UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (Unesp) UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (Unicamp) PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP) Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais – Unesp, Unicamp e PUC-SP Hermes Moreira Jr. INOVAÇÃO, COMPETIÇÃO INTERNACIONAL E TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA: A POLÍTICA CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA DOS ESTADOS UNIDOS PARA EVITAR O DECLÍNIO NO SÉCULO XXI SÃO PAULO 2015 Hermes Moreira Jr. INOVAÇÃO, COMPETIÇÃO INTERNACIONAL E TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA: A POLÍTICA CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA DOS ESTADOS UNIDOS PARA EVITAR O DECLÍNIO NO SÉCULO XXI Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”, na linha de pesquisa “Economia Política Internacional”. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Oliveira. SÃO PAULO 2015 Hermes Moreira Jr. INOVAÇÃO, COMPETIÇÃO INTERNACIONAL E TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA: A POLÍTICA CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA DOS ESTADOS UNIDOS PARA EVITAR O DECLÍNIO NO SÉCULO XXI Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de doutor em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”, na linha de pesquisa “Economia Política Internacional”. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Oliveira. Banca examinadora: ________________________________ Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Oliveira (Universidade Estadual Paulista - UNESP) ________________________________ Profª. Drª. Cristina S. Pecequilo (Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP) ________________________________ Profª. Drª. Karen Fernandez Costa (Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP) ________________________________ Prof. Dr. Luis Fernando Ayerbe (Universidade Estadual Paulista - UNESP) ________________________________ Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP) ________________________________ São Paulo, 14 de Agosto de 2015. AGRADECIMENTOS A finalização de uma tese de doutorado representa o encerramento de um ciclo de formação acadêmica e a abertura de uma nova fase na vida profissional. Nesse período de amadurecimento e reflexão contei com a participação e apoio de uma série de pessoas, as quais devo meu agradecimento. Aos professores do Programa San Tiago Dantas, Samuel Alves Soares, Tullo Vigevani, Clodoaldo Bueno, Shiguenoli Miyamoto, Flávia Campos Mello, Reginaldo Nasser, Reginaldo Moraes, Sebastião Velasco, Oliveiros Ferreira e Carlos Eduardo Carvalho, que com suas discussões em sala de aula muito contribuíram com minha formação intelectual nestes anos. Um agradecimento especial à Profa Suzeley Mathias pelo apoio e suporte oferecido a partir da coordenação do programa, e à Isabela, à Giovana e à Graziela, cujo trabalho administrativo é essencial para o andamento das atividades do PPGRI. Aos membros da banca examinadora, Cristina Pecequilo, Karen Fernandez, Reginaldo Nasser, Luis Fernando Ayerbe, Paulo Pereira e Marcos Cordeiro. Ao meu orientador e amigo Marcelo Fernandes, pela confiança que sempre depositou no meu trabalho. E aos meus colegas de programa, em especial àqueles que encararam o desafio de fazer parte da primeira turma de doutorado do San Tiago Dantas, Ariana Bazzano, Fernando Santomauro, Juliana Bigatão, Manoela Miklos, Rodrigo Maschion Alves, e meus grandes amigos Roberto Moll e Márcio Scherma. Também tiveram grande contribuição nesse trabalho colegas com os quais pude debater, discutir algumas das minhas ideias e receber inúmeras sugestões de encaminhamento para a pesquisa. Dentre eles destaco Marcos Costa Lima, cujas indicações foram essenciais para o desenho final da tese. Roberto Goulart Menezes, que me apresentou um conjunto de autores que ofereceram novos rumos às minhas leituras. Karen Fernandez, cujo trabalho influenciou muitas das minhas ideias. Pedro Vieira, Eduardo Mariutti, Antonio Brussi, Rosangela Vieira, Helton Ouriques, Felipe Filomeno e Bruno Hendler, com os quais pude compartilhar importantes reflexões no âmbito do Grupo de Pesquisa em Economia Política do Sistema-Mundo. Thiago Lima, Filipe Mendonça, Henrique Menezes e Fabrício Padilha, cujos trabalhos desenvolvidos no âmbito do INCT-INEU proporcionaram importantes momentos de debate. Marcos Cintra e Fernando Mattos, no curso sobre Economia Internacional e Desenvolvimento oferecido pelo IPEA. Cristina Pecequilo e Samuel Pinheiro Guimarães, que em breves conversas sempre trouxeram grandes contribuições para pensar as mesmas questões de novas maneiras. Paralelamente às atividades do doutorado, mantive meus compromissos acadêmicos com a Universidade Federal da Grande Dourados, e recebi o apoio de muitas pessoas para que pudesse conciliar as duas dimensões da carreira, como estudante de pós-graduação e docente. Aos amigos e colegas de curso, Alfa Oumar Diallo, Mario Sá, Tomaz Espósito, Henrique Sartori, João Urt, Tchella Maso, Marcio Scherma, Lisandra Lamoso, Grazihely Paulon, Fabrício Chagas, Simone Becker, Antonio Brito, Marcos Antonio da Silva, Guillermo Johnson, César Augusto Silva e Adriana Brum, que mantém um excelente ambiente de trabalho e que sempre se preocuparam em compreender o momento de cada um dos colegas, auxiliando naquilo que foi possível. Aos técnicos-administrativos e estudantes da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD. Na universidade também tive a honra e o desafio de trabalhar na administração central durante a gestão do Prof. Damião Duque de Farias, a quem agradeço o convite e a confiança para assumir a importante tarefa de estar à frente da equipe da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (PROAE). Em seu nome agradeço a forma como fui recebido pela equipe da Reitoria, em especial da PROAE, e a compreensão nos momentos em que tive que conciliar as atividades do cargo com as demandas do doutorado. Por fim, agradeço àqueles cuja presença e amizade no cotidiano fizeram com que estes anos todos de intensa pressão e muito trabalho pudessem ser vividos com mais alegria e leveza. Aos amigos de Dourados, especialmente Kaully Furiama, Marcelo Campos, Mauro Figueira, Milton Vesdel, Caio Pedrollo, Maryel Pedreira e Fernando Calixto, pelo companheirismo nestes anos todos. Aos amigos de longa data, que espalhados pelo Brasil são sempre o porto-seguro nos momentos de dificuldade, Bráulio Roberto, o “Neto”, Lucas Carames, Caio Bugiato, Rodolfo Ilário, Vinícius Ruiz, Guilherme Barana, Dado Padilha, Daniel Bottura, Jayme Ferrari, João Marcelo, Daniela Comin, Sarah Reis, Giane Faccin e Michele Bertoloni. Em especial a Matheus de Carvalho Hernandez, parceiro e irmão de todos os momentos, dos anos de formação aos desafios da carreira, das inquietações da tese às irritações com o futebol. À Tainá Dias Vicente, com quem sempre compartilhei todas minhas angústias, alegrias e frustrações, e que soube, mesmo nos momentos mais difíceis, escolher as palavras certas. Por fim, à minha querida mãe, Dona Marlene, que se orgulha muito deste momento. Mesmo tendo cursado apenas o ensino fundamental, sempre se preocupou em fazer dos estudos a prioridade da minha vida. Pela Saúde de todos os dias, a Deus. RESUMO A crise financeira que atingiu o centro do sistema econômico internacional reforçou os debates a respeito do desgaste da atual conformação da ordem mundial e as perspectivas de transição do centro hegemônico do sistema internacional na constituição de uma nova ordem. Como resposta a este cenário, o governo norte-americano, com a ascensão de Barack Obama ao poder, estimulou o processo de recuperação do potencial de inovação de sua indústria, respaldado pela convicção de que a manutenção da liderança do sistema econômico internacional, com conseqüente capacidade de definição do desenho da ordem mundial, está relacionada ao mais alto nível de competitividade e produtividade industrial do país. Diante desse quadro, esta tese teve como objetivo avaliar a estratégia nacional de inovação do governo Obama dentro da trajetória institucional que conduziu a política científico- tecnológica dos Estados Unidos ao longo do século XX. Partindo do pressuposto que a trajetória de inovação é afetada em conjunturas críticas da economia nacional e internacional, entende-se que a crise financeira atual ofereceu condições para que a estratégia nacional de inovação promovesse mudanças no modelo adotado durante a década de 1980, no contexto da financeirização da economia global e da redução do papel intervencionista do Estado na economia norte-americana. Modelo este, cujos reflexos foram a ampliação da entrada de capital de risco privado nos programas de pesquisa e desenvolvimento voltados à inovação, e a decisão do mercado de definir os setores privilegiados por estes investimentos. Nesse sentido, a partir da revisão da literatura que discute a formação de sistemas nacionais de inovação, e da análise da política científico-tecnológica proposta pelo governo federal, por meio de sua estratégia nacional de inovação, e de programas nacionais e novas legislações apoiadas pelo executivo, demonstra-se que o governo Obama busca restabelecer uma política científico-tecnológica voltada à inovação em que o Estado é responsável pela definição dos setores estratégicos a serem priorizados pelo sistema nacional de inovação, de acordo com o entendimento dos desafios nacionais a serem enfrentados no contexto da competição que se desenvolve na economia internacional. Palavras-chave: Tecnologia e Estado – Estados Unidos. Inovação Tecnológica – Estados Unidos. Relações Econômicas Internacionais – Estados Unidos. Política Econômica – Estados Unidos. ABSTRACT The financial crisis that hit the center of international economic system reinforced the debates on world order and the perspectives about the transition of hegemonic center in the constitution of a new order. In response to this scenario, the US government, with Barack Obama, stimulated the recovery process of their innovative industry, supported by the conviction that the maintenance of the international leadership, with consequent design setting capacity of the world order is related to the higher level of competitiveness and industrial productivity of the country. This thesis aims evaluate the Obama administration´s national innovation strategy within the institutional path that led the US scientific and technological policy during the twentieth century. Innovation trajectories are affected to critical junctures in the national and international economy. The current financial crisis offered conditions for changes in the innovation model adopted during the 1980s , in the context of financialization of the global economy and lack of interventionist role of the state in the US economy. Model whose aftermath was the expansion of the private risk capital to innovation research and the market's autonomy to set priority sectors. In this sense, from the literature review on national innovation systems , and analysis of scientific and technological policy proposed by the federal government, this thesis demonstrates that Obama administration seeks re-establish a scientific and technological policy aimed at innovation in which the state is responsible for defining the strategic sectors to be prioritized by the national innovation system, according to national challenges to be faced in the context of international competition. Key-words: State and Technology – United States. Technology Innovation – United States. International Economy – United States. Economic Policy – United States. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................8 2 DESENVOLVIMENTO, INOVAÇÃO E COMPETIÇÃO INTERNACIONAL.......22 2.1 Desenvolvimento e Dependência Tecnológica na Economia Política do Sistema- Mundo..............................................................................................................................25 2.2 Tecnologia, Inovação e Sistemas Nacionais de Inovação Tecnológica..........................38 2.3 Competição e liderança econômica internacional..........................................................55 3 FINANCEIRIZAÇÃO, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E CRISE SISTÊMICA.....................................................................................................................67 3.1 Neoliberalismo, Financeirização e Desregulamentação................................................73 3.2 Reestruturação Sistêmica e a Transição do Eixo Produtivo para o Oriente...............81 3.3 Crise Sinalizadora e o Estouro da Bolha Norte-Americana.........................................92 4 INOVAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE RECUPERAÇÃO ECONÔMICA E MANUTENÇÃO DA LIDERANÇA INTERNACIONAL.........................................101 4.1 A Trajetória de Inovação nos Estados Unidos ............................................................113 4.2 A Capitulação do Ecossistema de Inovação a Interesses Privados.............................130 4.3 O Governo Obama e sua Estratégia Nacional de Inovação........................................137 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................160 6. REFERÊNCIAS..............................................................................................................167 8 1 INTRODUÇÃO Que estamos em meio a uma crise hoje é bem sabido. Nossa nação está em guerra contra uma ampla rede de violência e ódio. Nossa economia está gravemente enfraquecida, uma consequência da cobiça e da irresponsabilidade de alguns, mas também de nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar o país para uma nova era. Lares foram perdidos, empregos cortados, empresas fechadas. Nosso sistema de saúde é caro demais, nossas escolas falham para muitos, e cada dia que passa traz novas evidências de que os modos como usamos a energia reforça nossos adversários e ameaça nosso planeta. Esses são indicadores de crise, sujeitos a dados e a estatísticas. Menos mensurável, mas não menos profundo, é o desgaste da confiança em todo o nosso país – um temor persistente de que o declínio da América é inevitável, e que a próxima geração deve reduzir suas perspectivas (OBAMA, 2009). Após se sair vitorioso em uma das eleições mais aguardadas das últimas décadas, Barack Hussein Obama iniciou seu mandato, no dia 20 de janeiro de 2009, com a dura missão de recuperar a imagem e prestígio dos Estados Unidos no cenário internacional, após oito anos de uma administração repleta de equívocos nos planos doméstico e internacional. Ademais, tinha pela frente o desafio de encarar uma grave crise financeira e recessão econômica – sem dúvidas, a mais crítica desde o Crack da Bolsa de 1929 – que se desdobrava na deterioração de indicadores sociais do país. Não bastasse tal cenário, somava-se a ele a necessidade de por fim a duas intervenções militares iniciadas por seu antecessor, no Afeganistão e no Iraque, resgatar a credibilidade norte-americana junto aos organismos internacionais multilaterais, e recuperar a confiança do cidadão comum estadunidense em seu sistema político. À luz de tudo isso, já se visualizava a ascensão da China como principal concorrente dos Estados Unidos nos mercados internacionais, sobretudo em virtude de seus vigorosos índices de crescimento econômico das duas últimas décadas, e das estratégias de inserção em regiões relegadas ao segundo plano pelos Estados Unidos durante sua dedicação à guerra contra o terrorismo. Tratava-se de conter, como diria Paul Krugman (2006), o processo de “desintegração americana”. Não obstante, o tom otimista de suas palavras durante a posse visava afastar qualquer incerteza de que os Estados Unidos poderiam rapidamente retomar os trilhos da prosperidade: 9 Para todo lugar aonde olharmos há trabalho a ser feito. A situação da economia pede ação ousada e rápida, e vamos agir – não apenas para criar novos empregos, mas depositar novas bases para o crescimento. Vamos construir estradas e pontes, as redes elétricas e linhas digitais que alimentam nosso comércio e nos unem. Vamos restabelecer a ciência a seu devido lugar e utilizar as maravilhas da tecnologia para melhorar a qualidade dos serviços de saúde e reduzir seus custos. Vamos domar o sol, os ventos e o solo para movimentar nossos carros e fábricas. E vamos transformar nossas escolas, colégios e universidades para suprir as demandas de uma nova era. (OBAMA, 2009). No plano das relações internacionais, o discurso de Obama, focado no multilateralismo e optando pelo recurso ao soft power, caiu nas graças da comunidade internacional, entusiasmando a imprensa e muitos analistas políticos mundo afora. Seu slogan “We can change” atraiu adeptos não só nos Estados Unidos, mas em diversas partes do globo. Obama necessitava dar uma resposta incisiva, a seus concidadãos e à comunidade internacional, a respeito da desastrosa condução das relações exteriores dos Estados Unidos durante o mandato de George W. Bush. Ao longo da administração republicana a imagem do país no cenário internacional sofreu imenso desgaste, com desdobramentos negativos nos campos diplomático, político e econômico. A vitória de Obama possibilitaria mais do que uma vontade, a necessidade de recuperação do prestígio norte-americano no exterior. Mesmo diante dos enormes desafios apresentados, o novo presidente tinha, portanto, a oportunidade de entrar para a história como restaurador da hegemonia norte-americana (VELASCO, 2010; KEYSSAR, 2011). Imbuído dessa missão, o novo governo deixou explícito na divulgação de sua Estratégia de Segurança Nacional (NSS, 2010) a consciência sobre a necessidade de afastamento da Doutrina Unilateral e Preventiva de Bush (NSS, 2002) em detrimento de um novo modus operandi capaz de valorizar o multilateralismo, reconhecer o multipolarismo e privilegiar a cooperação, recriando espaço para os temas sociais, as questões ambientais e a defesa dos direitos humanos. Os resultados do governo de George W Bush nos anos 2001-2008 aceleraram a discussão sobre o declínio norte-americano e a possibilidade de sucessão hegemônica. Em grande medida favorecidas pelo contexto de crise do projeto norte-americano, e evidenciadas pela vulnerabilidade dos sustentáculos da economia do país diante da crise financeira de 2007-2008, as transformações do cenário internacional nos últimos anos têm gerado amplo debate sobre a possibilidade de constituição de uma nova ordem global. 10 O debate sobre a capacidade de influência dos países e sobre a posição que ocupam hierarquicamente no globo, além das discussões sobre hegemonia e polaridade dentro do sistema internacional, tem provocado uma diversidade de opiniões que evidenciam a transitoriedade do momento histórico atual. Essa sensação é intensificada por meio de novos arranjos estratégicos associados a elevadas taxas de crescimento econômico, de economias emergentes procedentes do chamado mundo em desenvolvimento. Ao passo que os Estados Unidos conhecem este processo de contração e declínio relativo, China, Rússia, Índia e Brasil, que despontam como principais economias emergentes, visam estabelecer novas formas de inserção internacional e criar espaços de atuação cada vez mais consistentes dentro da dinâmica das relações internacionais contemporâneas (Moreira Junior., 2014). A atuação desses chamados “atores emergentes”, coloca sob questão a legitimidade e a efetividade dos regimes e instituições vigentes, e demandam a criação de mecanismos inovadores capazes de oferecer o espaço necessário à sua atual capacidade de atuação (STUENKEL, 2012). Nesse sentido, a atual distribuição do poder global não está refletida na ordem estabelecida. Tal reconhecimento é identificado em relatórios oficiais do governo norte-americano, como o Global Trends 2025: a transformed world, publicado pelo National Intelligence Council em 2008, que identificou que “as potências emergentes, a exemplo de China, Índia, Rússia e Brasil, terão seu lugar nas principais mesas internacionais, e trarão também novas regras do jogo a estas mesas” (NIC, 2008). Em alguma medida, isso já vem se apresentando através da coordenação multilateral mais ampla a partir do G-20 no campo das finanças internacionais. Mas há, por parte das economias emergentes, constantes tentativas de aprofundar a revisão dos mecanismos instituições que conformam a atual ordem estabelecida: [...] em primeiro lugar, as potências emergentes vêm aumentando suas vozes na ordem internacional por meio do multilateralismo e da diplomacia ativa. Por exemplo, a Cúpula dos BRIC se tornou plataforma multilateral cada vez mais importante na política internacional, sendo que estes países têm desempenhado papel mais ativo no palco mundial; em segundo lugar, as potências emergentes têm utilizado as instituições internacionais para a projeção do poder, em especial com relação a elaborar agendas, mediante uma estratégia de reforma gradualista. As potências emergentes adotaram um enfoque gradualista semelhante em sua resposta à crise financeira iniciada em 2008, sendo que solicitaram aumento em sua representatividade e prestígio em instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Em terceiro lugar, as potências emergentes continuaram a expandir sua influência na definição das normas para assuntos internacionais (PU, 2012 p. 21-22). 11 Como afirma Giovanni Arrighi (1996), o conceito de hegemonia está relacionado à capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas, e liderar tal sistema numa direção desejada, com a percepção de estar buscando um interesse geral. Mas, Keohane (1984) observa que para aderirem a este sistema, países maiores e menores recebem incentivos para colaborar e identificarem seus interesses como coincidentes. Na medida em que a distribuição de recursos (especialmente econômicos) aumentam os custos do hegemon em manter os incentivos que garantem a estabilidade e o cumprimento das regras, os regimes se debilitam. Inicia-se assim um período de transição e de instabilidade, ou de caos sistêmico, para retomar Arrighi. Desde sua ascensão à condição de líder do sistema, os Estados Unidos tem sua política externa orientada pelo seu liberal commitment, e pelo seu objetivo de construir e sustentar uma ordem internacional repousada sobre um conjunto de regimes e instituições regionais e globais consagradas pela aceitação coletiva, tanto no campo da segurança e do desarmamento, como no do comércio e dos investimentos (IKENBERRY, 2006). Não obstante, Buzan (2007) afirma que já algumas vezes ao longo dos anos 1990, mas principalmente desde 2003, os Estados Unidos tem se tornado o inimigo do seu próprio projeto do século XX. Ele tem, segundo o autor, rejeitado, gradativamente, o comprometimento com o multilateralismo, perdendo seu espaço de líder, o que tem destruído a confiança de décadas anteriores e corroído a lealdade de muitos de seus seguidores e demais mantenedores da ordem internacional, levando à corrosão da hegemonia estabelecida ao longo da segunda metade do século XX. Todavia, mesmo em meio a esse cenário de transição que emerge do choque entre a concentração de poder e o combate a esta concentração (VELASCO, 2007), os Estados Unidos permanecem como principal centro cíclico do mundo. Exercem enorme influência econômica sobre os demais Estados do sistema, seja por meio do comércio ou dos investimentos diretos, e quaisquer crises, cuja repercussão leve a uma desaceleração de seu ritmo de crescimento, acarreta consequências diretas a toda a economia global. A recente crise financeira ressuscitou um debate que fora bastante acentuado nos primeiros anos da década de 1990, findada a Guerra Fria, entre declinistas, que profetizavam o colapso do Império americano, e renovacionistas, que acreditavam na 12 perenidade da preponderância de Washington (MARIUTTI, 2009; PECEQUILO, 