MELINA GARCIA GORJON OS VENTOS DO NORTE NÃO MOVEM MOINHOS: arte contemporânea e feminismos descoloniais/decoloniais ASSIS 2018 MELINA GARCIA GORJON OS VENTOS DO NORTE NÃO MOVEM MOINHOS: arte contemporânea e feminismos descoloniais/decoloniais Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Assis, para a obtenção do título de Mestra em Psicologia. (Área de conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador(a): Dolores Cristina Gomes Galindo Bolsita: CNPQ ASSIS 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp G669v Gorjon, Melina Garcia Os Ventos do norte não movem moinhos: arte contempo- rânea e feminismos descoloniais/decoloniais / Melina Garcia Gorjon. Assis, 2018. 148 f. : il. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Drª Dolores Cristina Gomes Galindo 1. Feminismo. 2. Subjetividade. 3. Arte - séc. XXI. 4. Des- colonização. 5. Feminismo e arte. I. Título. CDD 301.412 709.04 AGRADECIMENTOS Agradeço ao CNPq pelo financiamento, o qual foi imprescindível para a realização desta pesquisa. Em tempos de desmonte da universidade pública no Brasil é preciso afirmar a importância das agências de fomento que investem nas(os) futuras(os) pesquisadoras(os) do Brasil. Agradeço ao curso de Psicologia da Unesp-Assis e todas e todos os professores. Aos colegas de pós-graduação. Á Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade. Ás funcionárias e funcionários da pós-graduação, em especial agradeço ao Marcos por ajudar a resolver as “burocracias”. À Biblioteca e todas(os) as(os) funcionárias(os). Á minha orientadora por ter aceitado orientar meu projeto. Aos amigos e amigas queridos que me inspiram a cada encontro, Carol, Dani e Clarck! Ao “fio”, esse companheiro felino que sem querer me desperta o riso. À Ângela Donini e Fernando Teixeira Filho, que fizeram parte da minha banca para exame de qualificação (e da defesa) dando sugestões e ideias preciosas, além do incentivo e força que me deram em produzir uma escrita com mais “corpo”. Ao Leonardo Lemos e Rafael Guimarães por aceitarem fazer parte da banca como suplentes. Á meu pai e irmãos. Ás pessoas que me ensinam sobre coragem, paciência e persistência. Vocês transformam a minha realidade crua e opaca em uma realidade vibrante. Relações que são raiz forte aferrolhada no solo, pois foram mutuamente nutridas com respeito e amor: Bruno Pereira, Gabriela Emery e Mariana Cataldi. Ao meu companheiro Tomás, agradeço o seu cuidado e amor que me guiam todos os dias a ser uma pessoa melhor. E por fim agradeço a pessoa mais importante, minha mãe, Maria José, por ter me remendado e costurado sempre que eu retornava estilhaçada. Aprendi com suas palavras e gestos míudos (e mudos) a ter calma! Guardo em meus átomos as palavras e gestos delicados e aconchegantes. Sou grata pela sua dedicação na fé em mim, o que me faz aos poucos crer e poder. GORJON, Melina Garcia. Os ventos do norte não movem moinhos: arte contemporânea e feminismos descoloniais/decoloniais. 2018. 148 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. RESUMO Junto às leituras do feminismo decolonial, incorporo uma parte do meu processo artístico ao texto, além das obras de algumas artistas intercessoras. Busco com a obra de arte evidenciar aspectos críticos às configurações de colonialidade. Para tanto, entendo que, como pontua Nochlin (2016, p.23),"a arte não é a atividade livre e autônoma de um indivíduo dotado de qualidades", a arte e o artista são construídos dentro de um contexto social e todos os elementos que os circundam passam e são mediados por estruturas sociais. A colonialidade são os ecos do poder instituído durante a colonização, se diferindo de colonialismo que é o tempo histórico, político e econômico. A colonialidade atua nos processos de subjetivação, nas relações entre os sujeitos, na constituição e difusão do conhecimento e pensamento, isso quer dizer que essas estruturas são generificadas, racializadas e nortistas. O objetivo geral dessa pesquisa foi empreender a discussão dos efeitos da colonialidade de gênero por meio das autoras, Silvia Cusicanqui, Maria Lugones, Ochy Curiel, entre outras, conjugando tais produções à processos artísticos que também pensam as questões de opressão de gênero, raça e cultura ao mesmo tempo produzem resistência por meio da radicalidade própria da imagem, do próprio corpo como instrumento crítico de expressão de si e do mundo. Consoante com Yuderkys Spinosa, a qual traz uma definição que cabe aqui, o feminismo decolonial é antes de tudo uma aposta epistêmica pois, faz uma crítica ao feminismo que se pretende universal e uno, não levando em conta as assimetrias e diferenças marcadas pelas categorias de cultura, raça, classe, opção sexual e cisgeneridade. É importante ressaltar que o feminismo decolonial não é uno, existe uma pluralidade de autoras/ativistas com similaridades e distâncias. Eu, enquanto mulher branca, dentro do que elabora Maria Lugones (2008) a respeito da colonialidade de gênero, tenho tudo para ser instrumento de reprodução da dominação colonial elaborada pelo sujeito colonial, criando um feminismo universal e generalizante que não leva em conta as assimetrias de mulheres trans., negras e indígenas. Por ter a pretensão em atuar como psicóloga e seguir pesquisando em psicologia acredito que preciso produzir questionamentos no que tange a colonialidade, afinal a psicologia é uma ciência e enquanto tal está emaranhada nos jogos de opressão alimentados pela colonialidade de saber, poder e ser. Palavras-chave: Feminismo. Subjetividade. Arte - séc. XXI. Des-colonização. Feminismo e arte. GORJON, Melina Garcia. The northern winds don’t move mills: contemporary art and decolonial / descolonial feminisms. 2018. 148 f. Dissertation (Academic Master in Psychology) – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis ABSTRACT Along with the readings of decolonial feminism, I incorporate a part of my artistic process into the text, in addition to the works of some intercessory artists. I seek with the artwork to evidence critical aspects to the configurations of coloniality. For that end, I understand that, as Nochlin (2016, p.23) points out, "art is not the free and autonomous activity of an individual endowed with qualities", art and the artist are built within a social context and all elements that surround them pass and are mediated by social structures. Coloniality is the echoes of power instituted during colonization, differing from colonialism, which is historical time, political, and economic. Coloniality acts in the processes of subjectivation, in the relations between the subjects, in the constitution and diffusion of knowledge and thought; this means that these structures are generalized, racialized and northerly. The general objective of this research was to discuss the effects of the coloniality of gender through the authors, Silvia Cusicanqui, Maria Lugones, Ochy Curiel, among others, combining such productions with artistic processes that also think about the oppression of gender, race and culture at the same time produce resistance through the radicalness of the image itself, of the body itself as a critical instrument of expression of self and of the world. According to Yuderkys Spinosa, which brings a definition that fits here, decolonial feminism is above all an epistemic bet because it makes a critique of feminism that is universal and one, not taking into account the asymmetries and differences marked by the categories of culture, race, class, sexual choice and cisgenerity. It is important to note that decolonial feminism is not one, there are a plurality of authors / activists with similarities and distances. I, as a white woman, in what Maria Lugones (2008) elaborates on the coloniality of gender, I have everything to be an instrument of reproduction of colonial domination elaborated by the colonial subject, creating a universal and generalizing feminism that does not take into account asymmetries of trans, black and indigenous women. Because I have the pretension to act as a psychologist and continue researching in psychology, I believe that I need to raise questions about coloniality, after all, psychology is a science and as such is entangled in the games of oppression fueled by the coloniality of knowledge, power and being Keywords: Feminism. Subjectivity. Art – century XXI. De-colonization. Feminism and art. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Fotografia “Coluna Estilhaçada”, por Melina Gorjon, 2018 ................................. 16 Figura 2 - Fotografia “Sem título”, por Melina Gorjon, Brodowski-SP, 2015 ............................................................................................... 20 Figura 3 - Fotografia “Pregadores, substantivo masculino”, por Melina Gorjon, 2017 ........................................................................................ 22 Figura 4 - Fotografia “Natureza da vida”, por Fernanda Magalhães, Londrina-PR, 2011 ........................................................ 22 Figura 5 - Fotografia “Am I cured doctor?”, por Cindy Sherman, 2017 ................................. 23 Figura 6 - Fotografia “E se a arte fosse travesti?”, autorretrato por Rosa Luz, 2016 ............................................................................ 29 Figura 7 - “corpo-colônia”, performance de Jota Mombaça e Patrícia Tobias, 2013 ......................................................................................... 31 Figura 8 - Impressão sob tecido e costura, “Amor pela ciência”, por Rosana Paulino, 2016 ....................................................................................... 35 Figura 9 - Técnica mista sobre papel, “Pagina do livro história natural?”, por Rosana Paulino, 2016 ...................................................................................... 37 Figura 10 - Imagem transferida sobre papel e colagem, “Classificar é saber?”, por Rosana Paulino, 2016 ................................................ 42 Figura 11 - Registro da proposição “Caminhando”, por Lygia Clarck, 1963 ......................................................................................... 45 Figura 12 - Fotografia “Figo pregado na árvore”, por Melina Gorjon, 2018 ...................................................................................... 49 Figura 13 - Fotografia, impressão de alvejante de tintura de prata (Cibachrome). “Tree of Life”, por Ana Mendieta, 1976 .............................................................. 51 Figura 14 - Fotografia “E se meu corpo fosse folha?”, por Melina Gorjon, 2018 .................. 55 Figura 15 - Fotografia “ A ceia”, por Melina Gorjon, dezembro de 2017 ............................. 57 Figura 16 - Performance “Ñáñigo Burrial”, por Ana Mendieta, 1976 .................................... 59 Figura 17 - Facial Hair Transplants, por Ana Mendieta, 1972 ............................................... 60 Figura 18 - Guacar (nuestra menstruación), por Ana Mendieta, 1983 .................................. 62 Figura 19 - Fotografia “Sangue-seiva”, por Melina Gorjon, 2018 .......................................... 64 Figura 20 - Fotografia “Terra, folha e sangue”, por Melina Gorjon, 2018 ............................. 64 Figura 21 - Fotografia “A prece”, Série Queimadas, por Melina Gorjon, 2010 ..................... 66 Figura 22 - Registro de performance, “La intencíon”, por Regina J. Galindo, Itália, 2016 ....................................................................... 69 Figura 23 - Fotografia, Série “Queimadas”, por Melina Gorjon, 2017 ................................... 70 Figura 24 - Fotografia, Série “Queimadas”, por Melina Gorjon, 2017 ................................... 70 Figura 25 - Fotografia “Pintura de guerra”, por Melina Gorjon, 2017 .................................... 73 Figura 26 - Fotografia “(de)composição com vegetal”, por Melina Gorjon, 2017 ..................................................................................... 