Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Tom and Vinícius at dawn: a geographic perspective Tom y Vinícius al Amanecer: una perspectiva geográfica Lucas Jurado Taoni UNESP-Ourinhos jurado_br@hotmail.com Fabiana Lopes da Cunha UNESP-Ourinhos fabiana@ourinhos.unesp.br Resumo Este artigo foi gerido a partir da interface geografia e música. Metodologicamente utilizamos uma bibliografia multidisciplinar e que contempla a geografia cultural, história, música, linguística, literatura, antropologia, pois entendemos que para a compreensão de um código polissêmico, como é o caso da música, precisamos de uma diversidade de olhares. Nosso principal documento de análise para a discussão da construção de Brasília é a “Sinfonia da Alvorada”, de autoria de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. Procuramos aqui fazer principalmente uma análise textual, sob uma perspectiva externa da obra sinfônica, isto é, analisando mais sua semântica (considerando os interditos entre interlocução e interpretação) e menos sua estética instrumental, embora ela também esteja presente. Buscamos, enfim, compreender a conexão que há entre os atores e os espaços que estão se metamorfoseando com a construção da cidade e que põe em evidência a ideia de circularidade social, que é exposta pela Sinfonia da Alvorada. Tal composição capta elementos sociais e culturais acerca da construção de Brasília e os recoloca e rearranja através da execução da música, de modo que esse rearranjo pode propiciar uma mudança sobre os sentidos construídos a partir da experiência urbana em Brasília. Palavras-chave: Geografia Cultural, Brasília, Sinfonia da Alvorada, Tom Jobim e Vinícius de Moraes ISSN: 1982-1956 http://www.revistas.ufg.br/index.php/atelie http://www.revistas.ufg.br/index.php/atelie Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 209 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Abstract This article has been generated by the interface between geography and music. Methodologically, we have used a multidisciplinary bibliography that contemplates cultural geography, history, music, linguistics, literature, anthropology, for we understand that, for the understanding of a polysemous code, as it is in music, we need a diversity of looks. Our main document for an analysis of the construction of Brasília is the “Sinfonia da Alvorada” (Symphony of the Dawn), composed by Antônio Carlos Jobim and Vinícius de Moraes. Here, we attempt mainly to do a textual analysis of the work under an external perspective of the symphonic work, we mean, analyzing more its semantics (considering the product between interlocution and interpretation), and less its instrumental aesthetics, although the latter is also present. Finally, we attempt to understand the connection that exists between the actors and the spaces which are metamorphosing along with the construction of the city and which puts into evidence the idea of social circularity, proposed by the “Sinfonia da Alvorada”. This piece captures social and cultural elements related to the construction of Brasília and repositions and rearranges it through the execution of the music, in such a way that this arrangement can provide a change in the senses which are constructed from the urban experience in Brasília. Keywords: Cultural Geography, Brasilia, Sinfonia da Alvorada, Tom Jobim e Vinícius de Moares. Resumen Este artículo fué generado a partir de la interface geografía y música. Metodologicamente utilizamos una bibliografia multidisciplinar y que contempla la geografia cultural, historia, música, lingüística, literatura, antropología, pues entendemos que para La comprención de um código polisemico, como es el caso de La música, precisamos de una diversidad de interpretaciónes. Nuestro principal documento de análisis para La discución de La construcción de Brasilia es la “Sinfonía de la Alvorada”, de autoría de Antonio Carlos Jobim, y Vinicius de Moraes. Buscamos aqui hacer principalmente um analisis textual, sobre uma perspectiva externa de la obra sinfónica, ésto es, analisando mas su semántica (considerando los entredichos entre interlocución e interpretación) y menos su estética instrumental, fuera ella también este presente. Buscamos, finalmente comprender la conección que hay entre los actores y los espacios que se están metamorfoseando com la construcción de la ciudad y que pone en evidencia la Idea de circularidad social, que es expuesta por la Sinfonía de la Alvorada.Tal composición capta elementos sociales y culturales acerca de la construcción de Brasilia y los recoloca a traves de la ejecución de la música, de manera que ese rearranjo puede propiciar um cambio sobre los sentidos construídos a partir de la experiência urbana em Brasilia. Palabras clave: Geografía Cultural, Brasilia, Sinfonía de la Alvorada, Tom Jobim, y Vinicius de Moraes Considerações Iniciais Este trabalho tem o esforço de contribuir para as pesquisas em geografia pela perspectiva cultural, particularmente através do viés musical. Isto é, lança mão de pensadores da geografia cultural, sobretudo das últimas décadas, e os associa com outras áreas do saber tributárias da interface homem- Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 210 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 meio e da música, tais como: história, literatura e antropologia. Desta forma, o artigo ilustra a interface ciência e arte, dialogando com estas fontes de conhecimento. Daí, o texto está debruçado na interpretação da obra “Sinfonia da Alvorada” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1961, no contexto desenvolvimentista e também na preocupação modernizante da gestão brasileira com a construção de Brasília. A sinfonia, neste sentido, está para uma possibilidade profícua de análise geográfica, ao passo que é um excelente exemplo de demonstrar sonoramente as transformações de uma paisagem transformada por investidas antrópicas no cerrado e, narrar com a oratória proeminente de Vinícius, mudanças abissais. 1 É curioso atentar que os trabalhos científicos atrelados à música na Geografia são ainda, via de regra, incipientes. Wisnik (1999) mostra como a trajetória do ser humano a partir das sociedades sedentárias já é essencialmente musical (ou musicada) ao passo que as sociedades existem na medida em que possam fazer música, ou seja, travar um acordo mínimo sobre a constituição de uma ordem entre as violências que possam atingi-las do exterior e as violências que as dividem a partir de seu interior. Assim, a música se oferece tradicionalmente como o mais intenso modelo utópico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a mais bem acabada representação ideológica (simulação interessada) de que ela não tem conflitos (WISNIK, 1999, pág. 34) Portanto, contestações que dialogam com a crítica à ciência cartesiana são válidas para o universo das humanidades, pois, parafraseando Silva (2003), a pintura, a música e a literatura têm valor não porque existem museus, salas de audição e estantes recheadas de obras, mas porque os seres humanos querem cantar, desenhar e contar histórias, ou buscam regozijo em perceber como o fizeram os antepassados em contraste e semelhança com os que hoje se dedicam às atividades mencionadas. Em linhas gerais, estudos entremeados com a música – sobretudo música popular e canção – ainda reclamam pesquisadores2. Napolitano (2007) e 1 Importante lembrar que os insights destas páginas estão articulados com um projeto de pesquisa já existente e subvencionado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de SP) intitulado: Geografia e música: uma análise do espaço carioca a partir das composições de Antônio Carlos Jobim. 2 Da década de 1990 em diante, o corpo de pesquisadores em diversas áreas do conhecimento que dialogam e trabalham com música tem crescido consideravelmente. Cito aqui alguns deles: Fabiana Lopes da Cunha, Adalberto Paranhos, Tânia Costa Garcia, Adriano Fenerick, Silvano Baia, Mônica Vermes, João Baptista Ferreira de Mello, Luis Tatit, Walter Garcia, Cacá Machado, dentre outros. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 211 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Moraes (2007), ambos historiadores, têm importante contribuição literária nesse campo e indicam caminhos metodológicos possíveis para tal carência, ao passo que também contribuem olhando o retrovisor da história e, com sensibilidade aguçada estabelecem linhas para a pesquisa nessa área:. Presente em vários campos do conhecimento e não pertencendo a nenhum em especial, podemos dizer que a música popular não tem um lugar muito definido nas ciências humanas e artes, fruto do seu próprio estatuto estético um tanto híbrido. (NAPOLITANO, 2007, pág. 154) Napolitano (2007) ressalta ainda sobre a riqueza da diversidade sonora e cultural do Brasil e da relevância desses estudos para a compreensão de nossa sociedade e identidade: Num dos países mais ricos em diversidade sonora do mundo, com um lugar privilegiado na história da música popular do século XX, dedicar-se a história da música, pensando em diálogo com a história intelectual, social, política e cultural, é dar um passo a mais na compreensão da própria sociedade e suas formas de auto representação. (NAPOLITANO, 2007, pág. 171) Do início do século XX até a primeira década deste século as ciências que pertencem ao rol das humanidades têm demonstrado parcimônia em dialogar com facetas do universo artístico. Embora o quadro geral de publicações e obras seminais não esteja imbuído de grande quantidade, exemplos outros são mais felizes, com destaque para a sociologia e antropologia. Na geografia esse debate será tratado na próxima parte do texto. Nas primeiras décadas do século XX, temos dois grandes intelectuais que se preocupam em trabalhar e inserir a música em sua obra: Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Destarte, o grande contraponto [...] foi a obra em três andamentos de Gilberto Freyre sobre a formação e a decadência da sociedade patriarcal no Brasil, em que desponta uma abundância de sons, ritmos, músicas e canções. No primeiro volume, Casa Grande e