2011). Mas, historicamente, alguns dos principais estudiosos da dinâmica das relações internacionais (KENNEDY, 1989; HOBSBAWM, 1995; ARRIGHI, 1996) identificam a condição econômica dos Estados Unidos na segunda metade do século XX – que se seguia até início desse século XXI – como uma situação artificial. Reflexo, evidentemente, da condição relativa dos norte-americanos frente às demais nações européias no pós-Guerra. Contudo, desde então, os Estados Unidos teriam entrado em um processo de declínio relativo (WALLERSTEIN, 2004), que se torna acentuado à medida que as principais economias mundiais aliadas, Alemanha e Japão, conhecem um desenvolvimento vigoroso nos anos 60, 70 e 80. Nas últimas décadas, se incorporam a esse processo as economias asiáticas, principalmente a chinesa e a indiana, com altas taxas de crescimento econômico, tornando cada vez mais explícito o processo de transformação da economia mundial. Estudos apontam que a crise financeira de 2008 não se tratou de um processo conjuntural, motivado apenas pela bolha especulativa do mercado imobiliário e pela quebra de uma série de instituições financeiras norte-americanas, mas sim de um processo estrutural que pode trazer profundas mudanças no cenário internacional nas próximas décadas (HARVEY, 2011; KRUGMAN, 2012; CINTRA, 2012; BELLUZZO, 2013; CHESNAIS, 2014). Sobretudo, se pensarmos que o ciclo norte-americano de proeminência na economia global vem se encerrando (ARRIGHI, 2008), principalmente com a reestruturação da produção industrial global, que se desloca para o eixo asiático (China, Japão, Índia, Coréia do Sul e demais países do leste asiático). A crise financeira sinalizaria, portanto, um conjunto mais amplo de transformações vindouras na ordem internacional. Com a economia nos Estados Unidos enfrentando dificuldades de recuperação e crescendo em ritmo lento, conhecendo altos índices de desemprego e endividamento pessoal, elevado déficit público e redução de sua participação no produto mundial, não se resumiria apenas a uma crise de enormes proporções para o sistema econômico internacional. Seria sim, a indicação de uma crise que marcaria o colapso da hegemonia norte-americana e se combinaria com a própria crise do Moderno Sistema Mundial, segundo a tese de Wallerstein (2004). Apontado como uma das principais dificuldades encontradas pelos Estados Unidos para a recuperação da atual recessão, e corroborando com a tese da transição do 13 ciclo hegemônico, o movimento do eixo produtivo global rumo ao Oriente tem se tornado uma realidade cada vez mais evidente para a economia norte-americana. A reestruturação produtiva da economia mundial conhecida durante as décadas de 1970 e 1980 a partir da nova Divisão Internacional do Trabalho, e a facilidade com que as nações asiáticas se adaptaram ao novo paradigma emergente, o Toyotismo (HARVEY, 1989; CASTELLS, 1999; CHESNAIS, 1996), transformaram o continente na “nova oficina do mundo” e obrigaram os centros tradicionais, notadamente os Estados Unidos, a reestruturar e reorganizar seus próprios setores industriais (ARRIGHI, 2001; ARRIGHI, 2008). Hoje, as indústrias norte-americanas que não migraram para o Oriente, ou que não se aproveitaram das novas redes e fluxos transnacionais proporcionados pelas novas tecnologias de informação e pela flexibilização de normas e mobilidade de capitais, sofrem para competir com suas concorrentes asiáticas, mesmo em mercados tradicionalmente dominados pelos Estados Unidos, como a América Latina. Ademais, boa parte da dívida norte-americana tem sido financiada, nos últimos anos, pela aquisição chinesa de títulos do Tesouro norte-americano (HUNG, 2009). Ao se tornarem o novo motor da economia produtiva global, as nações asiáticas ofereceram duas possibilidades para que os Estados Unidos mantivessem seu padrão de consumo e sua condição de principal centro do capitalismo global. A primeira delas, implantada já durante o início da transição do eixo produtivo industrial para o Oriente, e consolidada ao longo das últimas três décadas, foi o fortalecimento do processo de financeirização da economia e a consolidação do regime de Wall Street (GOWAN, 1999). As desregulamentações excessivas do sistema financeiro e a constante securitização de ativos financeiros operou a criação de bolhas especulativas que estimularam o consumo interno e o aquecimento de diversos setores da economia, ao preço de surtos de crescimento e endividamento, seguidos de crises e recessões, em uma “exuberância irracional” dos mercados e uma omissão e apatia do Estado (GREENSPAN, 2008; BRENNER, 2003; STIGLITZ, 2003). O resultado disso foi a maior concentração de renda entre os “senhores de Wall Street”, a desidratação e o endividamento das classes médias urbanas, e a pauperização das populações dos subúrbios, sobretudo os imigrantes e seus descendentes. 14 A segunda possibilidade passou a ser explorada a partir do advento da crise de 2007/2008, constatado esgotamento de um modelo que se apresenta insustentável desde o ponto de partida. A reorganização do sistema manufatureiro no mundo asiático, novo eixo produtivo global, se deu por meio a articulação de novos processos produtivos físicos aliados a novos métodos gerenciais. Quais sejam, a automação e a miniaturização, por um lado, e o maior controle de qualidade e de produção, e a informatização e a produtividade por outro. Somava-se a isso um movimento de formação de mercados globais oligopolizados (GUIMARÃES, 2006), fosse por meio de grandes fusões, constituição de joint ventures, formação de grandes conglomerados ou aquisição de pequenas e médias empresas por grandes grupos estabelecidos. Diante desse quadro, a saída para o setor industrial norte-americano seria explorar seu potencial de aceleração do progresso científico e tecnológico. As dificuldades apresentadas pela nova realidade da economia global funcionaram como um “vendaval de destruição” das antigas bases do capitalismo nos Estados Unidos, e como indicaria Schumpeter, essa destruição deveria fomentar a capacidade criadora dos empreendedores e trazer inovações para o seio da economia norte-americana. Áreas de desenvolvimento mais recente e cientificamente mais avançado como a biotecnologia e a engenharia genética, ou vinculadas aos sistemas de inteligência e defesa, como comunicações e nanotecnologia, não fizeram parte dessa transição do eixo produtivo para o Oriente. Nesse sentido, visando impulsionar um novo modelo de crescimento e desenvolvimento, o governo Obama adota como uma de suas prioridades o investimento em sua política científico-tecnológica e a elevação dos Estados Unidos a um novo patamar no circuito de inovações. Para fomentar esse processo de resgate da capacidade de competitividade internacional dos Estados Unidos, o presidente Obama solicitou ampliação do orçamento federal para pesquisa e desenvolvimento, reestruturando a capacidade operativa das agências federais de inovação. Um dos pontos mais importantes da estratégia traçada por Obama ficou evidenciado no importante Discurso sobre o Estado da União de 2011 (OBAMA, 2011). Vivenciando uma crise política interna após o revés Democrata nas eleições legislativas em meio a seu primeiro mandato, imerso em uma das mais graves crises da história de sua economia doméstica, e despertando desconfiança internacional com relação às suas possibilidades de conduzir o processo de recuperação econômica do país, o discurso de Obama para as duas casas legislativas, 15 que reforçou posicionamentos afirmados em outros importantes discursos e documentos oficiais, foi claro e contundente: as forças políticas dos Estados Unidos devem se unir em torno de um objetivo, a manutenção da primazia internacional. Focado no apelo ao investimento em ciência e tecnologia, Obama foi enfático ao declarar que os Estados Unidos devem impulsionar os investimentos em pesquisa e no desenvolvimento de novas tecnologias que garantam sua condição de principal potência do cenário internacional. Aproveitando sua criatividade, potencial industrial e capacidade de inovação, os Estados Unidos podem dar início a um novo processo de transformação em sua economia e sociedade, ampliando suas taxas de crescimento econômico e compartilhando oportunidades de prosperidade com a comunidade internacional (OBAMA, 2011). O investimento em pesquisa e desenvolvimento permite, na era do chamado capitalismo informacional (CASTELLS, 1999), uma aceleração exponencial nos rumos da inovação tecnológica. À medida que a inovação tecnológica fundamenta a competitividade, e que o ciclo de vida de um produto reduz-se proporcionalmente à capacidade de apresentar novas tecnologias aos mercados, a acumulação capitalista e os retornos financeiros se tornam recompensa àqueles que direcionam suas estratégias para o desenvolvimento científico-tecnológico (CHESNAIS; SAUVIAT, 2005; COSTA LIMA, 2011). Se ao final da Segunda Guerra os Estados Unidos eram a única nação em condições de liderar corrida pela inovação, a realidade do século XXI é bem mais desafiadora. Ao passo que a competitividade global se define pela capacidade de inovação, e essa se configura como fonte de acesso a novos mercados, o investimento em pesquisa e desenvolvimento adquire status de política pública fundamental para o sucesso nacional. Nesse sentido, o momento é crucial para a definição das transformações da ordem global, e o governo norte-americano entende que sua posição na economia internacional sempre esteve atrelada à liderança mundial exercida no avanço tecnológico. Não apenas no quesito de produtividade e emprego de tecnologia de ponta na indústria, ou na criação de novos produtos que não poderiam ser produzidos em outros mercados e seriam exportados mundo afora, mas, principalmente, na capacidade de direcionar os paradigmas tecnológicos que definiriam as agendas de pesquisa globais (DOSI, 1982; NELSON, 2006). 16 Não se tratava apenas de garantir o nível de competição por novos mercados consumidores e a capacidade de definir os rumos das pesquisas em âmbito global, mas sim a possibilidade de retomar um modelo de nação inovadora e assim responder de forma vigorosa às nações emergentes, de forma a revitalizar a posição de liderança dos Estados Unidos no século XXI: [...] trata-se de um momento crucial no tempo, talvez um ponto de transformação histórico. Exatamente na hora em que estamos começando a diminuir o ritmo, outros estão acelerando o passo. E, em algum ponto – mais breve do que podemos imaginar – haverá o cruzamento entre as curvas do nosso declínio e a da ascensão do restante do planeta. No mundo futuro, muito mais acentuadamente do que no de hoje, a inovação será o motor do progresso. Assim, a menos que mudemos para retificar essa situação sombria, os Estados Unidos não podem sonhar em permanecer como líder. O que está em risco nada mais é do que a prosperidade e a segurança futuras de nossa nação (KAO, 2008 p. 03). Não obstante essa convergência entre acadêmicos, analistas e o governo norte- americano, um impasse se apresenta à efetivação dessa estratégia. Paralelamente ao processo de financeirização da economia, a desregulamentação nos Estados Unidos desembocou em uma série de reformas orientadas para o mercado, sobretudo a partir de uma concepção minimalista sobre as prerrogativas públicas do Estado. À medida que o neoliberalismo ascende como ideologia predominante nas esferas do establishment americano, os Estados Unidos diminuem a participação do Estado na atividade econômica, bem como freiam os estímulos aos setores produtivos, privilegiando atividades voltadas à garantia dos interesses e do bom funcionamento dos mercados. Isso irá afetar diretamente a capacidade de investimento governamental em pesquisa e desenvolvimento, interferindo no suporte direto e indireto à inovação. Como observaram François Chesnais e Catherine Sauviat (2005), a austeridade orçamentária e as políticas macroeconômicas e fiscais deflacionárias levaram a cortes de gastos e, consequentemente, à queda relativa – por vezes absoluta – no nível de apoio do governo à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico. A esta altura, constrangido pelo regime de acumulação do capital financeiro, como grande regime de regulação da ordem econômica contemporânea (AGLIETTA, 2000), o financiamento à inovação passaria a ser orientado pelo chamado “capital de risco”1, devido à ausência de uma estrutura institucional adequada para sustentar esta estratégia. 