição e na transgressão,
ele parte da ideia de que o erotismo "é a aprovação da vida até mesmo na morte" (1957,
p. 15) e o define como uma forma particular da atividade sexual de reprodução. Ele diz
ainda que, sendo o sexo um atividade normal aos animais sexuados, só o homem é
7No original : "Si l'ennui des garnisons et les insatisfactions de sa carrière militaire ont contribué à la
maturation des Liaisons dangereuses, c'est le déclassement d'un aristocrate et la solitude des prisons qui
ont nourri la passion littéraire de Sade. Laclos est d'Amiens, homme du Nord, dans une famille de toute
récente et toute petite noblesse. Né à Paris, Sade est originaire d'Avignon, homme du Midi, dans une
ancienne lignée, apparentée aux Condé. Laclos a composé an seul livre, énigmatique et parfait. Sade s'est
essayé à tous les genres, du théâtre au roman, à tous les tons, de la retenue allusive au déchaînement
pornographique". (DELON, 2007, p. 236-237)
15
capaz de transformá-lo numa atividade érotica, neste ponto, Octavio Paz (1914-1998)
concorda com Bataille, pois relata que " o erotismo não se deixa reduzir à pura
sexualidade animal" e também o define: "O erotismo é desejo sexual e alguma coisa
mais" (1999, p.22). Ao relacionar a morte ao erotismo, Bataille toma o marquês de Sade
como um referencial e alega que este possui uma sensualidade aberrante. Tal
sensualidade, presente nos livros do escritor em questão, somada à violência, que
sempre acompanha as cenas de sexo, caracterizam a patologia cunhada a partir do nome
do marquês, o Sadismo.
A palavra surgiu oficialmente quando o psiquiatra alemão Richard Krafft-Ebing
(1840-1902) a utilizou na sexta edição da sua obra Psychopatia sexualis, de 1886, para
cunhar a perversão que até então se nomeava algolagnia8 ativa, que consiste na sensação
de prazer proporcionada mediante a contemplação e submissão do sofrimento alheio. Há
que se considerar, inicialmente, que perversão (do latim pervertere) liga-se a noção de
desviar, subverter, cujo estudo principal realizado por Freud (1856-1939) a caracteriza
como uma subordinação do orgasmo a outros objetos sexuais que não os considerados
normais (FOLCO, 2005, p. 360). Depois do psiquiatra alemão, a palavra foi utilizada
em estudos de Freud, Melanie Klein, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e outros.
Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ao falar do sadismo e do
seu companheiro, o masoquismo, afirma: “A inclinação a infligir dor ao objeto sexual,
bem como sua contrapartida, que são as mais frequentes e significativas de todas as
perversões, foram denominadas por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de
‘sadismo’ e ‘masoquismo’ (passivo).” (FREUD, 1984, p. 148). Nesse mesmo estudo,
Freud se questiona acerca do surgimento do masoquismo, se este surge como um
comportamento primário ou se deriva do sadismo, e ele conclui que “o masoquismo não
é outra coisa senão uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa,
que com isso assume, para começar, o lugar do objeto sexual.” (FREUD, 1984, p. 149)
Gilles Deleuze também se preocupou com as perversões. Na obra Présentation
de Sacher-Masoch - Le froid et le cruel (1970, p. 15), ele reitera: “Para que serve a
literatura? Os nomes de Sade e de Masoch servem ao menos para designar duas
8 Algolagnia, (do grego álgos dor, lagneía, cópula, coito) palavra utilizada pelo médico alemão Albert
Von Schrenck-Notzing (1862 – 1929), para designar as anomalias sexuais. (LELY, 1967, p. 18)
16
perversões de base” 9. Contudo, o que se observa é que a literatura sadiana não serviu
somente para designações. Com base nas obras do Divino Marquês e de Sacher-
Masoch, Deleuze traçou aspectos da linguagem abordada por estes autores, suas
descrições e ironias, discorreu sobre a complementaridade das duas perversões e de suas
aplicações psicanalíticas. O autor ainda observa as circunstâncias em que ambos os
comportamentos se desenvolvem, suas implicações encaradas não somente como
sintomas de perversão, mas também como estilos de vida, apontando que a literatura
desses autores ultrapassa o linguajar erótico. É o que constatamos neste trecho, em que
o autor define o papel dos dois escritores:
Em todo caso, doentes ou clínicos, e os dois ao mesmo tempo, Sade e
Masoch são também grandes antropólogos à maneira daqueles que
sabem engajar na sua obra toda uma concepção do homem, da cultura
e da natureza ─ grandes artistas, à maneira daqueles que sabem
extrair novas formas, e criar novas maneiras de sentir e de pensar
uma nova linguagem.10 (DELEUZE, 1970, p.16, tradução nossa)
A larga utilização das obras de Sade como estudo da psicologia, da psicanalise e
mesmo da psiquiatria contribuem para o fato delas terem por muito tempo um
reconhecimento apenas nessas áreas e não como um texto literário. Aliás, no que tange à
literatura, seus livros foram repudiados desde a publicação, e por tempos depois, ao
ponto de serem relegados ao ostracismo, já que eles foram encerrados no Enfer 11, onde
permaneceram por quase duzentos anos, ocasionando assim o (quase) desconhecimento
deles, e fazendo de Sade um escritor à margem do cânone.
Mario Praz, em seu livro A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, nos
fala sobre o crédito dado a Sade no século XIX, e nos lembra de que mesmo seu nome
estando ainda numa espécie de limbo, não fora totalmente esquecido:
9 No original: “À quoi sert la littérature? Les noms de Sade et de Masoch servent au moins à désigner
deux perversions de base.” (DELEUZE,1970, p. 15)
10 No original: “En tout cas, “malades” ou “cliniciens”, et les deux à la fois, Sade et Masoch sont aussi de
grands antropologues à la manière de ceux qui savent engager dans leur oeuvre toute une conception de
l’homme, de la culture et de la nature ─de grands artistes, à la manière de ceux qui savent extraire de
nouvelles formes, et créer de nouvelles manières de sentir et de penser, tout un nouveau langage.”
(DELEUZE, 1970, p.16)
11 Enfer, inferno em francês, designa o departamento de uma biblioteca onde são colocados os livros que
pelo seu teor são proibidos ao público. (ROBERT, 2000, p. 1991)
17
Sade, um “sub-romântico”? não, mas eminência parda do romantismo
sim, certamente, espiritozinho familiar sussurrante ao ouvido de
mauvais maîtres e de poètes maudits; pois que, em resumo, ele só deu
nome a um impulso que está em todo homem, impulso misterioso
como as forças da própria vida e da morte com as quais está
inextrincavelmente conectado. (PRAZ, 1996, p. 13)
No que diz respeito aos aspectos literários do texto sadiano, temos as
apreciações de Roland Barthes que, no livro Sade Fourier Loyola (1971), discorre sobre
a linguagem dos três escritores relacionados no título da obra, considerando-os
formuladores ou inventores de uma escritura do texto. Sobre Sade, o teórico diz que ele
é fundador da linguagem do prazer e discorre sobre aspectos temáticos como a viagem,
que se insere na obra como um tema iniciador, passando em seguida a falar sobre a
clausura que, ao mesmo tempo em que isola os personagens e suas luxúrias das censuras
morais, cria uma nova sociedade:
A clausura sadiana é então cruel; ela tem uma dupla função, em
primeiro lugar, evidentemente, isola, protege a luxúria dos
organismos censores do mundo; [...] A clausura do lugar sadiano tem
outra função: ela funda uma autarquia social. Uma vez fechados, os
libertinos, suas ajudas, seus sujeitos formam uma sociedade
completa, provida de economias, de uma moral, de uma linguagem e
de um tempo articulado em horários, em trabalhos e em festas.12
(BARTHES, 1967, p. 22-23, tradução nossa)
Em Sade et Restif de la Bretonne (1986), Maurice Blanchot analisa o gênio de
Sade, afirmando que escrever era sua loucura peculiar. Salienta que sua filosofia é
baseada no interesse, no egoísmo e que por isso vemos seus personagens fazendo o que
lhes agrada sem se importar com o interesse do outro. Esclarece que o único erro
humano, segundo Sade, era a crença em Deus, que se sugere ser um fator indicativo
para ele descrever seus personagens clérigos tão devassos quanto quaisquer outros.
12 No original: La clôture sadienne est donc acharnée; elle a une double fonction, d’abord, bien entendu,
isole, abrite la luxure des entreprises punitiers du monde; [...] La clôture du lieu sadien a une autre
fonction: elle fonde une autarcie sociale. Une fois enfermés, les libertins, leurs aides et leurs sujets
forment une société complète, pourvue d’économies, d’une morale, d’une parole et d’un temps articulé en
horaires, en travaux et en fêtes. (BARTHES, 1967, p. 22-23)
18
Blanchot destaca a seguinte fala de Sade: “Que mal faço eu, que ofensa cometo, dizendo
a uma bela criatura, quando eu a encontro: empreste-me a parte do seu corpo que pode
me satisfazer um instante e desfrute, se isso te agrada, da parte do meu que pode lhe ser
agradável.”13 (SADE apud BLANCHOT, 1986, p.15, tradução nossa). Blanchot
classifica esse pensamento de Sade como uma espécie de declaração dos direitos do
erotismo. Convém lembrar também que o crítico evidencia que, em várias páginas
sadianas, é evocada uma igualdade dos indivíduos.
