THISSIANE FIORETO RETÓRICA E ARGUMENTATIO: Uma disputa entre Mem de Sá e Cururupeba Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Filologia e Lingüística Portuguesa). Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes Assis - SP 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Fioreto, Thissiane F518r Retórica e argumentatio: uma disputa entre Mem de Sá e Cururupeba / Thissiane Fioreto. Assis, 2005 170 f. il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Literatura brasileira. 2. Retórica 3. Academia Brasílica dos Esquecidos. 4. Historiografia. I. Título. CDD 869.909 808 1 A meus pais, fonte inesgotável de amor, força e incentivo em todos os momentos. Ao meu amado Francisco, por me ensinar que há sentimentos que não combinam com palavras, só no silêncio podem ser tocados na sua inteireza e completude. 2 Agradecimentos A Deus, amoroso e fiel, meu Mestre e meu Senhor, o sustento nesta longa e árdua jornada. Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes, pela competência, pelo profissionalismo, pelo incentivo e pela amizade, sobretudo, por ter acreditado e esperado pacientemente pelo meu amadurecimento intelectual. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo apoio financeiro indispensável à realização deste trabalho de pesquisa. À Profª Adriana de Campos Rennó, pesquisadora competente e solícita, e ao Prof. Dr. João Roberto Inácio Ribeiro, mestre por quem tenho a mais profunda admiração e respeito, pelas sugestões tão oportunas dadas a este trabalho, na qualidade de Banca Examinadora em minha Qualificação. À minha família, pelo amparo e pelo incentivo nas horas difíceis, pela compreensão em minhas ausências e pelo amor incondicional demonstrado sempre em gestos e palavras. Aos amigos de ontem, de hoje e de sempre, presenças indispensáveis que suavizaram os momentos difíceis de impaciência e cansaço. 3 RESUMO Este trabalho é fruto de pesquisa realizada com base em método filológico, cuja função é proceder ao estudo da língua com base no texto escrito, e tem por objetivo discutir e explorar a Dissertação Sétima de História Política, composta por Luís de Siqueira da Gama para a Academia Brasílica dos Esquecidos, enfocando principalmente o seu esquema argumentativo e seu diálogo com as fontes da Retórica Antiga. A referida Dissertação tem por nome Da pena que deu o Governador Mem de Sá às arrogâncias do soberbo Cururupeba (In: CASTELLO 1969-71, p.81-95, volume 1, tomo V) e trata da pena (ou castigo) escolhida por Mem de Sá para punir o índio Cururupeba por suposta atitude de arrogância perante o governo português, com a qual o autor procura persuadir seu público, por meio de um discurso coeso e rico em recursos argumentativos, de que o clemente e benévolo governante agiu de modo sensato e coerente com os preceitos políticos, éticos e morais vigentes na época, quando castigou o rebelde índio. Os mecanismos utilizados para a composição do discurso denotam uma orientação retórica de escrita, apoiada nos antigos, especialmente Aristóteles e Quintiliano. Essa orientação é confirmada pelas circunstâncias de produção que envolviam o letrado no Brasil Colônia, no início do século XVIII. PALAVRAS-CHAVE: Filologia, exegese, retórica, argumentação, literatura brasileira, período colonial. 4 ABSTRACT This work arised from a research which has been carried out based on philological methodology, whose function is to study the language based on the written text. Its main purpose is to discuss and explore the dissertation Seventh of Political History, composed by Luís Siqueira da Gama to the Brazilian Academy of the Forgotten, mainly focusing on its argumentative draft, and its dialogue with that Dissertation, whose name is Concerning the penalty that was given to the haughty Cururupeba’s arrogance (In: CASTELLO 1969-71, p.81-95, volume 1, 5). It’s about the penalty (or punishment) that was chosen by Mem de Sá to punish Cururupeba native, supposing that he had been arrogant towards the Portuguese government. From this attitude the author tries to persuade his audience, through a coherent and sensible speech plenty of argumentative resources, claiming that the lenient and benevolent government supporter had acted sensibly and coherently with political, ethical and moral precepts from that time, when he punished the rebel native. The ways followed to write the speech denote a rhetorical way of writing, based on the ancient philosophers, specially Aristoteles and Quintiliano. Everything can be upheld by the writing circunstances that used to involve the literate in that time when Brazil was still a colony. Keywords: Philology, exegesis, rhetoric, argumentation, Brazilian literature, colonial period. 