73 Figura 27 - Fotografia “(a)colhida”, por Melina Gorjon, 2018 .............................................. 77 Figura 28 - Fotografia “devorar pra ser o novo”, por Melina Gorjon, 2018 ........................... 80 Figura 29 - Registro de performance, “Raíces”, por Regina José Galindo, Itália, 2015................................................................... 83 Figura 30 - Registro de performance, “La Devolución del Penacho de Vucub Caquix”, por Sandra Monterroso, 2014 ................................. 86 Figura 31 - Fotografia “Meu sangue corre para o sul”, por Melina Gorjon, 2018 .................. 87 Figura 32 - Fotografia “Sangue e figos”, por Melina Gorjon, 2018 ........................................ 89 Figura 33 - Fotografia “Figo em sangue e cinzas”, por Melina Gorjon, 2018 ........................ 90 Figura 34 - Registro de performance, “Frio”, por Berna Reale, 2018 ..................................... 94 Figura 35 - Fotografia "América do Sul em cinza e sangue", por Melina Gorjon, 2018 ........ 96 Figura 36 - Registro de performance, “A Ferida colonial ainda doí”, por Jota Mombaça, Veneza-Itália, 2015 ............................................................. 100 Figura 37 - Registro de performance, “A Ferida colonial ainda doí”, por Jota Mombaça, Veneza-Itália, 2015 ............................................................. 100 Figura 38 - Registro de performance, “La sangre del cedro”, por Regina, EUA, 2017 ....... 102 Figura 39 - Registro de grafiti, Mujeres Creando, data desconhecida .................................. 104 Figura 40 - Registro de bordado 50x60 cm, “Por Participação”, por Oficina nacional de Arpilleras, 2014............................................................ 106 Figura 41 - Performance “Merci Beaucoup, Blanco”, por Michele Matiuzzi, Suécia, 2013 ................................................................... 107 Figura 42 - Registro de performance, “Dibujo Intercontinental”, por Susana Pilar Delahante, Veneza- Itália, 2017 .............................................. 111 Figura 43 - Performance “Illusions”, por Grada Kilomba, 2016........................................... 112 Figura 44 - Registro da escultura, "Mikay", por Arissana Pataxó, 2009 ............................... 115 Figura 45 - Registro de instalação, “Coluna Vertebral Roja”, por Sandra Monterroso, 2016 ............................................................................. 118 Figura 46 - Registro de grafiti, Mujeres Creando, autora(autor) desconhecida(o), data desconhecida ............................................. 119 Figura 47 - Registro de performance, “Piedra”, por Regina José Galindo, Brasil, 2013 ............................................................... 121 Figura 48 - Registro da exposição do Mujeres Creando, no “Museo Reina Sofia”, Madrid, 2010 .............................................................. 125 Figura 49 - Autorretrato, por Sandra Monterroso, 2014 ....................................................... 127 Figura 50 - Registro de grafiti, Mujeres Creando, autora(autor) desconhecida(o), data desconhecida ............................................. 129 Figura 51 - Registro de grafiti, Mujeres Creando, autora(autor) desconhecida(o), data desconhecida ............................................. 132 SUMÁRIO PERTURBAÇÕES ou apresentação ..................................................................................... 12 1 “Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos” ....................................................... 17 1.1 Caminhos Labirínticos: objetivos e modos de pesquisa. .................................................... 17 1.2 Invocar a arte, encarnar feminismos ................................................................................... 24 1.3 Latifúndios científicos e as ocupações artísticas ................................................................ 34 1.4 As conexões entre psicologia, arte e feminismo decolonial ............................................... 43 2 “Rompi tratados, trai os ritos” ........................................................................................... 49 2.1 A terra seca a ferida ............................................................................................................ 50 2.2 Queimadas .......................................................................................................................... 65 2.3 Monoculturas identitárias ................................................................................................... 72 3 “Meu sangue latino, minha alma cativa” .......................................................................... 87 3.1 Os Feminismos Descoloniais/Decoloniais ......................................................................... 92 3.2 Sempre no plural ................................................................................................................. 96 3.3 Gênero e Raça: Inclusão, não! Intersecção ....................................................................... 106 3.4 A colonialidade dentro da decolonialidade. ..................................................................... 121 Costuras (ou uma possível “conclusão”) ............................................................................ 134 REFERÊNCIAS....................................................................................................................141 12 PERTURBAÇÕES ou apresentação Peço licença para que minha escrita seja poesia fluindo, música, metáfora, imagens vivas e memórias afetivas. Aos que me perguntam/perguntarem pelo inteligível das palavras, eu respondo: experimente degustar as palavras em seus sons, potências e multidões de sentidos. Não lhes darei respostas, mas suas perguntas podem achar um aconchego nos capítulos que seguem e, se elas persistirem, peço que deixem que as perguntas ressoem em suas vértebras, pulso e coração, lhes impelindo a criar novos sentidos. Respeito a tradição, não a tradição fantasiada pelo homem que preserva efeitos tristes e morais em nossos corpos. Respeitar a tradição enquanto um ato de transferência, um ato de comunhão cósmica. É a tradição do meu coração pulsando na imensidão do mar, é a tradição de força das gigantes raízes acinzentadas que saltam do mangue. É rolar na terra, pra curar as feridas, é entrar no mar pra purificar o corpo, é abrir o peito feito uma folha que acolhe o orvalho delicado. É manter o pé no chão, mas saber conversar com as estrelas. Tal experiência estética viva nos conecta com o mundo e é desse estado que falo neste texto, um texto-manifesto. Vou parindo a proposta que vai além do que se ajustou entre os homens, do que é arte e quem pode fazê-la. Ser artista é um processo vital, é como o ato de respirar, nos sustenta, nos desloca, nos revigora, nos faz caminhar, pulsar o sangue e nos acopla à vida. Chamei de perturbações minha apresentação, pois falo do que aconteceu durante o meu processo de escrita, constantemente interferida e perturbada pela vida. Segui fluxos e contrafluxos na minha vida-pesquisa. Despi-me, vim descalça, experimentei o peso dos meus pés na terra, aprendi a caminhar nos terrenos mais difíceis, uns machucaram, outros acariciaram. Fui seduzida pela terra que seca feridas. Percebi que a psicologia, a arte, o feminismo, as culturas e a experiência colonial são peças coladas, as quais formam um vitral que me faz olhar o mundo de outro modo. Por quais motivos escrevo? Esse foi o assombro na minha pesquisa. A assombração perturbava, exigia um rearranjo constante na minha resposta. Cheguei a tantas respostas, algumas foram enterradas no meu peito, outras voaram e repousaram em climas novos. Acredito que os motivos são células mutantes, sempre variam conforme o nível de amplitude com o qual meu corpo se abre para o mundo. Resisto a forças de separação e isolamento que a pesquisa, às vezes, exige. Insisto que essa escrita é o meu próprio corpo, é feita de sangue, asfalto, seiva e terra, a partir das imagens que me perturbam. Escrevo fazendo mergulhos, buscando sempre o que e quem me interceda, 13 me agarre, roube e destrua esse espírito fraco em mim que quer descolar da realidade. Esse processo de escrita veio roer minhas certezas, conectou-me com o aqui e o agora povoado por passados. É preciso assombrar a academia, obrigando-a a ser cautelosa e desver seus alicerces. Não escrevo sobre a racionalidade, no sentido da “consciência”, ou faço análise do que está oculto em teóricas e artistas que trago comigo. Escrevo sobre as costuras na superfície da minha pele, pois essas teóricas e artistas são como uma agulha, que fura a minha carne, costura algo ali, fecha algum machucado aqui e deixa-me imune a certas doenças identitárias. Eu sabia que estava construindo uma costura perigosa, colagens e mais colagens. Eu sabia que a minha escrita era disparada não pela certeza do que querem escutar ou ler, minha escrita vinha de um enjoo, provocado pelo parir da criação. Queria um texto que escorresse das páginas, inundando o corpo do meu(minha) leitor(a). Preocupava-me a densidade do meu texto, se ele teria peso suficiente para se ligar com a realidade, tinha medo de que as flutuações dessem um ar superficial, banal ou aparentasse falta de rigor com a minha produção. Aprendi que, muitas vezes, os textos e livros caiam no meu colo, assim, de repente, alguma leitura de uma disciplina, ou uma recomendação de amigos, uma poesia, uma imagem, um cheiro disparava a escrita. Outras vezes, sentia calafrios e buscava incessantemente textos e mais textos até entrar em ressonância com as minhas células. Meu caminho sempre foi esse, costurar na superfície, com rigor e força, com consistência, esse foi o meu caminho para criar um texto que ousasse e criasse vida, tocando quem o lesse. Escolhi falar da arte enquanto campo epistemológico em diálogo com a psicologia e a teoria decolonial/descolonial; são três campos que se misturam ao longo do meu texto. Trouxe uma música que faz parte dessa pesquisa, Sangue Latino, com cada frase da música dizendo respeito a um capítulo. O primeiro capítulo, “Minha vida, meu mortos, meus caminhos tortos”, apresenta esta pesquisa, meus objetivos e desejos com essa escrita; ele dá o tom de como esta pesquisa será regida. Nele, trago como aliei psicologia, arte e colonialidade, como conectei arte, feminismo e decolonialidade e por que pesquisar isso é importante a essas questões. No segundo capítulo, “Rompi tratados traí os ritos”, trago a questão da cultura como estruturante nas questões feministas e coloniais e, para isso, entro em uma discussão da caça às bruxas nas Américas e, por fim, chego até o que vou chamar de “monoculturas identitárias”, metáfora com a qual desenho o caminho dos machismos e racismos, como uma arquitetura complexa que envolve não só a sociedade, a cultura, economia, mas a terra e o modo como nos relacionamos com a natureza. No terceiro capítulo, “Meu sangue latino minha alma cativa”, chego à ruptura empreendida pela teoria descolonial/decolonial e convido autoras que traçam a questão de 14 gênero dentro desse processo. E, no último capítulo, chamado “Costuras ou uma possível conclusão”, conto sobre os efeitos desta pesquisa em mim e no meu redor. A maioria das(os) minhas(meus) interlocutoras(es) são mulheres, latino-americanas. Foi uma escolha política, pois conheço e reconheço o trabalho de muito autores da arte contemporânea, em especifico da performance, mas optei por dialogar junto à Diana Taylor, Jota Mombaça, Grada Kilomba, Madina Tlostanova e Linda Nochlin. Leio e estudo os autores decoloniais, como Grosfoguel, Boa Ventura, Quijano, reconhecendo suas contribuições para um pensamento descolonial, mas reconheço os limites e elegi as minhas interlocutoras principais Lugones, Cusicanqui e Curiel, por fazerem belíssimas inflexões de