A mesma observação sobre a existência de uma igualdade dos direitos é feita
pela escritora inglesa Angela Carter. Ela, que defendia os direitos feministas, afirma que
o ambiente erótico, espaço comumente negado às mulheres, é em Sade um veículo de
denúncia e onde ele descreve a sociedade de sua época de forma satírica. Ela afirma
também que ele cria, em seus escritos, um “museu de mulheres monstros”, ou seja,
mulheres dotadas de certa liberdade moral, vivendo numa sociedade não livre. Carter
lembra que Sade criou suas personagens femininas dotadas de liberdade sexual, diz que
ele acredita que somente através do sexo as mulheres poderão se livrar da sua condição
de subjugadas. Ainda falando das personagens femininas, ela acentua que o escritor
francês as descreve mais cruéis que os personagens masculinos, pois elas usam desse
poder como vingança. (CARTER, 1979)
No inicio do século XX, a obra sadiana começou a se estabelecer com maior
evidência. Guillaume Apollinaire (1880-1918), que conservava uma grande afeição
pelos romances sadianos, recuperou oficialmente a obra do autor do limbo em que ela se
encontrava. (BEAUVOIR, 1972, p. 7). Ele editou e publicou uma antologia das obras
do autor de Justine, homenageando a coragem do homem que ele dizia ser o espírito
mais livre que já existiu. Os surrealistas também contribuíram para o (re)conhecimento
de Sade, sob a alcunha de “Divino Marquês”, endeusaram-no, pois viam nele um
precursor (MORAES, 2011, p. 113). Em 1930, foi Maurice Heine quem trabalhou na
publicação das obras de Sade. Gilbert Lely, além de publicar uma biografia do escritor,
também publicou algumas de suas obras. Jean-Jacques Pauvert, o primeiro a publicar a
obra completa do marquês, em 1956 sofreu um processo no qual a obra era acusada de
13 No original: “Quel mal fais-je, quelle offense commets-je, en disant à une belle créature, quand je la
rencontre: prêtez-moi la partie de votre corps qui peut me satisfaire un instant et jouissez, si cela vous
plaît, de celle du mien qui peut vous être agréable?” (BLANCHOT, 1986, p.15).
19
imoral e proibida para juventude. E mediante a constatação da sua originalidade o
período de repúdio foi interrompido, ratificando as palavras de Antoine Compagnon:
Por outro lado, o próprio cânone dos grandes escritores não é estável,
mas conhece entradas (e saídas): a poesia barroca, Sade,
Lautréamont, os romancistas do século XVIII são bons exemplos de
redescobertas que modificaram nossa definição de literatura.
(COMPAGNON, 2006, p. 34)
O que não impede que sua obra cause o mesmo estranhamento, já que
recentemente, a obra de Sade foi censurada pela Comissão Coreana de Ética Editorial
que proibiu a venda e ordenou a destruição dos exemplares de Os 120 dias de Sodoma,
publicado no último mês de agosto na Coreia do Sul.
20
1.3 LES INFORTUNES DE LA VERTU
A sociedade apresentada pelo marquês de Sade em suas obras tem como
característica principal o vício em todas as suas manifestações. Os hábitos, situações ou
qualquer ideia que promova a devassidão são sempre estimulados e recompensados, ao
passo que as virtudes ou qualquer comportamento que sugira retidão são execrados e
rigorosamente punidos. Dentre seus escritos, tomamos como modelo dessas declarações
as experiências das irmãs Justine e Juliette, descritas em Les infortunes de la vertu.
Trata-se da primeira versão da história das duas irmãs. Tudo começa quando seus pais
morrem após entrarem em falência. Elas, que viviam num mosteiro, e foram igualmente
educadas, são colocadas na rua, e, mediante a incompatibilidade existente entre elas,
cada uma segue um caminho diferente. Juliette, que trazia uma inclinação pelas
perversões, inicia uma vida de prostituição, assassinatos e outros tantos outros
comportamentos que podem ser apontados como viciosos, e obtém êxito em tudo o que
faz; Justine, buscando preservar sua integridade religiosa, moral e física, vai amargar
todos os suplícios, os quais anteriormente jamais imaginara, confirmando assim a
máxima apregoada por Sade, que consiste no sucesso sempre alcançado pelos que
optam pelo vício, em oposição à desventura que constantemente acompanha os que se
mantêm na virtude. Após observarmos esses preceitos sadianos, percebemos que o
binômio vício-virtude não é apenas recorrente em sua obra, mas se constitui como
elemento basilar dela. A manifestação de sua oposição se estabelece na inversão dos
valores atribuídos aos componentes do binômio.
Valendo-nos de uma apresentação clássica sobre vício versus virtude,
recorremos a Aristóteles que, em seu livro Ética a Nicômacos, vai discorrer a respeito
das questões que os envolvem. Segundo ele, as virtudes, nomeadas de excelências
humanas, caracterizam-se como uma predisposição moral às práticas louváveis, sendo
que ele ressalta ainda que elas são qualidades arbitrárias que se adquirem e que,
portanto, devem ser praticadas para alcançá-las. Numa diferenciação das virtudes e dos
vícios − deficiências morais – o autor propõe que imaginemos uma linha horizontal.
Nos extremos dessa linha estão os vícios, que serão a falta ou o excesso de determinada
característica, e no meio estará a justa medida, o meio termo que marca o nível
adequado de excelência moral. (ARITOTELES, 1985, p. 35 - 47). Vemos a partir daí
que é relevante destacar a importância do papel que as virtudes desempenham nas
sociedades, já que elas vão regulamentar os princípios considerados adequados à moral
21
e à religião. O Marquês de Sade, num ato contestatório, vai ao ponto onde acredita que
desestabilizaria, desorganizaria o sistema em vigor, defendendo o inverso do que era
visto como conveniente.
A história das duas irmãs demonstra o desenvolvimento da inversão de valores
apresentada por Sade desde o título. Por meio de uma leitura paratextual podemos
relacionar o título da terceira versão da obra, La Nouvelle Justine, ou les Malheurs de la
Vertu (A Nova Justine ou os Infortúnios da Virtude) com os títulos Julie ou La Nouvelle
Héloïse (1743), de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e com Pamela, ou a Virtude
Recompensada (1740), de Samuel Richardson (1689-1761). Tais obras, genericamente
falando, revelam personagens que se conservam em integridade, apesar das situações
adversas pelas quais passam e que as instigam a fazer o contrário do comme il faut. Ao
fim, elas são recompensadas, o oposto do que satiricamente o escritor pornógrafo
descreve em seus textos.
A dualidade, da qual tratamos, foi determinante também na concepção das
personagens sadianas. Justine, a casta, apresentará um discurso que assumirá
invariavelmente um tom de súplica e reclamação, o que é justificado, já que seu
comportamento é sempre reprovado, e por isso ela está constantemente em posição
inferior aos que praticam as perversões. Abaixo, vemos um exemplo de sua fala, que
acontece assim que ela sai do convento, já separada de sua irmã, decidida a buscar o
apoio de uma velha conhecida, que se nega a ajudá-la:
Oh, céu!» disse a pobre criatura, «é necessário que o primeiro passo
que eu dê no mundo me conduza só às tristezas... essa mulher gostava
de mim antes, por que ela me rejeita agora? Infelizmente, é porque sou
órfã e pobre... é porque não tenho mais recursos no mundo e só se
estimam as pessoas em razão dos seus recursos, ou dos agrados que se
imaginam receber.(SADE, 1995, P. 6, tradução nossa) 14
O fato de associar esse estilo de discurso que alude à humilhação à personagem
que durante toda a narrativa se manterá firme no propósito de preservar sua virtude,
evidencia as desgraças sofridas por ela, por causa dessa posição inferior, numa
confirmação de que atitudes como a dela não compensam.
14 No original: «Oh, ciel»! dit cette pauvre petite créature, «faut-il que le premier pas que je fais dans le
monde ne me conduise déjà qu’aux chagrins… cette femme m’aimait autrefois, pourquoi donc me
repousse-t-elle aujourd’hui?… Hélas, c’est que je suis orpheline et pauvre… c’est que je n’ai plus de
ressource dans le monde et qu’on n’estime les gens qu’en raison des secours, ou des agréments que l’on
s’imagine en recevoir.» (SADE, 1995, p.6)
22
Se o estilo de Justine é suplicante, o de Juliette, e o de todos aqueles que, como
ela, são adeptos da depravação, será imperativo, sugerindo, previamente, a
superioridade que os vícios têm sobre as virtudes. Como podemos perceber neste trecho
em que religiosos falam com Justine: “Pegue essa vadia, Antonin, disse ele franzindo a
testa, e despindo-a naquele momento aos nossos olhos, ensine-a que não é somente na
casa de homens como nós que a compaixão pode ter direitos.”15 (SADE, 1995, p.60,
tradução nossa). E aí sobressaem a crueza e o tom imperativo, que contrastam
imediatamente com o tom piedoso, ingênuo e dogmático da anterior.
