IGOR MICHELETTO MARTINS GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA ANÁLISE CURRICULAR DO CURSO DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA DA UNIVERSIDADE VIRTUAL DO ESTADO DE SÃO PAULO (UNIVESP) São José do Rio Preto 2020 Câmpus de São José do Rio Preto IGOR MICHELETTO MARTINS GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA ANÁLISE CURRICULAR DO CURSO DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA DA UNIVERSIDADE VIRTUAL DO ESTADO DE SÃO PAULO (UNIVESP) Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientador: Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves Coorientadora: Profa. Dra. Ana Lúcia Braz Dias São José do Rio Preto 2020 M386g Martins, Igor Micheletto Gênero e sexualidade na formação de professores : uma análise curricular do curso de licenciatura em matemática da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP) / Igor Micheletto Martins. -- São José do Rio Preto, 2020 82 f. : tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientador: Harryson Júnio Lessa Gonçalves Coorientadora: Ana Lúcia Braz Dias 1. Formação de Professores. 2. Gênero e Sexualidade. 3. Educação Matemática. 4. Currículo. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. IGOR MICHELETTO MARTINS GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA ANÁLISE CURRICULAR DO CURSO DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA DA UNIVERSIDADE VIRTUAL DO ESTADO DE SÃO PAULO (UNIVESP) Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Profa. Dra. Ana Lúcia Braz Dias CMU – Central Michigan University Coorientadora Profa. Dra. Ana Paula Leivar Brancaleoni UNESP – Câmpus de Jaboticabal Prof. Dr. Daniel Clark Orey UFOP – Câmpus de Ouro Preto Ilha Solteira 18 de fevereiro de 2020 Ao Harryson, quem depositou confiança e esperança na minha potencialidade, e acreditou nela em momentos que nem eu acreditava. Um dia quero me tornar esse excelentíssimo profissional que você é. Dedico AGRADECIMENTOS A minha mãe Claudia, agradeço de forma grandiosa. Sem o apoio dessa mulher maravilhosa, não estaria realizando o sonho de me tornar mestre e cursar uma pós-graduação. Minha mãe é uma pessoa corajosa, que não leva desaforo para casa e luta sempre para que respeitem sua opinião. Creio que aprendi com ela a coragem que tenho em levantar questões de gênero e sexualidade, um tanto quanto perturbadoras, em um momento tão conservador e retrógrado. Ao meu querido orientador Harryson. Acredito que o eros, no sentido que bell hooks atribuiu em uma de suas reflexões, estava presente nos momentos que vivenciamos durante esse processo formativo. Meu caro, você carrega a paixão pela aprendizagem e, assim, transforma a realidade dos seus estudantes que são tocados pelo conhecimento. À professora Ana Lúcia, agradeço de modo desmesurável. Uma mulher guerreira que assumiu a função de coorientar-me durante esse curso de mestrado. Além de guerreira, é também acolhedora, pois me recebeu calorosamente e de forma tão maternal, no decorrer do meu período sanduíche na Central Michigan University, em Mount Pleasant, nos Estados Unidos. A todos os orixás e a todas as entidades da Umbanda, principalmente, aos guias que me acompanham nessa jornada espiritual. A minha irmã universitária Bianca e o meu irmão universitário Carlos, que me proporcionaram inúmeros momentos abastecedores de energia vital para encarar os desafios da pós-graduação, e também momentos que me encorajavam e acreditavam na minha potencialidade de escrever uma dissertação. A todas as moradoras da República Ibiza, em especial Cristiane, Giovana e Laís, pelos ótimos momentos de convivência e reabastecimento de energias. A todas as pessoas integrantes do Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação (GEPAC). As reuniões desse grupo sempre são fortalecedoras e motivadoras para prosseguir os estudos. A todas as pessoas integrantes do Núcleo Afro-Brasileiro e Indígena de Ilha Solteira (NABISA), bem como as que integram também o Núcleo de Apoio e Discussão de Gênero e Sexualidade (NUGENS). Às professoras Ana Paula Leivar Brancaleoni e Vanessa Franco Neto, que constituíram a banca de qualificação deste trabalho como professoras titulares, e que disponibilizaram um pouco do seu tempo para ler o trabalho e auxiliar nas reflexões. Também não posso esquecer que Ana e Vanessa se deslocaram até Ilha Solteira para compor a banca, e que fiquei muito feliz de recebe-las na cidade. À professora Rosemary Rodrigues de Oliveira e ao professor Elenilton Vieira Godoy, que se disponibilizaram para constituir a banca de qualificação como professores suplentes. Ao professor Daniel Clark Orey e à professora Ana Paula Leivar Brancaleoni por aceitarem o convite para constituir a banca de defesa desse trabalho e contribuir de forma grandiosa nas reflexões. Às professoras Ana Clédina Rodrigues Gomes e Rosemary Rodrigues de Oliveira por se disponibilizarem para constituir a banca de defesa como professores suplentes. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Para tanto, agradeço à CAPES pelo financiamento. O silêncio é um campo plantado de verdades que aos poucos se fazem palavras (MELLO, 2001). RESUMO A dissertação em tela é guiada pela inquietação em saber como se estruturam as questões de gênero e de sexualidade no processo de formação inicial de professores de Matemática na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). Esta investigação tem como objetivo analisar o processo de formação inicial dos professores de Matemática da Univesp para as relações de gênero e de diversidade sexual. Assim, derivam-se os seguintes objetivos específicos: (i) caracterizar os aspectos conceituais sobre as relações de gênero e diversidade sexual presentes no projeto pedagógico do curso de licenciatura em matemática; (ii) identificar os momentos e espaços presentes nesse processo de formação inicial. Este trabalho caracteriza- se como uma pesquisa qualitativa pautada na análise documental. Os documentos curriculares que constituem a investigação são as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica; Pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) referentes às Diretrizes; Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática; Deliberações do Conselho Estadual de Educação (CEE) de São Paulo; Plano de Desenvolvimento Institucional da Univesp; Projeto Político Pedagógico do curso de licenciatura em Matemática da Univesp; Regulamento de Estágios da Univesp. Documentos curriculares esses que foram analisados à luz da hermenêutica, de Paul Ricoeur. As análises apresentam-nos uma ausência predominante das relações de gênero e da diversidade sexual nos documentos curriculares. Quando essa temática surge em alguns documentos, não está amparada por aspectos conceituais e assume um certo vazio, ousando julga-las como ações discretas e tímidas para o desenvolvimento de tal problemática. No entanto, nossa metodologia de análise permitiu traçar possibilidades para o desenvolvimento da temática de gênero e sexualidade no curso de formação inicial de professores de matemática da Univesp. Corroboramos, assim, com a necessidade de pesquisas sobre a formação de professores para as relações de gênero e diversidade sexual, e ainda, pesquisas sobre gênero e sexualidade na Educação Matemática. Palavras-chave: Formação de Professores. Gênero e sexualidade. Educação Matemática. UNIVESP. ABSTRACT The dissertation on screen is guided by the restlessness in knowing how gender and sexuality issues are structured in the process of initial training of mathematics teachers at the Virtual University of the State of São Paulo (Univesp). The general objective of the research is to analyze the process of initial training of Mathematics teachers at Univesp for gender relations and sexual diversity. Thus, we set the following specific objectives: (i) to characterize the conceptual aspects about gender relations and sexual diversity present in the pedagogical project of the degree course in Mathematics; (ii) to identify the moments and spaces present in this initial training process. This work is characterized as qualitative research based on documental analysis. The curriculum documents that constitute the research are the National Curricular Guidelines for the Training of Basic Education Teachers; Opinions of the National Education Council (CNE) regarding the Guidelines; National Curricular Guidelines for Mathematics Courses; Deliberations of the State Education Council (CEE) of São Paulo; Institutional Development Plan of Univesp; Pedagogical Political Project of the degree course in Mathematics of Univesp; Regulation of Internships of Univesp. These curricular documents were analyzed from the perspective of hermeneutics, by Paul Ricoeur. The analyses present us with a predominant absence of gender relations and sexual diversity in the curricular documents. When this theme appeared in some documents, it was not supported by conceptual aspects and assumed a certain emptiness, daring to judge them as discrete and timid actions for the development of such problem. However, our methodology of analysis allowed us to trace possibilities for the development of gender and sexuality issues in the initial training course for Univesp mathematics teachers. Thus, we corroborated the need for research on the training of teachers for gender relations and sexual diversity, and also research on gender and sexuality in Mathematics Education. Keywords: Teacher training. Gender and sexuality. Mathematical Education. UNIVESP. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. A objetivação do currículo no processo do seu desenvolvimento 52 Quadro 1. Resultado da primeira busca 48 Quadro 2. Resultado da segunda busca 49 Quadro 3. Matriz Curricular do Curso de Licenciatura em Matemática da Univesp 63 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABGLT Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais APAE Associação de Pais e Amigos Excepcionais BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações CEE Conselho Estadual de Educação CES Câmara de Educação Superior CNE Conselho Nacional de Educação CP Conselho Pleno Feis Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira GEPAC Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação GGB Grupo Gay da Bahia IST Infecções Sexualmente Transmissíveis Nabisa Núcleo Afro-Brasileiro e Indígena de Ilha Solteira ONU Organização das Nações Unidas PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PDI Plano de Desenvolvimento Institucional PPC Projeto Pedagógico de Curso TCC Trabalho de Conclusão de Curso Univesp Universidade Virtual do Estado de São Paulo SUMÁRIO página 1 INTRODUÇÃO 12 1.1 “Eu sou a minha própria embarcação” 12 1.2 Terra à vista! 13 1.3 Pirateando a homossexualidade 15 2 DELINAMENTO DA INVESTIGAÇÃO 18 2.1 Objetivos 22 2.1.1 Objetivo geral 22 2.1.2 Objetivos específicos 22 2.2 Percurso Metodológico 22 2.3 Percorrendo as trilhas da hermenêutica 25 3 RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL 31 3.1 Estreitando as relações entre o gênero e a sexualidade 31 3.2 Mas, por que relações de gênero e diversidade sexual na escola? 