UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES PEDRO RAZZANTE VACCARI O NEGRO E A MÚSICA NOS TRÓPICOS: O EMBRANQUECIMENTO HISTÓRICO DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA SÃO PAULO, 2021 PEDRO RAZZANTE VACCARI O NEGRO E A MÚSICA NOS TRÓPICOS: O EMBRANQUECIMENTO HISTÓRICO DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. Área de concentração: Música. Subárea de concentração: Música, Epistemologia e Cultura. Orientadora: Profa. Dra. Dorotéa Machado Kerr SÃO PAULO, 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. V114n Vaccari, Pedro Razzante, 1983- O negro e a música nos trópicos : o embranquecimento histórico do padre José Maurício Nunes Garcia / Pedro Razzante Vaccari. - São Paulo, 2021. 236 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Dorotéa Machado Kerr Tese (Doutorado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Música - Aspectos sociais. 2. Compositores. 3. Músicos negros. 4. Etnomusicologia. 5. Eugenia. I. Kerr, Dorotéa Machado. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.0305 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 PEDRO RAZZANTE VACCARI O NEGRO E A MÚSICA NOS TRÓPICOS: O EMBRANQUECIMENTO HISTÓRICO DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. Área de concentração: Música. Subárea de concentração: Música, Epistemologia e Cultura. Data de aprovação: __/__/____ Presidente da banca: ____________________________________ Profa. Dra. Dorotéa Machado Kerr Universidade Estadual Paulista – UNESP Banca examinadora: ____________________________________ Prof. Dr. Anderson José Machado de Oliveira Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO ____________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Vieira Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ ____________________________________ Profa. Dra. Gisela Pupo Nogueira Universidade Estadual Paulista - UNESP ____________________________________ Profa. Dra. Ynaê Lopes dos Santos Universidade Federal Fluminense - UFF À minha filha, Taila, minha maior conquista. AGRADECIMENTOS Ao meu pai, Wilson Roberto Vaccari, que nos deixou tão cedo, por todo aprendizado. À minha mãe, pela vida e cuidados todos. A todas as negras e negros, do Brasil e do mundo. À minha orientadora, Dorotéa Kerr, pela confiança e direcionamento. Ao professor Fábio Miguel, da Unesp, negro, falecido em fevereiro deste ano. À professora Gisela, pela prontidão e apoio. Ao professor Carlos Eduardo, pelo trabalho e disponibilidade. Ao professor Anderson, pela receptividade e trabalho sobre o padre José Maurício. À professora Ynaê, pela pronta disponibilidade e disposição, em sua trajetória tão forte. Ao meu irmão, Ulisses, intelectual, filósofo e desbravador de mares. Aos meus tios, Vera e Valeriano, por todo apoio e carinho. À minha namorada, Laila Corrêa e Silva, historiadora social da cultura, pelo apoio e discussões. À minha amiga e aluna, Maria Ambrosina Firmino, negra, batalhadora incansável e amizade em todas as horas. À memória do padre José Maurício Nunes Garcia, maior nome de nossa música colonial. Beijo a mão que me condena, padre José Maurício Nunes Garcia Fonte: ANDRADE, 1930, p. 78. RESUMO A questão concernente deste trabalho é a análise, sob o viés antropológico, da historiografia a respeito do compositor negro padre José Maurício Nunes Garcia, desde o primeiro documento sobre ele, datado de 1836, assinado por Manoel de Araujo Porto-Alegre. A análise segue considerando uma biografia manuscrita anônima de 1897, e adentrando o século XX com Taunay, Renato Almeida, Mário de Andrade, Rossini Tavares de Lima, Luiz Heitor, Bruno Kiefer, Vasco Mariz, Mauro Gama, Cleofe Person de Mattos e alcançando o século XXI, onde uma nova geração de musicólogos, como Marcelo Hazan e Marc Hertzman, efetivamente investigaram a música de José Maurício sob uma perspectiva racial, antropológica e abrangendo outras áreas do conhecimento, como a biologia e a sociologia, especialmente Hazan. Dentro dessa análise crítica, verificou-se que houve, senão um deliberado e consciente processo de embranquecimento histórico, por meio da iconografia e da narrativa histórica que tentou se perpetuar sobre o padre-compositor, pelo menos um anseio de grande parte da musicologia dos séculos XIX e XX, de torná-lo protótipo de mestiço brasileiro, a fim de alçá-lo como expoente da música colonial situado no nacionalismo da Era Vargas. Esse processo embranquecedor contou com as teorias raciais que haviam se delineado desde a década de 1880 na Europa, e o termo “eugenia” com o significado de “bem nascer”, forjando-se um ambiente propício para a disseminação de ideais científicos e o uso equivocado das ideias de Darwin. As teorias eugenistas como o darwinismo social e a antropologia cultural dariam o escopo necessário para a formação de uma pátria que, de acordo com teóricos como Silvio Romero e Raymundo Nina Rodrigues, em algumas gerações seria “plenamente branca”. Acompanhando essa evolução social e histórica, as biografias sobre o padre Maurício, em maior ou menor grau, procuraram, por meio de iconografia ou uma espécie de revisionismo histórico embranquecedor, converter e transmudar a vida do biografado, alinhando-o cada vez mais com um modelo saturado de gênio caucasiano europeu ocidental. Neto de escravizadas africanas, luta-se até hoje para o reconhecimento de José Maurício enquanto compositor negro, patrimônio nacional, sem os eufemismos que lhe foram emprestados desde o século XIX de “mulato”, “pardo” e “mestiço”, alcunhas que muitas vezes prestam um desserviço à própria condução e aprimoramento da história. Palavras-chave: Padre José Maurício Nunes Garcia. Embranquecimento. Historiografia. Eugenia. Estigma racial. ABSTRACT The problem here defined is to analyze, from the perspective of Anthropology, the historiography that concerns black brazilian composer father José Maurício Nunes Garcia, since its remote age, that is, in the figure of Manoel de Araujo Porto-Alegre. After this, we passed through an anonymous biography from 1897, and in the following Century we researched the works by Taunay, Renato Almeida, Mário de Andrade, Rossini Tavares de Lima, Luiz Heitor, Bruno Kiefer, Vasco Mariz, Mauro Gama, Cleofe Person de Mattos, reaching XXI Century where a new generation of musicologists, such as Marcelo Hazan and Marc Hertzman, finally proposed to investigate José Maurício´s music under a racial survey, based more on Anthropology and gathering other knowledge fields, such as biology and sociology, especially Hazan. Inside this critical analysis, it was verified that happened, if not intentional and concious historical whitening process, through iconography and historical narrative that was tried to perpetuate about the father-composer, at least a desire of big part of Centuries XIX and XX musicology, for becoming him a brazilian mestizo prototype, with the aim of raising him as Brazilian Colonial Music symbol of the Era Vargas nationalism of the 1930s. This whitening process would count on racial thories that were delimited themselves since the 1880 in Europe, with the word Eugenics meaning “well born”, then, the perfect environment for diffusion of pseudo-scientific ideas and Darwin's misuse was set. The eugenics theories such as social darwinism and cultural anthropology, embased the movement´s needing to a country´s development that, with writers such as Silvio Romero and Raymundo Nina Rodrigues, in some generations would be a “completely white” one. Following that historical and social evolution, father Maurício’s biographies, in greater or lesser degrees, have searched, through iconography itself or through narrative, a kind of whitening historical revisionism, to change and rewrite Maurício´s life, making him even more similar to an old conceived white model of the romantic western european genius. Grandson of african slaves, we struggle until nowadays to reach the Father´s recognition as a black composer, part of National Patrimony, without the nicknames that have been lent to him since the 19th century by “mulatto”, “brown” and “mestizo”, nicknames that often do a disservice to the very conduct and improvement of history. Keywords: Father José Maurício Nunes Garcia. Whitening. Historiography. Eugenics. Racial stigma. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Gravura de Gravelot e Baacheley, capa do livro de Le Cat .................................... 53 Figura 2 - Crânios de diferentes nações, gravura feita sobre o desenho de Lavater, de 1775-8 .................................................................................................................................................. 58 Figura 3 - Máscara mortuária de José Maurício Nunes Garcia, extraída por Manoel de Araujo Porto-Alegre ............................................................................................................................. 59 Figura 4 – José Maurício Nunes Garcia .................................................................................. 73 Figura 5 – A redenção de Cam, de Modesto Brocos ............................................................... 75 Figura 6 - Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) ..................................................... 78 Figura 7 - Machado mais realista, em figura contemporânea ................................................. 78 Figura 8 - Padre José Maurício, retrato feito por seu filho José Maurício Nunes Garcia Jr. ........................................................................................................................ 79 Figura 9 - Padre José Maurício Nunes Garcia Lanzelotti, data desconhecida (década de 1970) .................................................................................................................................................. 79 Figura 10 - José Maurício Nunes Garcia (autor desconhecido) .............................................. 83 Figura 11 – José Maurício Nunes Garcia tocando para Dom João VI .................................... 84 Figura 12 – Retrato na obra de Bruno Kiefer .......................................................................... 85 Figura 13 – José Maurício Nunes Garcia, retrato a óleo por seu filho José Maurício Nunes Garcia........................................................................................................................................ 87 Figura 14 - José Maurício vivido por um negro “puro” no teatro, o ator Paulo Barbosa........ 94 Figura 15 – Padre José Maurício Nunes Garcia: Máscara mortuária, retrato consagrado, retrato feito pelo e retrato de Lanzelotti ................................................................................... 98 Figura 16 - Retrato de José Maurício Nunes Garcia ao lado de figuras negras brasileiras ... 101 Figura 17 - Antônio Carlos Gomes (1836-1896), arquivo público: embranquecido ............. 131 Figura 18 - Retrato de Mário de Andrade (1927), por Lasar Segall ...................................... 134 Figura 19 - Tantum Ergo de padre José Maurício Nunes Garcia ........................................ 136 Figura 20 - José Maurício Nunes Garcia ............................................................................... 139 Figura 21 - José Maurício Nunes Garcia em capa de biografia ............................................ 140 Figura 22 - Capa de CD da Missa de Nossa Senhora do Carmo........................................ 141 Figura 23 - Máscara de Beethoven, tirada em vida do compositor, em 1812 ....................... 142 Figura 24 - Modinha nº8: No momento da partida ............................................................. 154 Figura 25 - Excerto de Zefiro torna, e l bel tempo rimena, de Monteverdi. .................... 163 Figura 26 - Excerto de Zefiro torna, e l bel tempo rimena de Monteverdi. ....................... 