Embora o livro organizado por Lynn Hunt (1999, p. 330) diga que a literatura
com fins sexuais e como um gênero distinto só surgiu, na Europa ocidental, a partir da
década de 1830, a obra sadiana notoriamente traz elementos do erotismo. No entanto,
além disso, por conter aspectos questionadores o texto, assume uma peculiaridade
filosófica. Na introdução ao livro da história de Justine, o narrador, que conta os fatos
na terceira pessoa, nos demonstra a natureza da ideia que perpassa toda a obra.
“Não acrescentaram eles, com alguma certeza, que é
indiferente ao plano geral, que um ou outro seja bom ou
mau por preferência; que se o mal persegue a virtude, e
a prosperidade acompanha o crime, as coisas sendo
iguais às intenções da natureza, vale infinitamente mais
tomar partido dos maus que prosperam, que dos
virtuosos que fracassam?” (tradução nossa) 16
Como no trecho acima, Sade vai se valer da oposição relatada, para revelar e
debater a hipocrisia patente, instaurada na época, visto que, teoricamente, o exercício
das excelências morais era superestimado, porém na prática, as deficiências imperavam
tanto nos setores da sociedade, como nos meios religiosos, nos quais a reprovação por
parte do escritor era mais veemente. Várias personagens, com o intuito de desvendar os
olhos de Justine, revelarão em suas falas esse tom filosófico, que estabelecem Les
15 No original: «Prenez cette gueuse, Antonin», dit-il en fronçant le sourcil, «et en la mettant nue à
l’instant sous nos yeux, apprenez lui que ce n’est pas chez des hommes comme nous que la compassion
peut avoir des droits.» (SADE, 1995, p.60)
16 No original: “N’ajouteront-ils pas, avec quelque certitude, qu’il est indifférent au plan général, que tel
ou tel soit bon ou méchant de préférence; que si le malheur persécute la vertu, et que la prospérité
accompagne le crime, les choses étant égales aux intentions de la nature, il vaut infiniment mieux prendre
parti parmi les méchants qui prosèrent, que parmi les vertueux qui échouent ? ” (SADE, 1995, p. 396).
23
infortunes de la vertu como um texto que incita à reflexão, inserindo o Marquês de Sade
entre os pensadores do seu tempo.
Por isso, declaramos que o texto sadiano nos faz ainda refletir acerca das
implicações que envolvem o binômio apresentado. Uma das implicações seria se há
mesmo como viver em completa virtude, ou em plena devassidão, já que a observação
de que eles são inseparáveis, desfaz tal ideia. O fato de serem inseparáveis consiste no
pensamento de que a moralidade às vezes requer vícios, sendo que um não exclui o
outro, aliás, um precisa da outro para subsistir.
24
2. A PRESENTE TRADUÇÃO
Les infortunes de la vertu, como já dissemos, é a primeira versão da história de
Justine e Juliette, ela foi escrita em 1787, vindo a ser publicada apenas em 1930, por
Maurice Heine. O texto foi encontrado na Bastilha e levado ao Enfer da Biblioteca
nacional francesa, ninguém nunca tocara no texto até ser encontrado por Guillaume
Apollinaire em 1909, onde se liam as seguintes inscrições: “Terminado ao fim de
quinze dias, 8 de julho de 1787”17. Junto aos manuscritos do texto, havia cadernos
preparatórios onde Sade fazia um roteiro da narrativa. A partir destes cadernos e dos
manuscritos podemos observar o trabalho filológico do Marquês, as marcas das
correções, as notas que as acompanham, serviram para compor as notas ao relato e para
a escritura das outras versões, Justine ou les Malheurs de la vertu, de 1791, e La
nouvelle Justine, ou les malheurs de la vertu, de 1799, em que a ampliação dos males
sofridos por Justine, bem como as depravações praticadas por Juliette se intensificam.
Mesmo com toda censura sofrida, a obra sadiana teve, no período de sua
publicação, bastantes leitores; conforme afirma Gilberto Lely, foi um “livro de venda
ativa e pública” (LELY, 1967, p. 261). Entretanto, adiante, com a censura sofrida, não
só os livreiros foram coagidos por causa do livro, como o próprio Sade negou
categoricamente tê-lo escrito, com intuito frustrado de escapar a prisão, onde, de fato foi
parar em abril de 1801 desta vez sob a acusação de ter escrito La nouvelle Justine
(LELY, 1967, p. 261-262). A partir de então, assistiu-se ao período de repúdio, o qual já
citamos.
Possivelmente, devemos a esse período o desconhecimento dos livros do
Marquês de Sade no Brasil. Sabemos que o primeiro livro foi traduzido em 1961, talvez,
devido às ideias de contracultura que alteravam os valores socioculturais do momento.
Desde então, algumas obras do escritor francês em questão tiveram algumas edições no
Brasil, sem, contudo, abranger toda a obra do autor. Abaixo segue uma lista dos livros
já traduzidos:
1961. Novelas do marquês de Sade. Trad: Augusto de Souza. Ed: Difusão Européia do
Livro.
1967. Justine. Trad: D. Accioly. Ed: Saga.
1968. A Filosofia na Alcova. Trad: Martha A. Haecker. Ed: JCM.
17 No original: “Fini au bout de quinze jours, le 18 juillet 1877. ” (SADE, p. 1113)
25
1968. Zoloé e suas duas amantes. Trad: Maria José Fíalho Londres. Ed: Record.
1969. Os 120 dias de Sodoma. Trad: João M. P. de Albuquerque. Ed: Hemus.
1969. A Filosofia na Alcova. Trad: Aloísio Costa. Ed: Coordenada.
1969. Aline e Valcour. Trad: Rubem Rocha Filho. Ed: José Álvaro.
1969. O livro negro do amor. Trad: não mencionado. Ed: Hemus.
1970. Os crimes do amor. Trad: Regina Richard; Lino Tavares. Ed: Coordenada.
1975. A divina marquesa. Trad: Aluísio F. Ciano. Ed: Golfinho.
1980. A Filosofia na Alcova. Trad: R. G. Ed: Gama.
1980. Escola de libertinagem. Trad: Aloísio Costa. Ed: Esquina.
1988. Ciranda dos Libertinos. Trad: L. A. Contador Borges. Ed: Max Limonad.
1988. A Filosofia na Alcova. Trad: Mary A. Leite de Barros. Ed: Circulo do Livro.
1989. Justine: Os sofrimentos da virtude. Trad: Gilda Stuart. Ed: Circulo do Livro.
1992. Eugénie de Franval. Trad: Eliane R. Moraes. Ed: Educ.
1992. Contos libertinos. Trad: Plínio A. Coelho; Alípio C. de F. Neto. Ed: Imaginário.
1995. A Filosofia na Alcova. Trad: Anônimo da década de 40 revisada por Eliane
Robert Moraes. Ed: Àlgama.
1995. A Filosofia na Alcova. Trad: Aloísio Costa. Ed: Thesaurus.
1998. Discursos ímpios. Trad: Plínio Augusto Coelho. Ed: Imaginário.
1998. O marido complacente. Trad: Paulo Hecker Filho. Ed: L&PM.
1999. A Filosofia na Alcova. Trad: Augusto C. Borges. Ed: Iluminuras.
1999. O presidente ludibriado. Trad: Sérgio Coelho. Ed: Imaginário.
2000. Os crimes do amor. Trad: Magnólia Costa Santos. Ed: L&PM.
2001. Dialogo entre um padre e um moribundo. Trad: Alain François e Contados
Borges. Ed: Iluminuras.
2006. Os 120 dias de Sodoma ou A Escola da Libertinagem. Trad.: Alain François. Ed:
Iluminuras.
2009. Cartas de Vincennes: um libertino na prisão. Trad.: Gabriel Giannattasio. Eduel.
2009. Os infortúnios da virtude. Trad.: Mauro Paciornik. Ed: Iluminuras.
Este trabalho de tradução é feito a partir da edição proposta pela editora
Gallimard que publicou as obras completas sob a organização de Michel Delon. A
opção pela tradução de Les infortunes de la vertu deu-se por ter sido este o primeiro
livro que lemos do autor e por se tratar da versão embrionária da história de Justine e
Juliette.
26
Partimos do pressuposto de que a tradução assume a função de reproduzir em
outra língua, a língua receptora, a mensagem da língua de origem, da maneira mais
equivalente e natural possível, respeitando o sentido e o estilo do autor. (LADMIRAL,
1980, p. 88)
Nas diversas teorias referentes à tradução, a maioria dos estudiosos concorda
com fato de que traduzir o sentido do texto no original seria o mais apropriado fazer.
Valery Larbaud ressalta que São Jerônimo, tradutor da Vulgata já em seu tempo prezava
por esse ponto.(LARBAUD, 2001, p. 47)
Como se trata de uma tradução literária é conveniente lembrar que as discussões
acerca da traduzibilidade de tais textos são variadas. Paulo Ronai é um dos que aborda
tal tema e associa essa ideia ao clássico pensamento de traditore / tradutore, dizendo
que o tradutor trai a ideia do autor já que o pensamento está condicionado ao idioma de
origem. (RONAI, 1976, p. 18) Ao constatar a impossibilidade da equivalência absoluta
numa tradução, ele nos orienta: “Desde então, em matéria de traduzir, contentamo-nos
de aproximações. Procuremos, por um esforço da imaginação, meter-nos na pele do
autor e dizer o que ele diria se falasse a nossa língua.”