5 “... sem curiosidade verdadeira nem paixão pelo atual nenhuma memória do passado pode ser viva; inversamente, a percepção do presente atenua-se e se empobrece quando se apaga em nós essa presença, muda, mas insistente do passado”. (Paul Zumthor – Performance, Recepção e Leitura ) 6 SUMÁRIO P. RESUMO 03 SUMÁRIO 06 LISTA DE QUADROS 08 PARTE I – INTRODUÇÃO 1. Justificativa e Proposição 10 2. Abrangência da matéria 12 3. Produção da Academia Brasílica dos Esquecidos 15 3.1. O Verso 16 3.2. A Prosa 19 3.3. Escolha do Corpus 24 4. Material Bibliográfico e Metodologia de Trabalho 25 4.1. Material Bibliográfico 25 4.2. Metodologia de Trabalho 27 PARTE II – ESCOPO DA PESQUISA 5. Retórica 29 5.1. Histórico 32 5.1.1. Córax e Tísias (Século V a.C.) 32 5.1.2. Os pitagóricos (Século V a.C.) 34 5.1.3. Górgias (485 – 375 a.C.) 35 5.1.4. Os sofistas (Século V a.C.) 35 5.1.5. Platão (427 – 347 a.C.) 36 5.1.6. Isócrates (436 – 338 a.C.) 37 5.1.7. Aristóteles (384 – 322 a.C.) 38 5.1.8. Retórica em Roma (Século II a.C.) 38 5.1.8.1. Rhetoria ad Herennius (86? – 82? a.C.) 39 5.1.8.2. Cícero (102 – 43 a.C.) 39 5.1.8.3. Quintiliano (35 – 95 a.C.) 40 5.1.9. Santo Agostinho 41 5.1.10. Retórica a partir da Renascença 41 5.2. Fundamentos da Retórica Aristotélica 42 5.2.1. Aristóteles 42 5.2.2. A Arte Retórica 44 5.2.3. Os gêneros discursivos segundo Aristóteles 47 5.2.4. O discurso retórico: dialético e persuasivo 50 5.2.4.1. O discurso retórico dialético 51 5.2.4.2. O discurso retórico persuasivo 52 5.3. Quintiliano 54 5.4. As partes do discurso retórico 56 5.4.1. Inventio 56 5.4.2. Dispositio 57 5.4.3. Elocutio 58 5.4.4. Memoria 59 5.4.5. Actio ou pronuntiatio 60 7 6. A argumentatio: Fundamento persuasivo da Retórica 61 6.1. Argumentatio e argumentação 62 6.2. Ethos e Pathos 63 6.3. As provas: essência argumentativa 65 6.3.1. Provas intrínsecas e extrínsecas 66 6.3.2. Silogismo 68 6.3.3. Exemplos 68 6.3.4. Argumentos éticos e patéticos 69 PARTE III – DISCUSSÃO 7. Circunstâncias de produção de escrita 72 7.1. Um homem católico, de perfil clássico e erudito 72 7.1.1. O mundo católico 73 7.1.2. Compromisso com a História 77 7.1.3. Mitologia greco-romana 78 7.1.4. Estruturação do texto 80 PARTE IV – ANÁLISE 8. Um discurso convincente... 83 8.1. Exórdio: A busca da simpatia do auditório e a introdução da temática do discurso 84 8.2. Narração: Parte fixa e obrigatória do discurso 89 8.3. Argumentatio: Prova-se pela recorrência à autoridade 92 8.4. Proposição: Uma questão dialética – Prisão é pena pesada? 97 8.5. A dispositio, nesta argumentatio, atinge o gênero... 102 8.6. Partição: O uso das provas psicológicas 103 8.7. Antecipação: uma das estratégias para a construção da argumentatio 106 8.8. Omissão na argumentatio: a defesa da pena desconsidera o choque cultural 107 8.9. Amenizando a blasfêmia e justificando a pena... 112 8.10 A argumentatio a serviço da construção de uma imagem 113 8.10.1. A refutação dá os preceitos para a imagem do Governador ideal 115 8.10.2. Reforço da imagem: para o Tapuia, a lenda, para o Governador, a Bíblia. 120 8.11. Rumo ao epílogo: justificando as razões da aplicação da pena 126 8.12. Justiça foi (seja) feita... 127 8.13. Peroração: Finis coronat opus 129 PARTE V – CONCLUSÃO 9. Construída a natureza do discurso 133 PARTE VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E BIBLIOGRAFIA 10. Referências Bibliográficas 138 11. Bibliografia 140 PARTE VII – ANEXOS Anexo I 143 Anexo II 159 8 LISTA DE QUADROS P. Quadro 01 Orações Acadêmicas 19 Quadro 02 Dissertações de História Natural 21 Quadro 03 Dissertações de História Eclesiástica 22 Quadro 04 Dissertações de História Política 23 9 PPAARRTTEE II –– IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO 10 1. Justificativa e Proposição Este trabalho é fruto de curiosidade, dúvidas e reflexões, que tiveram início em 2000, quando ainda cursava a graduação em Letras, na Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP. Na ocasião, como aluna do 2º ano, recebi o convite do Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes, docente responsável pela disciplina de Língua e Literatura Latina, para “trabalhar com textos