gênero nas discussões decoloniais. Também trago Stengers, filósofa da ciência, por ter um estudo rico sobre paradigma científico com o seu “slow Science”, um novo modo de produzir ciência, trazendo o conhecimento “não científico” como um saber válido, o que vem a somar com a noção de descolonização do saber. Glória Anzaldúa toma de assalto o que tenho pensado a respeito da cultura, da escrita e das identidades, criando um terreno forte e rigoroso para que eu possa pisar. Além disso, Glória é uma inspiração no modo como cria sua escrita. Trago também Silvia Federici, em específico quando essa fala da caça às bruxas na época colonial, mostrando como o mito da “bruxa” nas colônias serviu para marginalizar saberes e modos de existência. Outra autora que aparece é Anna Tsing, por toda a genialidade em analisar a opressão das mulheres a partir de como plantamos, nos alimentamos e estabelecemos nossa relação com a terra e a natureza. O título da dissertação trata-se de um verso da música “Sangue Latino”, escrita por João Ricardo e Paulinho Mendonça. A música foi lançada no álbum de 1973, do Secos e Molhados, interpretada por Ney Matogrosso. As artistas presentes nesta dissertação são aquelas que, por algum motivo ou outro, me inspiram e atuam como intercessoras na minha pesquisa em psicologia. Elas também atuam como uma espécie de educadoras decoloniais das artes visuais, me ensinando a descolonizar meu olhar e minhas preferências estéticas, afinal, minha linguagem nas artes visuais ainda está em construção. Dentre as artistas estão: Ana Mendieta, Arissana Pataxó, Berna Reale, Cindy Sherman, Fernanda Magalhães, Grada Kilomba, Jota Mombaça, Lygia Clarck, Michele Matiuzzi, Regina José Galindo, Rosa Luz, Rosana Paulino, Sandra Monterosso e Susana Pilar Delahante Matienzo. É importante pontuar a política de escrita que adoto neste texto: 1) optei por uma escrita na qual as imagens cortem o texto e sejam, elas mesmas, produtoras do sentido, produtoras de memórias, sensações, sentimentos, incômodos. O texto não é feito para elas, elas não são feitas para o texto, nessa política de escrita que concebo, texto e imagem coabitam, criando um novo 15 tipo de forma de se comunicar; 2) a escolha de mulheres, artistas e teóricas, como intercessoras desta pesquisa, não é por acaso, faço isso como uma provocação a mim mesma, a quem lê e a quem pesquisa de que faça o exercício de buscar outras referências que não só as do sujeito universal homem; 3) sempre poderia caber mais uma autora aqui, uma artista ali, a leitura de um livro lá, tal conceito, mas acredito que nada é total, nada pode contemplar tudo, nada é universal. Narro, nesta pesquisa, uma pequena parte de um mundo possível, dentre tantos outros possíveis, o qual não pude trazer aqui, mas que com certeza busco conectar em minhas leituras e em minha vontade de sempre estar em movimento. Quem escreve esse texto? O que sustenta esta escrita? Eu escrevo de mãos dadas com a dor1, pois não quero esquecê-la, enganá-la ou dilui-la. Pois a dor encrustou nos meus ossos. A dor é o sinal, meu corpo gritando limites. Movimentos repetidos. Histórias ressentidas. Assuntos mal resolvidos. Elípticos problemas. A dor vem, puxa minha espinha brutalmente, eu volto atrás e me reorganizo, tento de outro modo, busco outra postura, outro jeito. E, assim, eu aprendo e me comunico pelos poros, com os cheiros, com os toques, e não apenas com a fala. Escrevo colada à dor pra não me ressentir e criar nós e cascas duras e impenetráveis. A dor não me alicerça, me baliza. Ela não me define, apenas sugere. A dor física da coluna torta que cresce feito tronco de árvore que se retorce em busca do sol. Nervos comprimidos, contidos, sonham em se expandir, soltar, proliferar. A dor, muitas vezes, me amedronta e me enfraquece, sinto-me frágil. Aos poucos, perco a autonomia. Sinto raiva do mundo. Sinto raiva de mim. Essa dor não é a causa, mas ela aciona todos as inseguranças, da falta de sentido aos medos. Por isso eu escrevo: para emaranhar-me no mundo a tal ponto que as vozes múltiplas incensem minhas veias, ruborizando minha pele, inundando meu ser de vida e faça da dor apenas um pedaço minúsculo do meu ser. Escrevo junto com a dor, mas escrevo rasgando a minha pele, tatuo o meu corpo em busca de criar a mim mesma, em um processo no qual me elevo a um grau de êxtase e euforia. Desenho, escrevo e pinto meu corpo com tinta, memórias e futuros possíveis, como quem 1 Relutei em colocar essa pequena apresentação contando sobre quem escreve esta pesquisa e como escreve, pois foi uma escrita de dor, e não é uma metáfora, a dor é física e mental. Contudo, julgo importante colocar as condições nas quais pesquisamos. “Esteonose do canal vertebral no nível L4/L5 às custas de protusão discal posterior central do mesmo”, me disse o médico com muita surpresa. Aos 27 anos vivo a experiência de um corpo doente e com dor. Como disse o médico, era para o meu corpo estar no auge de sua potência e ele apresenta sinais de desgaste. São por esses limites que meu corpo me impõe que criar se torna algo involuntário e VITAL. 16 produz uma obra de arte com o próprio corpo. As agulhas furam a minha pele deixando os rastros do tornar-se regente de minha própria vida. Ao som da máquina que vibra, do cheiro de álcool, plástico, sangue e tinta, eu me refaço e renasço, sou outra versão de mim mesma, sempre mais forte e mais viva. Tatuo a criação e invenção de outras imagens e significados possíveis que eu mesma dou para mim. Figura 1 - Fotografia, “Coluna estilhaçada”, por Melina Gorjon, 2018 Fonte: A autora (2018). 17 1 “Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos” Despir-me de mim Vaidosa, Carente Prepotente, orgulhosa Invejosa Preconceituosa Sou feita dos avessos Minha pele-espelho Reflete meu maior inimigo: O olhar fixo pro meu próprio umbigo Escrevo, escorre o sangue, gozo. Choro, tempestade dança, demando. Esvazio-me de mim, Necessito recomeços!2 Neste capítulo, pretendo mostrar um pouco sobre os meus percursos de pesquisa, rastros da minha vida. É este capítulo que dará o tom da minha dissertação, responsável por apresentar meus interesses e as questões que me atravessaram; nele, também pretendo mostrar os pontos de ebulição do tensionamento entre psicologia, arte e feminismo decolonial. Evoco a respeito de como construí, destruí, reconstruí minha pesquisa, como meus objetivos foram ganhando seus contornos e pude, enfim, nomeá-los. Acredito que este capítulo, como o trecho da música que escolhi, diz respeito a algo mais pessoal, ligado a minha vida emaranhada na arte e na pesquisa. 1.1 Caminhos Labirínticos: objetivos e modos de pesquisa. O labirinto da pesquisa, um emaranhado de caminhos no qual o maior desafio é achar uma saída. Mas e se a finalidade desse labirinto não fosse achar uma saída, e sim explorar todos os caminhos possíveis? E se a saída só se abrisse quando expurgássemos a angústia de ter um fim e deixássemos nos inundar pelas riquezas dos entrecruzamentos dos caminhos? Por que esta pesquisa? Qual é meu objetivo? Esta pesquisa existe porque meu corpo pulsa e grita. O labirinto em que estou inserida é feito das minhas intensões, como a de mostrar como um processo criativo decolonial pode ser uma experiência “clínica” no sentido analisador, crítico, de crise e de criação. Sendo assim, interseccionar a arte, a psicologia e a colonialidade faz 2 Poesia de autoria minha. 18 sentido e se afirma - quando pensamos que a colonialidade de ser e de conhecimento -, de acordo com Madina Tlostanova3 (2011), que definiu uma única forma de conhecimento e de humanidade. E, segundo a autora, para dominar e subalternizar, foi necessário formatar subjetividades e conhecimentos, sendo a arte o próprio ponto de expressão da intersecção de ser (subjetividade) e conhecer (epistemologia). Apresentarei algumas artistas ao longo deste trabalho, sendo que elas entram para compor meu texto assim como qualquer outra referência. As obras das artistas não serão profundamente analisadas e nem dissecadas, muitos menos fazem parte do meu “objeto” de pesquisa. As artistas, aqui, são parte da minha leitura, assim como leio um livro eu leio uma obra de arte e essa, por si só, já diz quando aparece aqui, como um texto é capaz de dizer pelas suas palavras e uma imagem, por si só, também já diz. Busco sempre trazê-las nos momentos oportunos do texto, interpelando a descolonizar a pesquisa incorporando a leitura de imagens como parte do exercício decolonial que proponho. Neste texto, coloco em pauta o meu processo criativo buscando um movimento descolonizador, que me desafia a pensar questões de recolonização que atuam sobre mim e que reproduzo ao mesmo tempo. Ao longo deste trabalho, irei descrever como foi meu processo de criação-clínico4 de produção de sentido. Não é um manual, nem é regra, é uma narrativa possível, dentre tantas, isso não quer dizer que, por ser minha experiência, ela não diz respeito a um coletivo, afinal, se meu corpo é singular, meu sangue é coletivo. Temas como machismo e violência, os quais são presentes em minha obra, dizem respeito a estruturas sociais. Espero que este trabalho não dite, no sentido mais endurecido da palavra, um modo de fazer arte ou tentar fazer clínica, mas nos inspire a trilharmos nossos próprios caminhos, sempre confrontando verdades naturalizantes. É um movimento eterno, sem fim, de aceitarmos nossos limites e permanecermos sempre atentas(os). Falo do meu processo criativo como descolonizador pois penso desde a própria colonialidade da pesquisa. Sem ser formada em Artes Visuais, sem possuir reconhecimento artístico, fiz pouquíssimas exposições locais, sequer tenho divulgação do meu trabalho. Na maior parte do tempo, tenho dificuldade em ver meu trabalho artístico como bom e original, 3 Madina Tlostanova é uma pensadora e escritora decolonial. É professora de pós-colonial feminismo na Unidade de Estudos de Gênero, do Departamento de Estudos Temáticos (TEMA), da Universidade de Linköping. Madina estuda a opção descolonial nos feminismos não ocidentais, na subjetividade pós-socialista e na arte. No texto que me baseio, ela cita artistas da euroasia. 4 Falo de um processo de criação-clínico, pois foi por meio do meu processo de criação que pude elaborar questões que me entristeciam, trabalhar os diversos problemas psíquicos, como a depressão, a bulimia (que me deixou marcas profundas), crises de ansiedade, persecutoriedade e a falta de autonomia por conta da minha doença na coluna. Fui impelida a criar arte para criar sentido. 