Além dessas observações, lemos também que a tradução não se preocupa apenas
com o mero transporte de significados de um idioma ao outro; sendo antes uma
atividade criadora de significados, é próprio do tradutor o papel de mediador com a
função de produzir esses significados, de forma que alcance a comunidade cultural a
que pertence o leitor. (ARROJO, 1996, p. 77)
Considerando essas apreciações, podemos observar a proposta de Antoine
Berman (1942-1991), tradutor e estudioso da tradução, que comtemplando a ética na
tradução, destaca que o estrangeiro será sempre estrangeiro, numa tradução ele deveria
ser convidado a entrar em outra cultura sem perder suas características próprias. Na
mesma lógica, ele reprova a tradução que denomina como etnocêntrica que consiste em
fazer o inverso, naturalizar o texto, trazendo tudo para sua própria cultura. (2007, p.29).
Nisso, Berman propõe uma "fidelidade à letra" (2007, p. 70) que consiste em acolher o
estrangeiro. Essa mesma ideia foi proposta por Friedrich Schleiermacher e desenvolvida
por Lawrence Venuti, que designou a tradução estrangeirizadora, como aquela em que
há a manutenção dos aspectos textuais do texto de partida, aceitando a diferença do
outro, e a tradução domesticadora, onde o texto traduzido é adaptado às características
27
culturais da língua de chegada, minimizando qualquer traço que possa causar
estranhamento ao leitor. (VENUTI, 2002, p. 150-165)
Levando em conta a distância temporal e cultural do momento em que foi escrito
Les infortunes de la vertu, procedemos aqui à tradução estrangeirizadora, privilegiando
o texto de partida, observando as indicações que se fazem para seguir o sentido e estilo
dados pelo autor original, mas sem esquecer que a tradução pode ser considerada
também um processo de recriação.
28
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31
TRADUÇÃO
32
LES INFORTUNES DE LA VERTU
Le triomphe de la philosophie serait de dêmeler l’obscurité des voies dont la
Providence se sert pour parvenir aux fins qu’elle se propose sur l’homme, et de tracer
d’après cela quelque plan de conduite qui pût faire connaître à ce malheureux individu
bipède, perpétuellement ballotté par les caprices de cet être qui, dit-on, le dirige aussi
despotiquement, la manière dont il faut qu’il interprète les décrets de cette Providence
sur lui, la route qu’il faut qu’il tienne pour prévenir les caprices bizarres de cette fatalité
à laquelle on donne vingt noms différents, sans être encore parvenu à la définir.
Car si, partant de nos conventions sociales et ne s’écartant jamais du respect
qu’on nous inculqua pour elles dans l’éducation, il vient malheureusement à arriver que
par la perversité des autres, nous n’ayons pourtant jamais rencontré que des épines18,
lorsque les méchants ne cueillaient que des roses, des gens faibles et sans un fonds de
vertu assez constaté pour se mettre au-dessus des réflexions fournies par ces tristes
circonstances, ne calculeront-ils pas qu’alors il vaut mieux s’abandonner au torrent que
d’y résister, ne diront-ils pas que la vertu telle belle qu’elle soit, quand
malheureusement elle devient trop faible pour lutter contre le vice, devient le plus
mauvais parti qu’on puisse prendre un être quelconque et que dans un siècle entièrement
corrompu le plus sûr est de faire comme les autres? Un peu plus instruits si l’on veut, et
abusant des lumières qu’ils ont acquises, ne diront-ils pas avec l’ange Jesrad de Zadig19
qu’il n’y a aucun mal dont il ne naisse un bien; n’ajouteront-ils pas à cela d’eux-mêmes
que puisqu’il y a dans la constitution imparfaite de notre mauvais monde une somme de
maux égale à celle du bien, il est essentiel pour le maintien de l’équilibre qu’il y ait
autant de bons que de méchants, et que d’après cela il devien t égal au plan général que
tel ou tel soit bon ou méchant de préférence; que si le malheur persécute la vertu, et que
la prospérité accompagne presque toujours le vice, la chose étant égale aux vues de la
nature, il vaut infiniment mieux prendre parti parmi les méchants qui prospèrent que
18 Le point de vue du narrateur est ici celui de la vertu, par opposition aux méchants et même aux "gens
faibles et sans un fonds de vertu assez constaté". (Nota do editor = N. E.)
19Sade détourne la leçon de Voltaire qui ne met pas em doute la nécessité d'une morale. Zadig, dans le
conte qui porte son nom, va consulter un ermite qui se révèle être l'ange Jesrad. "Mais quoi! Dit Zadig, il
est donc nécessaire qu'il y ait des crimes et des malheurs, et les malheurs tombent sur les gens de bien? –
Les mechants, repondit Jesrad, sont toujours malheureux: ils servent à éprouver un petit nombre de justes
répandus sur la terre, et il n'y a point de mal dont il ne naisse un bien" (Zadig ou la destinée, Romans et
contes, Bibl. de la Pléiade, p. 113-114) Le conte de Voltaire apparaît souvent dans la fiction de l'époque.
On le trouve sur la table d'une aristocrate contrainte à l'exil ou entre les mains d'une future libertine. (N.
E)
33
OS INFORTÚNIOS DA VIRTUDE
O triunfo da filosofia seria o de esclarecer os caminhos dos quais a Providência
se serve para chegar aos fins que ela se propõe em relação ao homem, e traçar, depois
disso, algum plano de conduta que possa revelar a esse infeliz indivíduo bípede,
perpetuamente balançado pelos caprichos desse ser que, como dizem, o dirige tão
despoticamente, a maneira pela qual é necessário que ele interprete os decretos desta
Providência sobre si; o caminho que se deve seguir para prevenir os bizarros caprichos
desta fatalidade, que é nomeada com vinte nomes diferentes, sem, contudo, ser definida.
Pois se, partindo de nossas convenções sociais e nunca nos afastando do respeito
que nos foi inculcado por elas na educação, é possível infelizmente que, pela
perversidade dos outros, nunca encontremos nada a não ser espinhos20, enquanto os
maus só colhem rosas, pessoas fracas e sem nenhuma virtude para se colocar acima das
reflexões fornecidas por estas tristes circunstâncias, será que não vão avaliar, então, que
é melhor deixar-se levar pela corrente do que resistir a ela? Será que não vão dizer que a
virtude, por mais bela que seja, quando, infelizmente, se torna fraca demais para lutar
contra o vício, torna-se o pior partido que qualquer ser possa tomar e que, em um século
inteiramente corrompido, o mais seguro é fazer como os outros? Admitindo que sejam
um pouco mais instruídos e que abusem dos conhecimentos que adquiriram, será que
não vão dizer juntamente com o anjo Jesrad de Zadig, que não há nenhum mal de onde
não nasça um bem21; será que por eles próprios não vão acrescentar a isso que, da
mesma forma que existe na constituição imperfeita do nosso mundo mau uma soma de
males igual à do bem, é essencial para a manutenção do equilíbrio que haja o mesmo
tanto de bons e de maus, e que, a partir disso, é indiferente ao plano geral, que um ou
outro seja bom ou mau por preferência; que se o mal persegue a virtude e que a
prosperidade acompanha quase sempre o vício, essa situação sendo igual aos olhos da
natureza, é infinitamente melhor ficar ao lado dos maus que prosperam que
20 O ponto de vista do narrador é o da virtude, em oposição aos maus, e mesmo "às pessoas fracas e
privadas de um pouco de virtude". (N. E.)
21 Com a citação do conto Zadig ou la Déstinée (1747), de Voltaire, Sade se opõe à lição proposta por ele,
que não punha em dúvida a necessidade de uma moral. Zadig, no conto homônimo, consulta um ermitão
que se revela ser o anjo Jesrad. "Mas, o quê! disse Zadig, então é necessário que haja crimes e infortúnios,
e os infortúnios recaem sobre as pessoas de bem? – Os maus, respondeu Jesrad, são sempre infelizes: eles
servem para enfrentar um pequeno número de justos espalhados pela terra, e não há nenhuma mal de onde
não nasça um bem". (Zadig ou la destinée, Romans et contes, Bibl. de la Pléiade, p. 113-114) O conto de
Voltaire aparece frequentemente nas ficções da época. Ele é encontrado tanto na mesa de um aristocrata
aprisionado no exilo, como nas mãos de uma futura libertina.(N. E.)
34
parmi les vertueux qui périssent? Il est donc important de prévenir ces sophismes
dangereux de la philosophie, essentiel de faire voir que les exemples de la vertu
malheureuse présentés à une âme corrompue dans laquelle il reste encore pourtant
quelques bons principes, peuvent ramener cette âme au bien tout aussi sûrement que si
on lui eût offert dans cette route de la vertu les palmes les plus brillantes et les plus
flatteuses récompenses. Il est cruel sans doute d’avoir à peindre une foule de malheurs
accablant la femme douce et sensible qui respecte le mieux la vertu, et d’une autre part
la plus brillante fortune chez celle qui la méprise toute sa vie; mais s’il naît cependant
un bien de l’esquisse de ces deux tableaux, aura-t-on à se reprocher de les avoir offerts
au public? pourra-t-on former quelque remords d’avoir établi un fait, d’où il résultera
pour le sage qui lit avec fruit la leçon si utile de la soumission aux ordres de la
providence, une partie du développement de ses plus secrètes énigmes et l’avertissement
fatal que c’est souvent pour nous ramener à nos devoirs que le ciel frappe à côté de nous
les êtres qui paraissent même avoir le mieux rempli les leurs?