34 3.3 Caminhando sob a seara identitária 37 3.4 Fagulhas de gênero e sexualidade para abrasar uma formação de professores 41 4 ESTUDOS GÊNERO E SEXUALIDADE NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 46 5 ATRAVESSAMENTOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NOS DOCUMENTOS CURRICULARES ESTADUAIS E FEDERAIS 52 5.1 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica 53 5.2 Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática 57 5.3 As configurações do gênero e da sexualidade na UNIVESP 58 5.4 Para além das aparências 62 5.5 Apontamentos sobre o capítulo 70 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 73 REFERÊNCIAS 75 Eu_sou_a#_ 12 1 INTRODUÇÃO 1.1 “Eu sou a minha própria embarcação”1 Este trabalho surge das frustrações e das indagações vivenciadas durante toda a minha formação inicial como professor, realizada na Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira (Feis), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), entre os anos de 2013 e de 2018. Essas indagações e essas frustrações provêm de um sujeito de experiência. Sujeito esse a quem Larrosa Bondía (2002) define como um território de passagem, uma superfície sensível que o que acontece afeta e inscreve marcas, deixa vestígios e efeitos; um lugar a que as coisas chegam, como um ponto de chegada que recebe o que vem e dá-lhe lugar; é um espaço de acontecimentos; somente o sujeito de experiência está aberto a sua própria transformação. Antes de prosseguirmos, é importante destacar o sentido da palavra “experiência” para Larrosa Bondía (2002) e como podemos constituir um saber a partir dessa experiência. O autor entende que a experiência “[...] é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 21) e para que isso aconteça de fato precisamos interromper a velocidade máxima do mundo moderno. [...] requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 24). Assim, acredito que, no decorrer da minha2 trajetória profissional, constituí-me um sujeito de experiência ou, como coloca Larrosa Bondía (2002), um pirata: um ser que se expõe atravessando e percorrendo espaços indeterminados e, muitas vezes, perigosos, buscando oportunidades e ocasiões. O sujeito de experiência possui essa semelhança com o pirata, essa 1 O título desse tópico é um trecho da música “Um corpo no mundo”, de Luedji Luna. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=V-G7LC6QzTA.Acesso em 29 maio 2019. 2 Utilizaremos a primeira pessoa do singular durante a introdução, pois se tratam de reflexões que atravessaram esse sujeito de experiência autor do trabalho. Nos demais capítulos, utilizaremos a primeira pessoa do plural como uma forma de representar as várias vozes que contribuíram na construção desta dissertação. https://www.youtube.com/watch?v=V-G7LC6QzTA 13 necessidade de se expor, afinal é “[...] incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe” (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 25). Para tanto, a minha experiência pode ser constitutiva de um saber, intitulado por Larrosa Bondía (2002) como ‘saber da experiência’. Em uma suposta explicação, na qual duas pessoas vivenciaram o mesmo acontecimento e não constituíram experiências iguais, o autor indica-nos que a experiência é singular e incapaz de ser repetida, e o saber da experiência é “[...] particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal” (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 27). Nesse sentido, no processo de constituir um saber a partir minha experiência, eu me aproprio da minha vida (cf. LARROSA BONDÍA, 2002); entendo-me como minha própria embarcação que navega pelos mares, como um corpo que é singular e possui sua própria sorte, e carrego uma mala de mão e a história do meu lugar. 1.2 Terra à vista! Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 21). Na esteira de me entender como pirata, um sujeito de experiência, e inspirado em Larrosa Bondía (2002), decidi brincar com as palavras, interpretando minha trajetória profissional como uma terra que, como pirata, eu a avistei ao longe e decidi desbravar e expor- me nesse novo ambiente. Ambiente esse que é minha trajetória durante o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas na Feis/Unesp. No percorrer de meu curso de graduação, participei de espaços formativos que contribuíram para a minha formação, tais como coletivo, núcleo de estudos, grupo de pesquisa e projetos de extensão. Os primeiros passos dados foram nos projetos de extensão “Parque de Equoterapia” e “Formação Reflexiva Docente na Perspectiva Inclusiva: Trabalhando com uma Escola dos Anos Iniciais de Ensino Fundamental com Vistas à Inclusão”, que me ofereceram solos férteis para vivenciar a diversidade, em específico a diversidade de pessoas com deficiência. O projeto de extensão Parque de Equoterapia, coordenado pelo Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves (Feis/Unesp), foi desenvolvido por meio de parceria entre a Feis/Unesp e a Associação de Pais e Amigos Excepcionais (APAE) de Ilha Solteira e teve como objetivo 14 promover o atendimento equoterápico a crianças com necessidades educacionais da APAE visando seu desenvolvimento psicomotor, socioafetivo e cognitivo. Eu participei desse projeto como bolsista no meu segundo ano do curso (2014) e, nesse momento, ainda não me assumia e entendia-me como professor: acredito que essa identidade era inibida devido a representação precária da profissão docente. Já o projeto de extensão Formação Reflexiva Docente na Perspectiva Inclusiva: Trabalhando com uma Escola dos Anos Iniciais de Ensino Fundamental com Vistas à Inclusão, coordenado pelo Prof. Dr. Eder Pires de Camargo (Feis/Unesp), teve como objetivo constituir, em uma escola da rede pública paulista, oficinas pedagógicas, direcionadas para os docentes, referentes à inclusão, promovendo um espaço de formação continuada. Nesse projeto, fui bolsista durante o terceiro ano do curso (2015), em conjunto com as disciplinas pedagógicas que constituem o curso de Licenciatura, o que contribuiu para o início de um processo identitário: assumir-me como professor. No ano de 2016, participei como bolsista do projeto de extensão intitulado Interciência: Oficinas de Ciências da Natureza e Matemática, coordenado pelo Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves. O projeto visava implementar oficinas de Ciências da Natureza e Matemática em uma escola pública de Ensino Médio, organizadas em atividades pedagógicas interdisciplinares, experimentais e de natureza inovadora, em que eram tratados conceitos científicos na perspectiva de questões sociocientíficas. Essas atividades eram destinadas a alunos que enfrentavam dificuldades na aprendizagem de Física, de Matemática, de Química e de Biologia no contexto de uma escola pública paulista de ensino integral. Tal projeto foi um dos marcos no processo constituição e de assunção como professor, pois, nele, deparei-me com uma sala de estudantes e, então, tive de lidar e de vivenciar a prática docente nas salas de aula. Após os passos supramencionados, comecei a caminhar com mais segurança em outros solos, como a participação nos estudos e nas ações do Núcleo Afro-Brasileiro de Ilha Solteira (Nabisa), que também me permitiu vivenciar a diversidade, dessa vez, com as culturas africana e afro-brasileira, como partes constituintes da identidade do povo brasileiro. O projeto de extensão, que acompanha o Núcleo, desenvolve ações diversas, tais como ciclo de palestras, saraus, cine-debates, cursos de extensão, entre outras ações, com o objetivo de afirmar as culturas africana e afro-brasileira como partes integrantes da história do Brasil. Durante o ano de 2017, atuei como bolsista do Nabisa, optando por construir meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “O Núcleo Afro-Brasileiro de Ilha Solteira (NABISA): um relato de experiência” publicado como capítulo do livro “Educação das relações étnico-raciais e interdisciplinaridade: experiências de ensino, pesquisa e extensão do 15 N’umbuntu” (MARTINS; GONÇALVES, 2018). O meu TCC foi orientado pelo coordenador do núcleo, o professor Harryson Júnio Lessa Gonçalves. Destaco que, em 2018, o Nabisa integrou a problemática dos povos indígenas, alterando o nome para Núcleo Afro-Brasileiro e Indígena de Ilha Solteira e mantendo a sigla. Acentuo ainda minha participação no Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e Avaliação (GEPAC). No grupo, fui instigado a pesquisar sobre currículos e suas especificidades, compreendendo as diversas teorias e perspectivas curriculares, considerando nessas as relações de poder, ideológicas e identitárias inerentes à diversidade. O GEPAC é coordenado pelo Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves e pela Profa. Dra. Deise Aparecida Peralta (Feis/Unesp). Além dos supramencionados projetos de extensão, do Nabisa e do GEPAC, pontuo a minha participação no “Vaca Profana” – Coletivo de Gênero e Sexualidade de Ilha Solteira, que me apresentou os termos gênero e sexualidade e problematizou-os no contexto de Ilha Solteira. É importante pontuar essa participação, pois nela compreendi, de forma empoderada e fortalecida, minha identidade homossexual. 1.3 Pirateando a homossexualidade E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 20). Com a saída do armário realizada, comecei a aventurar-me nos aplicativos de relacionamentos para celulares. No meio dessas experiências, esbarrei em uma problemática da comunidade homossexual: o preconceito contra os afeminados. No exercício de refletir sobre esse preconceito, começo a compreender a identidade homossexual como limitada. Essa compreensão vem acompanhada de memórias da minha infância: a infância de uma criança viada3, que brincava de boneca com a irmã, que dançava a música Ragatanga da banda Rouge no pátio da escola em conjunto com outras meninas, e que, quando estava sozinha em casa, enrolava uma toalha de banho na cabeça e pegava um salto da mãe escondida para performar uma diva no corredor de casa. 3 Para Gonzatti e Machado (2018), a performatividade butleriana da criança viada está marcada por gestos que se repetem e que desviam das normas de gênero e da sexualidade, e que, ao desviar, mostram novas possibilidades para as estruturas pré-estabelecidas pelo sexo e pelo gênero. 16 Assim, a música Enviadescer da Mc Linn da Quebrada4 ecoou em meus ouvidos e ecoa até o momento da escrita, como ecoou também nos ouvidos de Takara (2017), como um convite a subversão desse ideário da masculinidade vestido de “macho discreto”, com sua brutal virilidade e sua representação fálica, e que destila a afeminofobia. [Em sua música,] [...] Linn enviadesce, chama as transviadas, sapatões, causa furor entre diferentes formas de ser. A terrorista de gênero esfrega em nossa cara com sua “bunda na nuca” como estamos acostumados a aceitar migalhas e pequenos milímetros no processo de enfrentamento diário a homofobia, ao machismo, ao sexismo e as diferentes formas de opressão. A artista, bicha, transviada, preta e favelada, da quebrada, explode em gargalhadas. Ela nos quer sentindo a vergonha de estarmos coniventes com sistemas de opressão. Ela aponta o dedo para os nossos privilégios. A masculinidade hegemônica que pregamos, o centrismo branco que sustentamos, a lógica heteronormativa que alimentamos (TAKARA, 2017, p. 9). Na efervescência da subversão, ousando piratear minha homossexualidade e assumindo a feminilidade que habita em meu corpo macho, começo a entender-me como bicha. A bicha é a figura feminina em corpos machos, que rompe com as normativas e estruturas da masculinidade e que contrapõe o que foi entendido social e culturalmente (TAKARA, 2017); ela foge da suposta essência das identidades, pois “[...] a bicha funciona como devir, mutação constante, processo inventivo. Não existe o ser bicha, pode-se apenas devir bicha, uma existência paradoxal que corrói as formações do ser” (ZAMBONI, 2016, p. 6). Indo ao encontro de Marconi (2017), entendo que toda fala carrega o contexto em que foi construída. A prova mais concreta dessa afirmação é a construção racista, misógina e sexista do discurso científico. Nesse