19 além de, muitas vezes, duvidar se sou artista. Colocar meu trabalho, aqui, me expõe de forma visceral, pois são trabalhos com autorretratos, para os quais nunca visei uma participação de um público ou audiência. Conjugar um trabalho autobiográfico e não reconhecido, com temas de ordem política e social, não é uma tarefa fácil. É doloroso o tensionamento de um trabalho tão íntimo e, ao longo do processo, me via constantemente posta à prova, à análise e a críticas. Descolonizar passa a ser a palavra que ecoa, é dar voz a expressões esmagadas pela lógica dominante, é desviar das noções capitalísticas do “melhor”, “gênio”, do “clássico” e do “original”, as quais estão encrustadas em nós mesmos. Trago, aqui, meu trabalho e o trabalho de diversas artistas. Artistas mulheres cis e/ou trans povoam este texto de modo interlocutor, ou seja, o trabalho não é feito sobre elas, mas com elas, afinal, meu processo criativo é feito de referências, inspirações e interferências dessas artistas e de tudo que me rodeia. Escolho uma bibliografia majoritariamente de mulheres e mulheres latinas, assim como as artistas, em sua maioria brasileiras e latina5-americanas. Faço isso com o intuito de trazer à tona essas mulheres, que foram negadas de ser, de saber e de ensinar sobre si e sobre o mundo. Duas questões são muito recorrentes no meu trabalho artístico, a figura feminina e a natureza, que sempre aparecem embaralhadas na minha obra. Cada uma tem uma importância particular no modo como busquei lidar com minhas adversidades, solidão e desesperança. Busquei na natureza meu alento, não de uma forma transcendental ou de busca por uma entidade “mãe natureza”, mas via na terra, nas flores, nas plantas, nas cinzas a partilha do que nos é comum; o que nos aproxima, o que nos une nesse lugar que habitamos: a Terra. Todo mundo pode experimentar a terra, a água ou planta. Com o olhar, com o toque ou com o nosso poder de imaginação. Lembro-me de uma das lições para ser um artista, da pintora norte-americana Geórgia O’keeffe, “observe o mundo ao seu redor - de perto, com fome” (GOTTHARDT, 2018, on-line). Essa frase foi muito importante para mim, nessa solidão total, minha fome crescia e busquei olhar o que acontecia ao meu redor com essa “fome” de mundo. Além disso, aposto muito na questão da natureza, pois acredito que nós, seres humanos, em relação à Terra, nos elevamos a um grau de superioridade e arrogância, quando a Terra, em relação a nós, nos vê como mais um organismo. Nós agimos de um modo e a Terra apenas nos responde. Nesse sentido, minha questão artística, ao fazer uma fotografia, seria de formular perguntas para terra, cinzas, sangue, folhas e água ao meu redor. Como na Figura 2, eu estava tentando experimentar 5 A mudança de gênero da palavra “latino” para “latina” é proposital. 20 uma conexão com a terra de um modo que ela pudesse produzir uma imagem nova de mim mesma, assim, comecei usar espelhos e trabalhar a fotografia desses reflexos e das composições possíveis. Ser um corpoespelho... para DESespelhar-se, retirando os reflexos dos contornos ensimesmados. Ser um manifesto, partindo das instabilidades das imagens e figuras cotidianas inventadas, arranjando, em decomposição, uma nova criatura: criatura da multiplicação dos eus a qual, em forma de verbo, alastrar-se em uma intensa conjugação no mundo.6 Figura 2 - Fotografia “Sem título”, por Melina Gorjon, Brodowski-SP, 2015 Fonte: A autora (2015). A ideia de desespelhar-se nasceu do “desesperar-se”; era uma forma de dar vazão pra um incômodo e desespero com a minha própria imagem. Com o meu eu, que queria se sobrar em si mesmo. Desespelhar-se era um momento de respiro lento e profundo, no qual eu podia me concentrar em criar algo além desse “eu” que só olha pra si. Até hoje recorro a esse movimento, é uma estratégia de sobrevivência. Sou fascinada por reflexos, o modo como podemos distorcer e retorcer a realidade a partir de um reflexo, como os reflexos do céu nas poças d’água, o contraste da amplitude e leveza do céu com a aspereza do asfalto. Sendo assim, por vezes, saio sem rumo, ou não, e me pego parada caçando reflexos na rua, muitas vezes busco minha imagem neles, tentando reconstruir a mim mesma. A maioria das minhas fotografias e desenhos são relacionados à figura da mulher, as fotografias são autorretratos de processos performáticos - normalmente associados a situações 6 Esse texto foi escrito por mim durante minha ressignificação da minha relação com espelhos ou seja o de encarar a minha própria imagem refletida e assim nasceram alguns trabalhos como o da Figura 2. 21 de violência -, problemas com autoimagem, não aceitação do próprio corpo e da própria vida. Eu me sinto completamente dentro da lógica trágica capitalística machista e colonial, que me conduz a viver entristecida e com ódio de mim mesma, buscando consumir produtos e estilos de vida que milagrosamente poderão dar sentido e me deixar feliz e “empoderada”. Entrar em contato com o trabalho de outras artistas é o que nos faz não cair nessa cilada, nos faz sair das crises e se ver parte de um coletivo complexo e cheio de possibilidades. E, nesse processo, percebi que os trabalhos que me marcavam eram mais os ligados, de alguma forma, com temas como o corpo da mulher, natureza, sangue e violência. Foi assim que, aos poucos, meu interesse de pesquisa foi ganhando nome e corpo e ele se tornou um registro de como a colonialidade, o machismo e as conexões com outras artistas produziam efeitos em mim. Aos poucos, percebi que eu não precisava de um acontecimento grandioso para falar de questões que me sufocavam, metáforas eram possíveis com coisas cotidianas7, como o ato de cozinhar, de comer, de se vestir, de caminhar e se relacionar. O ato de comer, por exemplo, como poderia ser um ato também difícil e doloroso, cheio de entraves? Lembro-me de um dia em que eu queria expressar, de um algum modo, tudo que o que eu sentia em relação ao controle da minha alimentação, da minha barriga, do meu estômago. O ato de comer sempre foi algo podado e vigiado. Sofri de transtornos alimentares da adolescência até a faculdade e, até hoje, tenho marcas disso e, um dia, logo após mais uma crise com o meu corpo, tentei extirpar toda aquela raiva que sentia dele. 7 Women & Performance: a journal of feminist theory (1983) foi uma importante revista de performance e feminismo. Consoante com Jill Dolan (fundadora), a revista tinha o papel de trabalhar na reformulação da performance por um olhar feminista, posto que tal olhar nunca fora considerado (PINHO; OLIVEIRA, 2013, p. 1). As primeiras performances feministas dos anos 60 e 70 discutiam a esfera privada, em forma de denúncia, trazendo a público as violências sofridas no âmbito privado (PINHO; OLIVEIRA, 2013, p. 60); e o movimento feminista dos anos 70 forneceu um "clima favorável para o florescimento do trabalho performativo feminista" (PINHO; OLIVEIRA, 2013, p. 62). Ou seja, é uma tradição feminista trabalhar questões autobiográficas e cotidianas na arte. 22 Figura 3 - Fotografia “Pregadores, substantivo masculino”, por Melina Gorjon, 2017 Fonte: A autora (2017). Olhei para o espelho e toquei minha barriga, com as mãos eu deformava-a, apertava-a. Em cima da mesa tinham pregadores, um a um comecei a colocá-los na minha barriga. Experimentando as formas e as marcas, a dor e o alívio. PREGADOR, substantivo masculino (Figura 3), aquele que doutrina e faz pregações. Essa força age sobre mim e me adoece, tenho um corpo branco e magro e sou aceita nos espaços, às vezes, com um ou outro olhar curioso/de condenação, por conta das tatuagens, que são muitas e aparentes. Mas, mesmo assim, eu sou um corpo visível. E os corpos “monstruosos”, como bem diz Jota Mombaça (2016, p. 344), ou o corpo gordo? Pergunto-me os efeitos dessa opressão nesses corpos marginais, temos lugares diferentes, mas é o mesmo poder que está sobre nós, um poder que quer nossas vidas entristecidas e medíocres, contudo, afirmamos a vida por meio da arte (não só pela arte) e não nos deixamos vencer por esse poder. Logo vem à tona o trabalho magnífico de Fernanda Magalhães, fotógrafa e performer paranaense. Quando eu vejo uma fotografia da Fernanda, sou tomada por uma força que me empurra para fora de mim e me faz olhar para mim mesma de outro ângulo. É uma sensação difícil de descrever, é como se eu estivesse dormindo e sonhando e, quando me deparo com uma fotografia, é como se meu espírito fosse empurrado para fora do corpo e eu pudesse olhá- lo lá, estático, apático, dormindo, e assim consigo, com essa força que me empurrou para fora do corpo, acordá-lo e movimentá-lo. Eu sinto isso com a Fernanda Magalhães, mas com várias outras artistas também, que é quando eu encontro obras que me tocam de verdade. Figura 4 - Fotografia “Natureza da vida”, por Fernanda Magalhães, Londrina-PR, 2011 23 Fonte: Magalhães (2017). Na série, Natureza da Vida (Figura 4), Fernanda Magalhães (2017) ocupa espaços públicos ao redor do mundo e tira suas roupas, sendo que as fotografias são ações performáticas de um corpo que quer se fazer visível. Com ela, a gente aprende que ter outro corpo é possível, que amar esse corpo é possível, que ele vai ser desejável e feliz e potente e criador, basta não se desvencilhar desse fantasma capitalístico colonial que nos persegue. Outro lugar que povoava meu cotidiano eram as redes sociais, principalmente as que se baseiam em fotos. Para mim, era um catálogo da “colonialidade da vida”, corpos perfeitos, vidas plásticas; todos os dias, quando entrava no Instagram, inconscientemente parecia que a minha vida era menor, vazia, pobre. Mas foi fundamental ver artistas nas redes, como Cindy Sherman e seu Instagram (Figura 5) com as selfies que questionam esse universo. Cindy Sherman, fotógrafa norte-americana, ficou conhecida por seus autorretratos, que faziam referência a como as mulheres eram representadas na mídia e no cinema, e ela criticava essas imagens da mulher e os papéis que lhes eram atribuídos socialmente. Sem entrar no mérito se essas fotografias no Instagram são arte ou não, quero falar dos efeitos dela em mim. Seguir Cindy Sherman é um exemplo de uma artista que acaba por irromper nosso olhar, imagem passando as imagens do “catálogo” de pessoas normativas, e se deparar com esse tipo de selfie, autorretrato. Figura 5 - Fotografia “Am I cured doctor?”, por Cindy Sherman, 2017 24 Fonte: Sherman (2017). Assim, ao invés de recusar tais mídias sociais da internet, comecei procurar artistas que ali provocavam rupturas. Passei a me atentar mais para as publicações e perfis de artistas, assim a internet se tornou uma aliada no meu processo criativo. Comecei a me cercar por arte, em todos os cantos possíveis, em todas as fendas e vincos, fazia jorrar arte, assim minha vida começava a arquejar de novo e a minha pesquisa começava a se desenhar. Foi desse modo que tracei meus objetivos e interesse de pesquisa, comecei a trazer essas experiências de encontro com a arte e de fazer artísticos para dentro da minha pesquisa e, assim, as conexões começaram a ser feitas. Acredito que o que une o meu trabalho artístico com o feminismo decolonial é a minha tentativa de lutar contra os papéis de gênero impostos a mim mesma, que advêm de um conceito de gênero que se ativa e realiza nas relações coloniais, ou seja, um gênero que ignora a questão cultural, de raça e classe. Enquanto mulher branca, dentro do que elabora Maria Lugones8 (2008) a respeito da colonialidade de gênero, eu tenho tudo para ser aquela que reproduz a dominação colonial elaborada pelo homem branco, criando um feminismo universal e generalizante que não leva em conta as assimetrias de mulheres negras e indígenas. 1.2 Invocar a arte, encarnar feminismos 8 Maria Lugones é uma filósofa e feminista decolonial argentina. 