1 Segundo Mazzucato (2014 p. 80), “O capital de risco é um tipo de investimento que aposta em empresas iniciantes com alto potencial de crescimento por meio da compra de uma participação acionária. O 17 O prestígio industrial associado ao domínio tecnológico, bem como a possibilidade de constituição de monopólios e acesso a diversos mercados, atraiu esse tipo de investimento. Todavia, os altos custos com pesquisa e desenvolvimento, o índice de frustrações e, fundamentalmente, a necessidade de maturação dos processos à longo prazo contrastavam com a expectativa desse capital de retorno à curto prazo de seus investimentos. Tradicionalmente, o financiamento governamental foi a fonte de inovações radicais e pioneiras (MAZZUCATO, 2014), uma vez que este sempre esteve disposto a assumir os riscos que as grandes inovações exigem. Por sua vez, o imediatismo do capital de risco privado gera uma série de incertezas aos laboratórios e institutos de pesquisa (PEREZ, 2014). Desse modo, esse formato acarreta em uma transformação nas características das atividades de inovação, haja visto que nas empresas em que o capital de risco fomenta os setores de pesquisa e desenvolvimento acabam prevalecendo “estratégias de adaptação, em vez de estratégias realmente voltadas para a promoção da inovação no verdadeiro sentido do conceito. Essa tendência provavelmente terá impactos sobre a capacidade do sistema de produzir inovações em algum momento no futuro” (CHESNAIS; SAUVIAT, 2005 p. 162). Com o enquadramento ao regime de acumulação do capital financeiro e a adesão do governo norte-americano ao modelo de regulação neoliberal, se tornou escasso o financiamento a descobertas de inovações e tecnologias radicais que não respondessem aos interesses do capital de risco de curto prazo. Enquanto países concorrentes impulsionaram um tecno-nacionalismo estimulando seus sistemas nacionais de inovação através de políticas industriais e de pesquisa e desenvolvimento com forte componente de intervenção estatal, os Estados Unidos viram sua política científico-tecnológica capitular diante do imediatismo do capital privado de risco, e da postura anti-intervencionista baseada em um fundamentalismo de mercado de suas elites políticas. O reflexo desse processo foi que o capital privado tornou-se o principal provedor de recursos para o ecossistema de inovação norte-americano. Além do financiamento pode ocorrer na fase inicial ou em um estágio mais avançado, em que o objetivo do capitalista é obter um alto retorno com a bem-sucedida abertura do capital, com uma fusão ou pela aquisição da empresa. O capital de risco preenche o vácuo com que se deparam as empresas novas, que normalmente têm problemas para obter crédito junto a instituições financeiras tradicionais como os bancos”. 18 imperativo de busca por retornos de curto prazo, ao passo que inovações radicais exigem tempo e paciência até a apresentação de resultados satisfatórios e comercializáveis, grande parte dos investidores privados prefere participar do financiamento de inovações de baixo risco ou de mercados consumidores com demanda já estabelecida. Esta perspectiva fortaleceu sobremaneira a indústria de defesa, que acabou por reunir os elementos procurados pelos investidores privados: o setor recebia grande parte do financiamento público às inovações, responsáveis por sustentar a pesquisa radical em suas fases mais críticas; a indústria de defesa apresenta um histórico de inovações de sucesso e um aprendizado tecnológico que reduz as incertezas sobre a viabilidade de seus projetos; e conta com um mercado de compras governamentais que direciona boa parte das pesquisas sob encomenda, garantindo por meio de contratos públicos a possibilidade de lucratividade sobre os investimentos. Esse modelo permitiu que o mercado extraísse vantagens do apoio e do financiamento público de inovações, porém fragilizou um dos pilares do sistema nacional de inovação norte-americano, o de ganhos compartilhados, pois ao não obter retorno direto dos investimentos realizados, o Estado tem seus investimentos futuros em todas as esferas do desenvolvimento científico-tecnológico prejudicados. Com o aval da segurança nacional, tendo a trajetória de aprendizado tecnológico advogando a seu favor, e em parceria com os investidores privados detentores do capital de risco, a indústria de defesa teve abundantes recursos direcionados para sua missão científico-tecnológica de propor inovações radicais, alçando o país à condição de potência militar incontestável nas últimas décadas. Todavia, ao canalizar recursos públicos e privados para esta área, setores tradicionais da indústria nacional, cujo acesso aos recursos de financiamento estatal não estiveram à disposição no montante necessário para garantir sua competitividade no mercado internacional, se desidrataram e sucumbiram frente à concorrência de suas congêneres estrangeiras apoiadas por fortes estímulos governamentais. Partimos do pressuposto de que com a adesão aos fundamentos de não- intervenção estatal defendidos pelo neoliberalismo e à dinâmica dos investidores que se beneficiaram dos arranjos de regulação do capital financeiro, os Estados Unidos cederam ao mercado, com todo seu conjunto de interesses e idiossincrasias, a prerrogativa de definir as prioridades e conduzir as ações de sua política de inovação científico-tecnológica. Como resultado dessa liberdade concedida ao mercado, um 19 conjunto de setores que tradicionalmente sustentaram a economia norte-americana foram preteridos e perderam a capacidade de se renovar e de estabelecer um nível de competitividade compatível com as exigências do mercado global. Logo, isso refletiu no vigor e na capacidade de reação da economia nacional frente a crises domésticas e internacionais, mas principalmente na condição dos Estados Unidos sustentarem sua posição de liderança no cenário econômico internacional. Com efeito, somente por meio de uma mudança na postura do governo norte-americano em relação à condução de sua política científico-tecnológica e da recuperação de setores estratégicos para a economia nacional é que o país teria condições de recuperar a vitalidade de seus indicadores econômicos e interferir no movimento de transição ciclo hegemônico da produção global que se abriu nas primeiras décadas do século XXI. Dessa forma, apresenta-se a reorientação da concepção do papel do governo federal no suporte à econômica doméstica, no financiamento de pesquisas voltadas a inovação em setores estratégicos, e na formulação de uma política científico-tecnológica para os Estados Unidos a partir do início do governo Obama, com o objetivo de resgatar a capacidade competitiva da indústria nacional no mercado internacional, como hipótese dessa tese. Nesse sentido, entende-se que a Estratégia Nacional de Inovação de Obama, e o conjunto de ações governamentais que a complementam, cumpre a função de reorientar a política científico-tecnológica do país em direção à promoção da produtividade nacional e da competitividade internacional ao apresentar um novo arranjo institucional voltado à inovação. A proposta de Barack Obama, de articular uma política nacional de inovação através de sua Estratégia Nacional de Inovação, tenciona priorizar o investimento em setores considerados estratégicos para a retomada do crescimento e do nível de competitividade dos Estados Unidos e desacelerar o processo de transição produtiva para o mundo oriental. Ao buscar otimizar setores que haviam sido marginalizados ou não teriam reunido condições de atrair recursos nos últimos anos, mas cuja fragilidade fora considerada crucial para potencializar os fundamentos da crise econômica norte- americana, a estratégia de Obama vai além de utilizar o Estado para “corrigir falhas do mercado” e busca recuperar a performance de principal centro indutor de tecnologias inovadoras. 20 Para compreender esse processo, discutiremos qual a importância da Estratégia Nacional de Inovação do Governo Obama para a sustentação da economia doméstica e para a dinâmica das relações internacionais contemporâneas. Visto que é indissociável a relação entre a economia e política doméstica dos Estados Unidos e os rumos da ordem internacional, sobretudo à luz do debate sobre a possível transição hegemônica. Dessa forma, dividiremos o conteúdo a seguir em três capítulos, organizados da maneira que segue. No primeiro capítulo, visando situar a concepção teórica e metodológica em que se baseia o texto, procuraremos explorar o debate sobre o desenvolvimento e a dependência tecnológica dentro da economia política do sistema-mundo, apresentar o papel dos Estados nacionais na constituição de sistemas nacionais de inovação tecnológica e alinhavar as discussões sobre a inovação técnico-científica e a competição entre as nações pela liderança hierárquica do sistema internacional. O segundo capítulo buscará contextualizar o processo sistêmico que opera como pano de fundo do movimento de crise e questionamento da hegemonia norte- americana. Incialmente se discutirá o regime que se consolida em âmbito global e que orienta a economia-mundo contemporânea, a financeirização e as reformas neoliberais orientadas para o mercado. Em seguida, será explorado o movimento de transição do eixo produtivo do Ocidente em direção ao Oriente, e o debate que se abriu em relação ao declínio dos Estados Unidos. Por fim, como resultado desses dois processos, uma avaliação da crise financeira e econômica que teve como epicentro a economia norte- americana, e seus reflexos para a ordem econômica global. No terceiro capítulo, será analisada a política científico-tecnológica do Governo Obama. Para isso, será recuperada a trajetória de inovação do país, com a apresentação do respectivo arranjo institucional de seu ecossistema de inovação, bem como as características do sistema nacional de inovação norte-americano. Também será discutida a transição que ocorre no ecossistema de inovação a partir da submissão do país ao regime de acumulação do capital financeiro e da adesão aos princípios da regulação neoliberal. Por fim, uma avaliação da política de inovação do governo Obama e de sua Estratégia Nacional de Inovação, buscando compreender se ela tem sido capaz de promover a reorientação necessária nos fundamentos do ecossistema de inovação e poderá promover a recuperação da competitividade da economia nacional. 21 Dessa maneira, pretende-se alcançar maior conhecimento e compreensão de um importante movimento que tem sido colocado em prática nos Estados Unidos como maneira de promover a recuperação da economia norte-americana, e de forma mais ampla, utilizado para garantir sua condição de principal potência do sistema internacional. Nesse sentido, entender sua dinâmica se torna tarefa essencial a qualquer análise das tendências das relações internacionais contemporâneas. 