sentido, ele nos convida a contestar esse modelo branco, masculino e cis-heterossexual, por meio de uma posição discursiva diferente, a posição da bicha intelectual. Ao falar da bicha intelectual, quero refletir sobre como as bichas – e pessoas negras, sapatas, mulheres, veados, putas e travecos – se valem da ciência, enquanto dispositivo, para desarmar a lógica do discurso científico tradicional, da produção de conhecimento e de uma cultura de violência (MARCONI, 2017, p. 59). Assim, inspirada no autor, me apresento aqui como uma bicha intelectual, não como um sinônimo de uma argumentação acrítica sobre lugar de fala e nem uma armadilha aos essencialismo e reificações identitárias, mas, sim, subvertendo a lógica do discurso científico tradicional. Eu quero me dar ao luxo de ter autonomia nessa pesquisa e dizer que não tenho 4 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=saZywh0FuEY. Acesso em 8 jul. 2019. https://www.youtube.com/watch?v=saZywh0FuEY 17 pretensão de me tornar o centro e me render ao sabor do poder. Pelo contrário, esse centro deve ser profanado, subvertido e desmembrado, e os seus limites e fronteiras devem ser borrados e rasurados (MARCONI, 2017). Entendo ainda que ser uma bicha intelectual e fincar essa bandeira por aqui não desfaz nenhum cânone específico do pensamento científico, a não ser aquele que supõe que bichas são incapazes de ser intelectuais e pesquisadoras (TAKARA, 2017). Neste contexto foi idealizada a presente investigação a partir do seguinte problema de pesquisa: Como se estruturam as questões de gênero e sexualidade no processo de formação inicial de professores/as de matemática na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp)? Exposto esses aspectos que introduzem e que fundamentam as opções adotadas neste trabalho, bem como o objetivo geral, seguem os capítulos que constituem esta dissertação. Neste primeiro capítulo, intitulado “Introdução”, apresentei a trajetória do pesquisador, pontuando o percurso de formação até a chegada ao curso de mestrado acadêmico, bem como reflexões sobre a identidade desse pesquisador. No segundo capítulo, intitulado “Delineamento da Investigação”, apresentamos a problematização dos temas que cerceiam a investigação, os objetivos gerais e específicos que a orientam, o percurso metodológico que expressa os documentos analisados e a discussão em relação à hermenêutica utilizada como subsídios para análises. No terceiro capítulo, intitulado “Relações de Gênero e Diversidade Sexual”, discutiremos as noções gênero e de sexualidade no cotidiano escolar. Assim, o capítulo perpassa também por discussões sobre os conceitos de identidade e a diferença que se articula com as relações de gênero e de diversidade sexual, bem como traça possibilidades para a formação de professores para as questões de gênero e sexualidade. No quarto capítulo, intitulado “Estudos de Gênero e Sexualidade no contexto da Educação Matemática”, apresentamos tais estudos por meio de uma revisão com um enfoque em teses e dissertações disponíveis na BDTD. No quinto e último capítulo, intitulado “Atravessamentos de Gênero e Sexualidade nos Documentos Curriculares Estaduais e Federais”, analisaremos os documentos curriculares propostos no delineamento da investigação, caracterizando os aspectos conceituais das relações de gênero e diversidade sexual e identificando os momentos e espaços apresentados na formação inicial de professores de matemática. Por fim, seguem nossas considerações finais do trabalho com o objetivo de apontar estudos posteriores e as referências utilizadas. 18 2 DELINAMENTO DA INVESTIGAÇÃO Por me sentir diverso e estar emergido na diversidade, sinto um grande interesse em pesquisar sobre o assunto e entender quais as relações da diversidade e das pessoas diversas na escola. Em contato com o trabalho de Monteiro (2013), compreendo que diversidade se trata de um termo polissêmico e aborda um amplo campo de conhecimento com seus respectivos recortes, como as relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade, de pessoas com deficiência, entre outros. Tendo em vista a amplitude do termo, decidi aprofundar-me em um dos recortes que mais me toca e sensibiliza-me enquanto uma bicha intelectual, o de gênero e de sexualidade. Um dos conceitos basilares de gênero e de sexualidade são as identidades sexuais e de gênero. Louro (1997) alerta-nos que ao definir e que ao explicar essas identidades acabamos caindo em uma armadilha da esquematização reducionista, que acaba por não traduzir as vivências reais. Todavia, permito-me arriscar à definição para fins didáticos para a leitura daqueles que não estão familiarizados com a temática. Dessa forma, entendo que as identidades sexuais constituíram-se por meio de formas de vivência da sexualidade ou pela orientação do desejo sexual (heterossexuais, homossexuais, bissexuais, entre outras), enquanto as identidades de gênero se constituíram pelas formas de identificação social dos sujeitos (masculinos e femininos), bem como outros sujeitos que transitam e as demais identidades. Essas identidades estão inter-relacionadas, são construídas e estão sempre em negociação, transformando-se e assumindo a instabilidade (LOURO, 1997). Demarcar esse território que será aprofundado durante a pesquisa provocou-me uma visita ao passado, quando vivenciei a minha formação nos Ensinos Fundamental e Médio. O espaço escolar da instituição em que estudei não era acolhedor com as pessoas classificadas como “desviantes” das normas sexuais e de gênero. Além do mais, a autocensura e o medo de uma possível repressão familiar me obrigavam angustiadamente a viver na clandestinidade do armário. Retorno, ainda, a minha formação inicial de professor de Ciências e de Biologia e percebo que não vivenciei disciplinas que auxiliassem e que desenvolvessem a temática da diversidade, exceto os espaços formativos extraclasse em que participei. Essa ausência converge com o que Monteiro (2013) denuncia como uma certa timidez nas ações efetivas sobre o tema ao analisar a diversidade cultural em currículos de curso de licenciatura em matemática. 19 Assim, amparados na Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil realizada pela ABGLT, publicado em 2016, percebemo5 que a homofobia se apresenta de forma esmagadora no cotidiano escolar. A pesquisa contou com 1.016 estudantes de todos os estados brasileiros e do Distrito Federal, exceto o estado de Tocantins. O relatório da ABGLT aponta que 60% dos/das estudantes que rompem com a heteronormatividade sentem-se inseguros na escola; 73% já foram verbalmente agredidos/as em decorrência de sua orientação sexual e 68% em razão da sua identidade/expressão de gênero; 27% sofreram violência física devido a sua orientação sexual e 25% devido a sua identidade/expressão de gênero. Em relação à resposta da escola sobre as agressões, 39% dos/das respondentes acreditaram que foi ineficaz a resposta dos/das profissionais para impedir as agressões, denunciando um despreparo no corpo profissional escolar, incluindo a formação docente. O problema agrava-se quando o relatório desenvolvido pelo GGB (2018) expõe a situação precária e desumana em que as pessoas que rasuram as normas de gênero e sexualidade vivem, apresentando dados que indicam a morte, de forma violenta, de uma pessoa a cada 20 horas, tornando o nosso país o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais e de gênero. Segundo o relatório, 420 pessoas morreram vítimas de preconceito e de discriminação no Brasil em 2018, das quais 45% eram gays; 39%, trans6; 12%, lésbicas e 2%, bissexuais. Além disso, o grupo apresentou 1% de vítimas heterossexuais, pois foram assassinados por envolvimento direto com essas pessoas ou por serem “confundidos com gays”. O total de 164 mortes trans, se referidas a 1 milhão de pessoas trans existentes em nosso país, indicam que o risco de uma pessoa trans ser assassinada é 17 vezes maior do que o de um gay. De acordo com GGB (2018), pessoas gays, lésbicas e bissexuais têm seis vezes mais chance de cometerem suicido do que pessoas heterossexuais, com risco 20% maior de suicídio quando convivendo em ambientes hostis a sua identidade sexual ou de gênero. Essas taxas discrepam, devido ao preconceito e à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Em se considerando tais apontamentos, indagamo-nos se os profissionais, que trabalham no espaço escolar, são formados para interagir com diferentes sujeitos e/ou cenários marcados 5 A partir daqui, utilizaremos a primeira pessoa do plural, pois entendemos que o processo de delineamento da investigação em tela aconteceu por meio de diálogos com o orientador, a coorientadora, a banca de qualificação e as pessoas integrantes do GEPAC. 6 O GGB adota o rótulo “trans” para se referir a travestis, aos homens e às mulheres transexuais, às dragqueens, às pessoas não binárias e às transformistas. 20 pelas diversidades. Questionamos, ainda, qual é o lugar da diversidade sexual e de gênero na formação de professores/as? Há um lugar nos currículos de formação inicial de professores/as? Tais aspetos dependeriam da formação continuada? Fato é que o preconceito contra pessoas que borram as normas de gênero e de sexualidade constitui-se como grave violação do direito fundamental da liberdade de orientação sexual e identidade de gênero, de acordo com os Pareceres n. 4.414/2014 e n. 214.146/2016 do Mandado de Injunção n. 4.733 do processo que tenta obter a criminalização de todos os tipos de homofobia e de transfobia. O Ministério Público Federal, pelos pareceres citados, ainda equiparou essas formas de preconceito ao racismo, posicionando-se a favor de sua criminalização, reconhecendo que tais normas já existem em diversos países, sendo um compromisso internacional previsto em documentos da ONU (GGB, 2018). Por ser signatário desses documentos da ONU, o Estado brasileiro deve agir de modo a colocar em prática e a garantir os aspectos supracitados. Para tanto, tomemos como exemplo o quinto objetivo do Eixo III do Plano Nacional de Direitos Humanos que garante o respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero (BRASIL, 2010). Tais direitos estão presentes nos princípios fundamentais da Constituição Federal (CF/1988), em especial a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos/as, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais outras formas de discriminação; e os preceitos da igualdade, dignidade humana e do direito à educação (BRASIL, 1988). Nesse sentido, considerando os dados estatísticos relativos às vítimas de preconceito e discriminação (GGB, 2018), bem como aqueles relacionados ao ambiente educacional, questionamos se o direito à dignidade da pessoa humana e à educação, apresentados como um dos fundamentos da CF/1988, estão, efetivamente, assegurados para esse grupo minoritário.7 Uma das recomendações apresentadas no relatório da ABGLT (2016) é que os currículos dos cursos de formação de professores/as tenham conteúdos específicos sobre o respeito à diversidade sexual, bem como a formação continuada para profissionais da educação, para que consigam efetivamente acolher os/as estudantes LGBT+ e agir diante dos problemas que surgem nas escolas. Como antecipamos na Introdução, delineamos esta investigação a partir do seguinte problema de pesquisa: Como se estruturam as questões de gênero e sexualidade no processo 7 Referimo-nos a minoria como um grupo que apresenta vulnerabilidade social e, com relação a grupos dominantes, desvantagem em privilégios. 