Tels sont les sentiments qui nous mettent la plume à la main, et c’est en
considération de leur bonne foi que nous demandons à nos lecteurs un peu d’attention
mêlé d’intérêt pour les infortunes de la triste et misérable Justine.
Mme la comtesse de Lorsange était une de ces prêtresses de Vénus, dont la
fortune est l’ouvrage d’une figure enchanteresse, de beaucoup d’inconduite et de
fourberie, et dont les titres quelque pompeux qu’ils soient ne se trouvent que dans les
archives de Cythère, forgés par l’impertinence qui les prend et soutenus par la sotte
crédulité qui les donne. Brune, fort vive, une belle taille, des yeux noirs d’une
expression prodigieuse, de l’esprit et surtout cette incrédulité de mode qui, prêtant un
sel de plus aux passions, fait rechercher avec bien plus de soin la femme en qui l’on la
soupçonne; elle avait reçu néanmoins la plus brillante éducation possible; fille d’un très
gros commerçant de la rue Saint-Honoré22, elle avait été élevée avec une soeur plus
jeune qu’elle de trois ans dans un des meilleurs couvents de Paris, où jusqu’à l’âge de
quinze ans, aucun conseil, aucun maître, aucun bon livre, aucun talent ne lui avait été
refusé.
22 La rue Saint-Honoré est au XVIIIe siècle une des plus riches de la capitale. (N. E.)
35
entre os virtuosos que morrem? É importante, portanto, evitar esses sofismas perigosos
da filosofia; é essencial revelar que os exemplos da virtude infeliz, apresentados a uma
alma corrompida, na qual, contudo, restam ainda alguns bons princípios, podem trazer
de volta essa alma ao bem tão certamente que se lhe tivessem ofertado neste caminho da
virtude os louros mais brilhantes e as mais lisonjeiras recompensas. Talvez seja cruel ter
de retratar inúmeros males pesando sobre a mulher doce e sensível que respeita ao
máximo a virtude, e por outro lado, a mais brilhante fortuna daquela mulher que a
despreza toda a sua vida; mas, se do esboço desses dois quadros, nascer um bem,
teremos que nos repreender de tê-los ofertado ao público? Poderemos ficar com algum
remorso de ter estabelecido um fato, de onde resultará para o sábio que lê com proveito
a lição tão útil da submissão às ordens da providência, uma parte do desenvolvimento
dos seus mais secretos enigmas e a advertência fatal segundo a qual é frequentemente
para nos trazer de volta aos nossos deveres que o céu atinge, ao nosso lado, os seres que
parecem até mesmo ter cumprido melhor seus deveres?
Tais são os sentimentos que nos colocam a pena na mão e é em consideração à
boa fé dos nossos leitores que nós lhes pedimos um pouco de atenção misturado com
interesse pelos infortúnios da triste e miserável Justine.
A condessa de Lorsange era uma dessas sacerdotisas de Vênus, cuja fortuna era
obra de uma aparência encantadora, de muita leviandade e dissimulação, cujos títulos,
por mais pomposos que sejam, encontram-se apenas nos arquivos de Citera23, forjados
pela impertinência de quem os assume e sustentados pela estúpida credulidade de quem
os dá. Morena, cheia de vida, bem modelada, uns olhos negros de uma expressão
prodigiosa, uma inteligência e, sobretudo, modos libertinos que, ao apimentar um pouco
mais as paixões, leva a procurar muito mais a mulher que se sente nela. Ela recebera, no
entanto, a mais brilhante educação possível. Filha de um riquíssimo comerciante da Rua
Saint-Honoré24, fora educada, junto com uma irmã três anos mais nova que ela, em um
dos melhores conventos de Paris, onde, até a idade de quinze anos, nenhum conselho,
nenhum mestre, nenhum bom livro, nenhum talento lhe fora negado.
23 Ilha da Grécia, referida como a ilha do amor. (Nota do tradutor = N. T.)
24 No século XVIII, a Rua Saint-Honoré era uma das mais ricas da capital. (N. E.)
36
A cette époque fatale pour la vertu d’une jeune fille, tout lui manqua dans un seul jour.
Une banqueroute affreuse précipita son père dans une situation si cruelle que tout ce
qu’il put faire pour échapper au sort le plus sinistre fut de passer promptement en
Angleterre, laissant ses filles à sa femme qui mourut de chagrin huit jours après le
départ de son mari. Un ou deux parents qui restaient au plus délibérèrent sur ce qu’ils
feraient des filles, et leur part faite se montant à environ cent écus chacune, la résolution
fut de leur ouvrir la porte, de leur donner ce qui leur revenait et de les rendre maîtresses
de leurs actions. Mme de Lorsange qui se nommait alors Juliette et dont le caractère et
l’esprit étaient à fort peu de chose près aussi formés qu’à l’âge de trente ans, époque où
elle était lors de l’anecdote que nous racontons, ne parut sensible qu’au plaisir d’être
libre, sans réfléchir un instant aux cruels revers qui brisaient ses chaînes. Pour Justine,
sa soeur, venant d’atteindre sa douzième année, d’un caractère sombre et mélancolique,
douée d’une tendresse, d’une sensibilité surprenantes, n’ayant au lieu de l’art et de la
finesse de sa soeur, qu’une ingénuité, une candeur, une bonne foi qui devaient la faire
tomber dans bien des pièges, elle sentit toute l’horreur de sa position. Cette jeune fille
avait une physionomie toute différente de celle de Juliette; autant on voyait d’artifice, de
manège, de coquetterie dans les traits de l’une, autant on admirait de pudeur, de
délicatesse et de timidité dans l’autre. Un air de vierge, de grands yeux bleus pleins
d’intérêt, une peau éblouissante, une taille fine et légère, un son de voix touchant, des
dents d’ivoire et de beaux cheveux blonds, telle est l’esquisse de cette cadette charmante
dont les grâces naïves et les traits délicieux sont d’une touche trop fine et trop délicate
pour ne pas échapper au pinceau qui voudrait les réaliser.
On leur donna vingt-quatre heures à l’une et à l’autre pour quitter le couvent,
leur laissant le soin de se pourvoir avec leurs cent écus où bon leur semblerait. Juliette,
enchantée d’être sa maîtresse, voulut un moment essuyer les pleurs de Justine, mais
voyant qu’elle n’y réussirait pas, elle se mit à la gronder au lieu de la consoler, elle lui
dit qu’elle était une bête et qu’avec l’âge et les figures qu’elles avaient, il n’y avait point
d’exemple que des fille mourussent de faim; elle lui cita la fille d’une de leurs voisines,
qui s’étant échappée de la maison paternelle, était maintenant richement entretenue par
un fermier général et roulait carrosse à Paris.
37
Nesta época fatal para a virtude de uma moça, tudo lhe faltou em um único dia. Uma
bancarrota terrível deixou seu pai em uma situação tão cruel que tudo o que ele pode
fazer para escapar desse destino desastroso foi ir imediatamente para Inglaterra,
deixando suas filhas com sua esposa que morreu de desgosto oito dias após a partida de
seu marido. Um ou dois parentes que restaram decidiram o que fazer com as meninas e
com a parte delas da herança, que chegava a cerca de cem escudos25 para cada uma, a
resolução foi de lhes abrir a porta e lhes dar o que tinham de direito e torná-las donas de
suas ações. A Senhora de Lorsange, que se nomeava na época Juliette, cujo caráter e
inteligência eram praticamente tão formados quanto os de uma mulher de trinta anos,
situação em que se encontrava por ocasião do caso que estamos contando, parecia ser
sensível apenas ao prazer de ser livre, sem refletir um instante nas cruéis desventuras
que rompiam suas amarras. Justine, sua irmã, que acabava de atingir os seus doze anos,
de um caráter sombrio e melancólico, dotada de uma ternura e de uma sensibilidade
surpreendentes, que, ao invés da destreza e da perspicácia de sua irmã, tinha apenas uma
candura, uma boa fé que iam fazê-la cair em muitas armadilhas, sentiu todo o horror de
sua posição. Essa moça tinha uma fisionomia completamente diferente da de Juliette;
quanto mais artifícios, astúcias e sedução víamos nos traços de uma, mais pudor,
delicadeza e timidez admirávamos na outra. Um ar de virgem, com grandes olhos azuis
cheios de curiosidade, uma pele deslumbrante, uma estatura delicada, de uma voz
comovente, dentes de marfim e lindos cabelos loiros, assim é o esboço dessa caçula
encantadora cuja graça inocente e cujos traços fascinantes apresentam um toque
demasiado fino e delicado para não escapar ao pincel que desejaria desenhá-los.
Deram a ambas vinte e quatro horas para sair do convento, deixando-lhes a
responsabilidade de se sustentarem com os seus cem escudos onde bem quisessem.
Juliette, entusiasmada por ser dona de si mesma, quis por um momento enxugar as
lágrimas de Justine, mas ao ver que não conseguiria, começou a repreendê-la ao invés
de consolá-la. Disse-lhe que era uma boba, que com a idade e a fisionomia que elas
tinham não havia nenhum registro de menina que morrera de fome. Citou a filha de uma
de suas vizinhas, que após ter fugido da casa paterna era sustentada ricamente por um
fazendeiro e andava de carruagem em Paris.