25 Acostumamos com a dor de olhar no olho, às vezes inflama tanto que começamos a ver só os contornos. Esgotamos olhares. Nesse ponto, só sobra uma vontade incontrolável de chegar na carne, de apreciar os sentimentos que nutrem as vísceras. Todo olhar pode ser sanguíneo, pulsante e vivo, se ele experimenta passear entre vazio-imensidão, imensidão-vazio... perdido em um zigue-zague eterno, que nos obriga a querer uma dose mais forte da imprevisível violência da criação: a fotografia. Para além de qualquer definição que se convencionou dizer que era a fotografia, essa é a minha, fruto da minha relação com ela; falo em arte, mas qual arte quero invocar? A arte contemporânea, que vai no título do trabalho. Mas, ao invés de trazer uma definição pronta, pois temos muitas definições sobre o que vem a ser arte contemporânea, faço um convite para que pensemos uma arte contemporânea decolonial; para tanto, começo por fazer alguns questionamentos no que tange à construção do que entendemos por arte. Afirmo que a arte é uma formulação ocidental, permeada pela colonialidade, machismos, racismos e elitismo. Para corroborar minha afirmação, vamos pensar: “Por que não houve grandes mulheres artistas?” é a provocação de Nochlin (2016)9 em seu artigo. Para responder tal pergunta, somos levados à questão que muitas feministas colocam, na qual mulheres não tiveram visibilidade ao longo da história, pois a arte sempre privilegiou o homem, negligenciando grandes artistas mulheres. As feministas "mordem a isca" (NOCHLIN, 2016, p. 4), passam a conduzir uma busca por artistas desconhecidas na história. Tal ato é desejável para a construção de uma história das mulheres, contudo, não ajuda a problematizar a pergunta em si, posto que esses atos, os quais as feministas são conduzidas a ter, Nochlin (2016, p. 4) chama de engajar-se na “importância do negligenciado ou do gênio menor”. Portanto, esquece-se de questionar a hipótese por trás da pergunta e acaba por reforçar as implicações negativas que advêm dela. A hipótese que deve ser questionada nessa pergunta é a do que seria arte. E somos levados a crer que arte seria a “expressão individual de uma experiência emocional, a tradução da vida pessoal em termos visuais” (NOCHLIN, 2016, p. 7). Para mim e para Nochlin (2016), arte não é nada disso, ela não é confidência, ela foge das convenções, das regras de saber/fazer. Assim, podemos responder que nunca houve grandes mulheres artistas na história da arte, assim como não tivemos um grande pianista de “jazz lituano ou um grande tenista esquimó” (NOCHLIN, 2016, p. 8). Não tivemos análogas mulheres como Picasso e Cézanne, assim como não tivemos equivalentes afrodescendentes. A autora defende que a arte foi criada por homens 9 Linda Nochlin morreu em 2017 e foi uma historiadora da arte norte-americana (EUA), trabalhava com as questões de gênero dentro da história da arte. 26 brancos, é um meio machista que privilegia homens e não dá oportunidades, estímulo e educação para mulheres. De acordo com Tlostanova (2011) o ocidente colonizou a própria maneira de sentir, perceber e produzir signos, os quais seriam a “arte”, a expressão, e o problema não foi ter criado o conceito de arte em si, mas de ter colonizado por meio desse conceito, por meio de preceitos do que é belo, criando dicotomias, criando estruturas “canônicas”, “genealogias artísticas”, determinando, de acordo com os parâmetros do ocidente, o que convém ser artista e sua função. O questionamento de Nochlin (2016) também diz a respeito a como respondemos as perguntas, problematiza que devemos questionar as próprias perguntas, quem as faz e por quais motivos as faz, qual o verdadeiro propósito dessas perguntas10. De acordo com Nochlin (2016), os privilégios para os homens acabam por minar qualquer tentativa de abalar as estruturas machistas da arte, com vantagens e mais vantagens, é extremamente difícil alcançar um espaço igualitário, pois, presas a tais perguntas e respostas, não percebemos a real necessidade de questionar a instituição da arte que gera essa desigualdade. Nesse sentido, também trago Madina Tlostanova (2011), que faz uma importante crítica aos modelos ocidentais da arte e comenta sobre uma produção artística decolonial produzida por aqueles que foram marcados por uma ferida colonial. Acredito que ela oferece uma discussão valiosa no que tange à constituição da arte e da disciplina da estética. Existe uma ideia muito importante trazida por Tlostanova (2011), a qual transmite que a arte por si mesma é um produto do ocidente e, enquanto tal, nela podemos analisar a crise da modernidade, a fim de buscar “formas transmodernas” de arte contemporânea. A autora fala em transmoderna no sentido de se desvincular da modernidade e de todos os conjuntos de signos dela. Tlostanova (2011, p.14, tradução nossa) produz uma definição muito pertinente do que seria descolonizar a arte, consistindo em um “Impulso central para libertar-se das restrições da modernidade / colonialidade” . Ou seja, o que está propondo a autora é que uma arte que atua de forma decolonial não está só preocupada com uma arte politicamente engajada, com visibilidade melhor, ou que se tenha mais acesso a recursos financeiros e mercadológicos, ela quer também, e principalmente, agir nas estruturas, conceitos e constructos da arte ocidental. Mombaça (2017, on-line) também fala que, na arte, essa lógica colonial de silenciamentos também aparece, por exemplo, quando temos espaços financiados “pelas alianças brancas, mas com ênfase na produção negra”. Mombaça (2017) fala que temos um movimento ambíguo, no qual temos a visibilidade que é dada, mas também existe uma 10 Para Nochlin (2016), ao formular questões de um grupo, temos uma dupla questão que nasce: quando falamos da "questão da pobreza", falamos da "questão da riqueza" ao mesmo tempo. Isso varia de acordo com a perspectiva na qual o enunciador da pergunta se coloca e, na questão das mulheres, não seria diferente. 27 apropriação desse trabalho para “atualização do sistema de arte”, o qual, em sua estrutura, ainda se mantém hierarquicamente desigual para muitas pessoas. Jota Mombaça (2017) afirma que essa “política de alianças brancas” na arte tem resultado na continuidade da distribuição desigual de recursos, já que pessoas brancas são aquelas que escolhem quando e onde se falará sobre o debate racial. Por exemplo, Mombaça fala da curadoria, que é responsável por fazer toda a agenda da exposição, negociar com artistas, enfim, um lugar de gestão na arte que raramente é ocupado por uma pessoa negra, mesmo quando a exposição tem por tema a questão racial. Nochlin (2016), a partir de outro lugar, tenta questionar as opressões estruturais na arte, pois, por trás da pergunta “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, temos a ideia da essência da arte e das habilidades humanas, do que é excelência humana, do que é aceito ou não nessa instituição da arte; e esse é o maior problema, que é não dar mais visibilidade para. Artistas renomados ganham destaque de “grandes artistas” pelo “elevado número de monografias devotadas” a ele (NOCHLIN, 2016, p. 14); ao passo que a ideia de genialidade é conferida a esse artista, tal conceito é pensado como algo atemporal e transcendente. Investigações que levam em conta toda a conjuntura social, racial e de gênero, que daria condições a essa suposta “genialidade”, não são muito exploradas no campo da arte, sendo legadas a outras disciplinas, como a Sociologia, como se para a arte tais discussões não fossem pertinentes. O mito da genialidade e do talento leva a essa ideia infrutífera sobre arte. Os historiadores de arte acabam focando no indivíduo, como em Picasso, que foi tido como gênio desde cedo. Percebemos o mito da genialidade como se a produção artística fosse algo inerente a Picasso, um dom, um atributo “natural”. Contudo, Nochlin (2016) pergunta: e o papel dos professores? E a família de Picasso? Essa história não é contada, porém é a história que interessa para se montar o mapa da construção de um “Picasso”. A autora (NOCHLIN, 2016) diz que esse modo de conceber o artista como gênio vem da mitologia do séc. XIX, que associava o artista a feitos transcendentes da religião, artista esse que abandona sua vida e bens materiais para realizar sua arte, sendo que tais concepções obedecem a lógica do catolicismo (NOCHLIN, 2016), pautadas pelo sacrifício e meritocracia. A questão principal que Nochlin (2016) aponta é a falta de uma análise na arte sobre as estruturas sociais e as condições que cercam o artista, análise essa que não é colocada em primeiro plano em detrimento de análises de talento e genialidade. Assim, as perguntas deveriam ser: a qual classe social pertenciam os “grandes” artistas? Nas famílias havia estímulo para ser artista? Havia artistas na família? Nesse sentido, trago um importante questionamento 28 da artista visual e rapper Rosa Luz11, na Figura 6. A artista faz um autorretrato em que aparece com os dizeres “E se a arte fosse travesti?”, em letras de pixo. Com isso, fica evidente o quanto a arte é parcial e fala de um lugar, que não é o lugar de protagonismo da mulher, das pessoas negras, das travestis, das pessoas trans, dos gays e das lésbicas. Mais do que isso, existe um modelo de arte, uma ideia de arte que permanece incrustada na nossa carne. 11 Conheci Rosa Luz por meio da música, o rap, e logo depois descobri seu canal no Youtube e seus trabalhos como artista visual. Rosa Luz é uma mulher, trans, negra e periférica do Distrito Federal, é rapper e artista visual. Para mais informações, acesse o canal de Rosa Luz no Youtube, chamado “Barraco da rosa”. 29 Figura 6 - Fotografia “E se a arte fosse travesti?”, autorretrato por Rosa Luz, 2016 Fonte: Revista Select (2018), n.38. Esse modelo de arte nada múltiplo paira até sobre os mais críticos, afinal a arte não foi desmistificada, pairando como algo transcendente, de ordem “divina”, do talento e do dom. Nochlin (2016) pontua que, seguindo a ideia de genialidade, a condução seria responder a pergunta dizendo que nenhuma mulher alcançou a genialidade. A autora usa um recurso para exemplificar, recorrendo à aristocracia, classe social que não produziu arte, tendo pouquíssimos nomes da aristocracia que se tornaram artistas. A aristocracia colecionava e estimulava a arte, mas nela não existiram grandes artistas. Seguindo toda a lógica do talento e genialidade, os aristocratas também não alcançaram a genialidade artística, lhes faltava algo em sua “natureza” para tal. A questão pertinente e válida, segundo Nochlin (2016), para tal fato, é que existiam demandas e expectativas em relação à aristocracia que não a de ser artista, o mesmo com as mulheres. Tais imposições, demandas e expectativas dificultam o caminho de mulheres artistas e isso está muito além de qualquer problema de genialidade ou talento. Essa pergunta, do motivo pelo qual não há grandes mulheres nas artes, leva Nochlin (2016, p. 23) a concluir que “a arte não é a atividade livre e autônoma de um indivíduo dotado de qualidades”, ou seja, a arte e o artista são construídos dentro de um contexto social e todos os elementos que os circundam passam e são mediados por estruturas sociais. Para Tlostanova (2011), vivemos uma revitalização de diversas correntes artísticas, desde aquela que se preocupa com a beleza, aquela voltada à questão existencial e individual e aquela política e comunitária. De acordo com ela, a corrente mais influente na última década é a da “estética relacional” de Bourriaud, que diz que as expressões artísticas na estética relacional seriam intrinsicamente democráticas (BOURRIAUD, 2002, apud TLOSTANOVA, 30 2011). Madina Tlostanova critica a estética relacional, que é uma atividade de produzir relações com o mundo por meio dos objetos, signos e ações. Os significados são elaborados coletivamente, contudo, tal teoria ocidental não leva em conta que existem muitas diferenças sociais e políticas que fazem com que esses “espectadores” da arte não sejam, de forma alguma, homogêneos, o que faz com que seja impossível criar um significado coletivo ou uma vontade de criação coletiva. A estética relacional quer trazer a arte para o mundano, misturar arte e vida, e assim gerar um espaço social de ação coletiva. Para a autora, o que falta nessa concepção, é “a complexidade conflituosa e a contextualização dinâmica da vida e da arte contemporânea” (TLOSTANOVA, 2011, on-line, tradução nossa). Tal concepção ainda não leva em conta a multiplicidade dos sujeitos. Tlostanova (2011) fala que tais suposições sobre a arte falam do sujeito ocidental e dos sujeitos ocidentalizados, ela diz que muito da estética decolonial foi também apropriada pelo ocidente de uma forma exótica e como algo que está na “moda”. Por exemplo, Pedro Goméz e Walter Mignolo (2012) acreditam que a estética e a arte fazem parte da estrutura colonial. Isso porque, para os autores, a colonialidade se manifesta na suposição de uma definição universal de arte e de estética, definindo o que é arte e desclassificando o que não é; a colonialidade na estética é legitimada. Tlostanova (2011) comenta que, em contextos decoloniais, a arte surge como uma forma de criação que está diretamente ligada a uma forma de pensar e de conhecer o mundo, a natureza e a própria arte, citando algumas autoras que tratam a arte de forma decolonial, como Maria Lugones (2003), que vai falar da criatividade como forma de “Viagem através de mundos estranhos com amor”; e Anzaldúa (1999), que fala da arte como uma forma de sanar e reabrir feridas coloniais. A criação artística seria, nesse caso, um modo de soltar o conhecimento e um modo de existir, por meio da re-existência à modernidade, pois, para a Tlostanova, só com a razão não é possível decolonizar nem mesmo a epistemologia ou a nossa existência; o sentir, a expressão também têm papel fundamental nisso. Na performance de Jota Mombaça e Patrícia Tobias (Figura 7), de 2013, feita na UFRN, intitulada corpo-colônia, Mombaça se encontra reclinade12 enquanto Patrícia, com um capuz que não deixa que a identifiquemos, joga, com uma pá, pedras de construção no corpo nu de Mombaça. Acredito que o poder dessa performance está em falar da força desse corpo, da resistência, ou melhor, da re-existência. Ao invés de destrinchar a respeito, prefiro as próprias palavras de Mombaça, as quais nos dilaceram em um só golpe, “Esgotar o colapso colonial é 12 Jota Mombaça descreve-se como uma pessoa não binária, a grafia de “Reclinade” é uma tentativa minha de respeitar essa marcação de gênero. 