Senzala, os ritmos africanos se misturam às canções infantis e de ninar, às músicas das festas profanas e religiosas, e aos lundus e modinhas. No volume Sobrados e Mocambos surgem as modinhas tocadas ao piano pelas moças, as músicas dos salões e também as das ruas, feita pelo violão e batuques. Em Ordem e Progresso a música aparece de forma destacada com comentários sobre modinhas, polcas e dobrados, entre outros gêneros, e surge até documentada em forma de partituras Mas Gilberto Freyre [infelizmente] é exceção no quadro historiográfico brasileiro. (MORAES, 2007, pág. 8) Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 212 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Entretanto, além da obra de Gilberto Freyre (1933; 1936; 1957), os exemplos são parcos. É bastante curioso notar que pensadores consagrados usaram pseudônimos quando ousaram engendrar ensaios híbridos entre humanidades e música, fato que seguramente traduz um preconceito escamoteado. José Geraldo novamente vai ao encontro com a carestia epistemológica jogando luz em Henry-Irenée Marrou que [...] publicou alentada obra sobre os folcloristas – recheadas de músicas, letras de canções, análises melódicas e harmônicas – e um pequeno tratado sobre a música de Santo Agostinho. Em ambos os livros ele utilizou o pseudônimo de Henri Davenson, recurso também utilizado por Eric Hobsbawn para publicar sua história social do jazz, em 1959, com o nome de Francis Newton. Esse fato não pode passar despercebido, pois na verdade revela que dois importantes historiadores do século XX procuraram resguardar, por algum motivo, seus nomes em obras que tratavam de música, mais especificamente a popular. Em tom diferente da antropologia e da sociologia, poucos foram os historiadores que realizaram pesquisas tendo a música como objeto ou fonte documental antes dos anos ‘90. (MORAES, 2007, p.10) Pensar que nos cinqüenta anos pretéritos, pré-1990, “o número de artigos publicados relacionados ao tema [...] não soma os doze sons da escala cromática: foram somente onze textos” (ibidem, pág. 9) é seguramente alarmante. Destarte, três pensadores ganham tônica e menção dos intelectuais da área que são contemporâneos, pois, Régis Duprat, Francisco Curt Lang e Arnaldo Daraya Contier foram responsáveis por oito das 11 publicações. Por fim, é suficiente lembrar-se das ideias de Elizabeth Travassos (TRAVASSOS: 2007: pp.129-152) de que “os tempos são profícuos para a mistura de gêneros”. Tal afirmação nos auxilia a construir a identidade deste artigo, que transita também pelas reflexões de Moraes (2007), pois, o mesmo, dá unidade à música entendendo-a não apenas como objeto de estudo, mas, mais que isso, um meio de entender e/ou perceber o mundo. Estruturalmente o texto compreende três partes: a primeira delas faz menção ao resgate epistemológico na geografia cultural, mostrando panoramicamente sua história, suas escolas principais, um momento inteligível de transformações metodológicas – aqui os autores usados são em sua maioria geógrafos; já na segunda parte (e também a mais longa) há em contraste pensadores da história mostrando, sobretudo, as principais características do modernismo na metade do século, as diretrizes políticas e ideológicas da década pesquisada e os interditos – às vezes constituindo um anedotário – dos criadores da sinfonia, aliás, contratados pelo próprio presidente “Bossa Nova”: Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 213 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 “O letrista e humorista Juca Chaves o qualificou, muito merecidamente, de “presidente bossa nova”, numa referência ao novo ritmo que se impunha na música popular brasileira e à despreocupação da juventude dourada de Ipanema que a bossa nova representava.” (VIDAL, 2012, pág. 27/28); e, finalmente, uma reflexão acerca das cinco partes da Sinfonia que traduzem a transformação do espaço ermo em traços urbanísticos/arquitetônicos arrojados, como também a mudança sensível no sentido demográfico de todos os migrantes que lá laboraram (pensando as especificidades dos itinerários).3 Uma breve discussão sobre Geografia Cultural e Música Se se é possível estabelecer um panorama que reflita a história do pensamento geográfico e da formação das escolas de pensamento dentro da ciência, lançando mão dos cânones “Geografia: pequena história crítica” (Antônio Carlos Robert de Moares) e “Geografia – isto serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra” (LACOSTE, 1998), por exemplo, torna-se evidente uma overdose de recursos teóricos cunhados em poderio e planejamento em detrimento de uma carência crônica com estudos de escala local e/ou cultural. Pelo desdém ou circunstancialmente a negligência é factual. Historicamente a geografia institucionalizada – parafraseando Sandra Lencione onde “o conhecimento geográfico e a geografia são coisas distintas” – é conseqüência crível de pensamentos da esfera internacional do fim do século XVIII assim como dos disparates de desenvolvimento ulterior do continente europeu, desde o século XIV pioneiro nas técnicas exploracionistas vide as ilhas do atlântico norte e partes (já!) mazeladas da África, sobretudo da parte saariana e ocidental do continente. Então, embora a geografia crítica brasileira consolide suas bases apenas no fim do último século, o pensamento ilustrado e o pensamento liberal já jogavam um papel vital na ciência geográfica em germe no século XIX. O historiador Bóris Fausto pondera que As novas idéias vinham sendo gestadas desde o início do século ou mesmo antes e ficaram conhecidas pela expressão “pensamento ilustrado”. Os pensadores ilustrados, homens como Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rosseau, apesar de divergirem muito entre si, tinham como ponto comum o princípio da razão. Segundo eles, pela razão atingem-se os conhecimentos úteis aos 3 Na última parte do artigo, a dissertação de mestrado de Clairton Rosado intitulada “Brasília – Sinfonia da Alvorada. Estudos dos Procedimentos Composicionais da Obra Sinfônica de Tom Jobim”, sob orientação do Prof. Dr. Gil Jardim, defendida em 2008, joga um papel elementar no fechamento do texto. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 214 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 homens e através delas podemos chegar às leis naturais que reagem a sociedade. (FAUSTO, 2004, pág. 106) E também No plano político, a doutrina liberal defende o direito de representação dos indivíduos, sustentando que neles, e não no poder dos reis, se encontra a soberania. Esta é entendida como o direito de organizar a nação a partir de uma lei básica – a Constituição. O alcance dessa representação traçou uma linha divisória entre liberalismo e democracia ao longo do século XIX. (FAUSTO, 2004, pág. 107) Ora, se na passagem dos séculos XVIII – XIX já havia um caminho ideológico formado pela emancipação do mundo técnico, da modernidade e da natureza entendida como externalidade – voltaremos mais adiante neste tópico –, a geografia pôde ser entendida também como a subseqüência dessa transmutação absolutamente abrupta e socialmente periclitante. Nesse sentido, vale lembrar historicamente as menções mais caras deste contexto, vide Independência dos EUA (1776), Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial Inglesa, todas arraigadas em um universo novo de ideias que se formavam com a queda do Antigo Regime e veementemente amparadas no liberalismo econômico e na emancipação política. Sem embargo, as ciências tributárias deste período refletiram piamente a soberba do enriquecimento e a destreza política, todavia a cultura, essencialmente as artes, foi protelada do conjunto das ciências humanas distinguindo-as do aparato científico – no caso da geografia com certo animismo dotado de testemunhos contemporâneos. Em 1925, entretanto, Sauer (1925) publica o artigo “A morfologia da paisagem” (originalmente “The morphology of landscape”), texto precursor das reflexões sobre cultura inserida na história do pensamento geográfico com uma abordagem sem precedentes: o estudo das paisagens, no entanto agora dotada de um conceito novo, definida como uma área composta por uma associação distinta de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais. Sabido por uma tradição de pensamento formada pelo século XX, as publicações que foram respaldadas pelo embasamento teórico da obra seminal de Sauer ganharam adjetivo de escola, ei-la: Escola Saueriana ou Escola de Berkeley (EUA, Califórnia). Os estudos da interface entre geografia e cultura, então, encontram nessa produção um respaldo teórico e metodológico e uma escola de pensamento dotada de rigor cientifico no oeste norte-americano. A escola saueriana pôde colecionar na sua história trabalhos felizes tributários das primeiras ideias de Sauer como também uma coleção de críticas aos conceitos Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 215 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 de cultura permanentemente adotados, sobretudo o que toca o conceito de “supra-orgânico” e as defasagens de teoria crítica4. No entanto, o legado do viés apontado por Berkeley tornou-se ícone na vanguarda dos pensadores, ao passo que as renovações heurísticas da Geografia Cultural, em meados dos anos 1970, ampliou o repertório (numa paráfrase a Castro, 2009) de objetos e perspectivas a partir do que já tinha sido feito nas décadas pretéritas. As transformações que a geografia cultural sofreu a partir dos anos 70 trouxeram novas matrizes epistemológicas e metodológicas para a disciplina, gerando um debate considerado por alguns como uma “dicotomia” entre a geografia cultural tradicional e a new culture geography, ou geografia cultural renovada. (CASTRO, 2009, pág. 7) Ainda, de acordó com Castro (2009), sobre os legados artísticos que foram somados na geografia pós-1970, o autor mostra que a música não foi privilegiada e outras expressões também ganharam território na ciência, vide o cinema e a literatura5. A música pôde ser uma perspectiva/análise para geógrafos apenas na história recente da ciência: na década de 1970 com trabalhos internacionais e no Brasil a partir dos anos 1990. Os autores mais conhecidos nesta vereda são George O. Carney (2003) e Lily Kong (1995), ambos oferecem uma agenda de pesquisa para o campo de geografia e música contemplando especificidades da música norte-americana e asiática, respectivamente. Dessas duas propostas diferentes de pesquisa, o artigo está mais próximo das perspectivas de KONG (1995), sobretudo no que dialoga com as relações entre o compositor e seu espaço e essa expressão dada pela música em certo contexto: Tom Jobim, Vinícius de Moraes e o planalto central brasileiro entremeado pelo cerrado na metade do século XX. Mesmo assim, as duas correntes serão apresentadas adiante, a segunda, cingapuriana, enquanto um contraponto do que foi proposto pelo norte americano Carney. Castro (2009) apresenta-nos que a ponta de lança dos trabalhos da Geografia Cultural que utiliza música é de autoria de George Carney, com o livro “The sounds of people and places: Readings in the Geography of music” (CARNEY, George O. (org.) The sounds of people and places: A geography of 4 sobre tal questão buscar a leitura de “Towards a Radical Cultural Geography of Theory”Publicado em Antípode – a Radical Journal of Geography, Worcester, 15 (1). 