21 de formação inicial de professores/as de matemática na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp)? Optamos por realizar a pesquisa em um curso de Licenciatura em Matemática, porque, segundo Cardoso e Santos (2014), há uma separação de gênero nas aulas de matemática. As autoras apontaram um maior envolvimento dos meninos nas aulas de matemática se comparados ao das meninas. Para as autoras, a professora de matemática investigada direcionava mais sua aula para os meninos, enquanto as meninas eram esquecidas. Além da maioria dos exemplos de situações-problema utilizadas nas aulas terem homens como protagonista e quando as protagonistas eram mulheres os exemplos serem sempre de alguém decorando, cuidando e brincando de boneca, os próprios livros didáticos apareceram como um reforço para separação de gêneros. Todas essas situações relatadas reforçam o discurso de que “meninos são predispostos a gostarem de cálculo” e “meninas não gostam de cálculo”, acentuando o gênero nos discursos da matemática. Segundo Barbosa (2016), as afirmações “mulheres não gostam de cálculo”, “mulheres são pouco racionais”, “mulheres são mais sensíveis”, entre outras, quando repetidas diversas vezes, podem funcionar dentro da lógica da performatividade e criar um padrão baseado nessas afirmações. Ainda, Brancaleoni e Oliveira (2015), ao analisarem a concepção de gênero e de sexualidade de educadores de uma escola, identificaram que, ao se tratar dessa temática, ocorre um “jogo de empurra” na escola. As autoras apresentam-nos uma situação que nos parece comum nas escolas. Porque esse é um tema difícil envolve muita coisa, é complicado trabalhar. É difícil eu pedir para um professor de matemática, por exemplo, trabalhar o tema, não tem formação, não sabe como. Quem tem mais condição de trabalhar o tema é o professor de ciências e biologia porque é da formação dele. É o professor de ciências e biologia que é responsável por trabalhar reprodução. Então é difícil [...] (BRANCALEONI; OLIVEIRA, 2015, p. 1453, grifos nossos). Essa concepção, presente nos achados das autoras, reflete que somente o professor de Ciências e Biologia estaria capacitado para desenvolver essa temática em sala de aula diverge das preconizações dos PCN, que classificam a sexualidade como um tema transversal. Segundo os PCN (BRASIL, 1998), a sexualidade encontra-se contemplada pelas diversas áreas de conhecimento e, por conseguinte, deve ser desenvolvida por meio da transversalidade. Assim, a sexualidade estará por toda a prática educativa e “[...] cada uma das 22 áreas tratará da temática da sexualidade por meio da sua própria proposta de trabalho” (BRASIL, 1998, p. 87). Nesse sentido, o documento sinaliza que a sexualidade deve ser trabalhada em todas as áreas, inclusive na matemática. Então, cabe o questionamento, como esses temas são trabalhados na formação inicial dos professores de matemática? Brancaleoni e Oliveira (2015)8 discutem que o professor de matemática, muitas vezes, reforça os binarismos homem-mulher naturalizando características para cada um dos gêneros, nomeadamente: o homem é mais competitivo e a mulher é mais vaidosa. Apesar desse tipo de atitude poder também ser encontrada em professores de outras disciplinas, essa ocorrência incomodou-me, sinalizando uma necessidade de estudar a inserção desses temas na formação de professores de matemática. Rands (2009), ao citar diversos trabalhos que discutem gênero e sexualidade com alguma disciplina do currículo escolar, aponta para uma defasagem em pesquisas que abordam gênero e sexualidade na Educação Matemática. Segundo a autora, nessa seara, “[...] a matemática continuou sendo a matéria que não ousa pronunciar seu nome” (RANDS, 2009, p. 182). 2.1 Objetivos 2.1.1 Objetivo geral Analisar o processo de formação inicial de professores/as de matemática para as relações de gênero e diversidade sexual na Univesp. 2.1.2 Objetivos específicos Caracterizar aspectos conceituais sobre as relações de gênero e de diversidade sexual presentes no projeto pedagógico do curso, bem como identificar os momentos e os espaços na formação inicial de professores/as para lidar com tais temáticas no cotidiano escolar. 2.2 Percurso Metodológico Este trabalho caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, em que investigaremos o processo de formação inicial de professores de matemática na Univesp para questões de gênero 8 Ressaltamos que os achados das autoras são parte integrante de um projeto maior desenvolvido nas escolas. 23 e sexualidade. A escolha dessa universidade pública paulista justifica-se pelo fato de que o estado de São Paulo, em comparação a outros estados brasileiros, apresenta o maior número de homicídios e de suicídios de pessoas que rompem com as normas de gênero e de sexualidade. Em termos absolutos, foram 58 vítimas (GGB, 2018). Esta pesquisa qualitativa tem como cerne a análise documental, que, segundo Cellard (2014), é um método de coleta de dados que elimina parte da influência exercida pela presença e pela intervenção do pesquisador, pois consiste na exploração dos documentos durante o procedimento da pesquisa. Amparado pelo autor, entendemos que os objetos de investigação de uma análise documental podem ser textos escritos, bem como documentos de natureza iconográfica e cinematográfica, ou qualquer tipo de registro (objetos do cotidiano, elementos folclóricos, entre outros). Cellard (2014) sinaliza ser necessário aceitar o documento como se apresenta, com suas incompletudes e imprecisões, e avaliá-los pela ótica da criticidade. A análise desmembra-se em cinco dimensões, a saber: (i) o contexto global em que o documento foi produzido; (ii) os autores do documento; (iii) a autenticidade e a confiabilidade do texto; (iv) a natureza do texto; e (v) a lógica interna do texto, ou seja, o sentido das palavras e dos conceitos utilizados. A investigação visa caracterizar os aspectos conceituais sobre as relações de gênero e de diversidade sexual presentes nos seguintes documentos.9 a) Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica: • Resolução CNE/CP n. 1, de 18 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002a); • Resolução CNE/CP n. 2/2002, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002b); • Resolução CNE/CP n. 2/2015, de 1 de julho de 2015 (BRASIL, 2015a); • Resolução CNE/CP n. 2/2019, de 20 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019b). b) Pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) referentes às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica: 9 Destacamos que todos os documentos possuem um link nas referências para o acesso na íntegra, exceto o projeto pedagógico do curso de Licenciatura em Matemática da Univesp e o regulamento de estágio, que foram adquiridos por uma solicitação de informação através do Sistema Integrado de Informação ao Cidadão (SIC) do estado de São Paulo. Esta solicitação de informação foi realizada no dia 23 de setembro de 2019, e foi atendida no dia 14 de outubro de 2019. 24 • Parecer CNE/CP n. 9, aprovado em 8 de maio de 2001 (BRASIL, 2001a); • Parecer CNE/CP n. 21, aprovado em 6 de agosto de 2001 (BRASIL, 2001b); • Parecer CNE/CP n. 27, aprovado em 10 de outubro de 2001 (BRASIL, 2001c); • Parecer CNE/CP n. 28, aprovado em 2 de outubro de 2001 (BRASIL, 2001d); • Parecer CNE/CP n. 2/2015, aprovado em 9 de junho de 2015 (BRASIL, 2015b); • Parecer CNE/CP n. 22/2019, aprovado em 7 de novembro de 2019 (BRASIL, 2019a). c) Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática, emitidos pela Câmara de Educação Superior (CES) do CNE: • Parecer CNE/CES n. 1302, aprovado em 6 de novembro de 2001 (BRASIL, 2001e); • Resolução CNE/CES n. 3, de 18 de fevereiro de 2003 (BRASIL, 2003). d) Deliberações do Conselho Estadual de Educação (CEE) de São Paulo: • Deliberação CEE n. 111, de 1 de fevereiro de 2012 (SÃO PAULO, 2012); • Deliberação CEE n. 126, de 4 de junho de 2014 (SÃO PAULO, 2014); • Deliberação CEE n. 132, de 8 de abril de 2015 (SÃO PAULO, 2015); • Deliberação CEE n. 263, de 7 de julho de 2018 (SÃO PAULO, 2018). e) Documentos relativos à Univesp: • Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) (UNIVESP, 2018); • Projetos Pedagógico de Curso (PPC) do curso de Licenciatura em Matemática (UNIVESP, 2019a); • Regulamento de Estágios (UNIVESP, 2019b). Entendendo que a pesquisa tem como procedimento de coleta de dados a análise documental, percebemos a necessidade de delimitar o referencial metodológico escolhido para analisar esses dados: a hermenêutica de Ricoeur (1990). 25 2.3 Percorrendo as trilhas da hermenêutica Para Ricoeur (1990) “[...] a hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos” (RICOUER, 1990, p. 17). Resgatando a historicidade da teoria, o autor divide a trajetória da hermenêutica em dois principais movimentos, a saber: (i) das hermenêuticas regionais à hermenêutica geral e (ii) da epistemologia à ontologia. Visto a importância dessa divisão, apresentaremos essa historicidade com base em Ricoeur (1990). No primeiro movimento, intitulado ‘das hermenêuticas regionais à hermenêutica geral’, Ricoeur (1990) problematiza, inicialmente, essa teoria e os principais percursores dela, quais sejam: Friederich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey. No segundo movimento, intitulado ‘da epistemologia à ontologia’, ele nos apresenta as contribuições de Martin Heidegger e de Hans- Georg Gadamer. De modo introdutório, Ricoeur (1990) destaca que a hermenêutica possui uma relação privilegiada com a linguagem devido a sua polissemia, característica das palavras que possuem mais de um significado, levando em consideração a retirada do contexto. Essa polissemia exige um trabalho de interpretação. Assim, a sensibilidade ao contexto é um complemento necessário. De certa forma, consideramos que em uma troca de mensagens entre interlocutores há um manejo de contextos que necessita de um discernimento. Também consideramos essa atividade de discernimento como a interpretação, que tem como fundamento reconhecer a mensagem “[...] relativamente unívoca que o locutor construiu apoiado na base polissêmica do léxico comum” (RICOEUR, p. 19, 1990). É nesse contexto de mensagens trocadas que Ricoeur (1990) alerta-nos para o domínio limitado da escrita, ou, parafraseando ao autor, o que Dilthey chamou de expressões da vida fixadas pela escrita. Entretanto, o próprio autor afirma que as escritas demandam um trabalho específico de interpretação, pois há a necessidade de elevarem-se os sinais escritos em um nível de discurso e, ainda, de discernir a mensagem através das codificações. Retornando ao primeiro movimento da hermenêutica, Ricoeur (1990) comenta que Schleiermacher tinha o intuito de extrair um problema geral da atividade de interpretação, ou seja, produzir uma hermenêutica geral. Antes de Schleiermacher, existia apenas a filologia dos textos clássicos e uma exegese dos textos sagrados. O problema com o qual Schleiermacher deparou-se foi a relação entre duas formas de interpretação, quais sejam: a interpretação ‘gramatical’ e a interpretação ‘técnica’. Ricoeur (1990), contudo, aponta que, na tentativa de 26 consolidar essas duas formas de interpretação, Schleiermacher criou um extremo embaraço entre as duas. Em seguida, Dilthey atenta-se para a relação entre a hermenêutica e a história, trazendo o princípio de que o texto é a própria realidade e o seu encadeamento. É necessário conceber a precedência da coerência da história antes da coerência do texto, pois a história é o grande documento do ser humano. Além disso, Dilthey preocupava-se também com uma reforma da própria epistemologia hermenêutica, inquietação essa provocada pela ascensão do positivismo enquanto filosofia. O tempo de Dilthey é o da completa recusa do hegelianismo e