31 uma questão de sobrevivência. Conduzi-lo a um limite, acelerar suas convulsões, forçá-lo à ruína e desertá-lo” (MOMBAÇA, 2014, on-line). Figura 7 - “corpo-colônia”, performance de Jota Mombaça e Patrícia Tobias, 2013 Nota: Captura de tela do registro audiovisual da performance “Que pode o korpo?” (2013). Fonte: A autora (2018). Acredito que performances como essa conseguem nos atravessar subjetivamente e, ao mesmo tempo, produzir um novo conhecimento. E corroboro isso, afirmando que existe uma conexão entre estética e epistemologia que sempre foi trabalhada por diversas teorias, pois pensam que a arte caminha na encruzilhada entre o ser e a cognição, em um lugar onde “razão e imaginação colidem e interagem” (TSLOSTANOVA, 2011, online, tradução minha). Tlostanova (2011) também diz que a arte não gera conhecimento no sentido ocidental- racional, o conhecimento que a arte gera é como se fosse uma experiência de tentar entender e interpretar o mundo, pois existe uma multiplicidade de modos de sentir, conhecer e interpretar a experiência estética. Goméz e Mignolo (2012, p. 9) dizem que as estéticas decoloniais são uma mostra de “operações com elementos simbólicos”, os quais pretendem desmontar o mito ocidental13 da arte liberando as subjetividades que estão no jogo da colonialidade estética. 13 Não estamos falando em desvalorização do pensamento do Norte global e até uma negação de suas contribuições, mas é problematizar os motivos pelos quais, geralmente, quando se está na Europa, pouco se cita pensadores, artistas que não sejam europeus e etc. Já nos países que não são do Norte global, parece que, para 32 Para a Tlostanova (2011), a arte tem uma verdade múltipla que dá abertura para uma gama de interpretações, sempre em pé de igualdade, o que a torna, de certa forma, “relativista”, contrariando diretamente a verdade universal da ciência. Para Tlostanova (2011), foi com os românticos que se descobriu essa cisão entre a verdade única da ciência e a verdade múltipla da arte, isso dentro lógica ocidental. Durante 100 anos, esse ideal formal do belo na arte foi caindo por terra e os românticos ajudaram a formular que a experiência estética deveria ser libertadora, contudo, Tlostanova (2011) sinaliza que os românticos permaneceram universalistas, como se tivessem desenvolvido uma nova fórmula de universalidade. Se tais correntes artísticas dos “ismos” se pretendem libertadoras dos ditames da razão, qual seria a diferença de uma arte potencialmente decolonial? Bom, como nos mostra Tlostanova (2011), na arte decolonial, nós não temos uma universalidade, mas sim uma pluriversalidade, e a liberdade gira em torno da experiência decolonizadora. Tlostanova (2011) nos coloca uma linha do tempo interessante na arte. Ela diz que, nos anos 90, o ideal da estética convencional foi restaurado, da beleza como prazer visual, muitos autores denominados pós-kantianos pela autora pareciam ter evoluído um pouco mais, por serem mais inclusivos com uma chamada “estética gay”, coisa que, para estudiosos da estética kantiana, era inadmissível. Aliás, qualquer coisa que pudesse ser monstruosa, feia, incômoda, perturbadora, não seria muito bem aceita, pois sempre existiu uma vinculação muito forte da arte com a moral ocidental. E quem detém o poder de incluir e excluir, segundo Tlostanova (2011), é o “establishment artístico ocidental”, afinal, ele define o que é “tendência” para comercializar, portanto, tais valores da arte tradiconal estão presentes em algumas categorias que vemos na arte na atualidade, como: “prazer como principal categoria do consumidor burgues da modernidade tardia” (TLOSTANOVA, 2011, on-line) e a “visualidade” como a categoria hierárquica de percepção do mundo. Para Tlostanova (2011), na atualidade, temos o mesmo tipo de relação que os modernistas tinham há 50 anos atrás, um modo de experimentar a arte que parece ser autônomo, mas, na verdade, mantinha profundas relações com o capitalismo. Assim como a autora, também acredito que as correntes artísticas ocidentais 14 (ocidentalocêntricos) não chegaram ao ponto crucial de enfrentar a colonialidade, pois, por estarem dentro da estrutura fundante da arte, isso significaria a resignificação de tudo que se afirmar ou para que seu pensamento tenha algum tipo de validade, é necessário se basear no pensamento europeu. 14 Vale lembrar que a América do Sul é uma sociedade ocidentalizada, diferente de ocidental. Portanto, artistas da América do Sul, por exemplo, são artistas ocidentalizados. Quando me refiro aos artistas ocidentais, aqui, me refiro aos do norte-global, que são o ocidentalocêntricos. 33 conhecemos por arte e por artista. Para Tlostanova (2011), o que impulsiona a descolonização da estética e da história da arte é a vontade de deixá-la livre das racionalidades, contudo, ao mesmo tempo, a arte decolonial é dotada de um conceito e razão. Seguindo a autora, essas duas questões, aparentemente opostas, são essenciais para que o sujeito decolonial retire todas as razões colonizadoras de sua experiência estética e crie, ele mesmo, seus próprios “princípios estéticos”, de acordo com sua história, sua geopolítica e “corpolítica do conhecimento”. Bom, mas como podemos fazer esse movimento? Tlostanova (2011) dá pistas, diz que é necessário detectar as colonialidades nas expressões, em obras de arte, eventos e instituições, ou seja, é necessário “uma capacidade analítica para ligar várias experiências decoloniais metaforicamente através da arte” (TLOSTANOVA, 2011, on-line, tradução nossa). A teórica se antecipa e já elabora várias questões que poderíamos ter como, por exemplo, o que seria esse trabalho decolonial? E o público, como o percebe? Nesse trabalho, temos um tipo de catarse? Ou é conciliação, angústias ou satisfação? A autora responde que o espectador decolonial é solidário, participa e não divide o sujeito da arte e seu objeto, a obra. Assim, esse espectador tem acesso a uma imagem ou metáfora da colonialidade, o que a torna palpável. Uma arte decolonial tem por trabalho buscar cuidar desse ser colonizado “libertando a pessoa dos complexos coloniais de inferioridade, e permitindo-lhe sentir que ele também é um ser humano com dignidade, que ele também é bonito e valioso como é” (TLOSTANOVA, 2011, on-line, tradução nossa). Esse público da arte decolonial é sempre plural e, geralmente, estão ligados a um evento e a uma instituição, ou seja, temos o agenciamento da instituição. É muito importante ressaltar que, ao rejeitar esse modo de pensamento ocidental, isso não significa que se quer uma identidade essencialista decolonial, pautada em um retorno a algo perdido. Uma grande parte dos pensadores e artistas decoloniais foram construídos dentro de uma lógica “ocidentalizada” e não uma lógica “ocidental”, assim, o que faz existir um movimento decolonial é essa base conceitual do ter sido “ocidentalizado” que ultrapassa a arte ocidental que seja pós-modernista e pós-vanguardista. O maior desafio que Tlostanova (2011) sinaliza é como podemos legitimar esse conhecimento estético que temos e que é resultante de uma comunhão das forças ocidentais e decoloniais ao mesmo tempo, tendo em vista sempre o que é ou não é legitimado pela modernidade ocidental. Bom, a principal forma de lidar com esse meio em que estamos inseridos é lutar contra qualquer força de dicotomia que produza hierarquias, como na arte, em que se tem a dicotomia do belo e do feio, o que é arte e o que não é, do genial e do banal. Consoante com Tlostanova (2011), nesse processo decolonial, o artista não irá mais resistir, mas re-existir e, se na estética pós-kantiana queriam liberar a beleza da moralidade, na decolonial querem outra coisa, a 34 dimensão ética aqui é sempre feita no diálogo com outras éticas, saberes, valores, mundos e ideias do que é arte, como nos mostra Tlostanova (2011). Por isso, acredito que essa proposta de uma arte decolonial tenha a ver com outros modos de sentir, de fazer arte, de ver e recebê- la, tendo em mente sempre as construções coloniais que nos atravessam cotidianamente em nossa subjetividade, principalmente. Essa proposta decolonial é de libertar a criatividade e acionar a potência criativa, ao passo que existe um potencial artista em toda e qualquer pessoa. Precisamos lutar para trazermos a experiência decolonial para a arte, pois, assim, teremos um rompimento de barreiras em seus alicerces coloniais. 1.3 Latifúndios científicos e as ocupações artísticas A imensidão improdutiva dos latifúndios científicos. Espaços privados e individualistas rejeitam e dominam as práticas comunais de vida. Espaços proibidos, terras metodológicas improdutivas. Não funcionam mais e, mesmo assim, não permitem ser ocupadas por outras formas de produção. Latifúndios científicos que grilam práticas localizadas de pesquisa e modos de vida. Atiram contra a arte, contra os saberes ancestrais, matam o que “não é científico”. Mas a arte sem-terra resiste, invade e ocupa, começa semear aquela terra infértil, produz frutos, divide e compartilha, cria uma terra comunal. A arte aqui não é objeto e também não é instrumento, ela se apresenta como uma “ocupação”, como uma epistemologia, ou seja, uma forma de conhecimento que possui a mesma importância que a teoria descolonial/decolonial e a psicologia. Quando penso na metáfora do latifúndio científico, penso na ciência ocidentalocêntrica, como Santos (2002), uma ciência neutra e estéril. O latifúndio é extensos territórios, em sua maioria, improdutivos, pertencentes a grandes famílias, muitas vezes, de herança colonial. O que proponho aqui, com a invasão da arte e dos saberes descoloniais/decoloniais, é uma ocupação desse terreno infértil, improdutivo, pois serve ao universalismo, ao modelo de pesquisa que separa sujeito e objeto. Ocupo esse latifúndio para transformá-lo em uma terra da partilha comum, de produção diversa, rejeitando tudo o que se pretende como “clássico” e universal. Acredito que a ideia de sujeito e objeto deva cair por terra, pois existe uma violência invisível nesse tipo de pesquisa. O homem branco heterossexual sempre foi o projeto de ser humano ideal e, durante séculos, isso criou marcas profundas em nossa sociedade, ciência e modos de vida. Seus privilégios foram cada vez mais naturalizados e inquestionáveis, por conta de toda legitimação social e científica. Como entendemos que nossas práticas convergem para a pesquisa, pesquisadora/psicóloga/artista, eu busco (re)pensar minhas práticas de pesquisa a 35 partir da arte. Antes de qualquer coisa, gostaria de trazer a obra de Rosana Paulino15 (Figura 8), “Amor pela ciência”, como provocação-disparadora para tudo o que direi em seguida. Figura 8 - Impressão sob tecido e costura, “Amor pela ciência”, por Rosana Paulino, 2016 Fonte: Paulino (2016). Podemos pensar muitas coisas a partir dessa obra, mas é