1983, pp 1-11 Traduzido por Olívia B. Lima da Silva. 5 Sobre a “ampliação do território” pesquisar, por exemplo: AZEVEDO, Ana Francisca de. Geografia e Cinema (2006); BROSSEAU, Marc. O romance: outro sujeito para da geografia. (1996); CORREA, Aurenice de Mello. “Não acredito em deuses que não saibam dançar”: a festa do candomblé, território encarnador da cultura (2005). Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 216 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 american music from country to classical and blues to bop. Lanham: Rowman and Littlefield, 2003). Isto é, as pesquisas que tratam de Geografia e Música têm pouco mais de quatro décadas e, com clareza, é um campo que carece de investigações e publicações, inclusive no Brasil. Em 1970, por exemplo, é concluída a primeira tese intitulada “Rock- and-Roll: A Diffusion Study” de Jeffrey Gordon. Em 1971 é publicado o primeiro artigo integral sobre o tema intitulado “Geographic Factors in the Origin, Evolution and Diffusion of Rock and Roll Music”, de Larry Ford. Em 1974 Na primeira SNACS (Society for the North American Cultural Survey), a música foi designada como um dos capítulos para This Remarkable Continent: An Atlas of United Stats and Canadian Society and Cultures, que foi publicado em 1982. Após essa publicação, os estudos musicais passaram a ser considerados como um novo sub-campo dentro da geografia cultural (CARNEY, 2003, 8) Esse tipo de pesquisa pôde extrapolar explicitamente os limites do território dos EUA apenas na virada da década de 1980 para 1990, onde Castro pondera que Em 1993, uma reunião entitulada “Place of Music” foi realizada no University College London, sob o patrocínio dos Economic Geography, Landscape, and Social/Cultural Geography Research Groups (Carney, 2003). A partir desse evento, origina- se mais um dos grandes trabalhos realizados sobre o tema, o texto “Popular Music in Geographical Analyses”, da autora cingapuriana Lily Kong [...] (Idem) No Brasil, Castro apresenta com inteligibilidade que [...] poucos trabalhos foram realizados sobre geografia e música, mas podemos destacar a pioneira dissertação de mestrado de Mello (1991) sobre composições da MPB no Rio de Janeiro, o artigo de Mesquita (1997) sobre a Geografia Social da música do Prata, a tese de doutorado de Ribeiro (2006), abordando o conceito de espaço-vivo e suas variáveis na cidade de Diamantina sob o ponto de vista dos músicos, e dissetação de mestrado de Marcelino (2007), que aborda as transformações sofridas pelo samba paulista em sua transição da zona rural, concentrado principalmente na cidade de Pirapora do Bom Jesus, para a metrópole de São Paulo a partir do final do século XIX e durante o século XX. (CASTRO, 2003, pág. 9) Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 217 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Mencionando Brasil e sua contribuição inter-tropical, é interessante mostrar a contribuição de Moreira (2004) no artigo “SER-TÕES: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa”, texto que transita entre escalas e mostra as perspectivas geográficas de três obras de inenarrável êxito de literatura brasileira. Moreira, foi enfático ao atrelar geografia e literatura quando adverte que Acostumados com o objetivismo que impregna o mundo da ciência, dissociamos no mundo o que é dela e o que é da arte. Não nos indagamos se não é esse o nó cego que até agora afastou o olhar geográfico da capacidade de ver e compreender o espaço como o mundo tenso do ser contraditório. Tal como por meio de Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa logra ver pelos olhos de Riobaldo. (MOREIRA, 2004, pág. 193) A geógrafa cingapuriana Lily Kong, inserida no contexto de publicações da Geografia Cultural renovada, isto é, com um leque de aceitação de objetos e análises mais pluralizado, é autora de uma obra que reflete a identidade deste artigo, com ênfase em “Música popular nas análises geográficas” (1995). Esta reflexão da autora mostra como a cultura popular foi negligenciada pela geografia, pois, ela mesma, paulatinamente pôde mostrar sua preferência pela cultura de “elite” e, não obstante, pelas imagens visualmente intermediadas por nosso aparato sensível. O trabalho de Lily Kong ao empreender uma pesquisa de Geografia e Música justifica a negligência que há acerca da cultura popular e manifesta a idéia de que esta hegemonia está fadada a inexistência, pois cultura popular é, na verdade, uma fonte inesgotável de consciência popular. Ainda sobre as bases ideológicas entre o século XVIII e XIX a autora argumenta que a geografia humana, desde sua gênese, por conta de sua proximidade com o Estado e suas políticas, fundamentou-se no preceito iluminista científico – “ver para crer” – e postergou outros sentidos do corpo, com exceção para a visão. De aí, por exemplo, a idéia de que a paisagem é aquilo que se vê a partir de um ponto de vista é, no mínimo, refutada, pois, não apenas se vê: se escuta e se prova, se cheira e se tateia, enfim, sente-se também pelo aparato cognitivo não contemplado pela visão. A ruptura de integrar aquilo que existe, mas não é visível, isto é, metafísico, foi encargo da renovação da Geografia Cultural há aproximadamente 40 anos. Para a autora, uma variedade de razões poderia ser citada para justificar o estudo geográfico da música. Uma delas é a de que hoje a difusão da música na sociedade é excepcional. Não existe uma sociedade em que não haja música. A música está presente no cotidiano das pessoas, mesmo que servindo apenas como “trilha sonora” para atividades do trabalho às compras Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 218 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 no supermercado, atividades esportivas, de lazer, cerimônias, rituais religiosos e demais etc. Ou seja, a música é capaz de transmitir “imagens” de um lugar, podendo servir como fonte primária para entender o caráter e a identidade dos lugares. KONG pensa cinco tendências possíveis de pesquisa para o universo que há entre Geografia e Música. Diferentemente de George Carney, a autora não apresenta uma matriz rigidamente sistematizada para a pesquisa. As três primeiras tendências6 são embasadas pela Geografia Cultural pré- 1975, ou seja, pela Escola de Berkeley – Estadunidense sobre o amparo científico “supra-orgânico”. Assim, os trabalhos irão muitas vezes migrar da Geografia para o exercício da Cartografia com o esforço de mapear fenômenos musicais, traços comuns em um espaço de uma mesma cultura e, segundo Kong É a tendência de se tratar a cultura como algo homogêneo, isolando um traço cultural particular e definindo o caráter de uma área apenas com essa base, ignorando as condições socio- políticas que influenciaram o desenvolvimento daquela característica cultural e ignorando também os conflitos e tensões existentes com outras culturas na mesma região. (CASTRO, 2009, pág. 14) As duas últimas, mais próximas da renovação da Geografia Cultural pós-1975, exploram [...] a relação de identidade dos compositores com o seu espaço. Entretanto, a pesquisa visa interpretar as características dessa “visão de mundo” expressas através da melodia, instrumentação, letras (eventualmente) e as sensações e impactos sensoriais transmitidos pela música. (CASTRO, 2009, pág. 14) Essa tendência apresentada pela autora dialoga diretamente com o cerne deste trabalho e seu usufruto será crucial para justificá-lo. A música inserida na geografia é entendida como uma forma de expressão, que pode contribuir permanentemente para a ciência – não apenas pensando em técnicas 6 Das cinco tendências apontadas por Lily Kong nos trabalhos de Geografia e Música, as três primeiras contemplam uma perspectiva tradicional desta interface, isto é, usufruem em demasia de idéias atreladas a gênese, distribuição, espalhamento, mapeamento e cartografia da cultura. Segundo a autora, trabalhos assim em geral carecem de embasamento teórico e não envolvem situações importantes para a pesquisa como o contexto sócio-político ou a identidade dos compositores com os lugares específicos das obras ou das canções. Por conseguinte, este trabalho engendra uma contribuição alicerçada nas últimas tendências da autora. Serão explicadas adiante. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 219 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 e métodos didáticos, mas também para o exercício da pesquisa. Sua negligência até a década de 1970 se explica em parte, pela proximidade e preocupação da geografia com a materialidade e com a política. A geografia cultural está mais próxima dos significados dos valores simbólicos atribuídos às formas materiais de cultura e menos das imateriais – como a música. No entanto, a música nos possibilita pensar com profundidade sobre a sociedade a que pertence: aos espaços onde ela foi produzida e difundida, possibilita-nos compreender o contexto social e histórico em que ela foi composta, reproduzida e consumida. É o que pretende-se fazer ao pensar sobre a construção de Brasília no período desenvolvimentista e a obra musical de Tom Jobim e Vinícius de Moraes que, sob nosso ponto de vista, acompanhou todo esse movimento. A obra de Jobim, da metade dos anos 1950 até o golpe militar, possui bons exemplos dessa contribuição da música para a geografia, vide as próprias Sinfonias do Rio de Janeiro (1954) e Sinfonia da Alvorada (1961). Uma alvorada de tantas inspirações “Talvez a combinação de Caymmi e Radamés complete o auto-retrato de Tom: Caymmi sendo o músico popular que melhor ouve os clássicos, e Radamés o músico de formação erudita que melhor ouve o popular” (Caetano Veloso) “[...] toda obra de Vinícius é uma celebração da vida, do amor, da arte, dos laços de afeto do artista e da cidade onde ele passou a maior parte de sua vida: foi no Rio de Janeiro que nosso poeta nasceu” O Brasil dos anos 1950, época que refletia as características mais marcadas da última gestão política de Vargas – vide a transmutação econômica de agroexportador para país industrializado – estava atrelado à ânsia de desenvolvimento em muitas esferas. O universo técnico, a mão-de-obra especializada e motriz crescente no ambiente fabril e a construção logística do país com o modal rodoviário geriram a modernidade da década. A estabilidade política angariada pela popularidade de Juscelino Kubitschek também dialogava com um Brasil mais emancipado e, em germe, também mais democrático, pois, apesar do PCB (Partido Comunista Brasileiro) sustentar um corpo ideológico de opinião pública participante, o tenentismo não obstante também conquistava espaços – ambas as instituições fundadas em 1922. Assim Em comparação com o governo Vargas e os meses que se seguiram ao suicídio do presidente, os anos JK podem ser Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 220 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 considerados de estabilidade política. Mais do que isso, foram anos de otimismo, embalados por altos índices de crescimento econômico, pelo sonho realizado pela construção de Brasília. Os “cinqüenta anos e cinco” da propaganda oficial repercutiram em amplas camadas da população. (FAUSTO, 2003, pág. 422) Instigada pela prosperidade de um Brasil contrastante (interna e externamente), a política brasileira, precisamente a aliança do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) com o PSD (Partido Social Democrático) arquitetou um plano político-econômico de crescimento sem precedentes em meados do século XX: o Plano de Metas. Dali em diante há com mais clareza a preocupação em gestar o imaginário de unidade dentro do país. Isto é, construir um poderio de influência internacional a partir de avanços de diálogo entre as regiões do país, até então estranhas entre elas. A política econômica de JK foi definida no Programa de Metas. Ele abrangia 31 objetivos, distribuídos em 6 grandes grupos: energia, transporte, alimentação, indústria de base, educação e a construção de Brasília, chamada de meta-síntese. (FAUSTO, 2003, pág. 425) O dinâmico presidente prometeu “50 anos em 5” e não há dúvida de que de 1956 a 1961 o Brasil apresentou um crescimento econômico real e marcante. A base para o progresso foi uma extraordinária expansão industrial. Entre 1955 e 1961, a produção industrial cresceu 80% (em preços constantes), com as porcentagens mais altas registradas pelas indústrias do aço (100%), indústrias mecânicas (125%), indústrias elétricas e de comunicações (380%) e indústrias de equipamentos e de transportes (600%). De 1957 a 1961, a tava de crescimento real foi de 7% ao ano e, aproximadamente, 4% per capita. Para a década de 1950, o crescimento per capita efetivo do Brasil foi aproximadamente três vezes maior que o do resto da América Latina. (SKIDMORE, 1982, página 204) O que melhor caracteriza nosso desenvolvimento econômico entre 1945 e 1964 é a implantação de um sistema industrial, com gradativa retração do setor primário exportador, onde predominava a produção cafeeira. Já na década de 1950, pode-se considerar a industrialização como meta norteadora da política econômica do governo, quando a expansão industrial atinge patamares importantes, cujas origens se localizam no inicio dos anos trinta. (CASALECCHI, 2001, página 41) Sem embargo, o Brasil, ou pelo menos os espaços mais privilegiados por um passado colonial atroz, estavam também envoltos em uma atmosfera cultural efervescente. Não era apenas música, mas um amálgama de expressões diversificadas, tais como: os esportes com o futebol de Pelé e Garrincha bem Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 221 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 como o tênis de Maria Estér Bueno, a arquitetura vertical, os processos de condominização, Roberto Burle Marx, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, o cinema novo, o início da era da televisão, a institucionalização da música brasileira e a sigla MMPB (Moderna Música Popular Brasileira) e outros etc. Esse clima harmônico estabelecido entre duas ditaduras fazia parte de um equilíbrio pernóstico entre iniciativa pública e empresas privadas e mercado nacional e internacionalização comercial. O contexto de crescimento – com subseqüência de “milagre econômico” – modernizou espaços e excluiu outros e, apesar do laborioso esforço de um centro político que transitava para o planalto central, a unidade brasileira estava acometida pela sua própria presunção. Um termo cunhado neste contexto no sentido de traduzir as especificidades da época, ou escamotear suas carências, é também empregado na história contemporânea, enquanto A estratégia de Kubitschek merece o rótulo de “nacionalismo desenvolvimentista”, e não simplesmente “desenvolvimentismo”, tal a fórmula pela qual foi apresentada ao povo brasileiro. Reforçando os propósitos e as ações do governo havia um apelo ao senso de nacionalismo. Era o “destino” do Brasil tomar “o caminho do desenvolvimento”. A solução para o subdesenvolvimento nacional, com todas as suas injustiças sociais e tensões políticas, devia ser a industrialização urgente. (SKIDMORE, 1982, página 207) É curioso notar como a história brasileira está integralmente amarrada com um jogo de causas e consequências, que refletem mudanças nos objetos (edificações) do espaço nacional e, seguramente, no imaginário dos brasileiros e no próprio aparato sensível dos mesmos notando as metamorfoses do espaço. A partir deste argumento pode-se engendrar um link lúdico entre a bossa-nova7 e a construção de Brasília, ao passo que os dois fazem menção imediatamente às condições pretéritas de amadurecimento. A construção de Brasília, portanto, durante o desenvolvimento do Plano de Metas, constitui um belíssimo exemplo. Vidal (2012) discute a mudança da sede da Capital da República no Brasil em 1960 bem como o sentimento dos cariocas com essa mudança. 7 A história da bossa nova é contada de maneira instigante pelo vídeo-documentário “Coisa mais linda” de Tiago Barros, apresentado por duas figuras importantes da bossa: Carlos Lyra e Roberto Menescal. Nesse documentário, além da execução de músicas que marcaram época e extravasam o sentido do tempo, os dois artistas dialogam sobre o resgate aos jovens que cantavam o Brasil no Rio de Janeiro sob a influência da música popular urbana e da canção jazzística importada nos apartamentos da zona sul carioca. Daí venha, talvez, os estigmas da bossa nova como música feita/pensada para a classe estritamente burguesa. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 222 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Com sensibilidade aguçada Vidal segmenta o texto em duas partes: a primeira delas aborda a teatralização de Juscelino Kubitschek como espetáculo de duas facetas, ao passo que o enaltecimento de Brasília estava acompanhado à assistência ao povo carioca que, naquela mudança, pôde sentir desamparo ao perder o título de Capital Federal que já duravam dois séculos; a segunda parte do texto investiga propriamente, com muita pluralidade, o sentimento dos cariocas em diferentes esferas, a partir de jornais, depoimentos e poemas escritos. O quadro geral da segunda parte foi o desassossego e a inquietação acerca de um futuro incerto, qual história o Rio de Janeiro contaria a partir do “20 de abril de 1960”? Vidal pondera que A naturalidade e simplicidade das afirmações de Kubitschek não deveriam nos iludir: estávamos em presença de uma verdadeira “teatralização da política”, de um ritual que, evidentemente, não estava integrado em nenhum costume ou legado, tão excepcional era o acontecimento. (VIDAL, 2012, pág. 17 e 18) E ademais, tratando especialmente do povo: É evidente que aqui e ali, como que escapando da vigilância dos jornalistas, afloravam palavras incongruentes (tristeza, saudade...) que contrastavam com a alegria proclamada e pareciam indicar que um sentimento mais profundo, porém de contornos dificilmente identificáveis, tomava o povo do Rio. (VIDAL, 2012, pág. 204) Sérgio Cabral mostra a reflexão de que a música da década de 1950, tributária do amadurecimento harmônico, melódico e poético de duas décadas pretéritas, vide os sambas de Noel Rosa, o violão de Garoto e os caminhos das canções de Ari Barroso (artistas de contribuição inédita nos contextos de cada um). Brasília também tem raízes com o amadurecimento técnico e político de outras décadas, ao passo que o nacional-desenvolvimento estava fatalmente atrelado ao fracasso na ausência das Estatais de Base, isto é, o alicerce forte da industrialização brasileira legado de Getúlio Vargas e, muito importante, preocupações com a sistematização do ensino. A bossa-nova transita entre música e, parafraseando Harvey (1998), uma mudança abissal no jeito de perceber o espaço. A música bossa-nova e a “cidade bossa-nova” ilustram o encontro feliz das artes com as humanidades. Não à toa Na memória dos brasileiros, os cinco anos do governo Juscelino são lembrados como um período de otimismo associado a Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 223 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 