22 2 DESENVOLVIMENTO, INOVAÇÃO E COMPETIÇÃO INTERNACIONAL Eu creio que o movimento cíclico é universal, que há um só movimento que vai se propagando de país a país. Portanto, não se deveria dividir o processo em várias partes independentes; não há um ciclo nos Estados Unidos e um ciclo em cada um dos países da periferia. Tudo constitui um só movimento, mas dividido em fases muito distintas com características claramente diferentes, segundo se trate do centro cíclico ou da periferia. Por esta última razão, apesar de ser o processo um só, as suas manifestações são muito diversas, de acordo com o lugar em que nos situemos [...] Sustento, por isso, que é impossível aplicar uma política uniforme para abordar os problemas emergentes do ciclo econômico. Não é possível usar na periferia as mesmas armas de intervenção e regulamentação monetária que se usa no centro cíclico (PREBISCH, 2011 p. 142). Ao longo do século XX e neste início de século XXI a ideia de desenvolvimento vem sendo lapidada no campo das ciências sociais. Se no princípio sua conotação era fortemente associada a crescimento econômico e industrialização, o conceito vem adquirindo novo aspecto, que engloba outras necessidades vinculadas ao bem-estar social, como aquelas relativas à distribuição de renda, à preservação ambiental e a alguma concepção de direitos humanos. Tudo isso requer uma estratégia nacional de desenvolvimento (BRESSER-PEREIRA, 2010), uma vez que as leis e os fundamentos do livre mercado são omissos em relação à criação de estruturas administrativas e instituições dotadas de capacidade para a gestão dessa concepção de desenvolvimento que tem sido construída. A crise financeira global de 2008 revalorizou o papel do Estado para além de suas funções clássicas de mantenedor da lei e da ordem e provedor dos bens públicos. A leniência dos mercados com a financeirização excessiva e com a criação de artifícios econômico-financeiros oriundos da desregulamentação do sistema trouxe de volta vigor aos críticos do livre-mercado. Mais ainda, tratou de fazer reemergir no debate global a importância do Estado como indutor e propulsor do desenvolvimento, dado o movimento de recuperação – e em alguns casos ainda o pequeno impacto causado pela crise – das economias que possuíam maior intervenção estatal e estratégias articuladas pelos seus governos para evitar movimentos anticíclicos e recessões econômicas. Nesse sentido, ganharam força e visibilidade os estudos sobre as estratégias nacionais de desenvolvimento, sobretudo aqueles que se debruçavam em cima de políticas e sistemas voltados ao fortalecimento de instituições consideradas fator chave 23 para a ampliação da produtividade e da competitividade. Notadamente, aquelas que viabilizam a constituição de sistemas nacionais de inovação técnico-científica, levando em consideração que a construção de capacidade nacional de gerar e gerir conhecimento tecnológico é essencial para o desenvolvimento. Voltara-se à preocupação para os modelos de políticas e formato de instituições necessárias para aumentar a capacidade tecnológica, e que sejam adequadas para aproveitar as oportunidades e resistir aos desafios apresentados pela economia interdependente e mercados integrados, como nos dias atuais (OMER, 2002). Além de garantir um ambiente propício ao investimento, seja na ampliação de instalações, aquisição de equipamentos, treinamento e qualificação dos profissionais, pesquisa & desenvolvimento, é resgatado o entendimento de que as políticas e as regulamentações governamentais têm um papel no desenvolvimento e na transferência e difusão de tecnologias, e deve direcionar também o papel das empresas, principalmente com: - o estabelecimento de normas e padrões técnicos; - a criação de instituições encarregadas da promoção da cooperação empresa- comunidade para a absorção de tecnologia; - a criação de esquemas de incentivo destinados a facilitar ou acelerar o desenvolvimento e a aplicação da tecnologia, como incentivos fiscais, empréstimos preferenciais e garantias financeiras; - apresentação de leis e regulamentações que estimulem o Investimento Externo Direto; Obviamente, os Estados apresentam diferentes capacidades de oferecer tais estímulos e incentivos. Este é o mote que nos leva à discussão proposta neste primeiro capítulo: Quais os condicionantes que interferem nessa diferença de capacidade? São variáveis domésticas como o vigor e o dinamismo das economias locais? São opções de políticas públicas adotadas em virtude de uma correlação de forças existente no cotidiano da política destas nações? Ou há aspectos estruturais que condicionam o desenvolvimento das nações e conformam suas capacidades e aspirações no cenário internacional? Ainda que entendamos não ser possível descartar as duas primeiras asserções, optamos por explorar essa terceira opção, uma vez que enxergamos como variável precípua dessa discussão a macrodistância Centro-Periferia que define os 24 papéis de cada ator integrante da Divisão Internacional do Trabalho estabelecida pela estrutura econômica do Sistema-Mundo Moderno. Destaca-se que aqueles países que já alcançaram um nível de desenvolvimento científico e tecnológico elevado e ocupam uma colocação positiva na Divisão Internacional do Trabalho pretendem estabelecer uma espécie de congelamento das “desigualdades internacionais” (MENEZES, 2013). Assim, caberia aos Estados alijados desse processo criar condições para sua inserção internacional por meio de políticas industriais e de ciência & tecnologia capazes de ofertar: - recursos a serem investidos no desenvolvimento científico e tecnológico; - fortalecimento do poder de compra do governo para fortalecer as capacidades nacionais; - manutenção do controle de setores estratégicos nacionais; - proteção de indústrias nascentes e setores vulneráveis; - variáveis de longo prazo nos projetos de ciência, tecnologia e inovação; Nessa tendência, precisam ser viabilizados projetos com alta capacidade de articulação entre a política macroeconômica e a política industrial e tecnológica, buscando uma inserção competitiva autônoma, capaz de superar assimetrias de acesso ao progresso técnico (LASTRES; CASSIOLATO; ARROIO, 2005). Desse modo, fica claro que a aquisição e uso de conhecimentos e progresso técnico é fator responsável pela diferenciação econômica, social e política entre países, pois se trata, dentro de uma perspectiva sistêmica, de elemento fundamental para a promoção do desenvolvimento e modo de inserção dos diferentes países na geopolítica internacional. Portanto, a proposta foi explorar estas questões a partir de três eixos: num primeiro momento situar o debate do desenvolvimento e da dependência tecnológica dentro da economia política do sistema-mundo, com o intuito de identificar o tamanho da representatividade dessa condição no âmbito da Divisão Internacional do Trabalho e da estratificação estabelecida pela dimensão Centro-Periferia; Em um segundo momento, explorar o papel dos Estados nacionais na constituição de sistemas nacionais de inovação tecnológica, considerados ferramentais essenciais para uma estratégia nacional de desenvolvimento e inserção internacional positiva; No terceiro e derradeiro 25 momento deste capítulo, alinhavar as discussões sobre a inovação técnico-científica e a competição entre as nações pela liderança hierárquica do sistema internacional. 2.1 Desenvolvimento e Dependência Tecnológica na Economia Política do Sistema- Mundo A concepção de que o processo de liderança na inovação tecnológica está ligado à manutenção da condição de centro hegemônico no ciclo sistêmico de acumulação deriva da interpretação de que a economia mundial se constitui como um sistema interconectado. Tal interpretação é fundamentada por Immanuel Wallerstein ao considerar o atual desenvolvimento histórico do sistema internacional com base no que ele denomina de Economia-Mundo, em sua trilogia The Modern World-System. Segundo Wallerstein (1979), o sistema social histórico chamado Economia-Mundo surgiu no século XVI na Europa e hoje abarca todo o globo terrestre. Neste sistema, o todo pode ser decomposto em vários subsistemas: o econômico, formado pelas cadeias mercantis; o interestatal, formado pelas diferentes jurisdições políticas, chamadas Estados nacionais formalmente soberanos; o ideológico, formado pelo conjunto de ideias, valores, conceitos (morais, políticos, científicos, econômicos etc) que funcionam como uma espécie de programa mental do mundo moderno (VIEIRA, 2013). Para ele, a unidade correta de análise das relações internacionais, consequentemente da economia mundial, é o sistema mundial, espaço de uma ampla gama de grupos sociais em contato e principalmente em conflito uns com os outros. Um sistema que possui limites, estruturas, regras de legitimação e coerência, que são definidos por entidades econômico-materiais baseadas em uma divisão extensiva do trabalho e que contém em seu seio uma multiplicidade de culturas (WALLERSTEIN, 1979 p. 489). Como reitera diversas vezes Wallerstein em sua obra, o capitalismo foi capaz de florescer justamente porque a economia-mundo contém dentro de seus limites não apenas um, mas múltiplos sistemas políticos. O capitalismo, como modelo econômico, se baseia no fato de que os fatores econômicos operam no seio de uma arena maior do que qualquer entidade política pode controlar totalmente. Isso dá aos capitalistas uma liberdade de manobra que tem uma base estrutural, haja vista que as dimensões de uma 26 economia-mundo são em função do estado da tecnologia, em particular das possibilidades de transporte e comunicação dentro de seus limites. Dado que isto é algo submetido a uma dinâmica de mudanças constantes, os limites de uma economia-mundo são sempre fluidos. A economia-mundo se sustenta na inter-relação entre um núcleo central e áreas periféricas2. Essa divisão, segundo Wallerstein, supõe uma hierarquia na distribuição das tarefas da economia-mundo, cujos países centrais exercem atividades que requerem maiores níveis de qualificação e capitalização, ao passo que as áreas periféricas trabalham com atividades econômicas menos complexas. Nesse sentido, o processo de desenvolvimento de uma economia-mundo tende a ampliar ainda mais a distância de níveis social e econômico entre centro e periferia, sobretudo quando calcados em processos de inovação tecnológica (WALLERSTEIN, 1979, p. 493). Não obstante, o sistema-mundo apresenta-se como um sistema social dinâmico, no qual as tensões entre as unidades políticas conformam o seu retrato. Assim como já fora observado por Weber (1961), Wallerstein indica que no sistema-mundo os Estados nacionais disputam posições de poder e competem pelo capital circulante, e para garantir essa “maximização da acumulação” lutam para estabelecer monopólios relativos de produção (WALLERSTEIN, 2001, p. 121). Com efeito, esses monopólios podem ser alcançados a partir de três ajustes no campo da produção: 1) baixar o custo de produção de produtos competitivos; 2) encontrar novos compradores para os produtos competitivos; 3) descobrir novos produtos para produzir, os quais estarão sujeitos a monopólios relativos e ainda terão um mercado significativo a explorar. O que permitiria, aos Estados, ampliar seus níveis globais de lucro, alterando ou perpetuando o status sistêmico, mas promovendo uma expansão renovada da economia-mundo. Em suas pesquisas, Wallerstein identifica que o terceiro ajuste, promovido através de “mudanças tecnológicas, isto é, pela criação de produtos novos, chamados de ponta”, deve ser entendido como “locus de operações monopolizadas de alto lucro” (2001, p. 126). Afirma, ainda, que esse processo depende de uma intervenção direta do 2 O modelo de Wallerstein reconhece também a existência de áreas que ele chama de semi-periferia. Elas se encontram em um espaço intermediário entre o centro e a periferia em uma série de dimensões, tais como a complexidade das atividades econômicas, a força do aparato estatal, etc. Podem ter sido áreas centrais em versões anteriores do sistema-mundo, bem como áreas periféricas promovidas pelas condições dinâmicas da economia-mundo em expansão. 