o da apologia do conhecimento experimental. Por conseguinte, o único modo de se fazer justiça ao conhecimento histórico parecia consistir em conferir-lhe uma dimensão científica, comparável à que as ciências da natureza haviam conquistado. Assim, foi para replicar ao positivismo que Dilthey tentou dotar as ciências do espírito de uma metodologia e de uma epistemologia tão respeitáveis quanto as das ciências naturais (RICOEUR, 1990, p. 24). É nesse contexto que Dilthey reflete a possiblidade do conhecimento histórico, ou a possibilidade das ciências do espírito. Essa reflexão é de grande importância para a hermenêutica, pois ela estava apartada da explicação naturalista e relegada à intuição psicológica (RICOEUR, 1990). Com o apoio da Psicologia, Dilthey procura o caráter principal e distintivo do compreender, estipulando que todas as formas de conhecimento do ser humano, que envolvem uma relação histórica, carregam uma capacidade primordial de se transpor na vida psíquica de outro(s). Nesse sentido, revela que o conhecimento natural tem o intuito de atingir fenômenos distintos dele e, assim, explicar. Enquanto o conhecimento humano se dá na relação de conhecer o outro, ou seja, um humano conhecer o outro humano; assim “[...] o homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque fornece sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é compreender o homem” (RICOEUR, 1990, p. 25). Para tanto, ao contrário do conhecimento natural que visa explicar, o conhecimento humano visa compreender. Contudo, Dilthey ainda estava sob as rédeas cientificas do positivismo ao elaborar uma teoria hermenêutica fundamentada na Psicologia. O autor só conseguiu romper essas amarras ao inserir o conceito de hermenêutica na teleologia da vida, combinando o conceito de dinamismo e de estrutura, concluindo que a vida é “[...] como um dinamismo que se estrutura a si mesmo” (RICOEUR, 1990, p. 27). Dessa forma, Dilthey consegue elaborar a problemática central da hermenêutica, que é a compreensão do texto sob a lei da compreensão do outro que 27 nele se exprime. Esse empreendimento tem um fundo psicológico no quesito da interpretação, não do que diz o texto, mas quem nele se expressa. Já no segundo movimento da hermenêutica, Ricoeur (1990) apresenta as contribuições de Heidegger e de Gadamer, as quais giram em torno da pressuposição diltheyana de compreender a hermenêutica como epistemologia, sem aperfeiçoá-la. Trata-se da recolocação das questões do método hermenêutico sob o controle de uma ontologia prévia. A primeira provocação de Heidegger é diferenciar epistemologia e ontologia, explicitando que a hermenêutica possui solo ontológico. Em seguida, a compreensão é desconectada da necessidade do outro e estabelecida em uma relação com o mundo, de modo que “[...] é na relação com minha situação, na compreensão fundamental de minha posição no ser, que está implicada, a título principal, a compreensão” (RICOEUR, 1990, p. 32). Esse processo de mundanizar o compreender é utilizado como uma arma heideggeriana para a despsicologização, inserindo a ontologia como base para a hermenêutica. Além disso, as reflexões heideggerianas colocam o compreender como um ‘poder-ser’, um projetar. Nessa lógica, o compreender não se torna sinônimo da apresentação de um fato, mas de uma possibilidade de ser. Significa dizer que ao compreender um texto não descobriremos um sentido inerte dele; senão, revelaremos uma possibilidade a ser indicada no texto. No entanto, Ricoeur (1990) entende que Heidegger deixa a desejar no quesito da filosofia da linguagem, apresentando como se fosse uma segunda articulação do seu trabalho e não a principal articulação. O autor também não dá continuidade ao desenvolvimento do círculo hermenêutico. Mais à frente, Gadamer propõe continuar o debate da hermenêutica baseada na ontologia heideggeriana, organizando sua obra a partir do debate entre o distanciamento alienante e a experiência de pertença. O passeio gadameriano situa-se nas esferas da experiência hermenêutica, a dizer: esfera estética, esfera histórica e esfera de linguagem. Ricoeur (1990) deixa bem claro que Gadamer opera os movimentos na trajetória da hermenêutica: das hermenêuticas regionais à uma hermenêutica geral e da epistemologia à ontologia. As reflexões gadamerianas atingem seu ápice, quando culminam em uma teoria da consciência histórica, isto é, uma consciência de ser exposto à história e a sua ação, que sustenta o fenômeno histórico como impossível de objetivações. No entanto, essa consciência histórica possui uma estratégia de distanciamento, a própria distância histórica, que vem acompanhada da ‘coisa do texto’ que nos permite comunicar a distância. Em suma, a obra de Gadamer nos indica uma assimetria entre metodologia e ontologia, deixando ao nosso critério a escolha entre uma ou outra, entre a verdade ou o método. 28 Assim, Ricoeur (1990) recusa a alternativa gadameriana e tenta elaborar uma forma de pensar que a ultrapassará. Ele parte da problemática dominante do texto para unir a verdade e o método. O texto é, para mim, muito mais que um caso particular de comunicação inter- humana: é o paradigma do distanciamento na comunicação. Por esta razão, revela um caráter fundamental da própria historicidade da experiência humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela distância (RICOEUR, 1990, p. 44). Nesse contexto de ultrapassagem da teoria gadameriana, o autor apresenta a noção de texto como um produtor do próprio distanciamento e portador da historicidade da experiência humana. Em primeiro lugar, ele parte do primeiro polo constitutivo do discurso que é ser considerado como evento, ou seja, “[...] algo acontece quando alguém fala” (RICOEUR, 1990, p. 45). A passagem da linguística da língua para uma linguística do discurso estabelece um distanciamento próprio do discurso. O discurso também é realizado temporalmente no presente e é elaborado por um locutor, o que provoca no discurso uma instância autorreferencial. Ainda, o discurso carrega a linguagem de um mundo na medida em que intenciona descrevê-lo, exprimi-lo ou representá-lo. Logo, o discurso possui o seu mundo e se dirige a um interlocutor, que também possui seu próprio mundo. Para tanto, o discurso entendido como evento traz a característica de um fenômeno temporal que estabelece a troca pelo diálogo. Esse diálogo pode se prolongar ou ser interrompido. O discurso possui um segundo polo de um par constitutivo, o da linguística. Polo esse que se articula com o primeiro. Assim como a língua, ao articular-se sobre o discurso, ultrapassa-se como sistema e realiza-se como evento, da mesma forma, ao ingressar no processo da compreensão, o discurso se ultrapassa enquanto evento, na significação (RICOEUR, 1990, p. 47). Essa articulação entre esses dois polos, que ocorre na linguística do discurso, é o núcleo de todo problema hermenêutico. Além disso, é da tensão entre esses dois polos (evento e significação) que surge a produção do discurso como obra. Nesse sentido, o primeiro distanciamento é do dizer no dito. Segundo Ricoeur (1990), o dito pode ser entendido com base na teoria do Speech-Act, que configura o ato do discurso em uma hierarquia de atos subordinados dividos em três níveis, a saber: (i) o nível do ato locucionário/proposicional, o ato de dizer; (ii) o nível do ato ilocucionário, o que fazemos ao 29 dizer; e, por fim, (iii) o nível do ato perlocucionário, o que fazemos pelo fato de falar. Esses níveis possibilitam transmitir a intencionalidade do discurso na escrita, ou seja, entender a efetuação da linguagem como discurso. Ainda, podemos pensar o discurso como obra, na medida em que a obra possui uma composição que vai além de uma frase, e também é submetida a uma codificação para tornar o discurso um relato, um poema, entre outras codificações, provocando um estilo individual para a obra. Para tanto, a partir da composição, da codificação e do estilo individual10 de uma obra, podemos compreende-la enquanto um discurso. O sujeito desse discurso pode ser pensado, então, como o autor da obra. Entretanto, quando o discurso é passado da fala para a escrita, ocorrem algumas alterações. Inicialmente, o texto não carrega mais o significado proposto pelo autor, ocasionando em uma autonomia do texto em relação à intenção do autor. Essa autonomia do texto possibilita sua descontextualização e sua recontextualização em situações diferentes, em contextos socioculturais diferentes. Além do que, o discurso escrito possibilita também uma libertação da coisa escrita, de forma que todo aquele que sabe ler tem acesso. Essa autonomia proporciona descontextualizações e recontextualizações, bem como proporciona que o texto carregue sua proposição de mundo, que é o mundo do texto. Nessa lógica, a interpretação toma um novo sentido, que é o de “[...] explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto” (RICOEUR, 1990, p. 56). Assim, um texto deve ser interpretado de modo que consigamos habitar o seu mundo e projetar suas possibilidades. Uma obra é dirigida a seus leitores, de modo que lhes possibilite compreender, diante da obra, inserindo, assim, o aspecto subjetivo de um diálogo. Aspecto esse que é criado e instituído pela própria obra, colocada de fronte com o leitor. Portanto, a hermenêutica de Ricoeur (1990) calha para este trabalho uma vez que, a partir da nossa posição de ser-no-mundo, interpretaremos o mundo constituído pelos documentos curriculares selecionados e nos compreenderemos diante desses documentos. É válido destacar que essa posição de ser-no-mundo é atravessada pela carga teórica que constitui este trabalho. Além do mais, ousamos dizer que nossa interpretação ocasionará em uma constituição de um saber pela experiência de ser-no-mundo proferido por Larossa Bondía (2002) e comentado no início desse trabalho. Para tanto, este capítulo intenciona discorrer o processo de delineamento da investigação, apresentando o problema de pesquisa e os objetivos gerais e específicos que 10 Ricoeur (1990) diz que a noção de estilo carrega os caracteres de evento e de sentido constitutivo do próprio discurso. 30 orientam os percursos da pesquisa, bem como os caminhos metodológicos e o referencial de análise. A relevância do mesmo se faz presente na medida em que o capítulo demonstra minuciosamente os passos traçados durante a investigação. 31 3 RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL Este capítulo objetiva apresentar ao leitor o motivo de a escola tornar-se problemática central quando o assunto são as relações de gênero e de diversidade sexual. Além disso, traremos os apontamentos sobre os conceitos de identidade e a diferença como propulsores das questões identitárias, especialmente no tocante às identidades de gênero e sexuais. Por fim, concluiremos, apresentando direções para uma possível formação de professores preocupada com às questões de gênero e de sexualidade. 