grandes realizações, cujo maior exemplo é a construção de Brasília. Na época, a fundação de uma nova capital dividiu as opiniões e foi considerada um tormento para o funcionalismo público da antiga capital da República, obrigando a transferir-se para o Planalto Central do Brasil. A idéia não era nova, pois a primeira constituição republicana, de 1891, atribuía ao Congresso competência para mudar “a capital da União”. Coube, porém, a Juscelino levar o projeto à prática, com enorme entusiasmo, mobilizando recursos e a mão-de-obra constituía principalmente por migrantes nordestinos – os chamados ‘candangos’. À frente do planejamento de Brasília ficaram o arquiteto Oscar Niemeyer e o urbanista Lúcio Costa, duas figuras de renome internacional. (FAUSTO, 2003, pág. 429 – 430) E reiterando: O símbolo que Kubitschek escolheu foi a nova capital no interior do país, Brasília. Durante a campanha eleitoral prometera levar adiante a previsão de uma nova capital, consignada na constituição de 1891. Discutido por quase um século, o projeto era freqüentemente revogado como utópico e proibitivamente caro. Quando o novo presidente levou a matéria ao Congresso para votação direta em 1956, o projeto foi prontamente aprovado, quase com a descrença do próprio Congresso. Kubitschek arroujou-se na construção com infatigável entusiasmo, confiando num arquiteto brasileiro, mundialmente famosos – Oscar Niemeyer _ e num urbanista brasileiro, Lúcio Costa. O trabalho se processou num clima de expectativa, mobilizando brasileiros de todas as classes, que viam na construção da nova capital, no interior abandonado, o sinal de novos tempos para o Brasil. Isto favoreceu ao resto programa econômico de Kubitschek, detalhes do qual permaneceriam ainda desconhecidos pela maioria do povo, um símbolo imediatamente compreensível. (SKIDMORE, 1982, página 208) É nesse contexto, durante a década de 1950 que, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom, inicia sua vida artística como pianista noturno e em 1952 começa a trabalhar na gravadora Continental, assume a função de assistente de Radamés Gnatalli, amigo e inspirador para Tom. Em 1954 compõe seu primeiro sucesso, “Thereza da Praia”, em parceria com Billy Blanco, interpretada por Lúcio Alves e Dick Farney (talvez) os dois mais importantes intérpretes da década, e grava seu primeiro disco: “Sinfonia do Rio de Janeiro”. Em 1956 conhece Vinícius de Moraes e, com ele, compõe a música de “Orfeu da Conceição”, tragédia grega adaptada pelo poeta que usou como cenário a favela carioca. A montagem do espetáculo despendeu grande soma em dinheiro, pois, para se ter uma ideia, quem foi contratado para desenhar o cenário foi o já renomado Oscar Niemeyer. Daí em diante o sucesso de Tom já estava consumado, após uma década de apertos financeiros, Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 224 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 “correndo atrás do aluguel” e recebendo permanente ajuda da família, Tom pôde ter um norte com Vinícius e agarrou-se visceralmente ao poeta. O Vilario era uma mercearia de fachada estreita, onde se podia comprar o melhor uísque e finas iguarias. Escondia no fundo algumas mesas pequenas de mármore, para os provadores. Tom dizia que os mais moços demoravam na cerveja, até ficarem com dinheiro só suficiente para a volta. Os mais abastados tomavam uísque. Desde o Clube da Chave, Tom se surpreendia com a extraordinária simplicidade de Vinícius de Moraes. Aquele grande poeta, diplomata, aquele homem culto inteligente, gentil e espirituoso. Impossível não gostar dele. O crítico musical Lúcio Rangel chamou Tom em particular e disse que Vinícius precisava de alguém que compusesse músicas para Orfeu da Conceição. Era a história de Orfeu grego, na favela carioca. Tom perguntou: - Tem algum dinheirinho nisso? - Mas esse é Vinícius de Moraes! [Disse Lúcio] Tom ficou encabulado. Essa história se espalhou e virou uma piada em sua vida.8 [estava correndo atrás do aluguel, diria ele] Depoimentos diversos, assim como entrevistas e um jogo anedotário mostram a identidade ímpar de Tom, parceiro de outros artistas importantes para o universo da cultura brasileira e interdisciplinar nos estilos e gerações que ministrou. Foi elementar nas contribuições harmônicas que a bossa-nova carecia e pôde mostrar um sopro de cultura brasileira nos EUA. Por isso, aliás, Tom Jobim foi o artista mais gravado do mundo no século XX apenas depois dos Beatles (mas, os Beatles, são quatro...), e “Garota de Ipanema” 9 a canção mais executada no Brasil, também da dupla Tom e Vinícius. Desde o início Foi marcante o começo da parceria com Vinícius de Moraes, iniciada logo com uma obra de fôlego e com uma série de lindas canções. “Se todos fossem iguais a você”, “Mulher sempre mulher”, “Lamento no morro”, “Eu não existo sem você”, “Eu e o meu amor”, criadas para a peça, tornaram-se também grandes sucessos. Vinícius de Moraes, como grande poeta, elevou o nível das letras na música brasileira. (JOBIM, 2003, pág. 94) 8 Diálogo retirado de JOBIM, Helena. Antônio Carlos Jobim: Um homem iluminado. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira S.A., 1996 9 Aliás, vale ressaltar que “Garota de Ipanema” é bem mais que uma perspectiva machista nas calçadas boêmias da praia. As inflexões da canção evidenciam também com certa clareza a emancipação e independência feminina no Rio de Janeiro que se inicia, sobretudo, nos primeiros anos do século XX com reformas urbanas de Pereira Passos. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 225 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Tom Jobim estava fadado a uma carreira de sucessos incontáveis e de grande notoriedade que poucos sujeitos da história do Brasil lograram. Os responsáveis pela escalada de Tom na opinião pública foram seus grandes trabalhos, com destaque para duas sinfonias, presença marcada entre 1959- 1965 com a bossa-nova: arranjando os principais discos do gênero e álbuns gravados/parcerias com sumidades – como Frank Sinatra e Claus Ogerman. Seu segundo grande projeto musical com Vinícius surgiu por intermédio de Bené Nunes. Bené era amigo do presidente Juscelino Kubistchek. Recebeu dele a incumbência de conseguir, com os dois autores, uma sinfonia para a inauguração da nova capital: “Brasília, sinfonia da alvorada.” (JOBIM, 1996, pág. 106) Imbuído pela ânsia da construção de um país moderno JK não foi parcimonioso e, os projetos foram grandiosos e sempre acompanhados de sua publicidade desenvolvimentista. A construção de Brasília foi exaltada antes, durante e após sua consumação, e os sujeitos responsáveis por ela – vide Tom e Vinícius no plano artístico – transitaram entre geomorfologias e atmosferas diferentes do território nacional, numa constante experimentação de distintos espaços, o que muitas vezes inspirou a dupla. Vinícius de Moraes voltou ao Rio e formalizou com Tom os detalhes da empreitada. Vinícius, além de grande parceiro, era conhecido nas rodas políticas, o que ajudou muito. Amigo também do presidente e de Oscar Niemeyer. Foram muitos encontros, viagens a Brasília ainda em construção. Precisavam sentir de perto o Planalto Central. (JOBIM, 2003, pág. 106) De volta ao Rio, Tom escreveu todo o tema em seu Welmar, piano vertical. Vinícius preparou o texto. Tom escreveu a partitura completa para a orquestra. Resolveram dividir a peça em cinco movimentos: O planalto deserto, O homem, A chegada dos candangos, O trabalho e a construção, O coral10. (JOBIM, 2003, pág. 107) Tom Jobim, não obstante, também despendeu a quantidade máxima de energias para a composição da sinfonia. O espetáculo foi teatralmente pensado, pois deveria servir como um marco dentro da memória que estava sendo construída junto com a cidade. A orquestra também contava com as vozes do grupo Os Cariocas, além das já consagradas Lenita Bruno e Elizete Cardoso. 10 Cada ato da sinfonia será trabalhado particularmente na próxima parte do artigo Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 226 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Infelizmente, o espetáculo não aconteceu conforme o esperado. Talvez por conta dos gastos exagerados com a construção de Brasília, a receita foi insuficiente para o que haviam programado para a grande festa. As luzes e o som foram reduzidos para o minimamente necessário. Tom, quando foi receber seu cachê, teve o grande dissabor de saber que o dinheiro serviria ou para pagá- lo ou para pagar os músicos, fazê-lo para os dois seria impraticável. Disse para pagar os músicos e não recebeu nada.11 É curioso que após a estréia da sinfonia, Tom refugiou-se para outras paisagens, mais atlântica e úmida e menos agreste. Foi descansar uma semana em Poço Fundo. Sentia-se exaurido, esvaziado. Dormia muito. Quando se levantava da cama, deitava- se na rede da varanda. Dedilhava o violão, o ar ausente. Confidenciou para Helena: - Preciso arranjar outra profissão. Não sei mais compor. A fonte secou. Muito anos depois, afirmaria o contrário à sua irmã: - quando ela terminou um de seus livros e lhe disse que havia perdido a vocação: - A fonte nunca seca. – E apontando para o espaço: - Está tudo lá. É só ir buscar. (JOBIM, 2003, pág. 108, grifo nosso) Sumariamente, uma contribuição de Machado (2008) que traduz fiel e sinteticamente, e também com vigor, a identidade maior destes parágrafos: O projeto de modernização do Brasil de Juscelino Kubischek, no final dos anos 50, tinha a bossa nova como trilha sonora. [...] esse período representou um momento de utopia de modernização conduzida por intelectuais e artistas progressistas e criativos, cujo símbolo maior foi a construção de Brasília, projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer – com música de inauguração encomendada à dupla Tom e Vinícius: Sinfonia da Alvorada . (MACHADO, 2008, pág. 33) A partir destas reflexões podemos inserir mais alguns argumentos sobre a paisagem do Planalto Central, ou, reconsiderando, a (trans)formação e (re)significação do planalto por intermédio do labor e da cultura humana. Luchiari (2001) é autora principal e o texto “A (re)significação da paisagem no mundo contemporâneo” dialoga com esses temas. A autora tem um jeito peculiar de abordar o tema paisagem neste artigo, onde faz abordagens que aparecem imbricadas a geografia e a filosofia. 