27 Estado, o que, em consonância com Fiori (2004) indica que é a partir da aproximação entre o mercado e o Estado que se constitui o principal motor de desenvolvimento da economia política internacional. De acordo com Fiori, quem liderou a expansão vitoriosa do capitalismo foram sempre os Estados e os capitais que souberam navegar com sucesso na contramão das “leis do mercado”, ou seja, os “grandes predadores” que conseguem manter e renovar permanentemente o seu controle monopólico das “inovações”, e dos “lucros extraordinários”. Segundo o próprio autor: “sem o apoio do capital o poder se fragmentaria com mais facilidade, e sem o apoio do poder e das armas o capital teria mais dificuldade de estabelecer situações monopólicas. A condição do jogo das guerras com o jogo das trocas que criou as condições originárias da economia capitalista” (FIORI, 2004, p. 32). Dando sequência ao debate, Wallerstein aponta a busca pelo desenvolvimento como a ideologia político-econômica dominante em todo o sistema- mundo no período de principal crescimento econômico mundial do século XX, do pós- guerra aos anos de 1970, tanto nos países do centro capitalista quanto nos países periféricos: [...] Os Estados Unidos, a União Soviética, e os países do Terceiro Mundo tinham, sem dúvida, diferentes vocabulários sobre o desenvolvimento, mas as ideias básicas que todos eles alimentavam eram visivelmente semelhantes. A proposta subjacente era de que a combinação de urbanização, agricultura mais eficiente, industrialização, educação e protecionismo de curto prazo (substituição de importações) constituíam o caminho para a terra prometida do desenvolvimento (WALLERSTEIN, 2001, p. 61). Denota dessa análise, que no ambiente da competição capitalista que caracteriza o sistema mundial da economia-mundo, torna-se essencial o controle dos monopólios tecnológicos com vistas à acumulação do capital. E para isso, os Estados trabalham no sentido de evitar que seus concorrentes se encontrem em condições de romper seus monopólios e ocupar as posições exclusivas conquistadas. Parece evidente, de acordo com essa leitura, que a interpretação liberal de que os mercados desregulados e globalizados, atuando de forma autônoma na economia internacional, não levarão à convergência e não promoverão o equilíbrio entre as economias nacionais de Estados do centro e da periferia do sistema (FIORI, 1999). Portanto, os processos de inovação tecnológica, e consequentemente de acumulação de capital responsáveis pela dinâmica da economia internacional dentro do 28 sistema-mundo, dependem da atuação do Estado como força indutora. Este passa a atuar se fazendo presente nos rumos tomados pela economia nacional e direcionando suas escolhas no plano internacional, minimizando as aspirações de liberdade proclamadas e advogadas pelo mercado. Essa concepção norteou, sobremaneira, o pensamento desenvolvimentista na América Latina na passagem da primeira para a segunda metade do século XX. O ponto de partida foi dado pelos trabalhos de Paul Baran, posteriormente sintetizados em “A Economia Política do Desenvolvimento” (BARAN, 1984), para quem o subdesenvolvimento da periferia era condicionado por um sistema internacional hierarquizado responsável por bloquear o desenvolvimento nas regiões mais atrasadas do sistema: [...] em lugar da expansão e aprofundamento do capitalismo pelo mundo, a principal tarefa do imperialismo era reduzir e controlar o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos (BARAN, 1984 p. 197). Na esteira de Baran, Raul Prebisch e Celso Furtado se dedicaram a fundar uma escola de pensamento capaz de romper com a visão linear de que os países industrialmente mais avançados mostram aos menos desenvolvidos a imagem do seu futuro, e com a ilusão liberal de que a divisão internacional do trabalho fundamentada nas vantagens comparativas proporcionaria condições iguais dentro do sistema ao valorizar a vocação e a eficiência dos países. De acordo com o chamado “Estruturalismo Latino-Americano” (RODRIGUEZ, 2009), são consideradas centrais aquelas economias em que penetram primeiro as técnicas capitalistas de produção. Por conseguinte, a periferia está constituída pelas economias cuja produção permanece inicialmente atrasada, do ponto de vista tecnológico e organizativo. Raul Prebisch explora as relações entre os países do centro e da periferia, identificando como um de seus principais condicionantes da desigualdade entre estes o nível de produtividade nas trocas comerciais. Para ele, a correlação de produtividade e intensidade de tais trocas comerciais evidenciava a não distribuição equitativa dos frutos do progresso técnico no sistema da economia-mundo. Seu estudo demonstrou que a elevação da produtividade nos países centrais não teve como contrapartida a redução dos preços relativos dos bens manufaturados, levando, justamente, ao processo contrário, de elevação de seus preços. 29 A partir dessa reflexão, Prebisch deu origem ao que talvez tenha sido a principal contribuição dessa etapa do pensamento estruturalista latino-americano, e fonte originária de todas as formulações posteriores da escola, o conceito de Deterioração dos Termos de Troca. Para ele, à medida que a intensidade de uso dos meios de produção e a produtividade dos bens manufaturados foram ampliadas, maiores ganhos foram gerados aos países mais desenvolvidos, aumentando a renda de empresários e dos fatores produtivos dessas nações. Esta regra, segundo Prebisch (2011) cristalizava as assimetrias entre centro e periferia à medida que fundamentava a natureza do desequilíbrio comercial entre as nações. A lógica que explicaria tal eficiência e aumento da produtividade maior no centro em relação à periferia é o potencial científico e tecnológico do centro, oriundo de sua maior capacidade de acumulação de capital. Tal concepção será reforçada por Furtado (1978 p. 112), como veremos adiante, para quem o vetor do progresso da tecnologia na civilização industrial é viabilizado pela acumulação, e “todo atraso relativo na acumulação traduz-se em aumento do custo das técnicas importadas em termos de unidades de mão-de-obra do país que as importa”, gerando as bases que estabelecem a relação desigual no progresso científico-tecnológico Centro-Periferia. Esta configuração estrutural do centro, cujas bases teóricas podem ser resgatadas na obra do alemão Friderich List, permitiu às economias centrais maiores condições de investimento e, consequentemente, possibilidades de reter maior parte deste mesmo progresso técnico por ele produzido3. Assim, constituiu-se um “centro” gerador e difusor de progresso técnico-científico e uma “periferia” assimiladora desses processos gerados e difundidos pelo centro. Nas economias centrais o progresso técnico-científico propaga-se pelo conjunto da sociedade e de seu modo de produção, ao passo que nas economias periféricas as tecnologias modernizadoras são incorporadas aos setores de exportação, voltados a abastecer os países centrais. Os demais setores 3 A teoria elaborada por List em seu Sistema Nacional de Economia Política (1841), está relacionada a todo desenvolvimento de descobertas, invenções e progresso tecnológico, alçando o conhecimento ao centro do processo de desenvolvimento econômico das nações. Sua formulação originou a chamada escola histórica alemã, visto que defendia que o estado atual das nações é resultado do acúmulo das descobertas, invenções e aperfeiçoamento das atividades de gerações passadas, fortalecendo a interpretação de que vantagens devem ser desenvolvidas, não são inatas ou herdadas a-historicamente. Segundo List: “o poder de criar riqueza é mais importante do que a própria riqueza [...] o bem-estar do povo não depende da quantidade de bens e de valores comercializáveis que possui, mas do nível de desenvolvimento de suas forças produtivas” (LIST, 1986 p. 239). 30 permanecem com baixo grau de produtividade, evidenciando as assimetrias decorrentes dessa diferenciação centro-periferia. Para Prebisch (2011), à medida que o progresso técnico reduziu a proporção em que os produtos primários intervêm nos valores dos produtos finais, a consequência prática foi uma redução da demanda global por produtos primários e o achatamento de seus preços, com a consequente deterioração dos termos de troca. Portanto, enquanto os países da periferia não desenvolvessem capacidade de impulsionar processos de inovação tecnológica e detivessem condições de fomentar seu próprio crescimento de maneira autônoma, ou seja, não atuassem na posição de “centro cíclico” da economia mundial, o projeto de desenvolvimento estaria longe de ser concretizado. Essa visão daria início a um esforço de centralização do planejamento econômico fora do centro do sistema, que passaria a operar em nome de um projeto nacional. Como o nível e o perfil de exportações dos países periféricos se mostravam insuficientes para suprir as suas necessidades de importações, haja vista que tinham que importar produtos industriais e, por outro lado, exportavam fundamentalmente produtos agrícolas, Prebisch (2011) defendia a industrialização com vias a um processo de substituição das suas importações por produção local dos países periféricos. Seria esse um mecanismo responsável por mudar a composição da balança comercial dessas economias e, consequentemente, elevar a sua renda através da dinâmica do progresso técnico. Como ele ressaltava, a industrialização traria como externalidades uma série de benefícios econômicos e sociais, uma vez que absorveria diretamente e em atividades correlatas boa parte da mão-de-obra disponível. Ademais, novas fontes de ocupação surgiriam da demanda crescente nos setores de serviços, que seriam impulsionados por uma elevação da renda média da população, reflexo da produtividade industrial. A industrialização nos moldes de substituição de importações não seria responsável por reverter a tendência estrutural do sistema centro-periferia, uma vez que, ainda que superada a etapa de substituição de bens de consumo e de baixa complexidade, avançar na substituição de bens de capital e de produtos mais complexos traria maiores exigências, como alta qualificação, altos investimentos e ganhos de escala acoplados à conquista de novos mercados. Não obstante, para Prebisch a industrialização via substituição de importações não era um fim em si, mas possuía um significado fundamental ao se apresentar como vetor de captação e proliferação de progresso técnico. 31 A obra de Celso Furtado, que estabelecia diversas pontes de contato com o pensamento de Raul Prebisch, sobretudo no âmbito da CEPAL4, ofereceu importante contribuição para “desmistificar” a noção de progresso e desenvolvimento que as economias centrais buscaram estabelecer frente aos países da periferia (FURTADO, 1974; DUPAS, 2006). A ideia do progresso e do desenvolvimento como fim teleológico se sustentava na dualidade atraso/modernidade. Nesse sentido, os principais expoentes das teorias do desenvolvimento concebidas nas economias centrais associavam a ideia de desenvolvimento aos índices de crescimento econômico e níveis de industrialização, equiparando, deste modo, desenvolvimento a modernização. Dessa forma, ao encarar o “subdesenvolvimento” apenas como um atraso, Rostow (1961) se preocupa em demonstrar como esses países deveriam alcançar a via do desenvolvimento, caracterizando o subdesenvolvimento, dentre outros fatores, por seus baixos níveis de poupança e ausência de uma classe empresarial dinâmica, ou das suas inferiores condições de competitividade industrial. É exatamente essa visão linear da história, que enxergava um caminho em direção ao progresso tecnológico e científico sustentado na divisão entre as noções de sociedade atrasada e sociedade moderna, diferenciadas apenas pelos estágios em que suas economias se encontram, que Furtado (2013) buscou contrapor. Para ele, a ideia de subdesenvolvimento não se resumia a um estágio da fase evolutiva de determinada trajetória, mas sim ao ponto de chegada dessas sociedades dentro de determinado modelo estrutural. Não haveria nenhuma mudança nessa condição se não fossem alterados os elementos da relação entre os sistemas dessa estrutura. Desse modo, devido à existência de especializações produtivas diferenciadas dentro do sistema da economia-mundo, as interações comerciais constituem-se de forma assimétrica, com efeito desigual sobre a capacidade de geração de riqueza e acumulação de capacitações produtivas entre as economias centrais e periféricas. Por isso, não seria correto tratar o subdesenvolvimento como uma etapa transitória cuja superação 4 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo. Durante as décadas de 1960 e 1970 a CEPAL reuniu grandes nomes do pensamento desenvolvimentista latino- americano que postulavam que a industrialização seria o principal caminho para superação do subdesenvolvimento dos países da região. Esta missão incluía a formulação e avaliação de políticas públicas, e a prestação de serviços operativos nos campos da informação especializada, assessoria, capacitação e apoio à cooperação e coordenação regional e internacional às economias latino- americanas. 