3.1 Estreitando as relações entre o gênero e a sexualidade Ao distinguir entre sexo e gênero, teóricas feministas sugeriram que o gênero é o significado cultural assumido pelo corpo sexuado. Beauvoir (2009), ao escrever O Segundo Sexo, cunha a célebre frase "não se nasce mulher, torna-se mulher”. A autora sugere que a categoria das “mulheres” é uma realização cultural variável, um conjunto de significados que são adquiridos ou assumidos dentro de um campo cultural. A partir dessa análise, a categoria gênero passou a ser usada em estudos feministas para desvincular a realização cultural variável do corpo sexuado, que passou a ser expresso pela categoria ‘sexo’. Para Beauvoir (2009), ninguém nasce com o gênero, mas, sim, adquire-o. Quanto ao sexo, seria um atributo analítico necessário do humano, isto é, não há humano que não tenha sexo, uma vez que o sexo qualifica o humano como um atributo necessário. Contudo, o sexo não causa o gênero e nem se pode dizer que o gênero reflita ou expresse o sexo. Isso não resolveu todos os problemas conceituais trilhados pelo feminismo com relação à conceitualização destas categorias. Mesmo assumindo-se que o gênero seja um conjunto de comportamentos ou características construídas, a questão de como essa construção ocorre recebeu respostas diversas. Butler (2003) levanta essa questão em Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Quando teóricas feministas afirmam que o gênero é uma interpretação cultural do sexo, ou que o gênero é construído culturalmente, qual é o modo ou mecanismo dessa construção? Se o gênero é construído, poderia sê-lo diferentemente, ou sua característica de construção implica alguma forma de determinismo social que exclui a possibilidade de agência ou transformação? […] Em algumas explicações, a ideia de que o gênero é construído sugere certo determinismo de significados do gênero, inscrito em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável. Quando a “cultura” 32 relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei/conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino (BUTLER, 2003, p. 26). A autora interpreta que há na proposição de Beauvoir (2009) uma implicação sobre como essa construção acontece. Para Beauvoir, o gênero é “construído”, mas há um agente implicado em sua formulação, um cogito, que de algum modo assume ou se apropria desse gênero, podendo, em princípio, assumir algum outro (BUTLER, 2003, p. 26). Em Beauvoir (2009), a construção parece ser resumida a uma questão de escolha; para Butler (2003), essa construção é discursivamente condicionada. Há sempre limites estabelecidos nos termos de um discurso cultural hegemônico em que predominam estruturas binárias. Mais ainda, para Butler não há um cogito por trás dessa construção: o gênero é sempre uma ação, mas não a ação de um sujeito que preexiste a ação. O gênero é produzido de forma performativa e compelido pelas práticas regulatórias do que ela chama de coerência de gênero. Além do mais, Bultler (2003) acredita que não existe uma “essência” em que o gênero expresse ou externalize, nem um ideal objetivo ao qual o gênero aspire. Sendo assim, o gênero não é um fato: é, pois, constituído por vários atos que criam a ideia de gênero. Sem esses atos, não haveria gênero. O gênero, portanto, é uma construção que oculta sua gênese, fazendo com que acreditamos em sua necessidade e naturalidade. O livro Problemas de Gênero alcançou imensa popularidade, talvez por uma leitura um tanto enviesada, ou sintomática, como coloca Butler em uma entrevista de 1994. Uma das interpretações feitas sobre Problemas de Gênero é de que não há sexo, há apenas gênero e o gênero é performativo. As pessoas então pensam que, se o gênero é performativo, deve ser radicalmente livre. E pareceu a muitos que a materialidade do corpo é esvaziada, ignorada ou negada aqui — repudiada até (OSBORNE; SEGAL, 1994, p. 32, tradução nossa do original). Então, a autora escreve Bodies that Matter (BUTLER, 1993), para voltar à categoria ‘sexo’ e ao problema da materialidade, perguntando como é que o próprio sexo pode ser interpretado como uma norma. A autora indaga se existe uma maneira de vincular a questão da materialidade do corpo à performatividade de gênero e como a categoria sexo aparece nessa relação. 33 Para Butler (1993), diferenças de sexo nunca são simplesmente uma função de diferenças materiais, mas são também marcadas e formadas por práticas discursivas. A autora ressalta, no entanto, que essas diferenças não permitem afirmar que o discurso causa diferença sexual. Baseando-se em Foucault, Butler (1993) afirma que a categoria de "sexo" é normativa, um ideal regulatório. Em outras palavras, sexo é uma construção ideal que se materializa à força ao longo do tempo. Não é um fato simples ou condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas reguladoras alcançam materialização através de uma reiteração forçada dessas normas (BUTLER, 1993). Questionamos, então, como a noção de performatividade de gênero se relaciona com essa concepção de materialização? Em um primeiro momento, a performatividade deve ser entendida não como um ato singular ou deliberado, mas, sim, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que nomeia. Assim, as normas reguladoras do ‘sexo’ funcionam de maneira performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo e a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual. Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos, será totalmente material. Materialidade essa que será repensada como o efeito mais produtivo do poder. Não há como entender ‘gênero’ como uma construção cultural imposta à superfície da matéria, entendida como o corpo ou seu sexo. Antes, uma vez que o próprio sexo seja entendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não será pensada à parte da materialização dessa norma reguladora. ‘Sexo’ não é, portanto, simplesmente algo que se tem ou que se é, mas uma das normas pelas quais o único se torna viável, aquilo que qualifica um corpo para a vida dentro do domínio de inteligibilidade cultural. Wittig (1993) compreende a categoria ‘sexo’ como não sendo invariável, nem natural. Trata-se de um uso, especificamente, político de uma categoria para servir aos propósitos da sexualidade reprodutiva. Em outras palavras, para a autor, a única razão para dividir os corpos humanos entre os sexos masculino e feminino seria atender às necessidades econômicas da heterossexualidade e emprestar um brilho naturalista a sua própria instituição. Portanto, para Wittig (1993), não há distinção entre sexo e gênero: a categoria de ‘sexo’ é uma categoria de ‘gênero’, totalmente investida politicamente, naturalizada, mas não natural. A recusa em se tornar (ou permanecer) heterossexual sempre significou se recusar a se tornar um homem ou uma mulher, conscientemente ou não. Para uma lésbica, isso vai além da recusa do papel de "mulher". É a recusa do poder econômico, ideológico e político de um homem. Isso nós lésbicas, bem como 34 as não-lésbicas, sabíamos antes do início do movimento lésbico e feminista. (WITTIG, 1993, p. 105, tradução nossa do orginal). Essas reflexões de Wittig (1993) e Butler (1993) são pilares para pensarmos a forte relação entre o gênero e a sexualidade. Consideramos, assim como Butler fala em sua entrevista de 1994 (OSBORNE; SEGAL, 1994), que a separação de análises de sexualidade e gênero é um grande erro. 3.2 Mas, por que relações de gênero e diversidade sexual na escola? O termo “relações de gênero e diversidade sexual” é entendido, aqui, como as identidades sexuais e de gênero, as quais Louro (2018) coloca como definidas e compostas por meio das relações sociais e moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. Segundo a autora, as identidades de gênero são inscritas nos corpos no contexto de uma determinada cultura e carregam as suas marcas; ao passo que as identidades sexuais, incluindo as formas de expressar os desejos e os prazeres, são socialmente estabelecidas e codificadas. Compreendemos, ainda segundo a autora, que a sexualidade é construída ao longo de toda a vida, de diversos modos, por todos os sujeitos. É também uma questão social e política, pois suas formas de representação e seus significados atribuídos a suas experiências e a suas práticas são atravessados/marcados pelas relações de poder. Assim, nessas relações de poder, a heterossexualidade é marcada como uma forma de sexualidade ‘natural’, é generalizada como referência para todos os sujeitos, é tida como universal e normal (LOURO, 2018). A sede por entender as relações de gênero e de diversidade sexual na escola advém dos estudos de Junqueira (2015). Segundo o autor, historicamente, a escola brasileira estruturou-se a partir de um conjunto de valores, de normas e de crenças responsáveis por considerar qualquer pessoa que não se sintoniza com as referências do padrão (adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal”), como estranho, desviante, pecador, inferior, contagioso ou pervertido. Assim, a escola transformou-se em um espaço de circulação de preconceitos de diversas ordens: racismo, sexismo, machismo, LGBTfobia e outros que realizam a gestão das fronteiras da normalidade; e não são apenas circulados, como estão na ordem do currículo, são consentidos, cultivados e promovidos (JUNQUEIRA, 2015). Esses preconceitos surgem a partir do processo de reconhecimento do “outro”, que é diferente de nós (ou de mim), e que desenvolvidos numa escala maior (sociedade), acabam construindo contornos demarcadores de fronteiras entre aqueles que representam a norma e os 35 que ficam fora dela. A norma em nossa sociedade, estabelecida historicamente, é o homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão (LOURO, 2018). Seffner (2013) caracteriza o regime da heteronormatividade como a articulação dessa norma, especialmente em relação às identidades sexuais e de gênero. Assim, o regime da heteronormatividade estabelece como natural a coerência entre sexo biológico (macho/fêmea), gênero (homem/mulher) e orientação sexual (heterossexual). Essa coerência materializa-se da seguinte forma: se uma pessoa nasceu “macho”, deve identificar-se como homem e orientar seu desejo sexual para pessoas que nasceram “fêmeas”, que, por sua vez, identificam-se como mulheres e orientam o seu desejo para homens. Essa lógica é basilar para o regime da heteronormatividade. Para Louro (2018), a escola é uma das instituições na sociedade que exerce pedagogias da sexualidade e pedagogias do gênero. Essas pedagogias são compostas por práticas e por linguagens (por meio de proposições, imposições e proibições) que constituem sujeitos femininos e masculinos, produzem marcas que tem efeitos de verdade e constituem uma parte significativa das histórias das pessoas. A autora reitera ainda que “[...] identidades e práticas hegemônicas enquanto subordina[m], nega[m] e recusa[m] outras identidades e práticas” (LOURO, p. 30, 2018). Nesse caso, as identidades e as práticas hegemônicas assemelham-se à norma supracitada. Desse modo, a escola contribui para regular as identidades de gênero e sexuais, por meio de materiais didáticos, atividades, objetos, saberes, cores e outros artefatos que potencializam a dicotomização entre os mundos masculino e feminino, reforçando os efeitos das pedagogias da sexualidade e do gênero (BALISCEI; MAIO; CALSA, 2016). De acordo com Bento (2011), a escola é uma instituição que não tem capacidade de lidar com a diferença e com a pluralidade. Assim, ela se constitui como a principal instituição que afirma e que reitera as normas de gênero e de sexualidade. Pode, inclusive, ser considerada como produtora de uma heterossexualidade compulsória, ou, como a autora coloca, um heteroterrorismo. O espaço escolar produz corpos escolarizados por meio de múltiplos e de discretos mecanismos, que distinguem os corpos e as mentes de meninos e das meninas e suas identidades sexuais. Observamos isso quando, por exemplo, apontamos que determinado jovem cursou o colégio militar ou que determinada jovem cursou um colégio de freiras, ou seja, estamos apontando as marcas da escolarização que carregamos em nossos corpos (LOURO, 1997). Em uma analogia, a escola seria um carimbo: todas as pessoas que passam por essa instituição são carimbadas e carregam as manchas de tinta em seus corpos. 