11 Por esse problema Vinícius também passou algumas vezes durante o amadurecimento de sua obra musical. Curioso que, por ser diplomata, não podia receber renda ou mesmo cachê em função de atividades artísticas, ao passo que muitas vezes exigido rigor nas vestes e apresentações públicas. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 227 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 A natureza, a paisagem e o meio ambiente (apesar de comumente tratados como sinônimos) fazem menção a diferentes materialidades para a geografia. Isto é, numa perspectiva lógica de causas e consequências, a degradação ou expropriação/metamorfose da natureza é capaz de modificar seus objetos naturais, assim como pô-los em extinção, no entanto tal afirmativa não aniquila uma paisagem e, sim, forma outra, num movimento incessante de sobreposições entre cultura e natureza transformada. O meio ambiente, nesse contexto, é eleito pela imprensa e pela opinião pública para substituir o conceito de paisagem, mas, cientificamente, é incapaz de fazê-lo. Meio ambiente diz respeito ao rol de objetos autóctones do espaço natural, onde não há transformação e investidas antrópicas. São os lugares ermos, brejeiros, naturais no seu sentido menos amplo ou (não)transformados. Embora a idéia de meio ambiente permaneça viva no imaginário da sociedade, sua função é a de – segundo Luchiari – escamotear a exclusão social que a mesma mantém casada com a comercialização dos espaços pela esfera privada com interditos da especulação imobiliária. É sabido que O mesmo espírito preservacionista que protegeu ecossistemas naturais também selecionou paisagens naturais para serem mercantilizadas e transformadas em novas territorialidades das elites urbanas (LUCHIARI, 2001, pág. 10) Ainda nesse sentido, a autora questiona a idéia de ‘natureza’ adotada na história da modernidade, pós-pensamento ilustrado. O universo técnico com o berço industrial inglês pôde intermediar uma relação homem-natureza estritamente mais abrupta e demograficamente mais abrangente. As demandas humanas foram solapando década após década ás demandas da natureza circunvizinha e, simultaneamente, a idéia brutal de externalidade foi criada. A natureza assim entendida está à margem da barbárie deliberada pelo consumo e pelo modo de produção calcado no instinto liberal: cada vez mais consumida, transformada, expropriada e transposta na logística inter- continental de manufaturados, industrializados e insumos impreterivelmente retirados pela ótica ‘externalista’. A externalidade, parafraseando a autora, foi um dos maiores pecados da modernidade, pois, enxuta a sensibilidade humana que cadencial e vagarosamente depaupera a natureza como um todo (incluindo a troposfera, atmosfera e hidrosfera – biosfera). Por fim, vale refletir sobre a voga do “meio ambiente” e sua repercussão que parece diminuir a importância do conceito de paisagem. Em perspectiva, a paisagem não deixará de existir, a questão é mais sobre os objetos que a compõe e menos sobre sua inexistência, isto é, sobretudo debates Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 228 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 devem refletir uma equidade entre a natureza e os objetos da cultura que a transforma. Brasília e sua construção dialogam com a crise conceitual e epistemológica que Luchiari (2001) põe luz e senso científico, enquanto representa uma paisagem construída pelo viés urbano e arquitetonicamente idealizada, não obstante às desigualdades espaciais que consomem a cidade em nichos de pobreza que contrasta com sua luxúria, e o discurso ambientalista que instiga a proteção do cerrado e seu consumo pelo privilégio da renda – negando, aí, a ótica de preservação, tornado-a fidejussória. Contraditoriamente, a valorização estética das paisagens naturais tem acelerado o processo de produção de paisagens urbanas em regiões até então abandonada à sua própria sorte e alimentada uma construção permanente do conceito de meio ambiente (LUCHIARI, 2001, pág. 20) Sinfonia da Alvorada À guisa das últimas considerações, as análises seguirão um paradigma: primeiro as versões originais dos textos escritos por Vinícius recitados/declamados com a execução sinfônica, ao passo que os poemas foram retirados do trabalho de Teixeira (2008); em seguida observações que tocam em conceitos da geografia, criando um gancho entre o poema, a execução instrumental e a construção da malha urbana. A análise musical pode ser interna, externa ou ambas. Com conhecimento técnico de construção de tonalidades e melodias inseridas em campos harmônicos específicos instrumenta-se para a análise interior à obra, já com conhecimento histórico (biográfico e contextual) há a gênese de uma ótica que entende a obra externamente. Desta forma, Napolitano aponta ainda que Normalmente existem duas formas básicas de abordagem: uma que prioriza um olhar externo à obra e outro que procura articulações internas, estruturais. Os campos da história, da sociologia e da comunicação, [inclua-se aqui geografia, também] tendem mais para o primeiro caso. Os campos da semiótica, da musicologia e das letras, tendem mais para a segunda abordagem. (NAPOLITANO, 2007, pág. 154) Nesse artigo pretendemos fazer uma análise externa à obra, utilizando para isso, bibliografia sobre o contexto histórico, espaço urbano e Geografia Cultural. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 229 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 O Planalto Deserto No princípio era o ermo Eram antigas solidões sem mágoas. O altiplano, o infinito, o descampado. No princípio era o agreste: O céu azul, a terra vermelho-pungente. E o verde triste do cerrado. Eram antigas solidões banhadas De mansos rios inocentes Por entre as matas recortadas. Não havia ninguém. A solidão Mais parecia um povo inexistente Dizendo coisas sobre nada. Sim, os campos sem alma Pareciam falar, e a voz que vinha Das grandes extensões, dos fundões crepusculares Nem parecia mais ouvir passos Dos velhos bandeirantes, os rudes pioneiros Que, em busca de ouro e diamantes, Ecoando as quebradas com tiro de suas armas, A tristeza de seus gritos e o tropel De sua violência contra o índio, estendiam As fronteiras da pátria muito além do limite dos tratados. – Fernão Dias, Anhanguera, Borba Gato, Vós fostes os heróis das primeiras marchas para o oeste, A Sinfonia se inicia com a declamação de Vinícius de Moraes: “No princípio era o ermo”. Depois disso, a orquestra com as cordas (16 violinos, 4 violas, 4 cellos, 1 contra-baixo e 1 harpa), os sopros (2 flautas, 1 oboé, 1 corne inglês, 1 fagote e 2 clarinetes) e os metais (2 trompas e 3 trombones) e durante quase 3 minutos a música é tocada sem versos. Logo no início, o poema esmiúça a paisagem do cerrado – do planalto central – em aspectos naturais, morfológicos e humanos. O texto também procura contrastar aspectos da história cambriana com o desbravamento dos bandeirantes e de sua violência contra os indígenas. A savana brasileira intertropical começa a ganhar notoriedade com os versos esmerados de Vinícius. O clima quente e seco não é explorado no texto, que ressalta principalmente a biodiversidade da região. Fatalmente menos biodiversificado que os espaços atlânticos dos compositores inseridos no Vale do Paraíba, a natureza cumpre seu papel e inspira ambos, que para a construção do texto e da música se enveredaram em trabalhos de campo. A vegetação mais agreste, o interdito entre o verde atlântico e equatorial e o amarelo árido da caatinga, forma a paisagem peculiar do cerrado. As gramíneas predominam e criam ilhas de vegetação mais densas pelo centro do país, onde vivem pássaros, como a perdiz e o jaó (que podem ser ouvidos na melodia através dos sopros), que transitam nesse espaço e que ocupa pelo menos 20% do espaço nacional, Da conquista do agreste E da grande planície ensimesmada! Mas passaste. E do divisor de água Das três grandes bacias Dos três gigantes milenares: Amazonas, Rio São Francisco, Rio da Prata; Do novo teto do mundo, do planalto iluminado Partiram também as velhas tribos mal feridas E as feras aterradas. E só ficaram as solidões sem mágoa. O sem-termo, o infinito descampado. Onde, nos campos gerais do fim do dia. Se ouvia o grito da perdiz. A que respondia nos estirões da mata à beira dos rios. O pio melancólico do jaó. E vinha a noite. Nas campinas celestes. Rebrilhavam mais próximas as estrelas. E o cruzeiro do Sul resplandecente. Parecia destinado. A ser plantado em terra brasileira: A Grande Cruz alçada. Sobre a noturna mata do cerrado Para abençoar o novo bandeirante. O desbravador ousado. O ser da conquista. O Homem! Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 230 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 cobrindo principalmente Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Há ainda um fato interessante sobre o jaó e os autores. Segundo Helena Jobim (1996), enquanto Vinícius de Moraes descansava e bebia uísque dentro do “Catetinho”, nome da moradia provisória do presidente na futura capital do país, Tom Jobim juntava-se com um “candango” e juntos iam para o mato piar jaó, ave abundante na região. “Ficava assombrado como a ave respondia ao pio de Tom”. (JOBIM, 1996, p.106) É importante ressaltar ainda que, os aspectos que sobressaem no poema são de ordem morfológica e pedológica, como “terra vermelha- pungente”. Nesse sentido, é uma menção de fácil entendimento aos latossolos vemelho-amarelos peculiarmente ricos em ferro. Outros termos usados pelo poeta são: altiplano, chapadão, e imenso cerrado “De solidões banhadas por rios inocentes”, também destaca o papel do cerrado antes da ocupação humana como divisor de grandes bacias hidrográficas que contemplam o resto do país. De aí, Vinícius de Moraes nos dá algumas dicas sobre a vitalidade do cerrado e seu papel hidrológico com os rios Amazonas, Prata e São Francisco, fontes de vida ricas e diversificadas no universo da fauna e da flora atlântica e equatorial. Olhando ainda pelo retrovisor da história, sem postergar a perspectiva geográfica de sua análise, Vinícius atenta para o momento de mudanças abissais do cerrado que tem início, na visão do poeta, com o ciclo do ouro e a confluência demográfica e que vai propiciar um amálgama cultural sem precedentes naquele espaço. Anhanguera, Borba-Gato e Fernão Dias são citados como os primeiros desbravadores do “agreste”, “heróis das primeiras marchas para o oeste”. Embora a maior marca dos paulistas no século XVII por todo território brasileiro tenha sido as bandeiras, é inegável a contribuição das mesmas para o reconhecimento e amplitude do território, no entanto, elas não merecem a canonização em função do ímpeto predatório que os motivou. O texto termina com referência à Brasília vista de cima, que nas citações de Niemeyer e Lúcio Costa, do segundo texto de Vinícius intitulado O Homem, nos esclarece que a intenção primeira era Brasília ser em forma de uma cruz e não de um avião. No caso aqui, a cidade a ser “plantada” no centro- oeste brasileiro é denominada pelo poeta como “Grande cruz alçada” e seu papel importante no povoamento da região, abençoando um novo ciclo bandeirante, “O desbravador ousado/O ser da conquista/O Homem!”. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 231 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 O Homem Sim, era o Homem, Era finalmente, e definitivamente, o Homem. Viera para ficar. Tinha nos olhos A força de um propósito: permanecer, vencer as solidões E os horizontes, desbravar e criar, fundar E erguer. Suas mãos Já não traziam outras armas Que as do trabalho em paz. Sim, Era finalmente o Homem: o Fundador. Trazia no rosto A antiga determinação dos bandeirantes, Mas já não eram o ouro e os diamantes o objeto De sua cobiça. Olhou tranqüilo o sol Crepuscular, a iluminar em sua fuga para a noite Os soturnos monstros e feras do poente. Citação de Oscar Niemeyer - “... como uma flor naquela terra agreste e solitária...” - Uma cidade erguida em plena solidão do descampado. Niemeyer - “... como uma mensagem permanente de graça de poesia” - uma cidade que ao sol vestisse um vestido de noivado Niemeyer “... em que a arquitetura se destacasse branca, como que flutuando na imensa escuridão do planalto” - Uma cidade que de dia trabalhasse alegremente Niemeyer - “... numa atmosfera de digna monumentalidade” No segundo ato da Sinfonia Tom Jobim e Vinícius estão preocupados em mostrar a ocupação demográfica do cerrado brasileiro. A instrumentalização já é notadamente mais virtuosa, com um jogo de notas em estacato de violinos e cellos que acompanham caminhos melódicos realizados por sopros que nos dão a sensação primeiramente de aventura e depois com a repetição das notas, sente-se a impressão de pessoas caminhando ou sendo transportadas e chegando para construir a cidade. Na verdade, mais que isso, elas vêm desbravar para “plantarem-se na terra vermelha do altiplano”. A poesia também mostra um lado virtuoso da ocupação e ressalta sobretudo seus aspectos positivos. Depois mirou as estrelas, a luzirem Na imensa abóbada suspensa Pelas invisíveis colunas na treva. Sim, era o Homem... Vinha de longe, através de muitas solidões, Lenta, Penosamente. Sofria ainda da penúria Dos caminhos, da dolência dos desertos, Do cansaço das matas enredadas A se entredevorarem na luta subterrânea De suas raízes gigantescas e no abraço uníssono De seus ramos. Mas agora Viera para ficar. Seus pés plantaram-se Na terra vermelha do altiplano. Seu olhar Descortinou as grandes extensões sem mágoa No círculo infinito do horizonte. Seu peito Encheu-se do ar puro do cerrado. Sim, ele plantaria No deserto uma cidade muito branca e muito pura... - E à noite, nas horas do langor e da saudade Niemeyer - “... numa iluminação feérica e dramática...” - Dormisse num Palácio de Alvorada Niemeyer “... uma cidade de homens felizes, homens que sintam a vida em toda a sua plenitude, em toda sua fragilidade; homens que compreendam o valor das coisas puras...” - E que fosse com a imagem do cruzeiro No coração da pátria derramada Citação de Lúcio Costa - “... nascida de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos que se cruzam em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.” Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 232 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 O homem que viera para ficar “e tinha nos olhos a força de um propósito”, de “desbravar e criar fundar e erguer” esclarece a determinação de fundar uma malha urbana estruturada no cerrado. A cidade erguida em plena solidão do cerrado, uma cidade branca (devido ao concreto usado por Niemeyer) e viva que de dia trabalhasse alegremente, contemplava e era contemplada durante a construção pelo labor árduo de migrantes de todas as partes do Brasil, mas, sobretudo, das regiões norte e nordeste. A marca da ideologia cristã é inteligível, como já dissemos anteriormente, com o fechamento que usufrui de uma citação de Lúcio Costa, onde o desenho simétrico da cidade lembra não só a modernidade dos aeroplanos que vencem as limitações biológicas do ser humano como também a cruz expressa pelo cruzamento de dois eixos em ângulo reto, memória dos tempos mais pretéritos da colonização brasileira. A Chegada Dos Candangos Tratava-se agora de construir: e construir um ritmo novo. Para tanto, era necessário convocar todas as forças vivas da Nação, todos os homens que, com vontade de trabalhar e confiança no futuro, pudessem erguer, num tempo novo, um novo Tempo. E, à grande convocação que conclamava o povo para a gigantesca tarefa começaram a chegar de todos os cantos da imensa pátria os trabalhadores: os homens simples e quietos, com pés de raiz, rostos de couro e mãos de pedra, e que, no calcanho, em carro de boi, em lombo de burro, em paus-de-arara, por todas as formas possíveis e imagináveis, começaram a chegar de todos os lados da imensa pátria, sobretudo do Norte; foram chegando do Grande Norte, do Meio Norte e do Nordeste, em sua simples e áspera doçura; foram chegando em grandes levas do Grande Leste, da Zona da Mata, do Centro-Oeste e do Grande Sul; foram chegando em sua mudez cheia de esperança, muitas vezes deixando para trás mulheres e filhos a aguardar suas promessas de melhores dias; foram chegando de tantos povoados da imensa pátria,sobretudo do Norte, tantas cidades cujos nomes pareciam cantar saudades aos seus ouvidos, dentro dos antigos ritmos da imensa pátria. - Boa Viagem! Boca do Acre! Água Branca! Vargem Alta! Amargosa! Xique-Xique! Cruz das Almas! Areia Branca! Limoeiro! Afogados! Morenos! Angelim! Tamboril! Palmares! Taperoá! Triunfo! Aurora! Campanário! Águas Belas! Passagem Franca! Bom Conselho! Pedra Azul! Brumado! Diamantina! Capelinha! Capão Bonito! Campinas! Canoinhas! Porto Belo! Passo Fundo! Cruz Alta... Que foram chegando de todos os lados da imensa pátria... Para construir uma cidade branca e pura... Uma cidade de homens felizes... No entanto, na parte mais enxuta e direta da Sinfonia, Vinícius mostra regionalmente as raízes dos primeiros brasileiros que habitaram e transformaram brutalmente o planalto brasileiro. A referência musical é muito nítida aqui, quando Tom Jobim faz uma citação musical de um baião nordestino, num estilo muito similar às “Cirandas” de Villa-Lobos. De todas as regiões vieram trabalhadores vender sua mão-de-obra enquanto assalariados castigados pela dureza do trabalho braçal e pela velocidade do mesmo – e que também podem ser sentidos no ritmo da melodia Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 233 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 da composição – pois, Brasília e sua construção foram não apenas investidas antrópicas de proporções inéditas no centro brasileiro como também projeto e slogan político do governo JK. É importante ressaltar ainda que, Brasília foi construída em apenas três anos e meio. Daí dá para se ter uma ideia do número de pessoas que migraram para a nova capital e o ritmo frenético das obras. Destarte, os trabalhadores, e como bem afirmado pelo poeta essencialmente os nortistas, foram acometidos pelo desenvolvimentismo da esfera pública e civil que edificava material e mentalmente o Brasil no fim da década de 1950. Zona da Mata e Meio-Norte, curiosamente, são ressaltados nos parágrafos de Vinícius. Embora ambas as regiões estejam inseridas no contexto nordestino, apresentam entre si características enormemente diferentes. A Zona da Mata é o espaço mais verde, de maior produtividade agrícola como também de memória mais antiga na ocupação lusa. Meio-Norte, entretanto, é uma ponte geográfica entre os espaços de floresta que já dominam no estado do Pará e a caatinga que entremeia o Maranhão. Como dito anteriormente, “era necessário convocar todas as forças vivas da Nação, todos os homens que, com vontade de trabalhar e força no futuro, pudessem erguer, num tempo novo, um novo Tempo”. O Trabalho e a Construção Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. Foi necessário 1 milhão de metros cúbicos de concreto, e foram necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios. E 1 milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de madeira foram necessárias. E 60 mil operários! Foram necessários 60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar, cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas... Ah, as empenas brancas! Como penas brancas... Ah, as grandes estruturas! Tão leves, tão puras... Como se tivessem sido depositadas de manso por mãos de anjo nas terras vermelho-pungentes do planalto, em meio à música inflexível, à música lancinante, à música matemática do trabalho humano em progressão... O trabalho humano que anuncia que a sorte está lançada e a ação é irreversível. Aqui talvez estejamos debruçados na parte mais eloqüente da Sinfonia. Neste quarto ato o texto abre a faixa, ao contrário das demais onde o texto foi posto no final ou declamado simultaneamente nos toques mais intimistas da música de Tom. Além disso, é também inserido pela primeira vez o coro que vai dar à melodia uma entonação da importância da coletividade e do ritmo cadenciado do trabalho. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 234 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Foi necessário mais que planejamento e urbanismo, arrojo, pretensão, um amálgama de sonhos e um slogan político marcante. Foi preciso de “1 milhão de metros cúbicos de metros cúbicos de concreto, e foram necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios. E 1 milhão de metros cúbicos de brita foi necessário, e quatrocentos quilômetros de laminados, e toneladas e toneladas de madeira foram necessárias, neste sentido, a análise que melhor faz menção ao contexto e com JK dialoga com o crescimento industrial e urbano desse período. Os trinta anos que vão de 1950 a 1980 – anos de transformações assombrosas, que , pela rapidez e profundidade, dificilmente encontram paralelo neste século – não poderia de deixar de aparecer aos seus protagonistas senão sob uma forma: a de uma sociedade em movimento. Movimento de homens e mulheres que se deslocam de uma região a outra do território nacional, de trem, pelas novas estradas de rodagem, de ônibus ou amontoados em caminhões paus-de-arara. São nordestinos e mineiros, fugindo da miséria e da seca, em busca de um destino melhor em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Paraná na terra roxa, [...] subindo para o Mato Grosso do Sul e Goiás, passam pela nova capital, Brasília, em direção à fronteira norte[...](MELLO & NOVAIS, 1998, pp. 584-586) Então, foram necessários 60 mil “candangos” vindos de todas as partes do Brasil. Laboraram com a gestão dos arquitetos e engenheiros do projeto, e no seu sentido mais braçal edificaram o que até então parecia inenarrável: cidade idealizada. O ideal do desenvolvimento estava contido nos projetos, no dia-a-dia dos sujeitos que a habitariam e na cabeça da esfera das decisões políticas federais, a arquitetura alva e concomitantemente arrojada que, em sua cor, lembra a atmosfera brejeira do cerrado, mas nas formas reclama à técnica de construção mais elaborada. O boom demográfico foi notório: 60 mil pessoas que enveredavam pelas rodovias até chegar demoradamente ao destino pretendido. O planalto brasileiro não assistia uma mudança demográfica tão abrupta desde a primeira metade do século XVIII nos arredores das cidades de Caeté e Sabará (MG), mas Brasília foi suficiente para mudar os paradigmas do sertão, do interior e do até então inabitado. Mas, como poderemos ver na parte final da sinfonia, tais mudanças ainda demorariam alguns anos, já que ao findar a construção da cidade, os milhares de trabalhadores tiveram que retornar às suas origens ou subir ainda mais, em “direção à fronteira norte, ao Mato Grosso, Rondônia, Amapá, Sul do Pará, Sul do Maranhão, onde se encontrarão com outra corrente migratória de nordestinos”. ( Idem, p.586) Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 235 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 A saída desses trabalhadores da capital se reflete na melodia da parte final da sinfonia como veremos a seguir. Cantochão E ao crepúsculo, findo o labor do dia, as rudes mãos vazias de trabalho e os olhos cheios de horizontes que não têm fim, partem os trabalhadores para o descanso, na saudade de seus lares tão distantes e de suas mulheres tão ausentes. O canto com que entristecem ainda mais o sol- das-almas a morrer nas antigas solidões parecem chamar as companheiras que se deixaram ficar para trás, à espera de melhores dias; que se deixaram ficar na moldura de uma porta, onde devem permanecer ainda, as mãos cheia de amor e os olhos cheios de horizonte que não têm fim. Que se deixaram ficar muitas terras além, muitas serras além, na esperança de um dia, ao lado de seus homens, poderem participar também da vida da cidade nascendo em comunhão com as estrelas. Que viram, uma manhã, partir os companheiros em busca do trabalho com que lhes dar uma pequena felicidade que não possuem, um pequeno nada com que poder sentir brilhar o futuro no olhar de seus filhos. Esse mesmo trabalho que agora, findo o labor do dia, encaminha os trabalhadores em bando para a grande e fundamental solidão da noite que cai sobre o planalto. “Deste planalto central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã de meu país e antevejo essa alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino.” (Brasília, Dois de outubro de 1956) Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira Coral Terra de sol Terra de luz Terra que guarda no céu a brilhar o sinal de uma cruz Terra de luz Terra-esperança, promessa de um mundo de paz e de amor Terra de irmãos Ó alma brasileira Alma brasileira Terra-poesia de canções e de perdão Terra que um dia encontrou seu coração Brasil! Brasil! Brasil! Brasília Coro Masculino Brasília Brasília Brasília Brasília Brasília B R A S I L! Coro Masculino Brasília Brasília Brasília Brasília Brasília B R A S I L! Coro Misto Brasília Brasília Brasília Brasília Brasília B R A S I L! Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 236 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Aqui, a sinfonia se inicia com o coral entoando um cantochão e letra e música denotam certa tristeza, desolação, solidão, enfim, o crepúsculo da construção de Brasília. A letra nos remete a um duplo sentido: o fim do dia dos trabalhadores pode aqui ser entendido também com o findar da construção de Brasília. Num espaço onde durante três anos e meio se ouviu incessantemente o quebrar de pedras e o canto monótono de britadeiras, após esse tempo, silenciava com uma atmosfera – cantada pelo coral - taciturna. É isso que podemos sentir ao ouvir a melodia que quando associada à letra, nos remete novamente à religião e à cruz (já que não podemos esquecer que o cantochão era entoado principalmente pelos monges, na solidão monástica durante parte da Idade Média). “Esse mesmo trabalho que agora, findo o labor do dia, encaminha os trabalhadores em bando para a grande e fundamental solidão da noite que cai sobre o planalto”. Tal citação contrasta com a fala de Juscelino Kubitschek, extremamente otimista com relação ao destino da nova capital. É interessante observar que isso também acontece no diálogo entre letra e melodia. Pois, essa última soa dissonante e monótona, enquanto a letra fala de sol, de luz e de brilho. Considerações Finais Por fim, a partir de todas as reflexões no campo da metodologia histórica e geográfica, bem como nossa breve análise da Sinfonia da Alvorada, podemos atentar para uma relação estreita entre os compositores da Sinfonia e a edificação de Brasília, realçando especialmente seus aspectos positivos e um cenário geográfico extremamente metamorfoseado como inspiração para todos esses diálogos. No entanto, é importante ressaltar que na parte final, o coro denota certa melancolia, ou seja, parece-nos aqui que Tom Jobim e Vinícius de Moraes trabalham com o que Tatit (1987) chama de persuasão decantatória, ou seja, a música dizer outra coisa, muitas vezes o oposto da letra, com algumas repetições estruturais no desenho melódico. A eficácia da canção popular depende fundamentalmente da adequação e da compatibilidade entre o seu componente melódico e seu componente lingüístico. Arranjos e gravações trabalhadas podem não só intensificar a compatibilidade entre os componentes, como também podem criar outros graus de adequação e outros espaços de compatibilidade, o que aumentaria, por certo, a eficácia da canção. (TATIT, 1987, página 3) Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 237 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Além disso O parâmetro musical mais importante na constituição dos temas é a duração (o ritmo da melodia). Com a repetição da mesma duração, já temos uma estruturação temática. Depois vem o perfil melódico (ascendente, descendente, ondulante, pontilhado etc.). Se este perfil se mantém, não importa as variações de altura (ou freqüência), pois uma significação garantida pela duração e pelo perfil já é plenamente satisfatória. A variação de altura corresponde à variação das notas musicais que caracteriza a linha melódica de uma canção qualquer. Toda canção, por mais reiterativa que seja, se desenvolve através das alturas. (TATIT, 1987, página 47) A amarração, portanto, que há entre os atores e os espaços que estão se metamorfoseando com a construção da cidade é que põe em evidência a ideia de circularidade exposta pela sinfonia. Tal composição capta elementos sociais e culturais acerca da construção de Brasília e os recoloca através da execução da música, de modo que esse rearranjo pode constituir uma mudança sobre os sentidos construídos a partir da experiência urbana em Brasília através da audição. A imagem geográfica que os autores conseguem engendrar de Brasília a partir da Sinfonia é seguramente representativa, apesar do insucesso de vendagem da obra nos anos 1960. A receptividade positiva que o trabalho de Tom Jobim e Vinícius de Moraes logrou diz sobre a transformação da paisagem no planalto e, sem a pretensão de esgotar o tema, o iniciamos como grande legado de proveito geográfico. A extensão do sentido produzido por uma canção é certamente inatingível pela análise. O que se tenta, no fundo, é explicar alguns aspectos de produção desse sentido geral, a partir do reconhecimento dos traços comuns a todas as canções, aqueles que, independentemente das particularidades da obra, nos oferecem uma pronta identificação de sua natureza. Aqueles que nos permitem dizer, simplesmente: “Isto é uma canção”. (TATIT, 1996, página 26) Agradecimentos Aos professores Carla Gimenez, João Elias Cury Júnior e Alexis Yaccuzzi pelas leituras e dicas durante a construção deste artigo. Tom e Vinícius na Alvorada: um prisma geográfico Lucas Jurado Taoni & Fabiana Lopes da Cunha 238 Ateliê Geográfico - Goiânia-GO, v. 7, n. 3, p.208-239, dez/2013 Referências CASALECCHI, José Ênio. O Brasil de 45 ao Golpe Militar. Editora Contexto: São Paulo. 2002 CASTRO, Daniel de. Geografia e Música: a dupla face de uma relação. Espaço e Cultura UERJ, RJ, n.26, p 7-18, JUL./DEZ. de 2009 HARVEY, David. 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