fato que existe uma referência direta à questão da ciência e como ela contribuiu para legitimar o racismo. Essa frase “amor pela ciência” parece uma tentativa de justificativa dos cientistas que cometeram atrocidades “em nome da ciência”. Também soa como uma ironia, não sendo o amor, mas o contrário do que se sente pela ciência moderna, que se constituiu a partir da dissecação-controle dos corpos não brancos ocidentais. Pela força de tal obra de Rosana Paulino e tantas outras artistas, com o poder de nos afetar no mais íntimo-secreto da nossa subjetividade, trago aqui um manifesto para que a arte seja entendida enquanto campo de saberes, do qual emergem questões e problemas. Uma questão que nos é cara, trazida por Taylor (2013), é pensar como o nosso olhar histórico está contaminado por naturalizações e como construímos nossas pesquisas em cima dele. Pesquisas nas quais privilegiamos os documentos, os arquivos - sejam eles narrativas orais, literatura ou documentos históricos - em detrimento dos comportamentos performatizados, das práticas 15 Rosana Paulino é artista visual e educadora brasileira. Doutora em Artes Visuais pela USP, trabalha com fotografia, gravuras e bordados. Seus temas giram em torno da questão da mulher negra no Brasil. Mais informações disponíveis no link: 36 culturais, das memórias passadas por meio do corpo. Além disso, a política que elege determinados documentos e arquivos como sendo os oficiais é um modelo ocidental feito no norte-global e, por isso, esses devem ser constantemente revisados e repensados; o que Taylor (2013), de forma ímpar, faz ao trazer uma discussão localizada para as Américas. Essa estudiosa se localiza no campo dos estudos da performance, a qual entende enquanto um modo de conservar a memória cultural, posto que nem sempre todo mundo chega à escrita e, assim, se torna necessário estudar como as performances incorporadas vão se relacionar com a produção de conhecimento, com o mundo tecnológico e digital. Muitos acreditam que sem escrita sumimos, desaparecemos, posto que, nas epistemologias ocidentais, a escrita é “avalista da própria existência” (TAYLOR, 2013, p. 21). Para que essa questão seja entendida, passemos pela discussão sobre a constituição das ciências modernas. É fato que as ciências modernas tentam impor o modelo de ciência natural às ciências humanas, modelos positivistas, com separações entre natureza-cultura e sujeito- objeto; além disso, a ciência sempre se pretende neutra e universal. Essas críticas são extremamente importantes, contudo, temos que ter cuidado, posto que isso dá margem para que muitos cientistas, ao falarem que a ciência é um projeto social, acabam por submetê-la às categorias sociológicas (STENGERS, 2002, p. 11-12). Mas qual seria o perigo disso? Isabelle Stengers16 (2002) diz que a sociologia é uma ciência que ambiciona ser “A Ciência” que explica todas as demais, neste sentido, a sociologia poderá desqualificar todas outras ciências. Por isso, o exercício é de (re)visão e desvisão também das ciências sociais, as quais também possuem uma premissa universal extremamente problemática. Os sociólogos ocupam um lugar de saber- poder e, muitas vezes, não entendem a sociologia como uma ciência que também é passível de todas as críticas assim como outras ciências. Afinal, o sociólogo utiliza o cientista como seu objeto em nome de sua ciência, a “sociologia”. Não estaria ele da mesma forma, ao não se questionar enquanto cientista, produzindo um saber-poder que ignora outras interpretações, além de reafirmar ainda mais a dicotomia sujeito-objeto? (STENGERS, 2002, p. 19). Temos que questionar a sociologia enquanto ciência e, para isso, temos que entender que, ao fazê-lo, inferimos uma ideia de “crise paradigmática”, colocando em jogo todas as ciências, os modos de existir, de saber e de poder. Neste sentido, a psicologia é extremamente colonizadora, partindo do que diz a psicóloga Schucman (2014), em seu texto “Sim! Nós somos racistas”, no qual trabalha com a 16 Nascida na Bélgica e residente lá. É formada em química e, atualmente, é uma importante filósofa da ciência. Seu trabalho teve grande influência de Gilles Deleuze, filósofo francês. Escreveu livros em parceria com Ilya Prigogine e é colaboradora de Bruno Latour. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ilya_Prigogine https://pt.wikipedia.org/wiki/Ilya_Prigogine 37 constituição da branquitude no Brasil para tecer um argumento crítico às teorias psicológicas. Schucman (2014) afirma que as questões raciais pouco foram estudadas na psicologia, já que os currículos comuns não levam estudos raciais, os quais aparecem apenas em disciplinas optativas; isso se dá, pois a psicologia ainda está ancorada sob a ideia de um psiquismo humano que é igual e universal. Contudo, sabemos que as categorias de classe, gênero e de raça são constitutivas do psiquismo humano (SCHUCMAN, 2014, p. 85). Assim, é importante que as teorias psicológicas se revisem tendo em vista ideias como decolonialidade e os feminismos, os quais podem contribuir para essa revisão, se afirmando enquanto uma forma de descolonizar o conhecimento. Acredito que até dentro da arte contemporânea vemos uma cenário que é reflexo do mundo em que vivemos, machista, racista e elitista. Acredito que a ciência, como um todo, está impregnada por modelos de opressão e dominação, dessa maneira, trago outro trabalho de Rosana Paulino para que possamos pensar a respeito; o título da obra já nos sugere algo, “Página do livro história natural?” (Figura 9). Figura 9 - Técnica mista sobre papel, “Pagina do livro história natural?”, por Rosana Paulino, 2016 Fonte: Paulino (2016). Quantas histórias não contadas? Quantas páginas e páginas de livros poderiam ter sido escritas em línguas outras, povoadas de cosmologias que sequer imaginamos? É por isso que entendo que nossas práticas pesquisadoras, mesmo dentro das ciências humanas, são passíveis de reafirmação de privilégios e naturalização de opressões. Assumimos aqui a postura crítica que possui via dupla: se dirige a fazer crítica e se coloca em crise/crítica (PASSOS; BARROS, 38 2000). Isso significa dizer que é urgente fazer ruir a ideia de sujeito-objeto, afinal, os sujeitos não podem mais determinar as formas de conhecer seus objetos e os objetos perdem seus contornos (PASSOS; BARROS, 2000). Isso atravessa as nomenclaturas, portanto devemos remeter uma ideia de “estar sempre em relação”, o que significa dar uma dimensão processual à ideia de sujeito e indivíduo, ou seja, falar em individuações e, ao invés de falar sujeito, falar em subjetivações. No lugar de campo epistemológico, pensa-se plano de constituições e de emergências, posto que o campo é onde a realidade se constrói. Esse conhecimento não é neutro e nem objetivo, isso não significa que o conhecimento é apenas um desvelar da realidade do objeto, pois pressupõe que o pesquisador(a) deva se engajar política e produtivamente na realidade em questão. É um movimento de constituir-se nesse engajamento. Assim, sujeito e objeto se engendram e produzem um conhecimento (PASSOS; BARROS, 2000). A arte aqui não é mero instrumento para questionar a ciência e a psicologia, aqui temos uma conjugação transdisciplinar que seria a reconfiguração da relação sujeito/objeto e o estabelecimento de novas possibilidades para a teoria prática, fazendo ruir a ideia de uma Psicologia que se basta a si mesma (PASSOS; BARROS, 2000), sem diálogo com outros campos disciplinares. A transdisciplinaridade17 modifica a relação entre sujeito e objeto, posto que não são categorias já dadas previamente, elas são efeitos das relações estabelecidas, nas quais os sujeitos não podem mais determinar as formas de conhecer seus objetos e os objetos perdem seus contornos (PASSOS; BARROS, 2000). A pesquisa que realizo se alia à tentativa de romper com as dicotomias natureza-cultura, indivíduo-sociedade e sujeito-objeto, o que implica um novo plano que diz respeito a um campo no qual existe implicação. Para Passos e Barros (2000), o objeto da psicologia se delineia também como seu campo, assim, o objeto- campo da psicologia seria o homem diante de sua própria contradição. O que seduz a psicologia é aquilo que ali não se resolve, algo que está em aberto, ou seja, é nessa atitude do humano em crise que se pauta a psicologia em sua atitude crítica. Postura crítica que possui via dupla, se dirige a fazer crítica e se coloca em crise/crítica (PASSOS; BARROS, 2000). Com a transdiciplinaridade, o que se busca é nomadizar fronteiras, desestabilizá-las, para acessar as forças que compõem diferentes modos de subjetivação. 17 É preciso pontuar uma diferença entre multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. As duas primeiras corroboram os esforços de estabelecer maior diálogo entre profissionais de diversas áreas, mas ainda reafirmam o lugar dos especialismos. A multidisciplinaridade é aquele olhar multifacetado para o objeto, tentando dar conta das múltiplas faces do objeto em questão. A interdisciplinaridade seria a intersecção de disciplinas que produzem uma zona específica. Em ambas, percebe-se que existe a manutenção das fronteiras disciplinares, dos especialismos, dos objetos fixos, dos sujeitos de saber e do poder (PASSOS; BARROS, 2000, p. 74). 39 Esse conhecimento não é neutro e nem objetivo, isso não significa que o conhecimento é apenas revelar a realidade do objeto, pois pressupõe que o(a) pesquisador(a) deva se engajar política e produtivamente na realidade em questão. É um movimento de constituir-se nesse engajamento. Assim, sujeito e objeto se engendram e produzem um conhecimento juntos. Podemos encontrar, na arte contemporânea, um intercessor e, ao mesmo tempo, produzimos crise e desestabilizamos a arte, o que é diferente de intersecção. Para Passos e Barros (2000), essa última conjuga dois lugares para construir um lugar que seja estável e no qual se possa definir um objeto próprio; já no aspecto intercessor da transdiciplinaridade, tem-se uma relação que é feita por interferência dos dois lugares. É a ideia de intervenção em ambos os espaços, de co-atravessamento que desestabiliza os domínios disciplinares constituídos. Diana Taylor teve importância na concepção desta pesquisa, principalmente com suas reflexões acerca do Arquivo e Repertório, em seus estudos de performance. A autora apresenta a dimensão da importância dos estudos de performance, pois eles têm valor em levar um conhecimento da ordem do corpo e de práticas incorporadas para um sistema de conhecimento; isso significa não se opor ao arquivo, mas sim expandir o arquivo - expandimos ainda mais os documentos “oficiais” que são usados para estudos. Por exemplo, a ideia consiste em, ao estudar outra língua, essa será aprendida muito facilmente se encenarmos práticas e atitudes culturais. Sendo assim, os estudos de performance contribuem diretamente para expandir nosso conhecimento sobre o mundo, além disso, os estudos de performance têm papel importante na arte, principalmente no que tange à separação em estilos, em compartimentos, de um lado a dança, de outro o teatro, neste outro a música. A performance tem o poder de borrar essas fronteiras, já que essa separação acaba por distanciar, também, a arte de construções sociais. Taylor fala de alguns dos aspectos usados nos estudos das performances, são eles: “trabalho de campo etnográfico, técnicas de entrevista, análise de movimentos, tecnologias digitais, som, análise textual e escrita performativa” (TAYLOR, 2013, p. 59). As performances 18 , segundo Taylor (2013), são ações de transferências de conhecimento, memória e identidade social, mas o que estaria em discussão/análise? Seriam as muitas práticas, como dança, teatro, rituais, funerais, comícios políticos e, sendo assim, falar que algo é uma performance “significa fazer uma afirmação ontológica, embora localizada” 18 O que seria performance? Essa era a dificuldade das reuniões do Instituto Hemisférico de Performance e Política. Política era um consenso, mas a noção de performance era distinta, alguns a entendiam como arte performática, outros não. Eram feitas brincadeiras com os termos entre os participantes que revelavam a ansiedade por um contorno melhor da performance. Deste modo, usando a pergunta de Diana Raznovich, “PerFORwhat Studies?” (Estudos de PERparaQUÊ?) (TAYLOR, 2013, p. 26), surge a ideia de estudar as tradições performáticas na América Latina, para compreender as tensões entre fronteiras de disciplinas e comportamentos incorporados. 