164 Figura 27 - Trecho da Modinha Beijo a mão que me condena, de José Maurício Nunes Garcia. Póstuma. ..................................................................................................................... 167 Figura 28 - Trecho de Beijo a mão que me condena ........................................................... 167 Figura 29 - Partitura de Beijo a mão que me condena ........................................................ 169 Figura 30 - A cerimony at the Palace (caricatura inglesa) ..................................................... 170 Figura 31- Modinha Marília si não me amas - não me diga a verdade (trecho) ................. 171 Figura 32 – Trecho de Réquiem, de José Maurício, publicado em 1816 ............................. 186 Figura 33 - Réquiem de Mozart, primeira edição de 1791 ................................................... 187 Figura 34 - Frase musical de Réquiem de Mozart ................................................................ 188 Figura 35 - Frase musical de Réquiem de Jose Maurício ..................................................... 188 Figura 36 - Linha dos baixos no coro no Requiém de Mozart ............................................. 188 Figura 37 - Linha dos baixos no Requiém de José Maurício ............................................... 188 Figura 38 - Trecho do Réquiem de Mozart. .......................................................................... 189 Figura 39 – Trecho do Réquiem de 1816 de José Maurício. ................................................ 190 Figura 40 – Trecho do Réquiem de Mozart. ......................................................................... 191 Figura 41 - Trecho do Réquiem de 1816 de José Maurício. ................................................. 192 Figura 42 - Domingos Caldas Barbosa: embranquecido? ..................................................... 203 Figura 43- Modinha À sombra daquela faia, de Antônio Galassi (1750-1795), Mestre de Capela da Sé de Braga, Portugal ............................................................................................ 204 Figura 44 – Modinha Cuidados tristes de Marcos Antônio – pseudônimo de Marcos Portugal (1762-1830) – uso do Baixo de Alberti .................................................................. 205 Figura 45- Modinha Sonhos, quimeras. Material folclórico ................................................ 207 Figura 46 - Modinha Escuta, formosa Marcia .................................................................... 207 Figura 46 - Modinha Escuta, formosa Marcia .................................................................... 207 Figura 47 – Modinha Marília si me não me amas, não me diga a verdade, de José Maurício Nunes Garcia ........................................................................................................... 208 Figura 48 - Moda Se tem outra a quem adora Figura 47 – Modinha Marília si me não me amas, não me diga a verdade, de José Maurício Nunes Garcia..................................... 208 Figura 48 - Moda Se tem outra a quem adora .................................................................... 209 Figura 49 - Rendimentos do padre José Maurício por toda a sua vidaFigura 48 - Moda Se tem outra a quem adora ....................................................................................................... 209 Figura 49 - Rendimentos do padre José Maurício por toda a sua vida.................................. 216 Figura 49 - Rendimentos do padre José Maurício por toda a sua vida.................................. 216 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 1 O PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA: O NEGRO E A EUGENIA ............ 23 2 O PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA: UM EMBRANQUECIMENTO HISTORIOGRÁFICO ........................................................................................................... 50 3 PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA E OS “INVENTORES DO BRASIL”: UM EMBRANQUECIMENTO EM PROL DO NACIONALISMO DA DÉCADA DE 1930 ........................................................................................................................................ 102 3.1 Padre José Maurício e a simbologia eugênica: as teorias raciais e o Beethoven negro .................................................................................................................................. 126 4 “BEIJO A MÃO QUE ME CONDENA”: O EMBRANQUECIMENTO ESTRUTURAL DO EUROPEÍSMO CAUCASIANO NA OBRA DE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA ................................................................................................................. 144 4.1 José Maurício e o Word Painting ............................................................................... 160 4.2 Teoria musical racista e a modinha de José Maurício ............................................. 178 4.3 O Réquiem de 1816 e o europeísmo ......................................................................... 180 4.4 A modinha como expressão nacional do século XIX: desmistificando a aura de gênio do padre José Maurício Nunes Garcia ................................................................. 195 4.5 O padre José Maurício e sua simbologia: a brasilidade da Modinha.....................201 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................210 José Maurício e o “defeito da cor”...................................................................................211 A hegemonia do germanismo em José Maurício............................................................213 Conclusão...........................................................................................................................214 REFERÊNCIAS....................................................................................................................219 11 INTRODUÇÃO Com esta tese pretendi investigar, amparado na bibliografia descrita abaixo, se houve um – senão deliberado – aparente embranquecimento da figura do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), por parte da musicologia dos séculos XIX e XX, ou seja, desde os primórdios da produção bibliográfica sobre o compositor, até escritos relativamente recentes. Esse embranquecimento, conforme abordarei a seguir, teria sido respaldado por teorias raciais cientificistas, entre elas o darwinismo social e a antropologia cultural (SCHWARCZ, 20081) – ambas as correntes derivadas de interpretações dos conceitos abordados por Charles Darwin em A origem das espécies (DARWIN, 2013), livro publicado originalmente em 1859. Os objetivos aqui foram mostrar como, por meio de construções de pensamento deterministas, mesmo antes da concepção do termo eugenia e depois embasados nela, autores que se propuseram a esboçar o retrato do padre José Maurício, como Manoel de Arajo Porto- Alegre e o Visconde de Taunay, no século XIX, e, na posteridade, Renato Almeida, Luiz Heitor, Mário de Andrade e Rossini Tavares de Lima, todos, sem ressalvas, o fizeram sob uma perspectiva antropológica e biológica notadamente eugenista, e como essa concepção musicológica e histórica redundou no embranquecimento do padre José Maurício. Desde a descrição de pormenores físicos do padre, como cor da pele, textura do cabelo, ou seja, caracteres da ordem dos fenótipos – aquilo que é visível, segundo Marcelo Hazan (2009) – até o efetivo embranquecimento pictórico, por meio de sua representação como um homem “quase branco” ou, em seu tempo, “mulato” ou “pardo”, todos esses autores procuraram embranquecer a sua figura, seja alcunhando-o eufemisticamente como “moreno escuro” – como Mário de Andrade2 (2006a, p. 122) – ou dotando-o de características físicas nos próprios retratos das obras de Porto-Alegre (1856), e, até recentemente, em Cleofe Person de Mattos (1997). Evidenciando o branqueamento do padre José Maurício perpetrado pela historiografia musical brasileira, desde seus primórdios, aliado com estudos sociais e antropológicos, nesta tese trato especificamente do branqueamento, e da hegemonia do europeísmo em sua obra, através da análise de seus retratos. Houve um esforço de reunir a coleção de todos eles, 1 A data da publicação original desta obra é 1993. A edição usada neste trabalho data de 2008. 2 Esta publicação de Mário de Andrade teve sua primeira edição em 1933. 12 resultando neste trabalho, que é pioneiro no sentido de reunir toda a iconografia conhecida sobre o padre José Maurício, nas páginas seguintes. Procurei investigar como o fato de a historiografia musical brasileira apresentar tantos traços de racismo e branqueamento do padre José Maurício era plenamente condizente com as teorias raciais que tomaram relevo a partir de meados do século XIX. O arcabouço intelectual que serviu de alicerce para a historiografia sobre o padre, segundo esta tese, foi o propagado pela escola do médico e antropólogo Raymundo Nina Rodrigues. A princípio, essa era uma escola cuja atividade era essencialmente intelectual. No entanto, sua teorização e disseminação na sociedade permitiu a seus fundadores uma crescente intervenção sociocultural, que redundaria na mudança gradual do próprio funcionamento das instituições brasileiras e o desdobramento de questões sociais e raciais advindas da cultura escravocrata intensamente arraigada no Brasil. Nas palavras de Mariza Corrêa (2013, p. 13): Esses médicos-cientistas sociais não se limitaram, no entanto, à aplicação da lei, enquanto funcionários, senão que em muitos casos, a começar por Nina Rodrigues, foram responsáveis pela criação ou alteração dela, indo sua atuação, no domínio jurídico, desde questões específicas (como determinações de paternidade) até as de alcance social mais amplo (como a difusão da obrigatoriedade da identificação civil). Eles não se restringiram tampouco a serem membros das instituições já existentes: foram planejadores e criadores de novas instituições e em alguns casos seus primeiros administradores. A lenta transformação social proveniente do ideário concebido por esses teóricos como Nina Rodrigues teria sido responsável pelo embranquecimento – primeiramente intelectual – e posteriormente literal da população brasileira, inclusive com o incentivo à importação da mão de obra europeia. Na literatura, ademais, forjava-se um Brasil ideal, imaginário, onde o vocabulário e os retratos embranquecidos denotam o desejo, cada vez mais premente, de um país que um dia seria plenamente branco (SCHWARCZ, 2008). O impulsionamento da ideologia do embranquecimento, no entanto, não se devia apenas a uma reinterpretação da obra de Darwin – estava assentado em uma crescente negação, por parte da juventude de meados do século XIX, de valores do ruralismo patriarcal da monocultura de cana-de-açúcar, fazendo eclodir nesses meios a busca por ideais advindos de movimentos como o Positivismo. “O espírito crítico dos jovens estava pronto para uma 13 rejeição sistemática do catolicismo, do romantismo e do ecletismo associados à monarquia agrária.” (SKIDMORE, 2012, p. 47)3. A partir desse embasamento teórico, pôde-se principiar a pesquisa por campos positivistas e deterministas que propiciariam fundamentos para a tese do embranquecimento e suas conotações subjetivas – na literatura e na arte. O termo “mulato”, por exemplo, pejorativo referente à “cor de mula”, embora constituísse uma tentativa de dotar o negro de elementos mais próximos do branco, e daí a concepção do próprio termo “mulatismo musical” (REILY, 2013), apresentava-se como um controverso tema de discussão, respaldado na teoria de degeneração mestiça de Nina Rodrigues: Ademais, a ideologia do branqueamento ajustava-se bem a um dos fatos mais óbvios da história social brasileira: a existência de uma vasta ‘casta média’, geralmente chamada ‘mulata’. Essa