25 Écu em francês, antiga moeda francesa, cunhada em 1263, esteve em vigor até a Revolução Francesa.
Um escudo antigo valia três francos. (N. T.)
38
Justine eut horreur de ce pernicieux exemple, elle dit qu’elle aimerait mieux
mourir que de le suivre et refusa décidément d’accepter un logement avec sa soeur sitôt
qu’elle la vit décidée au genre de vie abominable dont Juliette lui faisait l’éloge.
Les deux soeurs se séparèrent donc sans aucune promesse de se revoir, dès que
leurs intentions se trouvaient si différentes. Juliette qui allait, prétendait-elle, devenir
une grande dame, consentirait-elle à revoir une petite fille défît les inclinations
vertueuses et basses allaient la déshonora, et de son côté Justine voudrait-elle risquer ses
moeurs dans la société d’une créature perverse qui allait devenir victime de la crapule et
de la débauche publique? Chacune chercha donc des ressources et quitta le couvent dès
le lendemain ainsi que cela était convenu.
Justine caressée étant enfant par la couturière de sa mère, s’imagina que cette
femme serait sensible à son sort, elle fut la trouver, elle lui raconta sa malheureuse
position, lui demanda de l’ouvrage et en fut durement rejetée…
«Oh, ciel»! dit cette pauvre petite créature, «faut-il que le premier pas que je fais
dans le monde ne me conduise déjà qu’aux chagrins… cette femme m’aimait autrefois,
pourquoi donc me repousse-t-elle aujourd’hui?… Hélas, c’est que je suis orpheline et
pauvre… c’est que je n’ai plus de ressource dans le monde et qu’on n’estime les gens
qu’en raison des secours, ou des agréments que l’on s’imagine en recevoir.»
Justine voyant cela fut trouver le curé de sa paroisse, elle lui demanda quelques
conseils, mais le charitable ecclésiastique lui répondit équivoquement que la paroisse
était surchargée, qu’il était impossible qu’elle pût avoir part aux aumônes, que
cependant si elle voulait le servir, il la logerait volontiers chez lui; mais comme en
disant cela le saint homme lui avait passé la main sous le menton en lui donnant un
baiser beaucoup trop mondain pour un homme d’Église, Justine qui ne l’avait que trop
compris se retira fort vite, en lui disant :
«Monsieur, je ne vous demande ni l’aumône, ni une place de servante, il y a trop
peu de temps que je quitte un état au-dessus de celui qui peut faire solliciter ces deux
grâces, pour en être encore réduite là; je vous demande les conseils dont ma jeunesse et
mon malheur ont besoin, et vous voulez me les faire acheter par un crime…»
Le curé révolté de ce terme ouvre la porte, la chasse brutalement, et Justine,
deux fois repoussée dès le premier jour qu’elle est condamnée à
39
Justine ficou horrorizada com este pernicioso exemplo, disse que ela preferia morrer a
segui-lo e negou-se definitivamente a morar com sua irmã, logo que a viu decidida a
levar essa vida abominável a qual Juliette elogiava.
As duas irmãs se separaram, portanto, sem nenhuma promessa de se rever, visto
que suas intenções eram tão diferentes. Será que Juliette, que, conforme suas intenções,
ia se tornar uma grande dama, consentiria em rever uma menina entregue às inclinações
virtuosas e inferiores, que a desonravam? Por sua vez, Justine, aceitaria arriscar seus
bons modos na companhia de uma criatura perversa que ia se tornar vítima da escória e
da devassidão pública? Cada uma, então, procurou seus recursos e deixou o convento no
dia seguinte, conforme o combinado.
Justine, bajulada pela costureira de sua mãe quando criança, imaginou que esta
mulher seria sensível a sua sorte e foi encontrá-la, contou-lhe sua infeliz posição, lhe
pediu trabalho e foi duramente rejeitada...
«Oh, céu!» disse a pobre criatura, «é necessário que o primeiro passo que eu dê
no mundo me conduza só às tristezas... essa mulher gostava de mim antes, por que ela
me rejeita agora? Infelizmente, é porque sou órfã e pobre... é porque não tenho mais
recursos no mundo e só se estimam as pessoas em razão dos seus recursos, ou dos
agrados que se imagina delas receber.»
Ao ver isso, Justine foi procurar o padre de sua paróquia, ela lhe pediu alguns
conselhos, mas o caridoso eclesiástico lhe respondeu equivocadamente que a paróquia
estava sobrecarregada, que era impossível que ela pudesse se beneficiar das esmolas,
que, no entanto, se ela quisesse servi-lo, ele a abrigaria voluntariamente em sua casa.
Mas ao dizer isso, o santo homem passou a mão no queixo da menina, dando-lhe um
beijo demasiadamente mundano para um homem de igreja. Justine, entendendo o que
acontecia, afastou-se rapidamente, dizendo-lhe:
«Senhor, não lhe peço nem esmola, nem um emprego de doméstica. Há muito
pouco tempo eu deixei um estado acima desse que poderia fazer solicitar esses dois
favores, para já ser submetida a essa situação; peço-lhe os conselhos, dos quais a minha
juventude e o meu infortúnio precisam, e o senhor quer que eu os compre com um
crime...»
O padre, revoltado com essas palavras, abre a porta e a expulsa brutalmente, e
Justine, pela segunda vez rejeitada logo no primeiro dia em que foi condenada ao
40
l’isolisme26, entre dans une maison où elle voit un écriteau, loue une petite
chambre garnie, la paye d’avance et s’y livre tout à l’aise au chagrin que lui inspirent
son état et la cruauté du peu d’individus auxquels sa malheureuse étoile l’a contrainte
d’avoir affaire.
Le lecteur nous permettra de l’abandonner quelque temps dans ce réduit obscur,
pour retourner à Juliette et pour lui apprendre le plus brièvement possible comment du
simple état où nous la voyons sortir, elle devint en quinze ans femme titrée, possédant
plus de trente mille livres de rentes, de très beaux bijoux, deux ou trois maisons tant à la
campagne qu’à Paris, et pour l’instant, le coeur, la richesse et la confiance de M. de
Corville, conseiller d’État, homme dans le plus grand crédit et à la veille d’entrer dans
le ministère… La route fut épineuse… on n’en doute assurément pas, c’est par
l’apprentissage le plus honteux et le plus dur, que ces demoiselles-là font leur chemin,
et telle est dans le lit d’un prince aujourd’hui qui porte peut-être encore sur elle les
marques humiliantes de la brutalité des libertins dépravés, entre les mains desquels son
début, sa jeunesse et son inexpérience la jetèrent.
En sortant du couvent, Juliette fut tout simplement trouver une femme qu’elle
avait entendu nommer à cette amie de son voisinage qui s’était pervertie et dont elle
avait retenu l’adresse; elle y arrive effrontément avec son paquet sous le bras, une petite
robe en désordre, la plus jolie figure du monde, et l’air bien écolière; elle conte son
histoire à cette femme, elle la supplie de la protéger comme elle a fait il y a quelques
années de son ancienne amie.
«Quel âge avez-vous, mon enfant?» lui demande Mme Du Buisson.
«Quinze ans dans quelques jours, madame.»
– Et jamais personne…
– Oh non, madame, je vous le jure.
– Mais c’est que quelquefois dans ces couvents un aumônier… une religieuse,
une camarade… il me faut des preuves sûres.
– Il ne tient qu’à vous de vous les procurer, madame…
26 D'après l'enquete historique menée par Érica-Marie Benabou, si certaines courtisanes jouissent plus ou
moins longtemps d'un mode de vie semblable à celui de Juliette, rares sont celles qui s'assurent u tel
revenu (La Prostitution et la Police de moeurs au XVIIIe siècle, Perrin, 1987, p 330-383). (N. E.)
41
isolismo27, entra em uma casa onde vê um letreiro, aluga um quarto mobiliado, paga
adiantado e se entrega sem constrangimento à tristeza que lhe inspiram seu estado e a
crueldade dos poucos indivíduos com os quais sua estrela infeliz a obrigou a cruzar.
O leitor nos permitirá abandoná-la algum tempo nesse lugar obscuro, para
retornar a Juliette e para lhe comunicar, o mais brevemente possível, como, do simples
estado de onde nós a vimos sair, ela se tornou em quinze anos uma mulher com título,
possuindo mais de trinta mil libras de rendas28, joias muito lindas, duas ou três casas,
tanto no campo, como em Paris, e no momento, o coração, a riqueza e a confiança do
senhor de Corville, conselheiro do Estado, homem de maior prestígio e às vésperas de
entrar no ministério... A estrada foi espinhosa... Certamente não duvidamos disso, é
pela aprendizagem, a mais vergonhosa e a mais dura, que essas moças fazem seu
caminho, e assim, hoje, encontra-se Juliette na cama de um príncipe que talvez a
submeta às marcas humilhantes da brutalidade dos libertinos depravados, nas mãos dos
quais seus primeiros passos, sua juventude e sua falta de experiência a jogaram.