32 dependesse apenas de correção de rumos da política doméstica que superasse o atraso em direção à modernidade. Ou seja, para Furtado (2013), o subdesenvolvimento não é um estágio do desenvolvimento, mas um resultado do desenvolvimento do capitalismo central. A periferia é um sistema híbrido com pólos de baixa produtividade vinculados a formas tradicionais de produção e pólos de alta produtividade ligados ao mercado mundial. Furtado identifica a cristalização de uma estrutura dual, em que o progresso na periferia só é impulsionado quando funcional ao centro5. Sendo assim, é “a crescente complexidade da trama das relações internacionais que definirão as condições de inserção das economias nacionais no sistema de divisão internacional do trabalho” (FURTADO, 1978 p. 15). Portanto, como também demonstrava Furtado, “a característica fundamental do capitalismo periférico consiste numa assimetria entre a assimilação do progresso técnico (o fluxo de inovações) ao nível dos bens finais de consumo (importados) e ao nível dos processos produtivos. Essa assimetria se manifesta no atraso da acumulação diretamente ligada ao processo produtivo” (1987, p. 92). Logo, para Furtado, a periferia sofria com “o atraso relativo no processo de acumulação (e de assimilação do progresso técnico nos processos produtivos)” e, portanto, “a distinção entre o capitalismo central e o periférico não está na desigualdade (em maior ou menor grau) ou no crescimento econômico, mas na forte acumulação de capital e industrialização/tecnificação nos capitalismos centrais”. A acumulação, que possibilita a elevação do nível técnico, constitui via de regra uma condição necessária para reduzir a dependência, mas está longe de ser condição suficiente [...] a posição relativa de cada um reflete, de uma ou outra forma, o nível alcançado pela acumulação nas forças produtivas e a autonomia tecnológica. De ordinário existe uma elevada correlação entre essas duas variáveis: nível de acumulação e autonomia tecnológica (FURTADO, 1978 p. 113). 5 Tal perspectiva é desenvolvida também no seio dos formuladores da Teoria da Dependência, com um teor mais crítico ao sistema da economia-mundo, buscando condições de ruptura desse sistema e constituição de uma nova ordem econômica, política e social em âmbito mundial. “A Industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo âmbito se transferem aos países dependentes as etapas inferiores da produção industrial (observe-se que a siderurgia, que correspondia a um sinal distintivo da economia industrial clássica, generalizou-se se tal ponto que os países como o Brasil já exportam aço), reservando-se para os centros imperialistas as etapas mais avançadas como a produção de computadores e a indústria eletrônica em geral, a exploração de novas fontes de energia, como a de origem nuclear etc.” (MARINI, 2000 p. 145). 33 Logo, passou a ser feita a leitura do atraso econômico pela difusão desigual do progresso tecnológico induzida pelo funcionamento hierárquico e assimétrico das relações entre economias nacionais que se haviam integrado de maneira diferenciada aos centros cíclicos da economia mundial, negando teorias do desenvolvimento produzidas no centro do sistema. Assim, para Furtado a condição das economias no sistema internacional deve ser entendida de acordo com um conjunto de traços estruturais que emergem da história e que definem a forma de inserção no sistema de divisão internacional do trabalho, gerando um atraso relativo no desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, situações como baixa produtividade, baixo nível de poupança, industrialização fragilizada, desemprego crônico e desequilíbrio externo no balanço de pagamentos, tão característicos das economias periféricas, passaram a ser observados como fruto da falta de progresso técnico-científico e de inovação, causados pela condição estrutural de divisão internacional do trabalho na economia-mundo. Como observa Fiori (1999), passavam a ser contestadas as teorias que defendiam ser a modernização um processo natural, progressivo e linear, fomentado por articulações políticas, programas de direcionamento de investimentos e concentração de capital em áreas de progresso tecnológico. De forma bastante sintética, é possível afirmar que o estruturalismo com Prebisch e Furtado apresenta aos atores alocados na periferia do sistema da economia- mundo uma estratégia já consolidada em seu núcleo central, a importância da atuação do Estado na direção de uma acumulação de capital oriunda dos processos de inovação tecnológica, garantidos a partir de uma intensa disputa, no âmbito internacional, entre elaborados sistemas nacionais voltados ao desenvolvimento e à inovação. Dessa forma, a dependência tecnológica, que impõe a adoção de padrões de consumo sob a forma de novos produtos finais que correspondem a um grau de acumulação e de sofisticação técnica que os países periféricos não possuem, deveria ser combatida mediante o desenvolvimento das forças produtivas nacionais e a ação coordenada entre o Estado e os demais setores da sociedade responsáveis pela criatividade e desenvolvimento técnico-científico. Esse recurso passou a ser formulado e estudado por uma série de especialistas que se debruçaram sobre as estratégias nacionais de desenvolvimento promovidas pelos Estados que seriam capazes de impulsionar o processo de industrialização e suas 34 externalidades necessárias ao incremento científico-tecnológico essencial aos processos de inovação (JOHNSON, 1982; WADE, 1982; EVANS, 1985; AMSDEN, 1989). Como observa Evans (2004 p. 36) “a intervenção estatal pode alterar a posição ocupada pelo país na divisão internacional do trabalho”, uma vez que tipos diferentes de estruturas geram capacidades diferenciadas de ação a estas economias. Obviamente, a alteração das estruturas depende da extensão das políticas e ações adotadas, bem como da competência demonstrada em sua execução. Não obstante, a capacidade exigida do Estado faz com que ele deva assumir papel de responsabilidade pela transformação econômica em parceria com outros atores sociais, criando um ambiente institucional propício ao desenvolvimento. Um Estado inteiramente autônomo não teria a capacitação suficiente, nem a habilidade necessária, para implementar seus objetivos de forma descentralizada e privada. Em contrapartida, quando redes muito densas de interesse não encontram um Estado com estrutura interna robusta, este se torna incapaz de resolver os problemas de ação coletiva e de transcender os interesses individuais de suas contrapartes privadas. Somente quando há uma combinação entre a incorporação de interesses coletivos e a autonomia um Estado pode ser chamado de desenvolvimentista. São imprescindíveis tanto autonomia quanto parceria (EVANS, 2004 p. 38). Dentro desta perspectiva, os Estados devem ser tratados como instituições e atores sociais em si, com poderes de influir no curso das mudanças econômicas e sociais, tendo sua percepção alargada em relação àquela de que se trata de um agregado de interesses de indivíduos ou que sejam meros instrumentos dentro de uma disputa social mais ampla de outros atores. Portanto, nesse momento, é retomada a concepção weberiana de que os Estados são produtos históricos de suas sociedades, que nesse contexto deveriam exercer a função de aparato burocrático responsável por fomentar a transformação econômica e garantir níveis mínimos de bem-estar social” (EVANS, 2004 p. 29)6. Ainda segundo Evans: [...] o Estado é visto como uma instituição enraizada historicamente, e não apenas como uma coleção de indivíduos estrategicamente posicionados. A interação do Estado com a sociedade é limitada por uma série de relações institucionalizadas. Os resultados econômicos são produtos das instituições sociais e políticas, e não apenas reações às condições de funcionamento do mercado. [...] Acima de tudo, (deve-se evitar tratar) o Estado como uma entidade monolítica (EVANS, 2004 p. 44-45). 6 Como indica Evans (2004), para Weber, os Estados são associações compulsórias que reivindicam controle sobre os territórios e sobre as pessoas que neles vivem [...]. Guerrear e assegurar a ordem interna são suas funções clássicas. No mundo contemporâneo, espera-se também que o Estado viabilize as operações das grandes empresas capitalistas, pois estas dependem da disponibilidade de um tipo de ordem que somente um Estado burocrático moderno pode oferecer. 35 Esta ação estatal é o resultado do processo de conflito político interno, que leva à construção de um conjunto de alianças sociais que ligam o Estado à sociedade e provêm canais institucionalizados para negociação contínua de objetivos e planos de ação. A partir de tais canais, baseados na coerência corporativa e conexão social, o Estado promove modelos de desenvolvimento que fornecem a base estrutural para sua intervenção favorável no sentido da transformação industrial. No mesmo diapasão seguem os trabalhos de Alice Amsden, que defende a ideia de um Estado que “planeja, define prioridades e hierarquiza seus investimentos”, o chamado Developmental State. Este modelo de Estado deve ser responsável por costurar pactos, selar acordos, definir incentivos e redirecionar projetos, visto que “a industrialização envolve passar de um conjunto de distorções relacionadas às rigidezes do subdesenvolvimento e da produção de artigos primários a outro conjunto de distorções baseado no conhecimento” (AMSDEN, 2004 p. 491). Estes estudos e propostas se desenvolveram com o propósito de fortalecer o mercado interno das economias periféricas por meio do desenvolvimento de uma indústria nacional autônoma, única estratégia capaz de conceber a formação de um núcleo endógeno de criação e difusão de progresso técnico-científico. A partir desse progresso técnico-científico estarão consolidados os fundamentos capazes de alçá-los a um novo patamar de especialização produtiva e comercial, baseada na inovação e voltada a ramos industriais dotados de elevado grau tecnológico. Esta nova intensidade tecnológica é buscada para gerar condições de competitividade e garantir ampliação de sua produtividade, promovendo transformações políticas e sociais nas economias periféricas, lançando-as, a partir do progresso técnico, a um novo patamar de inserção no âmbito da economia-mundo. Ao passo que essas transformações econômicas domésticas servem como alicerce para uma inserção diferenciada na economia do sistema-mundo, não se deve perder de vista que não se trata de uma escolha unilateral e que não encontre resistências. João Manuel Cardoso de Mello, ao desenvolver sua pesquisa sobre o capitalismo tardio, identificou três aspectos fundamentais que condicionam as assimetrias no sistema-mundo: o poder militar, responsável por estabelecer a subordinação político-militar entre as nações; o controle da moeda e das finanças internacionais, âncora da fragilidade monetária e financeira externa; e o controle sobre a 36 tecnologia e o progresso técnico, característico da natureza dinamicamente dependente do sistema produtivo mundial (CARDOSO DE MELLO, 1997 p.18). Nesse sentido, a inserção das economias periféricas depende