categoria comportava enormes variações, que iam desde prestigiadas figuras da sociedade, que só podiam ser chamadas de mulatas nos círculos mais íntimos, até criminosos do submundo que se enquadrariam na categoria penal dos ‘degenerados’, proposta por Nina Rodrigues. Por quaisquer características físicas objetivas, seria um contrassenso classificar toda essa categoria como ‘mulata’. No entanto, os brasileiros faziam isso habitualmente, e sua crença na existência dessa categoria constituía uma parte essencial de seu pensamento racial. Em vista da experiência da sociedade multirracial brasileira, a tese do branqueamento proporcionava aos nacionais uma justificativa para o que acreditavam já estar acontecendo. (SKIDMORE, 2012, p. 126). A ideologia do branqueamento e a sistematização de quase toda a parcela negra da população como “mulata”, explicaria, em parte, a representação humana, pictórica e figurada do padre José Maurício como “mestiço”, “pardo” e “mulato” em quase toda a bibliografia a seu respeito, conforme veremos ao longo desta tese. A comparação de seus retratos com os de seu filho, José Maurício Nunes Garcia Jr., no entanto o aproximam mais fenotipicamente do negro do que dos resultados de seu cruzamento – vide capítulo 2. O embranquecimento, além do mais, estava atrelado ao biologismo difundido nos meios científicos a partir do século XIX, e não apenas de movimentos positivistas e similares. A concepção de que haveria vários tipos de civilização – evoluídas e atrasadas, que está no germe do ideário de Nina Rodrigues de “degeneração mulata” – possuía um lastro na análise craniana que identificava seres humanos desenvolvidos ou não. Segundo Eneida Maria Mercadante Sela, a crença arraigada dos cientistas europeus no século XIX era de que “o formato do cérebro e outros sinais faciais podem indicar tendências psíquicas ocultas, e que estas podem ser medidas com resultados indicativos”, e que pensadores como o suíço Johann Kasper Lavater (1741-1801) teriam estabelecido “os nexos entre craniometria, tipologia facial 3 A primeira edição dessa obra data de 1993. 14 e racial – as vigas mestras que constituiriam o racismo científico oitocentista.” (SELA, 2008, p. 79). O escopo intelectual que sustenta a historiografia musical brasileira dos séculos XIX e XX é, por conseguinte, derivado da associação entre as correntes positivistas, deterministas, eugênicas e oriundas das teorias raciais. Mesmo os posteriores escritos sobre o padre José Maurício, de Luiz Heitor (1956) a Vasco Mariz (1981), invadindo o século XXI com Júlio Medaglia (2017) que, embora não seja um musicólogo é um músico brasileiro influente, ainda bebem na fonte das teorias eugênicas, mostrando o quanto a musicologia brasileira permaneceu arraigada nas concepções de seus primórdios, com Porto-Alegre e Taunay. O próprio ideário sociológico e antropológico brasileiro demoraria a se transmudar, após Nina Rodrigues e Silvio Romero, seja no democracismo racial de Gilberto Freyre, ou na crença em um anacronismo cultural ou defasagem negra advinda da escravidão. Para Robert Slenes, os: [...]principais autores interessados na questão (negra) no Brasil rejeitaram tanto a solução ‘africanista’ de Herskovits/Freyre quanto a ‘economicista’ simples de (Arthur) Ramos, preferindo insistir, com (Caio) Prado, na tese de uma deficiência cultural – um ‘deficit negro’, como dizia (Florestan) Fernandes – causada pelo escravismo (SLENES, 2011, p. 44)4. O que fundamenta este trabalho, é, portanto, antes de tudo, a noção histórica de que o embranquecimento ocupou importante papel no transcorrer dos séculos após a morte do padre José Maurício, seja no embranquecimento perpetrado pelo seu próprio filho no retrato de sua autoria, ou na sua representação simbólica na literatura e na arte em geral até o século XXI. Considerá-lo, ainda, sob o prisma de ter um sido um homem negro livre oitocentista, e todas as implicações concernentes a essa especificidade humana. Como argumenta a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto (2018, p. 24), há uma “necessária e urgente ampliação das investigações sobre conflitos entre ‘raças’ vivenciados a partir de identidades raciais instáveis e/ou negadas, elaboradas em espaços sociais da liberdade.”. A sua relação com o rei Dom João VI, príncipe regente do Brasil, que passou à historiografia como cortês e submissa, pôde ser confrontada, aqui, com a análise profunda de suas obras, particularmente a modinha “Beijo a mão que me condena”. Como o próprio nome da peça sugere, as relações de poder e hierarquia na corte mauriciana não parecem ter se estabelecido, prontamente, e unilateralmente, como um fenômeno natural de subserviência 4 Vale ressaltar que essa obra teve sua primeira publicação em 1999. 15 resignada. O que se me afigura, e ao longo desta pesquisa tornou-se mais razoável, foi que a submissão completa do padre José Maurício ao rei esteve atrelada, em algum grau, antes ao resquício inevitável de uma subordinação escravocrata em que as relações autoritárias e desumanas não davam sequer espaço para quaisquer espécies de reivindicações, seja de ordem política, religiosa, social ou cultural. “Afinal, os estreitos vínculos entre escravidão, liberdade, raça, nação e cidadania estabeleceram (e estabelecem) oportunidades distintas para os vários membros dessa sociedade.” (PINTO, 2018, p. 24). Além disso, a reconstrução histórica da imagem do negro oitocentista passaria incólume, por dois séculos de embranquecimento. Apenas com a constante luta por direitos iguais e por equidades de toda a sorte, inclusive no plano cultural, é que pôde se pensar em uma reestruturação imagética e simbólica do negro dos séculos XVIII e XIX. Mesmo por todo o século XX, a antropologia e a sociologia estiveram a cargo de homens brancos falando sobre homens negros, para homens brancos. Por mais que tenham contribuído, efetivamente, para sanar muitos problemas de investigação sobre cultura negra nas ciências sociais, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, e, mais recentemente, Lilia Moritz Schwarcz, e na história social da cultura Sidney Chalhoub, todos partiram de sua perspectiva social branca e universitária privilegiada, ainda que sempre se remetendo ao universo referencial negro. O primeiro e mais importante negro a quebrar o paradigma da história negra contada por brancos foi o ativista e escritor Abdias Nascimento (1914-2011). Talvez seja o pioneiro a se debruçar sobre a questão da negritude tomando o prisma do lugar de fala, tão debatido atualmente, conforme salienta na introdução à sua obra Genocídio do negro brasileiro, de 1978: Não posso e não me interessa transcender a mim mesmo, como habitualmente os cientistas sociais declaram supostamente fazer em relação às suas investigações. Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada. Somente da minha própria experiência e situação no grupo étnico-cultural que pertenço, interagindo no contexto global da sociedade brasileira, é que posso surpreender a realidade que condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a traição, ou a distorção da minha personalidade. (NASCIMENTO, 1978, p. 41). Por conseguinte, a simbologia histórica que contém a obra de Nascimento, além de seu impacto enquanto contribuição socioantropológica, não é pequena. Como ele mesmo pontua acima, sob seu olhar seria mais difícil distorcer os fatos da história e da perspectiva negra dela, pois se o fizesse redundaria em uma autoflagelação, mesmo que subconsciente. 16 Nascimento reescreve, nesta obra, a trajetória do negro brasileiro pela primeira vez sob sua ótica, refutando, inclusive, o até então irrepreensível e dogmático tabu da “democracia racial”, termo proposto por Arthur Ramos e disseminado, principalmente, pela obra de Gilberto Freyre. Devo observar de saída que este assunto de ‘democracia racial’ está dotado, para o oficialismo brasileiro, das características intocáveis de verdadeiro tabu. Estamos tratando com uma questão fechada, terreno proibido sumamente perigoso. Ai daqueles que desafiam as leis deste segredo! Pobre dos temerários que ousarem trazer o tema à atenção ou mesmo à análise científica! Estarão chamando a atenção para uma realidade social que deve permanecer escondida, oculta. (NASCIMENTO, 1978, p. 45). A questão da democracia racial, internacionalmente promulgada pela Casa-grande e senzala de Freyre – que teve a sua primeira edição em 1933 –, mostrava ao mundo um Brasil livre de discriminação e dotado de sentimentos amistosos entre as raças, onde o português colonizador não havia imposto empecilhos ao pleno desenvolvimento dos negros escravizados e libertos, construindo a imagem de um branco dominador misericordioso e benevolente, que possuía uma tara étnica por indígenas e quilombolas (FREYRE, 2019). A ideologia da democracia racial, fortemente associada ao branqueamento, chegou a constituir regra e ordem de Estado, como relata o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em Tristes trópicos5, onde, em determinada passagem, afirma que a polícia em Salvador o havia impedido de fotografar meninos negros, para não passar ao mundo a imagem de um país majoritariamente negro, e não miscigenado (LÉVI-STRAUSS, 1996). Mesmo após o surgimento da corrente de ativistas negros como Abdias do Nascimento, permaneceu a Musicologia brasileira impermeável aos avanços antropológicos, como pode ser percebido ao ler as obras de Bruno Kiefer (1997)6 e Vasco Mariz (1994)7, que por décadas se consolidaram como guias musicológicos para leigos e não leigos de música brasileira, dissertando superficialmente sobre o padre José Maurício e perpetuando estigmas, como o de representá-lo como “mestiço” ou “mulato”, ignorando as discussões da época sobre embranquecimento e representatividade, de que trato melhor no capítulo 2 desta tese. Os estudos contemporâneos sobre o padre José Maurício, com exceção de Hazan (2009), não se valeram de ferramentas antropológicas atuais para elucidar sua biografia ou apresentar hipóteses palatáveis para o seu embranquecimento histórico. Antes tratam de 5 A primeira edição da obra de Lévi-Strauss data de 1955. A edição que usei neste trabalho foi publicada em 1996. 6 Primeira edição em 1976. 7 Primeira edição em 1981. 17 edições, restauros e reedições de suas obras, sempre ou quase sempre visando à análise puramente estética e musical, estrutural e segundo parâmetros da música europeia tradicional de concerto, não entendendo o universo mauriciano como dotado de aspectos que transcendem a mera especulação visual da música – tema desenvolvido por etnomusicólogos como Ikeda (1995). À luz de uma nova antropologia, despontaram intelectuais negros como Kabengele Munanga que, em Rediscutindo a mestiçagem no Brasil trata do embranquecimento, da “democracia racial” e da dificuldade dos movimentos negros brasileiros em discutirem sua origem e sua identidade sem esbarrar em subdivisões raciais regidas por fenótipos, como “mestiço”, “pardo” e o pejorativo “mulato”: A grande explicação para essa dificuldade que os movimentos negros encontram e terão de encontrar talvez por muito tempo não está na sua incapacidade de natureza discursiva, organizacional ou outra. Está sim nos fundamentos da ideologia racial elaborada a partir do fim do século XIX a meados do século XX pela elite brasileira. Essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’ ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos (MUNANGA, 1999, p. 15). O processo alienante a que se refere o antropólogo é a separação entre os que se denominam negros e “pardos”, por exemplo, de ordem muitas vezes subjetiva individual e que pode esconder uma prática eufemística – a questão de suavizar a raça negra com caracterizações como “moreno”, “moreno claro”, “moreno escuro”, “mestiço”, entre outros (DOMINGUES, 2008). Com a divulgação de estudos como os de Krause (2008), que apontavam para o reconhecimento de um deliberado embranquecimento de personalidades históricas como Machado de Assis, a discussão em torno da afrodescendência dos pensadores brasileiros ganhou espaço acadêmico cada vez mais relevante. A pauta da afirmação da negritude e a superação dos eufemismos pôde vir novamente à tona, nos movimentos negros, após Abdias Nascimento, em figuras como Osvaldo de Camargo. Em Negro drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade, o militante negro expõe a tese de que Mário teria sido, efetivamente, um negro representado como “quase branco”. O questionamento ou afirmação ‘Mário de Andrade, um intelectual negro brasileiro’ lembram figuras já históricas – pardas, mulatas ou ‘negras’, ao sabor das circunstâncias ou conveniências – que viveram no final do século XVIII ou nasceram no XIX, cortejo de gente notável, tendo à frente, apontado como caso mais emblemático para a leitura racial, o nosso Machado de Assis, seguido de Paula Brito, Francisco Otaviano, Gonçalves Dias, em citação de apenas alguns personagens ligados às letras. (CAMARGO, 2018, p. 21). 