Quando saiu do convento, Juliette foi simplesmente à casa de uma mulher de
quem tinha ouvido falar por uma amiga de sua vizinhança que se pervertera, e de quem
ela havia guardado o endereço; chegou lá, sem constrangimento nenhum, carregando
sua trouxa, um vestidinho desalinhado, a mais bela aparência do mundo, e o jeito bem
colegial. Contou sua historia a essa mulher, lhe suplicou proteção, a mesma que dera há
alguns anos à sua antiga amiga.
«Qual a sua idade, minha criança?» Perguntou-lhe a senhora Du Buisson.
«Farei quinze anos em alguns dias, senhora.
- E nunca ninguém...
- Oh, não, senhora, eu juro.
- Mas acontece que às vezes nesses conventos um capelão... uma religiosa, uma
colega... eu preciso de provas concretas.
- Cabe à senhora procurá-las...»
27 No texto em francês, Sade usa o termo isolisme, um neologismo dele que aparece também em Aline et
Valcour (1793) (N. E.), optamos por traduzir para isolismo, também um neologismo, que se assemelha a
palavra isolar que apresenta a mesma carga semântica que a palavra que Sade utilizou. (N. T.)
28 Segundo a enquete histórica feita por Érica-Marie Benabou (1935-1985) historiadora francesa, se uma
prostituta tivesse o modo de vida parecido com o de Juliette por bastante tempo, seriam raras as que
chegariam a obter uma renda como a dela (La Prostitution et la Police de moeurs au XVIIIe siècle, Perrin,
1987, p 330-383) . (N. E.)
42
Et la Du Buisson, s’étant affublée d’une paire de lunettes et ayant vérifié par
elle-même l’état exact des choses, dit à Juliette :
«Eh bien mon enfant, vous n’avez qu’à rester ici, beaucoup de soumission à mes
conseils, un grand fonds de complaisance pour mes pratiques, de la propreté, de
l’économie, de la candeur vis-à-vis de moi, de l’urbanité avec vos compagnes et de la
fourberie envers les hommes, dans quelques années d’ici je vous mettrai en état de vous
retirer dans une chambre avec une commode, un trumeau29, une servante, et l’art que
vous aurez acquis chez moi vous donnera de quoi vous procurer le reste.»
La Du Buisson s’empara du petit paquet de Juliette, elle lui demanda si elle
n’avait point d’argent et celle-ci ayant trop franchement avoué qu’elle avait cent écus, la
chère maman s’en empara en assurant sa jeune élève qu’elle placerait ce petit fonds à
son profit, mais qu’il ne fallait pas qu’une jeune fille eût d’argent… c’était un moyen de
faire mal et dans un siècle aussi corrompu, une fille sage et bien née devait éviter avec
soin tout ce qui pouvait la faire tomber dans quelque piège. Ce sermon fini, la nouvelle
venue fut présentée à ses compagnes, on lui indiqua sa chambre dans la maison et dès le
lendemain, ses prémices furent en vente; en quatre mois de temps, la même
marchandise fut successivement vendue à quatre-vingts personnes qui toutes la payèrent
comme neuve, et ce fut qu’au bout de cet épineux noviciat que Juliette prit des patentes
de soeur converse30. De ce moment elle fut réellement reconnue comme fille de la
maison et en partagea les libidineuses fatigues… autre noviciat; si dans l’un à quelques
écarts près Juliette avait servi la nature, elle en oublia les lois dans le second : des
recherches criminelles, de honteux plaisirs, de sourdes et crapuleuses débauches, des
goûts scandaleux et bizarres, des fantaisies humiliantes, et tout cela finit d’une part du
désir de jouir sans risquer sa santé, de l’autre, d’une satiété pernicieuse qui blasant
l’imagination, ne la laisse plus s’épanouir que par des excès et se rassasier que de
dissolutions…
29 Trumeau, d'après l'Encyclopédie, "se dit des glaces qui se placent dans l'entre-deux des croisées que les
architectes nomment trumeaux, d'où ces miroirs ont pris leur nom" (t. XVI, p. 728, col. a). (N. E.)
30 "Convers, erse, adj. C'est um nom qu'on donne en plusiers couvents aus frères lais qui n'ont point
d'ordres, et qui ne chantent point dans le choeur, mais qui servent en divers offices de la maison"
(Trevoux). Les maison de prostitution sont traditionellement comparées à des couvents. D'où le
vocabulaire qui file la métaphore: sermon, noviciat, soeur converse... (N. E.)
43
E Du Buisson, colocou os óculos, e após verificar, ela própria, o estado exato das
coisas, disse a Juliette:
«Bem, minha criança, é só você ficar aqui, mostrar muita submissão aos meus
conselhos, um fundo grande de complacência para com meus procedimentos, limpeza,
economia, sinceridade para comigo, delicadeza com suas companheiras e esperteza com
os homens, e em alguns anos eu a ajudarei a ter seu quarto com uma cômoda, um
espelho31, uma criada, e a arte que tiver adquirido na minha casa lhe dará os meios para
procurar o resto.»
A senhora Du Buisson pegou a trouxinha de Juliette, perguntou-lhe se não tinha
mesmo dinheiro, e como ela confessou com demasiada sinceridade que tinha cem
escudos, a cara madre pegou o dinheiro, assegurando à sua jovem aluna que ela o
aplicaria em seu nome, mas que uma mocinha não devia estar com dinheiro... era uma
forma de se machucar, e em um século tão corrompido, uma menina sábia e de boa
família devia evitar com cuidado tudo o que podia fazê-la cair em alguma armadilha.
Terminado esse sermão, a recém-chegada foi apresentada às suas companheiras,
indicaram-lhe o seu quarto na casa, e a partir do dia seguinte sua virgindade foi
colocada à venda. Em quatro meses, a mesma mercadoria foi sucessivamente vendida a
oitenta pessoas, pagaram-na todos como se fosse nova, e foi somente no fim desse
espinhoso noviciado que Juliette pegou a patente de irmã de entretenimento32. A partir
desse momento, ficou verdadeiramente reconhecida como sendo moça da casa e
compartilhou das libidinosas fadigas... outro noviciado; se em um deles, fora algumas
exceções, Juliette servira à natureza, ela esqueceu essas leis no segundo noviciado:
vontades criminais, prazeres vergonhosos, orgias secretas e infames, gostos
escandalosos e bizarros, fantasias humilhantes, e tudo isso vem, por um lado, do desejo
de gozar sem arriscar sua saúde e, por outro, de uma saciedade perniciosa que, ao
esgotar a imaginação, só a deixa ter prazer por meio de excessos e se saciar apenas com
dissoluções...
31 Trumeau, de acordo com a Enciclopédia, “se referia espelhos que se colocava nos vidros das janelas
que os arquitetos nomeavam trumeaux, de onde vem o nome desses espelhos” (t. XVI, p. 728, col. a). (N.
E.)
32 Soeur converse, em francês, em muitos conventos, era um nome dado às freiras que não eram
destinadas aos votos sagrados, mas que serviam em diversos serviços da casa. As casas de prostituição
são tradicionalmente comparadas aos conventos. Daí o vocabulário utilizado neste trecho (sermão,
noviciado, irmã...) que sugere a metáfora. (N. E.)
44
Juliette corrompit entièrement ses moeurs dans cette seconde école et les triomphes
qu’elle vit obtenir au vice dégradèrent totalement son âme; elle sentit que née pour le
crime, au moins devait-elle aller au grand33, et renoncer à languir dans un état subalterne
qui en lui faisant faire les mêmes fautes, en l’avilissant également, ne lui rapportait pas
à beaucoup près le même profit. Elle plut à un vieux seigneur fort débauché quid’abord
ne l’avait fait venir que pour l’aventure d’un quart d’heure, elle eut l’art de s’en faire
magnifiquement entretenir et parut enfin aux spectacles, aux promenades à côté des
cordons bleus34 de l’ordre de Cythère; on la regarda, on la cita, on l’envia et la friponne
sut si bien s’y prendre qu’en quatre ans elle mina trois hommes, dont le plus pauvre
avait cent mille écus de rentes. Il n’en fallut pas davantage pour faire sa réputation;
l’aveuglement des gens du siècle est tel, que plus une de ces malheureuses a prouvé sa
malhonnêteté, plus on est envieux d’être sur sa liste35, il semble que le degré de son
avilissement et de sa corruption devienne la mesure des sentiments que l’on ose afficher
pour elle.
Juliette venait d’atteindre sa vingtième année lorsqu’un comte de Lorsange,
gentilhomme angevin âgé d’environ quarante ans, devint si tellement épris d’elle qu’il
se résolut de lui donner son nom, n’étant pas assez riche pour l’entretenir; il lui reconnut
douze mille livres de rentes, lui assura le reste de sa fortune qui allait à huit, s’il venait à
mourir avant elle, lui donna une maison, des gens, une livrée, et une sorte de
considération dans le monde qui parvint en deux ou trois ans à faire oublier ses débuts.
Ce fut ici où la malheureuse Juliette oubliant tous les sentiments de sa naissance
honnête et de sa bonne éducation, pervertie par de mauvais livres36 et de mauvais
conseils, pressée de jouir seule, d’avoir un nom, et point de chaîne, osa se livrer à la
coupable pensée d’abréger les jours de son mari…
33 Aller au grand est une expression d'époque pour caractériser l'ambition mondaine. (N. E.)
34 Le cordon bleu est "le ruban que portent les chavaliers du Saint-Esprit [...]". Les cordons bleu de l'ordre
de Cythère désignent les vétérans du libertinage. (N. E.)