40 (TAYLOR, 2013, p. 27), ou seja, o que é uma performance em determinado local, em outro pode não ser. A performance pode ser uma metodologia para analisar eventos, por exemplo, o gênero, a etnicidade, resistência e identidade sexual podem ser lidos como performances, ou seja, ela pode ser uma epistemologia (TAYLOR, 2013, p. 27). Tanto a performance quanto os modos de existência vão variar em cada comunidade, demonstrando que existe sempre uma diferença cultural e histórica, tanto nas performatizações quanto em como elas são recebidas. A recepção pode ser mediada tecnologicamente e/ou pode ser ao vivo, o que altera, completamente, o modo como ela é recebida, pois as performances são sempre in situ, o que significa que elas vão ser assimiladas ao ambiente em que estão inseridas no momento. No mundo contemporâneo, é necessário desenvolver práticas descolonizadoras do pensamento, do conhecimento, da cultura e da arte. Sabemos que os paradoxos são muitos na condição colonial, como a ideia de recolonização e acesso à tecnologia para povos indígenas. Para autoras como Taylor (2013) e Cusicanqui (2010), é preciso apoiar o desenvolvimento de estratégias contra-hegemônicas para projetos de modernidade indígena, que são marcados pela autodeterminação política e religiosa, tomados de uma historicidade própria e de uma descolonização de todas as imagens e representações dos indígenas (CUSICANQUI, 2010, p. 54). Assim, "Todo ello muestra que los indígenas fuimos y somos, ante todo, seres contemporáneos, coetáneos y en esa dimensión –el aka pacha– se realiza y despliega nuestra propia apuesta por la modernidad" (CUSICANQUI, 2010, p. 54, grifo da autora). A saída encontrada por Cusicanqui (2010) foi explorar outros campos do que somente o campo da fala e da escrita e mergulhar nas imagens, na iconografia. E, assim, surge o capítulo Sociologia da Imagem. Sua crença seria que essa distância entre o que pensamos, nossa experiência individual e a realidade diminuiria até o ponto em que começaríamos a ter entendimento de como as práticas coloniais ainda sobrevivem e orientam nossas vidas. As imagens são poderosas fontes de narrativas sociais, mesmo as mais antigas imagens dos tempos pré-coloniais podem dar entendimento do contexto social. As imagens têm o poder de convocar uma compreensão crítica da realidade (CUSICANQUI, 2010, p. 20). O trabalho nas universidades onde leciona Cusicanqui consiste em utilizar o trânsito entre imagem e palavra para “cerrar las brechas entre el castellano standard-culto y los modos coloquiales del habla”(CUSICANQUI, 2010, p. 21). As imagens reservam os sentidos que a língua não pode censurar e, por isso, Cusicanqui recorre ao trabalho de Waman Puma de Ayala, em uma de suas crônicas datada de 1612 - 1615. É uma carta19 descritiva do cotidiano da colônia, povoada de 19 Na carta, temos uma sequência de imagens com apenas um pequeno texto descritivo. O tema da ordem e desordem chama a atenção, ordem das ruas, distribuições espaciais e, principalmente, a ordem do calendário 41 desenhos, direcionada ao rei da Espanha. Toda a escrita está cheia de expressões ahichwa e da fala coloquial, sendo um retrato visual do sistema colonial (CUSICANQUI, 2010, p. 22). Desenhos trazem muitos sentidos e com eles é possível perceber conceitos que ressoam de um passado para o nosso presente, como se fossem “tomadas del cine, como la de secuencia o la de 'flash back” (CUSICANQUI, 2010, p. 25-26). Os desenhos têm poderosos argumentos críticos, que mostram a colonização como uma estrutura de violência e que não é possível existir um “buen gobierno en um contexto colonial”, conclusão que as repúblicas andinas poderiam chegar a respeito de sua realidade atual (CUSICANQUI, 2010, p. 60) utilizando-se da iconografia de seu próprio povo. Mas como trazer esses conceitos de outro tempo para compor nossa realidade atual? Para responder essa questão, Cusicanqui (2010) traz, como exemplo, o conceito de trabalho, o qual tem suas bases construídas na ideia de castigo e punição e difundidas a partir do pensamento cristão e ocidental, chegando até os “pensadores marxistas como Enrique Dussel” (CUSICANQUI, 2010, p. 26). Contudo, é possível fazermos esse “flashback” e bebermos da noção de trabalho anterior à colonização, como mostra o calendário indígena, no qual a convivência entre humano e natureza se expressava nas imagens, que, apesar das hierarquias e problemas patriarcais, ofereciam um modo diferente de trabalho ligado às práticas de produção, que tornavam a ação do homem, transformando a natureza, como um ato ritualístico. Tal concepção está muito distante da noção que impera desde a época colonial (CUSICANQUI, 2010, p. 26). Outro exemplo é quando, nos desenhos, os indígenas eram retratados pequenos perante os colonizadores. Isso demonstra a dominação e inferioridade às quais os indígenas eram submetidos (CUSICANQUI, 2010, p. 27), fórmula de sucesso empreendida pelo sistema colonial que se expressa, até hoje, na retratação da cultura e dos povos diferentes do Norte global. A imagem sempre foi importante para formar símbolos e ideias de como viver e agir. O sistema colonial se fundia em uma primeira imagem que fizeram os colonizadores, retratando o indígena como não humano. Em consequência, essa imagem s’obrevive até hoje, seja no modo de preservação dos indígenas como seres “exóticos, seja negando a modernidade a esses povos. ritualístico. Esse tipo de calendário é muito diferente do gregoriano, mostra sempre a ordem da relação humana com o sagrado (CUSICANQUI, 2010, p. 22). Em seguida, na carta, vemos a desordem causada pela colonização, pelos danos e pela brutalidade. Logo a seguir, volta a questão da ordem do calendário, ao falar da importância da terra, da comida, da produção, dessa ordem de produção cósmica indígena. Deste modo, o que Puma estava fazendo era uma tentativa de convencimento do rei para que mantivesse as terras indígenas e cessasse com a exploração do trabalho indígena. Alternando a ordem do modo como o calendário indígena trazia e a desordem que as práticas colonizadoras traziam. Esse calendário agrícola respeita a relação com a terra, a relação dos astros, da natureza e dos elementos. Nos desenhos, a autora ainda percebe como funcionava a hierarquia de raça e sexo (CUSICANQUI, 2010, p. 23). 42 Neste sentido, acredito que poder e ciência são sinônimos, quem detém a ciência detém o poder. A psicologia, a arte (falo da estética que é uma corrente da filosofia que estuda arte) e as ciências sociais também não corroboram esse poder? Figura 10 - Imagem transferida sobre papel e colagem, “Classificar é saber?”, por Rosana Paulino, 2016 Fonte: Paulino (2016). Acredito que sim, pois pelo simples fato que ainda aprendemos e ensinamos a conhecer sobre o mundo e sobre pessoas diferentes de nós de uma forma classificadora. Por isso trago essa imagem questionadora de Rosana Paulino, “Classificar é saber?” (Figura 11). Classificar é verbo intransitivo direto, significa distribuir em classes e nos respectivos grupos, de acordo com um sistema ou método de classificação; determinar a classe, ordem, família, gênero e espécie. Acredito que a imagem da significação da palavra classificar é suficiente para que pensemos o que estamos fazendo com nossas pesquisas e com nossa ciência, ou seja, continuaremos a serviço da colonialidade que enraizou em nós o espírito de classificação hierárquica que justifica o sistema de opressões? Podemos organizar nosso pensamento sem classificar, podemos pensar de modos diferentes produzindo saberes horizontais, sem objetivar ninguém e produzindo saberes de forma autônoma. 43 1.4 As conexões entre psicologia, arte e feminismo decolonial Como mostrar as conexões com a psicologia, um processo criativo artístico e o feminismo decolonial? Acredito que o meu processo artístico veio nesse caminho de tentar dar conta das minhas angústias, dar expressão, dar sentido. Esses três campos se conectaram em mim por conta da minha história, o feminismo decolonial veio para corromper muitas certezas e trazer esse movimento de questionar as estruturas de colonialidade que nos constituem. Acredito que o exercício da colonialidade de gênero, de ser e de poder se dá no plano “psicológico”, ou melhor, no plano das subjetivações, aliás a colonialidade instaurada no plano das subjetivações tem uma força e adesão muito mais difíceis de se desvencilhar, sendo urgente uma atenção maior para essa questão. O corpo 20 é o plano de conexão quando falo em colonialidade, arte e subjetivação, é nele que se constituem essas três e ele é constituído por elas ao mesmo tempo. Para tanto trarei contribuições de Suely Rolnik (2015) para falar dessa forma de produzir uma outra existência fora da colonialidade, por meio da criação em arte principalmente. E tratei Lugones (2014) com o seu trabalho sobre a subjetividade ativa, que seria a forma de resistir à colonialidade. A psicologia precisa sair fora dela mesma, precisa buscar, em outras disciplinas, aquilo que em sua história ela ignorou. Suely Rolnik (2015) pode nos ajudar a entender essa questão, em sua conferência “Pensar a partir do saber-do-corpo: uma micropolítica para resistir ao inconsciente colonial”, a autora se preocupa em entender como funciona a subjetividade colonial capitalística. Além de buscar uma micropolítica para resistir ao inconsciente colonial capitalístico, acredito que Maria Lugones (2014) também consegue conjurar tudo isso em uma ideia de “subjetividade ativa” (LUGONES, 2014, p. 940), que seria próximo ao conceito de micropolítica ativa que Rolnik21 (2015) apresenta. Lugones (2014) afirma que subjetividade ativa seria como as pessoas lidam e lutam contra as mais diversas formas de opressão que sofrem. Em outro texto, Lugones (2014) afirma que o que ela chama de resistência é uma tensão entre a “sujeitificação” como o sujeito se forma e informa com a subjetividade ativa. Para ela, 20 O corpo, aqui, deve ser entendido como a expressão do ser humano como um todo no mundo, não só física, mas subjetiva, a mente é o corpo e o corpo é a mente, ambos devem ser vistos de forma inseparável. Não vem ao caso me aprofundar nos conceitos de corpo neste trabalho, mas vale lembrar que Gilles Deleuze desenvolveu uma crítica ao modo como separamos mente em corpo a partir de sua leitura de Epinosa, no livro “Espinosa – Filosofia Prática”. 21 Vale lembrar que tal conceito de inconsciente colonial e a ideia de micropolítica são resultado da ampliação de conceitos de Félix Guattari (teórico francês), inclusive os dois possuem um livro juntos, Guattari foi um importante teórico para a psicologia e trouxe conceitos importantes que reverberam até hoje. 44 essa subjetividade ativa não se expressa nessa política do público (LUGONES, 2014, p. 940), pois lhe serão sempre negados o espaço, a voz e autorização para essa subjetividade. Para Lugones (2014, p. 941), o processo de colonialidade começa subjetivamente no encontro que vai formar esse sistema colonial moderno e a resistência a ele. Isso quer dizer que, quando a América foi colonizada, os colonizadores não se depararam com “selvagens” e animais, mas com pessoas com organizações sociais complexas, cultura, religião e expressão linguística, corporal e estética. Ou seja, eles não chegaram em um território vazio a ser construído do zero. E, assim, para conquistar esse ter