18 Esse período citado por Camargo é justamente o do nascimento e crescimento do padre José Maurício Nunes Garcia. Em uma época em que ser escravizado era tratado como parte normal da configuração histórico-social, as “circunstâncias ou conveniências” findavam por dotar determinado indivíduo com nomes como “pardo”, “mulato”, “negro” ou “preto”, tendo relação mais com a posição social e política do que efetivamente com a porcentagem de melanina na pele. Desta forma, encampo aqui a teoria de que o padre fora embranquecido, ainda no século XIX, devido à necessidade temporal de afirmá-lo como homem “mestiço”, já que sua classe social – a corte – alçando-o ao maior posto musical da Colônia-Metrópole a partir de 1808, quando da vinda da Família Real portuguesa ao Brasil, não poderia aceitar um negro como diretor e mestre de capela (CARDOSO, 2008). A redescoberta e reafirmação de sua negritude passaria séculos olvidada, sendo Rossini Tavares de Lima (1941), o primeiro biógrafo a denominá-lo como negro, ainda que Mário de Andrade o tivesse chamado de “filho de preto”, mas, contraditoriamente, denominando seu pai como “branco” (ANDRADE, 2006a, p. 121). Essa concepção antropológica só tornaria a aparecer na musicologia em 2012, em artigo de Carlos Alberto Figueiredo (2012, p. 1), que reitera ter sido José Maurício “filho de pretos”. A crescente abordagem dos fenômenos sociais brasileiros ao nível dos conflitos raciais, no entanto, tem nos levado a, cada vez mais, procurar a investigação sob o ponto de vista étnico-cultural, sociológico e inserida nas relações de poder, hierarquia e dinâmicas internas que nortearam as circunstâncias específicas da racialização dos processos políticos no Brasil. Conforme explica o diretor-presidente do Instituto Luiz Gama, o filósofo e advogado negro Silvio Almeida, em Racismo estrutural: “Raça não é um termo fixo, estático. Seu sentido está inevitavelmente atrelado às circunstâncias históricas em que é utilizado. Por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal forma que se trata de um conceito relacional e histórico.” (ALMEIDA, 2020, p. 24). Ainda mais premente tem se mostrado, além dessa contextualização do atrelamento entre raça e poder, e a caracterização histórica de indivíduos notadamente negros como “mestiços”, “mulatos” e “pardos”, a ligação quase carnal entre suplício, confinamento, punição e escravidão com o sistema capitalista inerente a eles. Não se deve esquecer que, mesmo após a proibição do tráfico de escravizados para a Grã-Bretanha, no século XIX, passou-se a sistematização do trabalho livre fabril, onde as condições subumanas, os castigos 19 físicos e a precarização dos direitos civis fazia com que a escravidão apenas tivesse acabado na teoria, mudando de nome e angariando todos aqueles provindos das manufaturas e do trabalho escravizado, ou seja, praticamente toda a mão de obra europeia. “A jornada de trabalho variava entre 12, 14 e 15 horas, com trabalho noturno e horários irregulares de refeições, normalmente realizadas no próprio local de trabalho, empestado por fósforo. Nessa manufatura, Dante veria superadas suas fantasias mais cruéis sobre o inferno.” (MARX, 2013, p. 320)8. Desse modo, embora a maioria desses indivíduos empregados nas fábricas da incipiente Revolução Industrial inglesa fosse branca, a constituição de pensamento humano – a mesma herdada da escravidão do africano – tem em seu germe a concepção da exploração e do aviltamento de outrem a serviço de uma suposta lucratividade oriunda do que Marx chamou de capital. Esse capital, que, via de regra, quase sempre aparece aliado a uma herança parental de bens transferidos por testamento, sendo, portanto, inerente às próprias famílias e avesso ao conceito primordial de trabalho – por mais que um indivíduo trabalhe, diuturnamente, durante toda a existência, não garantirá, necessariamente, sua subsistência, provando que a energia dispensada com a produção de trabalho será praticamente inversamente proporcional ao lucro. Dessa forma se explica o fato de que muitos trabalhadores envolvidos no processo fabril, ainda que trabalhassem 15 horas diárias, não teriam gerado capital suficiente para se emancipar dos grilhões do capitalista, produzindo uma interdependência vitalícia e intransponível. Esta perspectiva nos coloca um adicional quanto ao processo embranquecedor: nos parece que as relações de opressor e oprimido, durante toda a história ocidental, desejou conferir a estes elementos de ordem inata, ou seja, que não podem ser escolhidos ou mudados, caracterizando-os com uma distinção física, fenotípica ou, no caso que Marx propõe, com uma submissão eterna a partir de sua privação financeira herdada de seus pais. Alijado do processo histórico – sempre contado do ponto de vista dos brancos ricos – o negro, mesmo alforriado, se vê novamente em déficit, porém uma deficiência fabricada, que é parte intrínseca do sistema opressor-oprimido, que teve na escravidão seu maior exemplo e modelo. A pecha relegada aos negros por caracteres fenotípicos na verdade adveio da simples necessidade de um algoz praticar o seu ato aviltador: ao imputar-lhe o estigma de ser inferior, baseando-se em características inatas, construía uma justificativa, que cabia no contexto 8 A primeira edição de O capital data de 1867. 20 rudimentar da época, para exercer a submissão por meio da espoliação, humilhação e a punição. A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. […] Desde então, o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco; publicidade, portanto, dos debates e da sentença. (FOUCAULT, 1987, p. 6)9. Aqui Foucault toca no ponto essencial do debate: a maneira como é conduzida a punição – a violência silenciada e a ocultação da parte responsável por ela, ou seja, as autoridades – deixa em evidência o condenado, recaindo sobre ele uma marca indelével, permanente, onde não cabe uma manifestação de defesa e amparo perante a lei, já que a sentença está dada antes mesmo do trânsito em julgado. Essa dinâmica acompanha o negro desde a escravidão; alijado do processo histórico brasileiro por quase quatro séculos, fora condenado e capturado, expatriado e deportado sem qualquer julgamento, pelo chamado “defeito visível” (OLIVEIRA, 2008), tendo seus descendentes a obrigação, também, de arcar com a discriminação – assumindo, portanto, o caráter de uma discriminação hereditária. Marcado com o sinal “negativo e unívoco”, como coloca Foucault, o negro vem sendo julgado desde o século XVI no Brasil, por uma condição natural e inata, fenotípica, e que obedece, além disso, à conjuntura do arquétipo opressor- oprimido. O sistema de opressão que nos restringe, como sociedade e cultura, e, no Brasil é resultado direto da escravidão, é condicionado pelo medo inconsciente de liberdade. Ao longo de sua história, a humanidade esteve atrelada à dialética de humanização e desumanização, ora cedendo à carnificina e à barbárie, ora recolhendo-se novamente para a reflexão, dualidade que se constitui um dos principais vetores da ontologia. “Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica” (FREIRE, 2018, p. 40)10. 9 Primeira edição dessa obra data de 1975. 10 A obra citada teve sua primeira edição em 1974. 21 A dialética histórica a que se refere Paulo Freire nortearia, de forma quase peremptória, o passado colonial e escravista brasileiro. Nesse contexto, configurou-se uma trajetória intensa de conflitos raciais, onde o sistema escravocrata assumiu proporções imensas no que concerne à hierarquização não apenas a partir de classes, como também, e, principalmente, baseada em critérios raciais. A obtenção de alforrias também gerava continuamente novos livres, à procura de laços. A inserção social desses homens na sociedade colonial se fez, entretanto, de maneira profundamente marcada por uma hierarquização racial, que separava, até mesmo na prática religiosa, pretos, brancos e pardos. (MATTOS, 2013, p. 41) A alforria, destarte, em lugar de conceder a liberdade, apenas modificou a restrição existencial negra na sociedade – impelido a aceitar um processo histórico do qual não participara, colocava-se à margem novamente, onde a hierarquia era definida de acordo com a porcentagem de melanina epidérmica. Sob esta ótica analisei a vida e obra do padre José Maurício Nunes Garcia. Ao longo de toda a bibliografia a seu respeito, as designações raciais sobre ele tratam mais do contexto histórico e antropológico que as permeiam, do que propriamente da busca de uma “verdade histórica” assentada em fatos e evidências. Sejam os arroubos nacionalistas, naturalistas e românticos de Porto-Alegre, Taunay, Almeida, Heitor e Lima, a sagacidade crítica porém datada de Mário de Andrade, o neorromantismo enciclopédico de Kiefer e Mariz, e mesmo em Cleofe Person de Mattos, a primeira a usar fontes primárias, todos estiveram imbuídos de seu contexto particular – restrito a seu tempo, portanto, anacrônico. Redescobrir o padre José Maurício, utilizando as ferramentas metodológicas da antropologia, sociologia e história social da cultura, inserindo-o no macrocosmo e no microcosmo de sua época, em um Rio de Janeiro ainda incipiente e antiabolicionista, transformado em capital do Império, nos permitiu abordar a sua biografia contada não mais pelos barões e nobres, ou pelos biógrafos e professores brancos, mas pelos excluídos da história – os negros. No capítulo 1 desta tese, O padre José Maurício Nunes Garcia: o negro e a eugenia, discuto aspectos relacionados à história da negritude brasileira, a ascensão e disseminação do termo eugenia por parte da antropologia e medicina no fim do século XIX, e a sua reverberação na historiografia musical brasileira, desde seus primórdios. São comparados trabalhos a respeito do Padre José Maurício, desde o século XIX até a atualidade, com embasamento histórico, social e antropológico consagrado e atual. 