35 Telle liste de Mme de Lorsange on peut comparer à celle de Don Juan de Molière. (N. E.)
36 On n'avait refusez à la jeune fille "aucun bon livre". Elle se livre ensuite aux "mauvais livres", c'est à
dire aux livres philosophiques dans le doubles sens du temps (traités diffusant la philosophie des
Lumières et fictions pornographiques). Comme ses contemporains, Sade croit à l'influence pédagogique
des livres. (N. E.)
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Juliette corrompeu completamente seus modos nesta segunda escola e os triunfos que
ela obteve no vício degradaram totalmente a sua alma. Sentiu que uma vez nascida para
o crime, no mínimo, devia ir longe37, e deixar de se comprazer em um estado subalterno
que, ao lhe fazer cometer os mesmo erros, ao degradá-la igualmente, não lhe trazia nem
de perto o mesmo proveito. Ela agradou a um velho senhor muito devasso que, de
início, a trouxera apenas para uma aventura de quinze minutos, ela teve a artimanha de
ser mantida magnificamente por ele, e por fim, compareceu aos espetáculos, aos
passeios ao lado dos cavaleiros da ordem de Citera38; olharam-na, citaram-na,
invejaram-na e a malandra foi tão esperta que, em quatro anos, destruiu três homens,
dos quais o mais pobre possuía cem mil escudos de renda39. Não precisou de mais nada
para ganhar fama, a cegueira das pessoas deste século é tanta que quanto mais uma
dessas infelizes provar sua desonestidade, mais se tem vontade de estar na sua lista40,
parece que o nível de sua degradação e de sua corrupção se torna a medida dos
sentimentos que ousam revelar por ela.
Juliette acabava de completar seus vinte anos, quando um conde de Lorsange,
cavalheiro de Anjou, com aproximadamente quarenta anos de idade, apaixonou-se tão
perdidamente por ela que resolveu lhe dar o seu nome, já que não era suficientemente
rico para sustentá-la; concedeu a ela doze mil libras de rendas, prometeu-lhe o resto de
sua fortuna que chegava a oito mil, se ele viesse a morrer antes dela, deu-lhe uma casa,
criados, empregados, e uma espécie de consideração no mundo por meio da qual, em
dois ou três anos, foi esquecido como ela debutou. Foi aí que a infeliz Juliette,
esquecendo todos os sentimentos de sua linhagem honesta e de sua boa educação,
pervertida por maus livros41 e maus conselhos, ansiosa para aproveitar a vida sozinha,
para ter um nome, e sem amarras, ousou entregar-se ao pensamento criminoso de
abreviar os dias do seu marido...
37 No texto em francês é utilizada uma expressão da época ‘aller au grand’ que servia para caracterizar a
ambição mundana. (N. E.) Traduzimos em português por ‘ir longe’, que conserva o sentido, guardando
também a semelhança na construção da expressão, já que ir e aller tem o mesmo significado em ambas as
línguas, e grand e longe, dividem o mesmo campo semântico. (N. T.)
38 Cordon bleu, fita que os chevaliers du Saint-Esprit usavam [..]. Os cordons bleus da ordem de Citera
designam os veteranos da libertinagem. (N. E.)
39 Cem mil escudos de renda representavam um rendimento alto. (N. T.)
40 Tal lista da Senhora de Lorsange podemos comparar a lista do Don Juan de Molière. (N. E.)
41 Não recusaram á moça nenhum "bom livro". Ela se rende em seguida aos "maus livros", ou seja, os
livros filosóficos, com o duplo sentido do tempo (tratados que difundiam a filosofia das Luzes e ficções
pornográficas). Como seus contemporâneos, Sade acreditava na influência pedagógica dos livros. (N. E.)
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Elle la conçut et elle l’exécuta avec assez de secret malheureusement pour se mettre à
l’abri des poursuites, et pour ensevelir avec cet époux qui la gênait toutes les traces de
son abominable forfait.
Redevenue libre et comtesse, Mme de Lorsange reprit ses anciennes habitudes
mais se croyant quelque chose dans le monde, elle y mit un peu plus de décence; ce
n’était plus une fille entretenue, c’était une riche veuve qui donnait de jolis soupers,
chez laquelle la ville et la cour étaient trop heureuses d’être admises, et qui néanmoins
couchait pour deux cents louis et se donnait pour cinq cents par mois. Jusqu’à vingt-six
ans elle fit encore de brillantes conquêtes, mina trois ambassadeurs, quatre fermiers
généraux, deux évêques et trois chevaliers des ordres du roi, et comme il est rare de
s’arrêter après un premier crime surtout quand il a tourné heureusement, Juliette, la
malheureuse et coupable Juliette, se noircit de deux nouveaux crimes semblables au
premier, l’un pour voler un de ses amants qui lui avait confié une somme considérable
que toute la famille de cet homme ignorait et que Mme de Lorsange put mettre à l’abri
par ce crime odieux, l’autre pour avoir plus tôt un legs de cent mille francs qu’un de ses
adorateurs avait mis sur son testament en sa faveur au nom d’un tiers qui devait rendre
la somme au moyen d’une légère rétribution. A ces horreurs, Mme de Lorsange joignait
deux ou trois infanticides; la crainte de gâter sa jolie taille, le désir de cacher une double
intrigue, tout lui fit prendre la résolution de se faire avorter plusieurs fois, et ces crimes
ignorés comme les autres n’empêchèrent pas cette créature adroite et ambitieuse de
trouver journellement de nouvelles dupes et de grossir à tout moment sa fortune tout en
accumulant ses crimes. Il n’est donc malheureusement que trop vrai que la prospérité
peut accompagner le crime et qu’au sein même du désordre et de la corruption la plus
réfléchie, tout ce que les hommes appellent le bonheur peut dorer le fil de la vie; mais
que cette cruelle et fatale vérité n’alarme pas, que celle dont nous allons bientôt offrir
l’exemple, du malheur au contraire poursuivant partout la vertu, ne tourmente pas
davantage l’âme des honnêtes gens. Cette prospérité du crime n’est qu’apparente;
indépendamment de la providence qui doit nécessairement punir de tels succès, le
coupable nourrit au fond de son coeur un ver qui, le rongeant sans cesse, l’empêche de
jouir de cette lueur de félicité qui l’environne et ne lui laisse au lieu d’elle que le
souvenir déchirant des crimes qui la lui ont acquise.
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Ela o concebeu e o executou com tanto segredo, infelizmente para se por a salvo das
investigações, e para enterrar com esse esposo que a incomodava todos os vestígios de
seu abominável crime.
Novamente livre e condessa, a senhora de Lorsange retomou os seus velhos
hábitos, mas como acreditava ter um lugar no mundo, o fazia com um pouco mais de
decência. Não era mais uma moça sustentada, era uma rica viúva que dava belos
jantares em sua casa, da qual a cidade e a corte adoravam fazer parte, e que, contudo,
deitava-se por duzentos luíses42 e se dava por quinhentos por mês. Até os vinte e seis
anos ainda fez brilhantes conquistas, destruiu três embaixadores, quatro fazendeiros,
dois bispos e três cavalheiros das ordens do rei. E como é raro parar após o primeiro
crime, sobretudo quando ele deu certo, a infeliz e culpada Juliette, se maculou com dois
novos crimes semelhantes ao primeiro, um para roubar um de seus amantes que lhe
havia confiado uma soma considerável, cuja existência toda família do homem ignorava
e que a Senhora de Lorsange pode colocar a salvo por meio deste crime odioso; o outro,
para ter logo uma herança de cem mil francos que um dos seus adoradores colocara num
testamento em seu favor, no nome de um terceiro que devolveria a soma por meio de
uma pequena retribuição. A esses horrores, a senhora de Lorsange acrescentava dois ou
três infanticídios; o medo de desfigurar sua bela cintura, o desejo de esconder uma
dupla intriga, tudo a levou a tomar a resolução de abortar várias vezes, e esses crimes,
ignorados como os outros, não impediram esta criatura habilidosa e ambiciosa de
encontrar, dia após dia, novas vítimas, e de ampliar a todo o momento sua fortuna,
acumulando seus crimes. Portanto, é lamentável e absolutamente verdade que a
prosperidade pode acompanhar o crime e que, no meio da desordem e da corrupção
mais premeditada tudo o que os homens chamam de felicidade pode enfeitar a vida; mas
esta cruel e fatal verdade não assusta mais do que o exemplo que vamos oferecer, o do
infortúnio que persegue por todos os lados a virtude, e que não atormenta tanto a alma
das pessoas honestas. Essa prosperidade do crime é apenas aparente;
independentemente da providência que necessariamente deve punir tais sucessos, o
criminoso nutre no fundo de seu coração um verme que, ao corroê-lo sem parar, o
impede de aproveitar desse brilho de felicidade que o envolve e deixa no lugar dela
apenas a lembrança terrível dos crimes que conquistaram.
42 Um luís por mês representava oito escudos por mês, ou seja, oitenta e seis escudos por ano. Desta
forma Justine ganharia o que Juliette ganhava em um dos seus casos amorosos. (N. T.)
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A l’égard du malheur qui tourmente la vertu