36 As pedagogias da sexualidade e do gênero, ao colocarem em ação tecnologias de governo, instauram, nos sujeitos, tecnologias de autodisciplina e de autogoverno. Esses sujeitos, no processo de constituírem-se como homens ou como mulheres, exercem sobre si mesmos essas tecnologias instauradas, como forma de estender/prolongar os efeitos das pedagogias da sexualidade e do gênero. Assim, a escola carimba-nos com marcas que não se referem aos conteúdos que aprendemos nas escolas, mas marcas que remetem às nossas identidades sociais, cicatrizes que nos fazem lembrar as formas nas quais construímos nossas identidades de gênero e sexuais (LOURO, 2018). Na esteira de Louro (2018), a escola acaba por constituir-se como um espaço em que há somente o tipo desejo sexual: o indivíduo interessa-se apenas pelo sexo oposto, negando e ignorando formas que fogem desse padrão e oferecendo poucas oportunidades para vivenciar a sexualidade. Assim, “[...] o lugar do conhecimento mantém-se, com relação à sexualidade, como o lugar do desconhecimento e da ignorância” (LOURO, 2018, p. 38). Mesmo quando a sexualidade é apresentada em sala de aula, na maioria das vezes, essa é atrelada a “problemas” biologizantes (como a gravidez precoce, as práticas sexuais sem camisinha e a propagação de Infecções Sexualmente Transmissíveis). Há ainda a possibilidade de que o desenvolvimento da temática sexualidade seja inibido com a justificativa de que cabe à família discutir esses assuntos. Essas intenções impedem a entrada do tema na escola são em vão, uma vez que a sexualidade não funciona como um botão de “ligar-desligar” ou como uma roupa que alguém pode despir. Trata-se de fator intrínseco ao ser humano e, aqui, não se coloca como natural ou como essencial, mas que faz parte das relações sociais. A escola, afinal, é constituída por esses seres humanos (LOURO, 1997). A discriminação e a violência atingem, infelizmente, lésbicas e gays e agravam-se, significativamente, em relação às pessoas transgêneros e travestis que, ao construírem seus corpos e expressões, desafiam as normas de gênero e, consequentemente, seus direitos são negados e violados, enfrentando “obstáculos para se matricular, participar das atividades pedagógicas, ter suas identidades respeitadas, fazer uso das estruturas escolares (como os banheiros) e preservar sua integridade física (JUNQUEIRA, 2015, p. 117). Em suma, Bento (2011) orienta-nos que, quando a escola tenta eliminar aquele sujeito que destoa da norma e, portanto, é considerado como um poluente do espaço escolar, essa instituição está disseminando um projeto social pautado em uma engenharia de produção de corpos “normais” e transmitindo a mensagem de que a organização da humanidade é estruturada na e pela diferença. Essa higienização do espaço escolar e as demais violências, sofridas pelas pessoas divergentes das normas de gênero e de sexualidade, são compreendidas 37 como uma prática que organiza as relações sociais, regula os comportamentos e distribui o poder. Nesse sentido, ainda segundo autora, resta, para escola, transferir o sujeito e, de certa forma, declarar que essa discussão não é da alçada da escola, apreendendo que a consequente interrupção dos estudos é algo inevitável e natural. Para Louro (2018), a escola e os sujeitos, que a frequentam, precisam desse “outro” e da sua identidade inferiorizada para, em um movimento de contraposição, se afirmar e se definir como padrão. Nesse movimento de contradição, a norma se sustenta e declara-se. Louro (1997) aponta ainda. [...] se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem mesmo apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas, de gênero, de classe [e de sexualidade]; se reconhecemos que essas identidades estão sendo produzidas através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se acreditamos que a prática escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que se transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se não nos sentimos conformes com essas divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não apenas para observar, mas especialmente, para tentar interferir na continuidade dessas desigualdades (LOURO, 1997, p. 85). Desse modo, entendemos que a instituição escola interfere, direta e indiretamente, na vida das pessoas que a atravessam e que investigações debruçam-se nas relações de gênero e de diversidade sexual, como a que está aqui presente, carregam o teor subversivo necessário para uma prática escolar que desafie as estruturas dominantes das relações de desigualdade. 3.3 Caminhando sob a seara identitária A ascensão das questões identitárias são características marcantes da contemporaneidade, pois vivemos uma época de crise de identidade. Para Hall (2015), essa crise nada mais é do que o declínio de velhas identidades, que estabilizavam o mundo social e o surgimento de novas identidades. Assim, a crise de identidade caracteriza-se em um duplo deslocamento11 que ocorre nos indivíduos, descentrando esses tanto do seu lugar no mundo social como de si mesmos. 11 Hall (2015) apoia-se em Laclau (1990) para desenvolver o conceito de deslocamento. O autor coloca que “[...] uma estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma pluralidade de centros de poder” (HALL, 2015, p. 13). 38 Nesse sentido, quais conhecimentos permeiam as discussões identitárias? Inicialmente, Woodward (2014) sinaliza uma tensão que ocorre na raiz das discussões identitárias entre duas perspectivas de identidade: essencialistas e não-essencialistas. A definição com base na perspectiva essencialista tem como princípio a existência da autenticidade e de um conjunto cristalino e imutável de características. Significa dizer que a identidade não sofre alterações no decorrer do tempo e que ela pode fundamentar-se em um passado, que, possivelmente, foi obscurecido e/ou reprimido, fixando uma verdade e revelando a identidade como um produto da história, ou, ainda, a partir de explicações amparadas na Biologia, revelando a identidade como uma categoria supostamente natural. A definição da identidade com base na perspectiva não-essencialista tem um enfoque nas diferenças, com a atenção voltada para as possíveis definições que caracterizam aquela identidade (WOODWARD, 2014). Sendo assim, o conjunto cristalino imutável do essencialismo é estilhaçado e fragmentado e a diferença é colocada como o cerne das explicações. Para Silva (2014), na perspectiva não-essencialista, a linguagem tem um papel parcial nas definições de identidade e diferença. Visto isso, a identidade segue a tendência de fixação da linguagem. Todavia, essa fixação é ao mesmo tempo uma tendência e uma impossibilidade. A identidade e a diferença, assim como a linguagem, são instáveis e indeterminadas e estão sempre escapando das fixações. Dessa forma, este trabalho seguirá a perspectiva não-essencialista existente na raiz das discussões identitárias. Também acreditamos, substanciados em Silva (2014), que a identidade e que a diferença são o resultado de atos de criação linguística. Isso significa que não são elementos naturais e desconhecidos, como se estivessem a mercê de serem revelados, descobertos, respeitados e tolerados; a identidade, assim como a diferença, são criações sociais e culturais. Consubstanciados em Hall (2014), o termo identidade é como se fosse um ponto de encontro ou de sutura, em que, por um lado, os discursos e as práticas convocam-nos a assumir os nossos lugares de sujeitos sociais que possuem discursos particulares e que, por outro lado, há os processos que produzem subjetividades e acabam por nos construir como sujeitos dignos de fala. Assim, segundo Woodward (2014), observamos que a identidade é relacional. A existência de uma certa identidade depende de algo fora dela, de algo que ela não seja, de algo que difere e, assim, fornece condições existenciais. Essa identidade surge em relação de afirmação-negação, por exemplo, por detrás da afirmação ‘eu sou homossexual’ existe uma 39 negação implícita e subliminar enunciando que ‘eu não sou heterossexual’. Logo, “[...] toda identidade tem necessidade daquilo que lhe falta – mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado” (HALL, 2014, p. 110). A identidade precisa de algo que difera dela para a sua existência, deixamos claro que a “[...] a identidade depende da diferença” (WOODWARD, 2014, p. 40). Uma forma bem simples de entender essa dependência encontra-se em trecho de Woodward (2014). Assim, o pão que é comido em casa é visto simplesmente como um elemento da vida cotidiana, mas, quando especialmente preparado e partido na mesa da comunhão, torna-se sagrado, podendo simbolizar o corpo de Cristo (WOODWARD, p. 41, 2014). Woodward (2014) vale-se desse exemplo ao argumentar a diferença reproduzida por meio de sistemas simbólicos que compõe a representação. Em suma, a representação compreendida como processo cultural inclui esses sistemas simbólicos supracitados e as práticas de significação. A representação12, em conjunto com os discursos, constrói lugares por meio dos quais os sujeitos podem falar e posicionar-se, ou seja, identidades individuais e coletivas. Desse modo, a diferença estabelece-se por meio de distinções entre uma identidade e outra, é aquilo que se opõe e separa. Essa diferença pode ser construída de forma negativa e positiva. A forma negativa da diferença se dá por meio da exclusão ou marginalização das pessoas que são definidas como ‘outras’, como transgressoras, forasteiras e desviantes. A forma positiva da diferença dá-se quando essa é celebrada como enriquecedora e fonte de diversidade, uma característica comum no comportamento dos movimentos sociais ao afirmar suas identidades, antes relegadas, com felicidade (WOORDWARD, 2014). Contudo, Silva (2014) sinaliza a tomada de cuidado com a perspectiva da diversidade e do multiculturalismo, pois, ao se apoiar com benevolência em apelos direcionados a tolerância e ao respeito da diferença, essa perspectiva acaba por essencializar e por naturalizar as identidades. Para Silva (2014), a identidade e a diferença possuem estreita dependência com a representação, uma vez que é por meio desse processo cultural que elas existem e adquirem sentido. Além disso, esses sistemas simbólicos produzem significados que possibilitam a atribuição de sentido a nossa experiência e ao que somos, bem como àquilo que podemos nos tornar. 12 Para Silva (2014), “representar” significa basicamente dizer “essa é a identidade”. 