22 No capítulo 2, padre José Maurício Nunes Garcia: um embranquecimento historiográfico, analiso como a historiografia musical brasileira evoluiu e se desenvolveu, a partir da primeira publicação conhecida a respeito do padre José Maurício, até as mais recentes publicações e o debate que elas têm gerado. Também houve uma comparação analítica de sua histórica pictórica, a iconografia que esteve intimamente associada aos estudos mauricianos – e a sua irregular, mas constante metodologia pautada no embranquecimento de sua figura. No capítulo 3, Padre José Maurício Nunes Garcia e os “inventores do Brasil”: um embranquecimento em prol do nacionalismo da década de 1930, descrevo como se deu o embranquecimento do padre a partir da década de 1930, no contexto da Era Vargas (1930-45), e do nacionalismo e a necessidade de se elencar personalidades políticas e artísticas que representassem o Brasil, dentro da máxima freyriana de democracia racial – termo do antropólogo Arthur Ramos. No subcapítulo 3.1, Padre José Maurício e a simbologia eugênica: as teorias raciais e o Beethoven negro, dentro da mesma perspectiva nacionalista, são abordadas as teorias raciais impulsionadas pelo eugenismo, e o embranquecimento de figuras históricas, da literatura e da música, como Mário de Andrade e Ludwig Van Beethoven, sempre remetendo e relacionando com o processo embranquecedor sofrido pelo padre José Maurício. No capítulo 4, Beijo a mão que me condena: o embranquecimento estrutural do europeísmo na obra de José Maurício Nunes Garcia, trago, finalmente, a discussão teórica, antropológica, social e histórica da cultura, para a análise das partituras do padre – suas modinhas, especialmente Beijo a mão que me condena, e seu Réquiem de 1816. A seguir, no subcapítulo 4.1, a análise parte do ponto de vista do método Word Painting, em que a música pintava em sons e notas na pauta o significado do texto, prática europeia plenamente difundida desde a Renascença e vastamente utilizada no barroco, apropriada também por José Maurício. No subcapítulo 4.2, Teoria musical racista e a modinha de José Maurício, relaciono e comparo a teoria musical do ponto de vista racial, principalmente na abordagem recente, de Ewell, e suas implicações históricas e para a análise da modinha de José Maurício. No subtítulo 4.3, O Réquiem de 1816 e o europeísmo, analiso o Réquiem de 1816 sob a ótica do europeísmo e do embranquecimento musical estrutural, e em A modinha como expressão nacional do século XIX: desmistificando a aura de gênio do padre José Maurício Nunes Garcia, procuro desmistificar a premissa de genialidade 23 atribuída a José Maurício, embasado na construção histórica e social do gênero modinha e seu desenvolvimento antes coletivo que individual. Por último, apresento as conclusões e resultados provenientes desta tese, apontando para seus possíveis desdobramentos e continuações. 24 1 O PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA: O NEGRO E A EUGENIA José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) é, indiscutivelmente, um dos principais nomes na história da música no Brasil e o mais importante de sua geração. Por isso, textos recentes têm discutido o fato de historiadores do século XIX e XX tentarem, de certo modo, embranquecê-lo, sugerindo uma mestiçagem que, possivelmente, pode não ter ocorrido. Para isso tratarei, primeiramente, de esboçar a contextualização histórica do Rio de Janeiro do século XIX. Essa época, em que transfere-se para o Brasil a família real portuguesa (1808), em resposta ao avanço napoleônico na Europa, constitui fase crucial para o delineamento da então colônia rumo a uma possível nacionalização, e, frequentemente, apontado como fator indispensável para a futura independência brasileira, em 1822. Com a transferência do séquito da corte portuguesa ao Brasil a então imaginada força estrangeira que governava a colônia se desmistificou – vistos como seres humanos, os europeus tiveram que se adaptar à conformidade brasílica, e, naturalmente, forjou-se uma espécie de paridade cultural (HOLANDA, 2003). O período de 1808 a 1822, descrito pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda como “Novo descobrimento” (HOLANDA, 2003, p. 16), devido à invasão estrangeira de franceses, holandeses e, principalmente, alemães das terras brasileiras, eliminaria, paulatinamente, os laços que mantinham a colônia, artificialmente, ligada a Portugal. A ingerência da colônia não levaria, entrementes, a um fator unificador irrestrito. A unificação territorial, discordante da política, seria provocada antes pela própria metrópole, suas características híbridas de colonização e seu desleixo aparente de método, tendências reafirmadas pelo próprio povo brasileiro (HOLANDA, 2016). Em detrimento da expansão lusa, trabalhavam, portanto, os próprios portugueses. Caio Prado Jr. comenta, a respeito da independência das colônias americanas, que: “enquanto nas demais a separação é violenta e se resolve nos campos de batalha, no Brasil é o próprio governo metropolitano quem, premido pelas circunstâncias, embora ocasionais, que faziam da colônia a sede da monarquia, […] quem vai paradoxalmente lançar as bases da autonomia brasileira” (PRADO, 1983, p. 45). Após a vinda da família real, e o chamado “Novo descobrimento”, o que verificou-se, com a proibição do tráfico de escravizados em 1831, com a Lei Eusébio de Queirós – que, devido à consequente baixa no preço de escravizados africanos, decorrente da coibição do tráfico, passou a ser conhecida como a “lei para inglês ver”, em alusão a cada vez mais 25 ostensiva postura inglesa contra a importação de mão de obra escravizada, o que vemos, no entanto, no Rio de Janeiro, é um quadro cada vez menos europeu e mais afrodescendente. A cidade, que se tornaria capital do Império, abrigava, em 1838 – apenas oito anos após a morte de José Maurício – em uma população de 97 mil indivíduos um contingente de 37 mil escravizados, sendo que 75% deles eram de origem africana (SCHWARCZ, 1998). Segundo Lila Schwarcz, esse contexto era composto por uma predominância social e cultural negra, onde as exceções eram os grupos sociais de origem europeia ou derivados dela, e não o contrário: Nesse ambiente, a corte e os paços representavam ilhas com pretensões européias cercadas de mares tropicais, e sobretudo africanos, por todos os lados. Testemunhos de época falam de como as ruas eram tomadas pelos negros — escravos ou não —, que se dedicavam às mais diferentes ocupações e preenchiam os lugares com seus gestos, cores e expressões tão peculiares (SCHWARCZ, 1998, p. 15) Fora nesse meio que nascera e se educara, a muito custo, o padre José Maurício Nunes Garcia – meio majoritariamente negro, constituído, principalmente, por escravizados. Neto de escravizadas, tanto do lado materno como paterno, tornara-se órfão de pai, o tenente Apolinário Nunes Garcia, em 1773, aos seis anos de idade (CARDOSO, 2008). Seu pai era natural da Ilha do Governador, que pertencia ao bispado do Rio de Janeiro, e a mãe, Vitória Maria da Cruz, nascera em Minas Gerais, nas imediações de Cachoeira do Campo, bispado de Minas Gerais – de acordo com o processo de genere (necessário para a obtenção do sacerdócio) consultado pela pesquisadora Cleofe Person de Mattos (MATTOS, 1997). Seria iniciado à música pelo mestre Salvador José de Almeida e Faria, alcunhado de “o pardo” (MATTOS, 1997, p. 31). Mineiro como a mãe de José Maurício, para Cleofe Person de Mattos foi devido a Salvador José a influência extraordinária de uma espécie de “mineiridade” (relativo às Minas Gerais) na obra do padre, especialmente em sua primeira fase, mais setecentista (MATTOS, 1997). Em 1791 se ordenaria padre, aos 24 anos de idade, mais por amor à música do que à batina, embora Mattos pontue que José Maurício sempre tivera forte inclinação religiosa – além do que a Igreja poderia tornar-se, à época, para um negro, um fator importante para a mobilidade social (MATTOS, 1997). No processo de genere estaria apontada, ainda, a principal condição – tácita ou não – para sua ordenação sacerdotal: seus pais serem considerados, ambos, “pardos forros”, ou seja, mestiços alforriados. 26 Se era vedado ao negro qualquer reconhecimento como gente, ao então chamado “mulato”, termo atualmente politicamente incorreto, e ao “pardo” – dois de seus desdobramentos – faziam-se, devido à sua parcela branca, algumas exceções. Obras ou textos como os de Hofbauer (2006), Uma história de branqueamento ou o negro em questão, mostram as diferentes acepções que os termos “negro” e “preto” possuem na história cultural e social do Brasil; como essas questões semânticas, de significado e de significante, foram transmudando ao longo dos anos; e como o branqueamento estrutural, às vezes velado e às vezes nítido, foi se tornando cada vez mais presente na sociedade. O texto de Krause (2008) faz uma reflexão sobre o fato de Machado de Assis ser um dos principais símbolos da literatura brasileira e não ser considerado negro, verificando-se, inclusive, através da sua representação pictórica, que aparece com traços bastante embranquecidos. A partir dessas premissas, tenho conduzido uma pesquisa sobre José Maurício Nunes Garcia desde 2017, que já resultou em seis artigos publicados sobre o assunto e esta tese de doutorado. Procurei mostrar como a hegemonia do europeísmo no mundo ocidental levou afrodescendentes como José Maurício a se refugiarem em estilos que absolutamente não têm nada de africano ou brasileiro. Em seguida inicio mais especificamente a discussão sobre o deliberado clareamento do padre, a exemplo do que houve com Machado de Assis, Antônio Carlos Gomes, Mário de Andrade. Ulteriormente aprofundei as discussões sobre o compositor com o interesse de identificar como ocorreu o processo recôndito, ou às vezes realmente exposto, de seu embranquecimento por parte de importantes escritores de musicologia brasileira, buscando relacionar os escritos da historiografia sobre o compositor, com as correntes da etnomusicologia, ou antropologia da música, do século XX. O passo seguinte foi tratar de argumentar como a questão do nacionalismo artístico esteve atrelada ao embranquecimento estrutural e mesmo a tentativa de torná-lo efetivo e literal, como ressalta Schwarcz (2008). Nesta tese, primeiramente analiso como se deu a tentativa de branqueamento da população brasileira, principalmente a partir das teorias raciais de meados do século XIX até a metade do século XX. Tais teorias apoiavam-se em um cientificismo determinista, como o darwinismo social, a antropologia cultural e o próprio naturalismo literário do final do século XIX. Esse embasamento teórico propiciou o branqueamento prático, ou seja, as teorias 27 começaram a ser usadas, especialmente após a Abolição da Escravidão no Brasil, em 1888, para branquear a população de forma sistemática. Uma dessas formas foi o incentivo à imigração europeia para o Brasil, a partir do final do século XIX – muitos fazendeiros preferiram não pagar salários aos seus escravizados alforriados, escolhendo a mão de obra importada ao invés de contratar como assalariados aqueles que já sabiam fazer o trabalho. O arcabouço teórico das teorias raciais foi reforçado pela adesão de estudiosos brasileiros, cuja visão era pautada pelo conceito de eugenia – “genética melhorada”, ou “genética dos bem-nascidos”. Conceitos como ‘competição’, ‘seleção do mais forte’, ‘evolução’ e ‘hereditariedade’ passavam a ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento: na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre as cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor (1877); na lingüística, com Franz Bopp e sua procura das raízes comuns da linguagem (1867); na pedagogia, com os estudos do desenvolvimento infantil; na literatura naturalista, com a introdução de personagens e enredos condicionados pelas máximas deterministas da época, para não falar da sociologia evolutiva de Spencer e da história determinista de Buckle (SCHWARCZ, 2008, p.56). As teorias das doutrinas raciais eclodiram em meados do século XIX, inspiradas no geólogo e biólogo britânico Charles Darwin (1809-1882) e sua obra capital, A origem das espécies, editada pela primeira vez em 1859. Defendendo a seleção natural, segundo a qual dentro de cada espécie há uma contenda constante para sobreviver, e que sobreviveriam os mais adaptados ao meio, e que a adaptação ao meio dependeria do conjunto de características herdadas, o que incluiria a parte não visível – os genótipos. Levado ao pé da letra, esse conceito conduziria à constituição da teoria da eugenia, cunhado pelo antropólogo britânico Francis Galton (1822-1911), em 1883. Anterior ao próprio termo “genética”, significa, literalmente, “bem-nascido”, e tentava justificar a prevalência e “supremacia” de certos indivíduos sobre outros – no campo humano (BURKE, 2012). A crença de que o fenótipo humano conduziria, necessariamente, a reprodutores “bem-sucedidos” das espécies redundou no darwinismo social, ou teoria das raças, em que a miscigenação era condenada e buscava-se um ideal de “raça pura” (SCHWARCZ, 2008). Essas teorias raciais foram endossadas por parcelas das elites culturais, intelectuais e financeiras do Brasil que almejavam uma determinada aproximação com a Europa (SCHWARCZ, 2008). A primeira grande figura brasileira a adotar traços da eugenia foi o médico, antropólogo e etnólogo Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906). Considerado o primeiro estudioso da cultura negra brasileira, sua propagação eugênica assentava-se nas teorias raciais, o que acabou redundando em um posterior estigma de sua obra como racista. 