de fatores exógenos para realizar sua ascensão no sistema. A retomada dos estudos sobre o imperialismo e a dependência, conforme feito por Evans (1975) ao recorrer a John Hobson, Rudolf Hilferding, Vladmir Lênin, Paul Baran e Samir Amin, articulada aos estudos contemporâneos sobre o imperialismo e a hegemonia no sistema-mundo (CHASE-DUNN, 1998; WALLERSTEIN, 2004; ARRIGHI, 2008; COHEN, 2004; PANITCH; GINDIN, 2012), indicam que a transformação nas relações centro-periferia não ocorre sem tensionamentos e movimentos de desgaste estruturais. Isso ocorre uma vez que a integração dos capitalismos menos desenvolvidos no mercado mundial se dá na qualidade de seus recursos naturais, resultando, salvo raras exceções, numa dependência contínua em relação aos centros de controle monopolista. Daí decorre a perda de autonomia econômica e a dependência consagrada e cimentada por essas estruturas para sua sobrevivência. Por outro lado, garante aos países centrais o monopólio da conversão desses recursos naturais em produtos de alto nível de intensidade, assim como permite o domínio destes sobre os investimentos e redes de comércio global de manufaturas (MAGDOFF, 1972). Não obstante, essa condição não é tomada com resiliência, haja vista que o lugar de cada nação na produção para os mercados globais tem profundas implicações na política interna e no bem-estar de seus cidadãos, levando “a divisão internacional do trabalho a ser encarada tanto como uma base para a melhoria do bem-estar quanto como uma hierarquia entre nações” (EVANS, 2004 p. 31). Logo, busca-se uma resposta a esse processo, tanto do ponto de vista da reorganização da dinâmica social e econômica domésticas, como daquela relativa às disputas em nível internacional. À medida que os Estados se tornam agentes dos processos internos de transformação econômica, passam a encarar o sistema internacional não apenas sob a ótica da soberania política, mas também como uma questão de divisão internacional do trabalho. A relação entre o desempenho interno e o contexto externo torna-se cada vez mais íntima e direta, estabelecendo-se de maneira dialética: [...] o êxito da transformação econômica depende da forma de inserção do país na divisão internacional do trabalho. A transformação, por sua vez, também é, inevitavelmente, definida em termos globais [...] os fatores políticos e sociais facilitam as estratégias do Estado que, por sua vez, permite 37 a reconfiguração do papel do país no sistema global [...] o envolvimento do Estado deve ser considerado como das determinantes sociopolíticas do nicho que o país vai acabar ocupando na divisão internacional do trabalho (EVANS, 2004 pp. 31-35). Dessa forma, para qualificar sua inserção na divisão internacional do trabalho e ocupar nova posição na economia-mundo, o Estado deve estar sempre o mais próximo possível da fase inovadora do ciclo do produto (GILPIN, 1987). Para isso, é preciso que promova estruturas sociais, econômicas e ocupacionais associadas à indústria de alta tecnologia, vinculadas aos novos setores que possuem dinamismo dentro da divisão internacional do trabalho. O Estado, nesse sentido, deve fazer uso de sua racionalidade administrativa para criar as condições favoráveis ao fortalecimento do processo de industrialização, sendo responsável por fomentar a visão e o desenvolvimento de uma cultura empreendedora, estabelecendo uma estratégia de desenvolvimento, objetivando o equacionamento da dívida pública interna e externa, o esforço exportador, a regulação e o controle do capital externo, os incentivos à produção e à geração de empregos, e principalmente o constante aprendizado tecnológico (CHANG, 2002, RODRIK, 1999). Tais estratégias de desenvolvimento devem ser baseadas nos pilares da Autonomia e da Parceria (EVANS, 2004)7, fornecendo constante estímulo e o arcabouço institucional para que o empresariado nacional tenha condições e segurança para investir em segmentos tecnologicamente mais avançados, que garantirão um desenvolvimento qualitativo. Essa capacidade de mudança técnica, que pode ser promovida pela ação estatal com o intuito de superar a dependência e gerar autonomia, está na origem das economias dos grandes centros, que impõem dificuldades à mudança em profundidade da estrutura ocupacional da periferia durante sua industrialização (RODRIGUEZ, 2009). Isto significa reconhecer que há uma disputa pelos espaços a serem ocupados no sistema internacional da economia-mundo moderna. Tal disputa permite a seus vencedores modelar e determinar as estrutura-chave sobre as quais a ordem econômica e 7 Esta noção relação positiva entre o Estado e o Mercado também está presente nas reflexões de Dani Rodrik, (2002 p. 43-44) e foi fundamental na construção da via de desenvolvimento das principais economias contemporâneas. Para ele: “a ideia de que os mercados e o Estado são complementares – reconhecida na prática, ainda que nem sempre em princípio – possibilitou a prosperidade sem precedentes vivida pelos Estados Unidos, Europa Ocidental e partes do Extremo Oriente na segunda metade do século XX”. 38 política se assentam, quais sejam: segurança, produção, finanças e conhecimento (STRANGE, 1988). Nessa direção, entendemos que a assimilação da tecnologia e seu posterior domínio dos ciclos de criatividade é um componente crítico tanto de catching-up para o desenvolvimento das forças produtivas e da acumulação de capital das economias nacionais, quanto de posicionamento na divisão internacional do trabalho e alocação na ordem mundial. Logo, estimular o desenvolvimento interfere nas estruturas que definem a hierarquia internacional. É, portanto, no campo da inovação dos ciclos de produtos e na ampliação das capacidades de mudanças técnicas que se estrutura importante etapa da competição pela hierarquia e liderança do sistema internacional. 2.2 Tecnologia, Inovação e Sistemas Nacionais de Inovação Tecnológica Tratar de inovação implica trabalhar com as concepções de novidade ou de renovação. Por se caracterizar como ideia, método ou objeto desenvolvido para aprimorar, superar ou romper padrões anteriores, a inovação é relacionada à surpresa e à singularidade, a tudo que diferencia, amplia a competitividade e cria valor ao negócio. Para gerar inovação é preciso ter uma ideia e ter condições de investimento nesta ideia. Contudo, não necessariamente precisa estar diretamente vinculada à invenção. Pelo contrário, pois o advento da inovação se constitui em grande medida a partir de rearranjos e novas combinações nas técnicas de concepção, desenvolvimento e gestão de produtos e processos, não devendo ser, estritamente, ligada à tecnologia, pois também está presente na logística, no marketing, na gestão, etc (TIGRE, 2006; ARBIX et al, 2010). Para Joseph Schumpeter (1984) a inovação se sustenta a partir de cinco eixos fundamentais: a descoberta de um novo produto, a introdução de uma nova técnica de produção, o aperfeiçoamento da gestão empresarial, a exploração de uma nova fonte energética ou de uma nova matéria prima e, enfim, a abertura geográfica de um novo mercado. Ademais, a inovação não está confinada aos ramos de tecnologia de ponta, e não é passível de ser impulsionada apenas pelos setores maduros e mais avançados da economia. Sua transversalidade permite desdobramentos na agricultura, na indústria, no 39 comércio, nos serviços, desde que a qualificação de pessoal permita a exploração de novas vertentes de processos e produtos. A inovação compreende mais do que apenas atividades formais de pesquisa & desenvolvimento, possui uma evidência conceitual que garante a melhora contínua de design e qualidade dos produtos, mudanças da rotina de organização e gerenciamento da produção, criatividade no marketing e mudanças nos processos produtivos que diminuam os custos, aumentem a eficiência e assegurem a sustentabilidade ambiental (LASTRES; CASSIOLATO; ARROIO, 2005). Para contemplar todo esse espectro, a inovação deve se basear em um agrupamento de diversas perspectivas do conhecimento, matérias e disciplinas, sem ser monopolizada por uma área técnica de competência e limites rigidamente definidos. Sendo assim, por se tratar de materializar a capacidade de indivíduos, empresas e nações inteiras criarem continuamente seus futuros desejados, o processo de inovação não deve ser reduzido a um único quadro de referência, modo de pensamento ou conjunto de métodos. A inovação depende de colhermos conhecimento a partir de uma faixa de disciplinas além da ciência e da tecnologia, entre elas o design, as ciências sociais, as artes. E ela é exemplificada por mais do que simplesmente produtos: serviços, experiências e processos também podem ser inovadores. O trabalho de empreendedores, cientistas e aficionados por software também contribui para a inovação. [...] As inovações fluem de mudanças nos pensamentos fixos que conseguem gerar novos modelos de negócios, reconhecer novas oportunidades e tecer inovações por todo o tecido da sociedade. Ela trata sobre novos modos de se executar e ver as coisas da mesma forma como trata de ideias revolucionárias (KAO, 2008 p. 19)8 Em todo o mundo, a inovação vem ocupando espaço central no debate sobre crescimento econômico. Qualquer economia que vislumbre um movimento de inserção internacional positiva e soberana, bem como que pretenda garantir dinamismo a seu mercado interno, trabalha no sentido de constituir uma trajetória voltada para a inovação. Freeman & Soete (2008) enxergam na inovação a capacidade de potencializar a comercialização de novos produtos ou a utilização de novos processos, permitindo ganhos de eficiência e ampliação da competitividade9. Fatores esses que garantem alto 8 A competência em inovação pode ser desenvolvida de várias maneiras e em vários contextos, a partir de inventores visionários individuais, por especialistas em oficinas e laboratórios, através de projetos inovadores-empreendedores financiados por capital de risco, ou ainda em situações de fusão e aquisição de empreendimentos visando a adaptação de novos modelos de negócios impulsionados pela difusão global de recursos (KAO, 2008) 9 Chamamos de inovação as significativas alterações nas condições de fabricação, transformação e uso de produtos, e na execução e prestação de serviços. As inovações podem ser encontradas, portanto, em produtos, processos e na organização do trabalho. A inovação do produto prevê a introdução no mercado de novos produtos ou serviços. Isto inclui alterações significativas nas suas especificações 40 potencial de exploração econômica e alça as políticas de inovação como foco obrigatório das estratégias de desenvolvimento econômico de nações em todo o mundo. Uma vez que a capacidade de mudança técnica se estabeleceu como componente fundamental no desenvolvimento das forças produtivas, a concorrência pela nova tecnologia e pela nova mercadoria, como constatou Schumpeter (1961), se constituiu em elemento central da competição econômica, haja vista que a inovação e o progresso tecnológico estariam sendo reduzidos à rotina. Ele ressaltava o papel das grandes empresas e seus laboratórios de pesquisa & desenvolvimento na fronteira do avanço técnico ou da concepção de novos processos e formato de gerenciamento de negócios. Nesse sentido, a empresa moderna busca estabelecer um departamento de pesquisas visando sucesso na invenção de produtos e aperfeiçoamento de técnicas. Schumpeter propõe que a inovação seja vista como essência e aspecto definidor do capitalismo: [...] o capitalismo, então, é pela própria natureza, uma forma ou método de mudança econômica, e não apenas nunca está, mas nunca pode estar estacionário. [...] O impulso fundamental que inicia e mantém o movimento da máquina capitalista decorre de novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria [...] esse processo de destruição criativa é o fato essencial do capitalismo (SCHUMPETER, 1961 p. 112-113). O espírito empreendedor, cuja capacidade de avaliar as pos