40 Entretanto, essas práticas de significação acabam por produzir significados permeados por relações de poder, em que um significado tem uma preferência em relação a outros, caracterizando um dualismo com pesos desiguais. Isto é, o poder definirá qual identidade deve ser incluída e qual deve ser excluída (WOODWARD, 2014). De acordo com Silva (2014), as relações de identidade e diferença são ordenadas sempre em oposições binárias, determinando o que é normal e o que é anormal. Para o autor, normalizar é eleger, arbitrariamente, uma identidade como o parâmetro e avaliar, bem como hierarquizar, as demais identidades. Atribui-se, portanto, a essa identidade ‘normal’ todas as características positivas; para as demais, restam apenas características negativas. A normalização, além de ser a manifestação mais sutil do poder no campo da identidade e diferença, também desencadeia uma força homogeneizadora nas identidades classificadas como normais a ponto dessas se tornarem invisíveis (SILVA, 2014). Em nossa sociedade, a heterossexualidade é classificada como o parâmetro, pessoas heterossexuais não precisam afirmar a sua identidade a todo momento; diferentemente de pessoas que fogem dessa norma e precisam afirmar sua identidade, enquanto uma questão de existência. Essa invisibilidade da identidade posta no topo da hierarquia, direciona-se como uma resposta para o texto de Hall (2014), Quem precisa da identidade? Se a identidade normal possui uma força homogeneizadora, que a torna invisível, são as identidades postas como anormais que se tornam visíveis. Desse modo, quem precisa da identidade são as pessoas que assumem ‘outras’ identidades marginalizadas, uma vez que precisam demarcar a bandeira identitária para existir e para persistir. Elas [as identidades] têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (HALL, 2014, p. 109). Encontram-se, na relação interdependente entre identidade e diferença, as relações de poder. Silva (2014) aponta para uma necessidade constante de criação e de recriação da identidade e da diferença, pois essas não são entidades preexistentes, nem elementos passivos da cultura. Uma das possibilidades para fomentar essa constante transformação encontra-se na Pedagogia e, especificamente, no currículo. Para Silva (2014), a questão da identidade e da 41 diferença constitui-se como um problema pedagógico e curricular, pois o espaço da escola, assim como a nossa sociedade, é atravessado pela diferença, ou seja, as crianças e os jovens não escapam da interação com o ‘outro’ no espaço da escola. Também é um problema social, pois o mundo é heterogêneo e o encontro com o diferente é inevitável. Nesse sentido, a Pedagogia13 e o currículo deveriam ser estruturados para desenvolver um estranhamento e um questionamento dos sistemas dominantes de representação. Assim, há a necessidade de explicar como essa diferença é ativamente produzida, antes de desenvolver atividades que ensinem o respeito e a tolerância (SILVA, 2014). 3.4 Fagulhas de gênero e sexualidade para abrasar uma formação de professores A pretensão inicial desse tópico seria discutir como seria uma formação de professores ideal para as questões de gênero e sexualidade. Ao buscarmos quais seriam os parâmetros necessários para esse tipo de formação, não encontramos respostas claras e objetivas: encontramos, na contramão, mais dúvidas. Em decorrência dessas incertezas, desistimos de pensar em um modelo padrão e ideal de formação para essas questões, permitindo que a contingência se assuma como basilar para essa formação. Entretanto, arriscamo-nos a traçar alguns pontos importantes e caminhos que a formação de professores para as questões de gênero e sexualidade podem seguir. Ressaltamos a utilização do verbo ‘poder’ para refletir uma semântica da “possibilidade de”, não uma “obrigatoriedade”, permitindo que se desenvolvam mais contribuições para esse tipo de formação. Dessa forma, no decorrer desse tópico apresentaremos três caminhos que ousamos classificar como basilares para pensar a formação de professores para as questões de gênero e sexualidade. O primeiro ponto está nas reflexões de Duque (2014) com base nos relatos colhidos durante seu trabalho como pesquisador no campo de gênero e sexualidade, como professor universitário e militante em prol da diversidade sexual. Duque (2014) apresenta a necessidade de propor uma formação que desenvolva o respeito às diferenças para além do reconhecimento da diversidade. Essa necessidade converge com Silva (2014), quem chama atenção para o vago e para o benevolente apelo ao respeito e à tolerância para com a diversidade, se limitando apenas ao reconhecimento da sua existência. Nesse sentido, Duque (2014) coloca que um dos pontos para pensar uma formação que 13 Em certo sentido, “pedagogia” significa precisamente “diferença”: educar significa introduzir a cunha da diferença em um mundo que sem ela se limitaria a reproduzir o mesmo e o idêntico, um mundo parado, um mundo morto (SILVA, 2014, p. 101). 42 desenvolva esse assunto é deixar emergir a diferença, pensar e agir frente a essa emergência. Ao reconhecermos e/ou respeitarmos a diferença, é necessário problematizá-la com intuito de garantir que sejam consideradas as histórias, reivindicações e especificidades de indivíduos e grupos na formação de professores. Assim, esse processo de formação tem como base a análise da diferença e permite uma formação que se desenvolve de forma mútua, possibilitando tanto os alunos como os professores essas reflexões, afinal [...] somos constituídos por normas de gênero e sexualidade que também estão postas (ainda que passíveis de contestações e transgressões) para as/os estudantes de nossas salas, como para as crianças com que elas/eles já trabalham ou irão trabalhar (DUQUE, 2014, p. 660). Dessa forma, o autor utiliza como artefato a interação com a diferença para pensar a formação de professores com enfoque nas questões de gênero e de sexualidade. Interação essa que pode dar-se por meio de um estranhamento normalizador e, no máximo, respeitável, ou utilizando a visibilidade da diferença como uma aposta nas experiências que ainda não foram vividas. O segundo ponto está nas reflexões de Britzman (2018), cujo enfoque é a sexualidade. Ao pensar como a sexualidade deve ser inserida no currículo, a autora discute três possíveis observações a serem feitas nessa reflexão. A primeira implica pensar a sexualidade como movimento, algo dinâmico e integral ao modo como cada pessoa divaga pelo mundo. A segunda observação, compreende os movimentos da sexualidade como exteriores à cultura, ou seja, a sexualidade não segue as regras e as normas da cultura, mesmo quando essa tenta domesticar; assim, a sexualidade é a própria alteridade. A terceira e última observação, possibilita desenvolver, por meio da sexualidade, a capacidade para a curiosidade, sendo assim, “[...] sem a sexualidade não haveria qualquer curiosidade e sem a curiosidade o ser humano não seria capaz de aprender” (BRITZMAN, 2018, p. 112). As três observações de Britzman (2018) sinalizam não haver nos declaram um lugar certo para a sexualidade e, também, não haver um modelo padrão a ser seguido para ensinar sobre ela, pois a sexualidade não é estável, é movimento. A autora aconselha que, ao invés de centrar as “pedagogias do sexo seguro” em tópicos especiais, de certa forma, perigosos e carentes de prazer, o cerne deve ser a concepção dos corpos como algo que se movimenta entre os espaços. 43 Outro ponto importante das reflexões de Britzman (2018) é que a sexualidade, ao ser inserida no currículo escolar ou na sala de aula universitária, transforma a linguagem do sexo em uma linguagem didática e, para tanto, dessexuada. A autora ainda acrescenta. Mais ainda: quando o tópico do sexo é colocado no currículo, nós dificilmente podemos separar seus objetivos e fantasias das considerações históricas de ansiedades, perigos e discursos predatórios que parecem catalogar certos tipos de sexo como inteligíveis, enquanto outros tipos são relegados ao domínio do impensável e do moralmente repreensível. Por trás dessas preocupações estão as ansiedades da própria professora: de não estar preparada para responder as questões das estudantes e de que a aula se dissolva numa luta de poder entre o conhecimento das estudantes e o conhecimento da professora (BRITZMAN, 2018, p. 114). Para tanto, na esteira de Britzman (2018), precisamos enxergar essas transformações quando a sexualidade é inserida no currículo e tentar desestabilizar sua fixidez, pois o trabalho do currículo nesse assunto é incitar identificações e críticas, sem o intuito de fechar e concluir, oferecendo mais questões e menos respostas concretas. O currículo deve aproximar-se da dinâmica desse assunto. Nesse cenário, precisamos desenvolver espaços para que os futuros professores estejam dispostos a estudar a postura das escolas e a verem como ela pode impedir ou possibilitar diálogos e para que identifiquem como seu conteúdo pedagógico pode afetar a curiosidade do estudante e a relação professor-alunos. Também precisamos prepará-los para trabalharem com incertezas e, assim, utilizá-las como oportunidades para explorar a extensão. Ainda, desenvolver uma coragem política para levantar questões sobre o cambiante conhecimento da sexualidade, principalmente em épocas em que o levantamento dessas questões não seja tão popular. Por fim, mas não menos importante, precisamos que os nossos futuros professores se tornem curiosos sobre suas próprias concepções e, assim, se tornem abertos para as curiosidades de outros (BRITZMAN, 2018). Mesmo que o foco das reflexões de Britzman (2018) seja na sexualidade, acreditamos que esse pode ser extrapolado e atingir as questões de gênero também, afinal, a sexualidade tem uma forte relação com o gênero. Essa relação entre sexualidade e gênero se dá na lógica do regime heteronormativo, como Wilchins (2004) coloca. Parece que as identificações de gênero são significativas apenas dentro de uma estrutura binária na qual a separação de um termo do outro lhe dá significado. O que aponta para um segundo problema: cada identidade de gênero deve manter uma coerência estrita entre sexo, identidade de gênero, expressão de 44 gênero e desejo. Feminino é para mulher como mulher é para feminino, pois o feminino é atraído pelo masculino (WILCHINS, 2004, p. 130). Por fim, o último ponto cerne de uma formação de professores para as questões de gênero e sexualidade é a importância do corpo, explicitado por Hooks (2018). Segundo a autora, por aceitarmos a noção14 de que existe uma separação entre corpo e mente, os indivíduos entram na sala para ensinar como se apenas a mente estivesse presente, sem o corpo. A autora dá-nos um relato interessante sobre essa reflexão. Logo no início, quando me tornei professora e precisei usar o banheiro no meio de uma aula, eu não tinha a menor ideia do que minhas antecessoras faziam em tais situações. Ninguém me falara sobre o corpo em relação à situação de ensino. O que se faz com o corpo na sala de aula? Ao tentar recordar os corpos dos meus professores e professoras, eu me sinto incapaz de lembrar deles. Eu ouço vozes, lembro de detalhes fragmentados, mas muito pouco de corpos inteiros (HOOKS, 2018, p. 145). Nesse contexto, Hooks (2018) denuncia a massiva descorporificação de professores, como se fosse o eixo da formação docente. A autora avança: os professores, na determinação de anular o corpo e entregar-se de forma integral à mente, acabam por reprimir, por negar e, até, por esquecer que possuem sentimentos, restando apenas o horário após à aula para recompor os seus sentimentos. Isso nos mostra que no mundo público da aprendizagem institucional o corpo deve ser anulado, sobrando, assim, apenas os lugares privados para se recuperar os sentimentos. Arriscamo-nos a dizer que uma formação de professores cujo cerne seja a descorporificação interfere no desenvolvimento de uma formação para as questões gênero e de sexualidade, entendendo que esses assuntos possuem uma relação com o corpo. Para tanto, seguindo a direção das reflexões de Hooks (2018), uma formação de professores preocupada com as questões de gênero e sexualidade deve ter como o eixo a união do corpo e mente e, também, ter um enfoque no corpo de modo que consigamos provocar fissuras nos pensamentos dominantes. Portanto, concluímos esse tópico sem o intuito de fechar, de chegar a um lugar comum ou um destino final. Acreditamos que o ponto de partida seja reflexões que se negam a justificar por meio do conforto da fixação (BRITZMAN, 2018). Finalizamos este capítulo, expondo que a escola é uma das instituições promotora do regime da heteronormatividade e, com isso, produzindo corpos escolarizados e formatados de 14 De acordo com hooks (2018), essa noção provém do contexto filosófico do dualismo metafísico ocid