28 Em sua obra Os africanos no Brasil, publicação póstuma de 1932 – escrito de 1890 a 1905 – por exemplo, afirma que poderiam existir autoridades e personalidades negras, porém que elas seriam exceções à regra. Procura assentar seus argumentos no cientificismo da época: “O critério científico da inferioridade da Raça Negra […] não é […] mais que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões ou seções.” (RODRIGUES, 2010, p. 12)1. O revisionismo da obra de Nina Rodrigues coube ao sociólogo Gilberto Freyre (1900- 1987), por meio de Casa-grande e senzala, de 1933. No entanto, mesmo se contrapondo, em alguns momentos, ao médico higienista, prevalece na obra o uso sistemático do termo eugenia, a relativização da escravidão e dos conflitos étnicos, e a concepção do mito da “democracia racial” (FREYRE, 2016). Apesar de ser um termo concebido pelo antropólogo Artur Ramos (1903-1949), entretanto Ramos foi o autor que instituiu um novo paradigma de designação das lutas raciais, o primeiro a se opor, efetivamente, à consagrada visão determinista da época de divisão entre povos “civilizados” e “bárbaros” (RAMOS, 1979)2. Segundo essa teoria, não havia conflitos étnicos no Brasil, negros, índios e brancos, porque todos viveriam em plena harmonia, e a mistura seria a prova de que os colonizadores portugueses não teriam preconceito quanto à etnia: haveria uma “[…] tendência genuinamente portuguesa e brasileira, que foi sempre no sentido de favorecer o mais possível a ascensão social do negro.” (FREYRE, 2016, p. 503). Apesar de seu grande empenho em produzir o primeiro grande estudo sistemático sobre a cultura negra brasileira, Freyre acabou incorrendo em algumas imprecisões antropológicas, fruto da concepção determinista inspirada no darwinismo social. As teorias raciais do século XIX, entrementes, deixaram sequelas inestimáveis na produção intelectual brasileira. Em quase todo o espectro político, teórico e cultural que abrange o século do romantismo e do naturalismo científico há menções, diretas ou implícitas, à perspectiva do darwinismo social. Na historiografia musical brasileira vemos, desde seu despontar, exemplos abundantes dessa interpretação cientificista do mundo. Amparada pela ciência da época, que imputava ao negro uma inferioridade intelectual e genética, a eugenia, que serviu de base às teorias nazistas levadas a cabo por Adolf Hitler (1889-1945) que geraram o Holocausto Judeu, foi adotada no Brasil por Raymundo Nina Rodrigues, e na literatura por Silvio Romero (1851-1914) e Monteiro Lobato (1882-1948). 1 Primeira edição da obra citada é de 1932. 2 Primeira edição em 1937. 29 Lobato, especialmente em seu romance O presidente negro, com o subtítulo O choque das raças, cuja primeira edição foi publicada em 1926, procura reconstruir o universo brasileiro sob a ótica eugênica. Para isso se vale de uma metáfora, ao construir o enredo, que se passa em um país também das Américas, nos Estados Unidos da América, onde, em um imaginário futuro, haveria a eleição de um presidente negro – praticamente prevendo a eleição do democrata negro Barack Obama, em 2009. Para tanto Lobato estrutura uma personagem, Miss Jane, que simboliza a “pureza” racial. Loura de olhos azuis, esbelta, cândida e inteligente, seria o arquétipo consagrado da “raça superior”, onde todos os elementos se combinariam para constituir o ideal de pureza e candura. Assim a descreve: “Seus olhos azuis verdadeiramente bebiam algum maravilhoso quadro […]. – Papai – exclamou ela –, estou no fim da tragédia, no crepúsculo da raça.” (LOBATO, 2019, p. 53). O crepúsculo, o entardecer da raça, seria o momento em que se consubstanciariam as características genéticas de todas as raças, e o ideal racial que Miss Jane encerra estaria, aos poucos, findando, dando lugar a uma verdadeira democracia racial. Lobato preconiza, ainda, as supostas virtudes da raça branca europeia, associando beleza nórdica caucasiana com inteligência: “Não era um verdadeiro sábio – interveio Miss Jane. – Os verdadeiros sábios são como meu pai, claros e fecundos como a luz do sol” (LOBATO, 2019, p. 53). Lobato parece ansiar criar uma cizânia racial, já descrita no subtítulo. Ao longo do texto há alusões pejorativas às outras raças que não a branca, culminando em uma alardeada e discriminatória concepção utópica racial: “o idealismo dos (norte) americanos não é o idealismo latino que recebemos com o sangue. Possuem-no de forma específica, próprio e de implantação impossível em povos não dotados do mesmo caráter racial. Possuem o idealismo orgânico” (LOBATO, 2019, p. 79). Sua obra anterior, Negrinha, de 1920, inicia da seguinte forma: “Negrinha era uma pobre órfã de 7 anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados” (LOBATO, 2008, p. 19). Ao construir uma personagem negra, no diminutivo, e conferir-lhe traços mestiços (“mulatinha escura”), parecia buscar a glorificação do biótipo misturado, mais próximo do branco, em detrimento do afrodescendente. A eleição de determinados arquétipos esteve presente na literatura brasileira em especial a partir do indianismo, em que remontava-se a uma figura idealizada do índio como “verdadeiro” protótipo nacional. Essa mesma dinâmica passa a nortear a literatura naturalista, a partir do romance O mulato, de Aluísio Azevedo, de 1880, considerado o marco do realismo-naturalismo no Brasil. O arquétipo nacional do índio, então, é substituído pelo do “mulato”, o biótipo preferido dos escritores até a fase do 30 regionalismo nacionalista da década de 1930, passando, inclusive, por Macnnaíma, de Mário de Andrade, de 1928, que nasce negro e embranquece depois de banhar-se numa fonte (ANDRADE, 1993). Segundo a socióloga Verônica Daflon, “os arquétipos do “malandro mestiço” e da “mulata” são referências para o éthos nacional e alçados a condição de representações da brasilidade” (DAFLON, 2018, p. 122). Essa perspectiva só seria rompida, efetivamente, por intelectuais como Florestan Fernandes (1920-1995), que se contrapuseram à teoria eugênica. Em A integração do negro na sociedade de classes, publicado originalmente em 1964, principia desta forma sua abordagem da sociedade de classes brasileiras: […] as transformações histórico-sociais, que alteraram a estrutura e o funcionamento da sociedade, quase não afetaram a ordenação das relações raciais, herdadas do antigo regime. Ela se perpetuou com suas principais características obsoletas, mantendo o negro e o mulato numa situação social desalentadora, iníquia e desumana. (FERNANDES, 2008, p. 7). Em O negro no mundo dos brancos, cuja primeira publicação foi em 1972 (FERNANDES, 2007), desmistificou o conceito generalista de Freyre de democracia racial, situando-o dentro do contexto histórico que elevou o estado como nação, na década de 1930. A ulterior promulgação do Estado Novo (1937-1945), e a eleição de símbolos nacionalistas nos diversos campos do conhecimento contribuíram para a disseminação de conceitos como a democracia racial. A ideologia racial, tanto a darwinista social do século XIX como a nacionalista do século XX foi refutada, ainda, por publicações como a de Abdias Nascimento (2016)3, Schwarcz, Botelho (2011) e Kabengele Munanga (2019)4. Seguindo as teorias raciais, a musicologia tratou de disseminar, também, dogmas étnicos racistas. Desde Manoel de Araujo Porto-Alegre (1806-1879), Visconde de Taunay (1843-1899), Renato Almeida (1895-1981), Mário de Andrade (1893-1945), Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992), Rossini Tavares de Lima (1915-1987), Bruno Kiefer (1923- 1987) e Vasco Mariz (1921-2017), todos, sem exceção, estudaram a biografia do padre José Maurício Nunes Garcia sob uma ótica senão romântica naturalista, determinista, anacrônica e, de certa forma, consideravelmente racista. Claro que devem ser levadas em conta a contextualização histórica e social da época, bem como a transformação do pensamento após a queda do Estado Novo, em 1945, e do Regime Militar, em 1985. 3 Primeira edição dessa obra de Abdias Nascimento data de 1978. 4 Essa obra teve sua primeira edição em 2004. 31 O primeiro a escrever sobre o padre José Maurício Nunes Garcia, o aristocrata, historiador, pintor e escritor romântico Manoel de Araujo Porto-Alegre (1806-1879). Nascido em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, em 1816 mudara com a família para Porto Alegre, iniciando-se na pintura com o francês François Thér. Em seguida viajara para ser discípulo de Antoine-Jean Gros e François Debret, em Paris, onde, também, publicaria a Revista Niterói, em 1836, juntamente com o poeta Gonçalves de Magalhães (1811-1882). Essa revista é, frequentemente, apontada como uma das possíveis origens do romantismo brasileiro – para onde Porto Alegre escreveu o artigo considerado a primeira publicação sobre o padre José Maurício (PORTO-ALEGRE, 1836). Estudara, ainda, em Roma, e em 1837, de volta ao Brasil, tornara-se o primeiro caricaturista nacional. Nobre com trânsito intenso na corte, organizou a coroação de D. Pedro II, em 1840, e em 1859 seria nomeado Cônsul do Brasil em Berlim, depois em Dresden, na Alemanha, continuando a escrever, copiosamente, até o fim da vida. Foi condecorado Barão de Santo Ângelo em 1874, falecendo em 1879, em Portugal5. Porto-Alegre seria o responsável por alcunhar o padre José Maurício de “Mozart Fluminense”: “Como se poderá hoje executar a miserere, a Missa de Santa Cecília, essa producção immortal do Fluminence Mozart?” (PORTO-ALEGRE, 1836, p. 180). Ao atribuir a José Maurício semelhante apelido, Porto-Alegre parece traçar não apenas uma equiparação sua com o compositor austríaco, todavia sugere uma negação de sua afrodescendência ao imputar-lhe uma completa transformação – simbólica – metonímica. Essa transformação consiste no fato de um detalhe de sua personalidade – compor à maneira do Classicismo Vienense – ser tomada como a totalidade de sua existência e obra, bem como constituição cultural e humana. Esse tipo de abordagem permeará toda a historiografia, conforme veremos a seguir, e denota um alinhamento da incipiente pesquisa em música com as teorias científicas raciais que germinariam em meados do século XIX. A partir da nomeação dada a José Maurício, por Porto-Alegre, de “Mozart Fluminense”, as diretrizes historiográficas pareciam estar realmente comprometidas com um efetivo embranquecimento do compositor. Em um artigo posterior, ao descrever o padre, comenta que: “[…] as dimensões e saliencias osseas do seu todo, mostravam que havia sido de uma forte constituição. Tinha nos labios, na fórma do nariz, e na saliencia dos pomolos os caracteres da raça mixta”. (PORTO-ALEGRE, 1856, p. 7) 5 Informações disponíveis no artigo Sobre Manuel de Araújo. Disponível em: https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-manuel-de-araujo-porto-alegre/. Acesso em: 20 mar. 2021. 32 Ao afirmar, categoricamente, que José Maurício possuía traços mestiços, Porto-Alegre incorre em uma suposição sem fundamento –conforme já apresentei anteriormente, seus pais eram ambos “pardos forros”, informação descrita no processo de genere (MATTOS, 1997, p. 17). O fato de estarem caracterizados como “pardos” não necessariamente implica em construir um retrato de José Maurício como “mestiço”. Mesmo levando em conta que alguém pudesse ter os fenótipos mais correspondente aos dos avós, do que ao dos pais, mesmo que “pardo” seja “mestiço”, se os pais de José Maurício eram “pardos”, isso não impediria que ele próprio fosse negro. A questão aqui levantada é que, como para Ivo e Guedes (2020, p. 97), ser “pardo” no Brasil no século XVIII era um atributo que “[…] significava um acidente de cor que podia ser superado. “Pardo”, que não era um vocábulo que remetia tanto à escravidão como preto e negro, não era pejorativo como mulato”. A finalidade de um desejo de logo consumar sua representação de “mulato” ou “pardo” parece atender, antes, à uma demanda sócio-política de embranquecer as celebridades negras. Lilia Schwarcz argumenta como, historicamente, houve e ainda há no Brasil uma dificuldade em ver o negro em papéis de destaque e liderança, protagonismo e ocupação de lugares sempre designados aos brancos (SCHWARCZ, 2013). Florestan Fernandes descreve, ainda, o percurso espinhoso que o negro teve que percorrer para sobreviver, e como muitas vezes era tratado ao conseguir alcançar um posto ou façanha destinados apenas aos brancos, quando ajudados por eles: “Aproveitando bem a parca ‘proteção’ recebida, algumas vezes chegava aonde ninguém esperava vê-lo. A surpresa dos ‘protetores’ transparecia, então, nas avaliações com que recebiam os fatos: [...] ‘nem parece negro’, [...] ‘preto de alma branca’ etc.” (FERNANDES, 2008, p. 194). O padre José Maurício fora alçado, quando da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, em 1808, ao posto de mestre de capela e compositor da recém criada Real Capela. Mesmo com franca oposição de grande parte da corte portuguesa, que viam nele “[…] dois graves defeitos: era brasileiro e não era branco de pele.” (MATTOS, 1997, p. 67). Dessarte, mesmo Cleofe Person de Mattos, que deixou um trabalho de grande valor histórico e documental em sua biografia do compositor-padre, redundaria em generalizações idealizadas e afirmações pouco científicas. Ao adotar, por exemplo, o termo “criaturas de cor escura” (MATTOS, 1997, p. 17) ao referir-se às duas avós do compositor, incide em um equívoco estrutural de cunho racista – segundo Oliveira (2020), a conceituação de “cor” e 33 “raça” nasceu de uma atribuição pejorativa que povos europeus deram a povos colonizados, como os da África e da América. Ao denominá-los de “povos de cor” ou “homens de cor”, deixaram saliente a intenção de separações fundamentais entre os incluídos no eurocentrismo e os excluídos. O artigo de Marcelo Hazan, de 2009, Raça, nação e José Maurício Nunes Garcia viria a elucidar o problema étnico-racial, atuando entre a antropologia e a música, no qual discute, com profundidade, a questão do racismo e sua relação com a difusão histórica do padre José Maurício Nunes Garcia. Digno de nota, ainda, é o trabalho do norte-americano Marc Hertzman sobre o samba, no qual ele dedicou algumas páginas ao Padre José Maurício Nunes Garcia, discutindo, inclusive, o conceito do darwinismo social do século XIX e a suposta vantagem genética do branco sobre o negro, que posteriormente se mostrou de um cientificismo racista (HERTZMAN, 2013). Essas incipientes biografias sobre José Maurício resvalavam, quase unanimemente, na divisão entre “civilização” e “barbárie” mencionada acima. Ainda no século XIX, escreveu sobre o padre José Maurício, Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay (1843-1899), o primeiro (e único) Visconde de Taunay – nobre, músico, engenheiro militar, sociólogo e historiador brasileiro. Nascido e morto no Rio de Janeiro, tinha ascendência francesa, descendendo de uma longa sucessão de barões e aristocratas, e era pai de Afonso d´Escragnolle Taunay (1876- 1958), também escritor, ensaísta, historiador e lexicógrafo. Ajudando a fundar a Academia Brasileira de Letras, o Visconde de Taunay lutaria na Guerra do Paraguai (1864-1870), sendo, a partir de 1872, eleito e reeleito deputado pela província de Goiás (TAUNAY; NEMO, 2020). Em 1876 assumiria o cargo de presidente da província de Santa Catarina, e dois anos mais tarde abandonaria por dois anos a vida política, indo estudar na Europa, retornando para ser novamente deputado (1881) e presidente da província do Paraná (1885), e, finalmente, senador por Santa Catarina em 1886, à escolha de D. Pedro II, que lhe daria o título de visconde de Taunay em 1889. Neste ano, com a proclamação da República, retira-se definitivamente da vida pública (TAUNAY; NEMO, 2020). O Visconde de Taunay produziria a mais extensa e completa biografia de José Maurício até aquele momento, e que, por muito tempo, foi a fonte quase única para pesquisadores e musicólogos se aprofundarem em sua vida e obra. Sua bibliografia é 34 composta por três obras fundamentais: um pequeno esboceto biográfico, de 1897, que também compôs a introdução à edição do Réquiem, para solistas, coro e orquestra, do mesmo ano (TAUNAY, 1897), e duas biografias sobre o padre José Maurício (TAUNAY, 1930a; 1930b). Ao final dessa pequena primeira biografia Taunay descortina, em um longo parágrafo, a concepção de que a “verdadeira” e “genuína” música seria a germânica. Ao dividir a obra do Padre em duas fases – Cleofe Person de Mattos a dividiu em três – Taunay descreve a primeira, mais extensa, como de “máxima valia e pureza, oriundo da genuína fonte germânica.” (TAUNAY, 1897, p. 3). Essa forma de classificar a música alemã como “pura”, de “genuína fonte”, entre outros adjetivos ao longo do texto, denota a separação promovida pelas teorias raciais, presente, por exemplo, no texto de Silvio Romero. De um lado estaria a arte germânica, sem empecilhos culturais de miscigenação, de outro as manifestações culturais dos povos bárbaros, hereges – impuras, repletas de supostas anomalias e deformidades que a mistura racial, segundo essas teorias, supostamente provocaria. De fato verifica-se que o negro brasileiro só pôde sobreviver em cultura de sincretismo, emprestando da cultura branca o idioma, as expressões artísticas, os costumes, modos, vestimentas e toda sorte de simbologia cultural afrodescendente passou a ser relegada a um plano inferior. De acordo com o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997)6: […] a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em razão de sua total desafricanização. (RIBEIRO, 2015, p. 166). No entanto muitos musicólogos que trataram de José Maurício na época da consolidação e disseminação de teorias como a eugênica findaram por perpetuar – aparentemente sem intenções claras de fazê-lo – o estigma do branqueamento. Ao descrever o padre, o Visconde de Taunay desenha o seguinte quadro: Era José Mauricio de estatura bastante elevada, physionomia expresiva, intelligente, olhar penetrante, mas em extremo bondoso, côr amulatada para o claro, um tanto arroxeada na commissura dos labios, maçãs do rosto salientes, testa larga, com accentuado lobinho do lado direito, nos ultimos annos de vida. (TAUNAY, 1897, p. 3). 6 A primeira edição do livro citado é de 1995. 35 Percebe-se a tendência para salientar, sem evidências, que tinha “cor amulatada para o claro”. É com esses matizes enviesados de branqueamento que notamos a presença maior de elementos fenotípicos dos brancos em muitos dos retratos consagrados que visam a representar José Maurício, muitas vezes com os sinais afro-descendentes “suavizados”, como pele, nariz afilado e cabelos lisos. Luiz Heitor Corrêa Azevedo (1905-1992), outro expoente a escrever sobre José Maurício, musicólogo carioca, ajudou a criar a Revista Brasileira de Música, em 1934, da qual foi editor até 1942. Fundou diversas instituições musicais, como Centro de Pesquisas Folclóricas e a Associação Brasileira de Música e, em 1947, aceitou o cargo de chefe da Seção de Música da Unesco, em Paris, lá permanecendo até 1965.7 Em Música e músicos do Brasil (1950), utiliza, entre relatos pormenorizados e análises de obras musicais de José Maurício, a utilização do termo “obscuro” (HEITOR, 1950, p. 109), para designar o Rio de Janeiro colonial, que seria então ermo de incentivos culturais, segundo o autor. A narrativa é conduzida ao ponto em que ele afirma: “Para bem compreendermos o que representa de esforços, de clara e admirável energia essa instrução dada a um menino pobre e de côr, precisamos lançar os olhos sôbre o meio em que vivem nossos personagens.” (HEITOR, 1950, p. 110). Nessa acepção Heitor corrobora, ainda que inconscientemente, que seriam precisos “esforços de clara e admirável energia” para que houvesse a ascensão de “um menino pobre e de cor”. Com o objetivo de tornar seu discurso humanista, o autor acaba redundando em um racismo estrutural – como se esforços e energia estivessem apenas atrelados, e intimamente, à clareza. Mais à frente esse preconceito se transforma em discriminação propriamente dita, quando Heitor comenta que “José Mauricio, no sec. XVIII e em princípios do passado, era exigente e precioso na combinação dos timbres como um compositor hipercivilizado de nossos dias”. (HEITOR, 1950, p. 132) Ou seja, para ele José Maurício, mesmo tendo sido visivelmente clareado pela musicologia, ainda seria considerado “não civilizado” – criando, artificialmente, dois campos onde estariam os civilizados e os não civilizados. Provavelmente no campo dos civilizados estariam os europeus, de preferência germânicos, no outro todos os brasileiros nascidos de mãe e pai não “eugenicamente” comprovados como europeizados. Galton havia elaborado a teoria eugênica argumentando que seria proveitoso para a humanidade a experiência 7 Como podemos verificar no verbete de Luiz Heitor, no site da Academia Brasileira de música. Disponível em: http://www.abmusica.org.br/academico/%E2%80%8Bluiz-heitor/. Acesso em: 18 fev. 2021. http://www.abmusica.org.br/academico/%E2%80%8Bluiz-heitor/ 36 realmente empírica de juntar o que supunha “genes superiores”, ou seja, o padrão europeu de genética – até então tomado como símbolo de vigor e potência: “Entre outras coisas Galton desenvolveu estudos em bioestatística, geografia, antropometria e eugenia, nos quais valorizava as evidências quantitativas. Este cientista considerava que as características físicas, mentais e morais eram herdadas.” (MARTINS et al, 2007, p. 445). Essa crença arraigada primeiramente na teoria evoluiu para o estabelecimento do branqueamento na prática – principalmente nos Estados Unidos da América e Alemanha, esta onde surgiria o Nazismo na década de 1930 (RAZZO, 2017). A tese da eugenia incentivaria uma deliberada eliminação de bebês que nasciam doentes, precedendo o próprio Holocausto Judeu, além de práticas como eutanásia a doentes terminais. A seleção eugênica dita “positiva” procurava unir casais com suposta genética “viçosa”, enquanto a “negativa” atuava de modo a proibir a imigração de povos considerados com eugenia “inferior” (SCHWARCZ, 2008). A partir do final do século XIX, intelectuais cercados de conceitos desfavoráveis sobre as raças e apoiados em pretensas visões científicas, pronunciaram diagnósticos completamente negativos sobre o Brasil. Vários exemplos como os de Arthur Gobineau8 que afirmavam que o país era composto por gente feia e degenerada. (PENNA, 2008, p. 54) Paralelamente desenvolveu-se uma iconografia onde imagens de um Brasil “mestiço” apareciam clareadas, com real intuito de embranquecer as figuras representadas. A ideia de um Brasil de devaneio, onde a mestiçagem daria lugar, gradualmente, a uma branquitude completa, foi forjada nos livros e exultada pelos estrangeiros (SCHWARCZ, 2008, p. 12-3). Esse processo de branqueamento viria embasado, além da influência exercida por Gobineau e Galton, pela própria ciência brasileira da época: “Ao restrito e intuito primitivo do perito, forrava agora uma transcendente questão de higiene social. E numa e noutra face o problema deixava ao médico a sua inteira liberdade de ação.” (RODRIGUES, 2010). Em Casa-grande e senzala, Freyre traçou um novo panorama antropológico do negro brasileiro, tentando revisitar Nina Rodrigues e fazendo-lhe um contraponto. No entanto, acabou redundando, igualmente, em uma conceituação eugênica de suposto cientificismo de melhoramento genético – a palavra eugenia é vastamente utilizada no texto, e não há nenhum 8 Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), filósofo e diplomata francês, foi um dos teóricos a elaborar o racialismo científico no século XIX. 37 intuito do autor em refutá-la. Freyre não deixa de incorrer em generalizações como: “O negro, o tipo do extrovertido. O tipo do homem fácil, plástico, adaptável.” (FREYRE, 2016, p. 371). Ao colocar o negro como necessariamente “fácil e adaptável” Freyre finda por menosprezar a subjugação humilhante a que o negro foi conduzido – claro que nessas condições ele teria que ter se adaptado à cultura dominante, do contrário seria ainda mais aviltado e conspurcado até a morte. Isso não significa que o negro é, por si só, adaptável e plástico, mas que foi levado a sê-lo por pura sobrevivência. Freyre muitas vezes refere-se a culturas superiores e inferiores, denotando um preconceito de viés ideológico concernente à época – época ainda longe do politicamente correto, onde os termos “mulato”, “negro” e “escravo” praticamente coincidiam, dada a recente Abolição da Escravidão. Certas afirmações de Freyre realmente defendendo a eugenia e crendo, piamente, nesse processo genético, nos incute dúvidas quanto ao seu distanciamento imparcial científico, como no exemplo: “O intercurso sexual de brancos dos melhores estoques – inclusive eclesiásticos, sem dúvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugênicos na formação brasileira – com escravas negras foi formidável.” (FREYRE 2016, p. 531). Eu gostaria de saber qual ou quais os métodos empregados para determinar quem seriam os brancos “de melhores estoques”? E ao tentar suavizar o racismo na frase seguinte, acaba culminando na reafirmação da eugenia como ciência genética a serviço de um branqueamento histórico, social, cultural e humano. Esse aparato da pretensa democracia racial serviu para a própria UNESCO considerar o Brasil como exemplo de miscigenação pacífica. (SCHWARCZ; BOTELHO, 2011). O suposto sincretismo onde as raças convivem harmoniosamente e sem conflitos de nenhuma espécie – e a mistura é alardeada e incentivada como “formidável” – nas palavras de Freyre, pode ser traduzida, entrementes, como um secreto e até por vezes explícito intuito de embranquecimento populacional. Ao promover a miscigenação, estariam os eugenistas propensos a empregar a ciência então em voga de que o cruzamento entre raças propiciaria um embranquecimento gradual natural. A teoria eugênica teve em Abdias Nascimento, ativista negro, um de seus maiores opositores. Em O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, se contrapõe a Nina Rodrigues e Gilberto Freyre – este até hoje homenageado como um dos “inventores do Brasil moderno”. Ao desmistificar a chamada democracia racial, Nascimento argumenta: 38 […] à base de especulações intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas ciências históricas, erigiu-se no Brasil o conceito da democracia racial; segundo esta, […] pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas. (NASCIMENTO, 2016, p. 26). Ao pretender diluir o impacto das tensões raciais, o movimento da democracia racial, amparado por intelectuais do escopo de Gilberto Freyre e Artur Ramos, tornou incólumes praticamente cinco séculos de genocídio negro no Brasil. Ao reescrever a história sob sua ótica, esses autores brancos procuravam imprimir autenticidade científica ao branqueamento perpetrado na sociedade brasileira, considerando a mistura étnica uma espécie de “bem necessário”. A despeito de fundar uma terra de fantasia, povoada por um biótipo pleno de fusão cultural, fusão perfeita de três raças, Freyre alijou a expressão individual de cada uma delas e seu desenvolvimento social – estando sob uma democracia racial, não havia necessidade de mobilidade ou transformação na sociedade. Nas palavras de Abdias Nascimento, essa tendência freyriana tornou-se conhecida como lusotropicalismo: A teoria lusotropicalista de Freyre, partindo da suposição de que a história registrava uma definitiva incapacidade dos seres humanos em erigir civilizações importantes nos trópicos (os “selvagens” da África, os índios do Brasil seriam documentos viventes desse fato), afirma que os portugueses obtiveram êxito em criar, não só uma altamente avançada civilização, mas de fato um paraíso racial nas terras por eles colonizadas, tanto na África como na América. (NASCIMENTO, 2016, p. 29). A conceituação equivocada de Freyre no quesito de hierarquizar civilizações, adjetivando-as como inferiores ou superiores – conceitos relativos e dignos de discussão – acaba por relegar a toda a sua obra a pecha de racista estrutural, ainda que tenha contribuído nos estudos da cultura negra como ninguém antes. Ao tentar igualar as raças em um ideário nacionalista, ajudou a perpetuar o estigma racista – ao neutralizar conflitos étnicos, pode ter incutido, durante décadas, a falsa crença intelectual de democracia racial. Florestan Fernandes argumentaria, a respeito da disseminada, internacionalmente, neutralidade racial brasileira: […] se os brasileiros conhecem um clima de tolerância racial, praticando um código de decoro nas relações que entram em contato como ‘brancos’, ‘mestiços’ e ‘negros’, não seria melhor que esse fato tivesse importância em si mesmo, independentemente de qualquer fantasia a respeito de uma igualdade racial que não poderia existir numa sociedade recém-egressa da escravidão e na qual a concentração da riqueza, do poder e do prestígio social abre um fosso intransponível mesmo nas relações de diferentes segmentos da ‘população branca’? (FERNANDES, 2007, p. 39). 39 Portanto o que o sociólogo conclui é que a aura de mestiçagem ideal colocada e difundida por Freyre no Brasil e no exterior, seria antes da ordem de uma construção ideal com vistas a apagar o conflito racial que, no entanto, é sentido em todo o território nacional como algo concreto e não apenas uma conjetura do campo do pensamento. Portanto, nada como dar voz a indivíduos que nasceram e cresceram como negros no Brasil. Sobre esse aspecto, é curioso notar que até praticamente a década de 1970 tudo o que se havia escrito sobre antropologia e sociologia negra no país era obra de brancos. Desde Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e, mais recentemente, Lilia Schwarcz, para citar apenas as referências deste trabalho, são ou foram todos brancos. Dessa forma, mais uma vez o negro é posto em uma circunstância onde ele só tem validade enquanto um branco determinar, escrever, dissertar a respeito dele. É onde surge, após Abdias Nascimento, uma nova corrente de autores negros, como Kabengele Munanga (1940–) professor de antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Ele denota encontrar dificuldades na articulação dos movimentos negros justamente pelo legado da “[…] ideologia racial elaborada a partir do fim do século XIX a meados do século XX pela elite brasileira. Essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’ ao dividir negros e mestiços.” (MUNANGA, 2019, p. 18). Uma das vertentes das ideologias raciais em música foi o chamado “mulatismo musical”. O “mulatismo musical” parece ter criado adeptos, como Francisco Curt Lange (1903-1997), que viam nele o aflorar da “verdadeira” brasilidade em música, onde os elementos negros domesticados seriam finalmente moldados pelas estruturas europeias (LEONI, 2010). Essa visão, no entanto, ulteriormente se mostrou um tanto datada e preconceituosa – a ideia de raça como fator essencial de identidade cultural sendo derrubada por estudos relativamente recentes, que argumentam que as características culturais por vezes são muito mais dependentes do contexto em que estão inseridas e sua gama de variáveis, as relações entre os grupos humanos e o modo como a cultura é produzida. A raça e o seu principal corolário, o racismo, são construtos estruturados e estruturantes do desnível social entre grupos de diferentes troncos ancestrais, trajetórias históricas e origens geográficas. Construções raciais são, basicamente, o produto da significação de um ou mais caracteres fisiológicos socialmente selecionados (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), caracteres cuja diversidade é palpável porém trivial, em termos genéticos e taxonômicos, diante da vastidão e da complexidade da variação biológica humana. Concepções de identidade e diferença racial são, em outras palavras, historicamente datadas e culturalmente específicas. O estudo comparativo dessas concepções através do tempo e do espaço – sincrônica e diacronicamente, na cultura e entre culturas- 40 constitui uma forma direta e eficaz de equivocar a certeza da raça como essência, de iluminar sua variabilidade e sua mutabilidade, de descortinar seu caráter contingente e contextual. (HAZAN, 2009, p. 23-4). Dessa forma, há de se levar em conta a concepção de época, concernente com a escravidão, de que a raça negra seria inferior e, portanto, precisaria se fundir à branca para, na mestiçagem, formar o biótipo brasileiro por excelência que, por sua vez, produziria a arte nacional. A ideia de que o então chamado “mulato”, por pura genética, seria a solução para uma vanguarda artística estava baseada em um movimento romântico, similar ao movimento indianista da literatura brasileira, mas que, no entanto, não impediu o padre José Maurício de sofrer as agruras de uma vida dificultada pela sua pele. Assim coloca essa questão o Visconde de Taunay, ao dissertar, em documento da época, a respeito da suposta rivalidade entre o padre e o compositor português Marcos Portugal: Apezar de todo o prestigio, que os repetidos triumphos da Europa asseguravam a Marcos Portugal e das suas regalias de portuguez e homem de sangue limpo, como então se dizia, a intuição musical de D. João VI fazia-o inclinar-se de continuo para José Mauricio. (TAUNAY, 1897, p. 2). Ou seja, mesmo que fosse um exímio artista e, aparentemente, como sugere o autor, preferido do rei português, maculava-lhe a pele a sina de ser considerado “mulato” ou “pardo”, o que poderia não ser visto com bons olhos, mesmo apesar da batina de José Maurício – pesava-lhe a ascendência. E apesar dela, e não devido a ela – como queriam os ufanistas defensores do chamado “mulatismo musical” – ele sobreviveu na Real Capela, pelo menos por algumas décadas antes de sua morte, gozando de relativo prestígio. Assim endossa Porto- Alegre: Para se avaliar o poderio e a força do talento de José Mauricio, basta dizer que el-rei o chamava o novo Marcos, antes que este celebre compositor tivesse chegado ao Brasil; e, que a despeito de sua côr mixtiça, era tolerado na côrte, n´essa côrte onde o auto de nascimento formava o maior merecimento do homem, dava direito a todas as sympathias, e onde o ser Brazileiro, e mormente mulato, bastava para alienar de si todos os favores, e mesmo muitos direitos. (PORTO-ALEGRE, 1856, p. 359). Excluídos os possíveis arroubos romanescos cabíveis ao tempo, ambos Taunay e Porto-Alegre contradizem a perspectiva posterior, promulgada, principalmente, por Gilberto Freyre, de que o português colonizador não possuía preconceitos de cor ao negro e “mestiço”, devido à sua origem de p