manuscritos”. Levando em consideração que o currículo do curso de Letras não privilegia o trabalho com fontes primárias, o convite pareceu-me distante do universo que vislumbrava, uma vez que, ainda muito jovem e inexperiente, jamais havia pensado em tal tipo de trabalho. No entanto, impelida pela curiosidade, aceitei o convite, que, posteriormente, viria a se tornar para mim a porta de entrada para o mundo da pesquisa. Sendo assim, meu primeiro contato com os estudos de caráter filológico aconteceu logo no início do ano de 2000, quando comecei a participar do Grupo de Pesquisa “A Escrita no Brasil Colonial1”. Procedi, então, a algumas leituras subsidiárias iniciais, que me propiciaram a contextualização histórica referente ao período em questão e as noções fundamentais do trabalho filológico, em particular, noções e técnicas de transcrição de textos manuscritos. No período de abril a julho de 2001, enquanto bolsista de Iniciação Científica do CNPq / PIBIC, sob a orientação do Dr. João Roberto Inácio Ribeiro, também líder do mesmo Grupo de Pesquisa, desenvolvi um trabalho de transcrição e fixação de parte da poesia heróica do acadêmico João de Brito e Lima, um dos fundadores da 1 O Grupo de Pesquisa “A Escrita no Brasil Colonial” é coordenado pelo Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes, e dele participam professores e alunos de graduação e pós-graduação. Sediado na Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, o Grupo tem por objetivo resgatar e estudar os textos compostos em prosa e em verso no Brasil Colonial e apresentar seus respectivos autores. 11 Academia Brasílica dos Esquecidos (ABE). Esse trabalho, embora tivesse curta duração, foi de grande relevância para os estudos, pois a partir daquele momento tomei efetivamente gosto pelos estudos filológicos, reconhecendo sua importância e as dificuldades práticas em realizá-lo. Foi também neste contexto que estabeleci um contato efetivo com a produção da primeira academia histórico-literária do Brasil Colonial, a Academia Brasílica dos Esquecidos (ABE). Surgiu, então, a oportunidade de estudar o conjunto temático dessa agremiação. No período compreendido entre setembro de 2001 a agosto de 2002, novamente sob a orientação do Dr. João Roberto Inácio Ribeiro, desenvolvi outro projeto de Iniciação Científica, com o título Modelos e Idéias na Academia Brasílica dos Esquecidos, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. Com esse trabalho, que visava a sistematizar a temática de toda a produção em verso e em prosa da ABE, pude conhecer o seu modo de escrita e as suas idéias. Conclui, na ocasião, que o modo de escrita dos acadêmicos estava intimamente ligado ao tema proposto, assim como à língua utilizada, o que não acontecia casualmente. Chamou-me a atenção a opção dos acadêmicos por realizarem esse registro histórico coletivamente, considerando quatro modalidades históricas distintas e, principalmente, valendo-se da forma argumentativa, seguindo os padrões retóricos. Por esse motivo, já conhecendo o funcionamento e o universo que envolvia essa agremiação, e sabendo da sua importância para a memória nacional, optei por explorar, no trabalho atual, as Dissertações Históricas compostas na ABE. 12 Procurarei discutir um ponto específico das Dissertações Históricas - o esquema de argumentação (argumentatio) -, utilizado por um dos acadêmicos da ABE, Luís de Siqueira da Gama, na Dissertação Sétima de História Política.Este trabalho dividir-se-á em quatro partes. Na primeira parte, apresento a Academia Brasílica dos Esquecidos (ABE), sua produção (prosa e verso) e o corpus escolhido para os referidos estudos, além da justificativa e exposição do material e método de trabalho. Na segunda parte, exponho o referencial teórico que subsidiou a pesquisa, escolhido a partir do próprio corpus. As circunstâncias de escrita, que têm a finalidade de contextualizar o leitor, são apresentadas na terceira parte, enquanto que, na quarta parte, procedo à análise propriamente dita. Na quinta e derradeira parte, apresentarei as conclusões a respeito dos resultados da pesquisa sobre o tema ora proposto. 2. Abrangência da matéria. Mas que academia histórico-literária é esta? Como era seu funcionamento e qual seu objetivo? O que são Dissertações Históricas e em que circunstâncias foram escritas? O vocábulo ACADEMIA nasce na Grécia, nas imediações de Atenas, onde havia um bosque em que Platão transmitia seus ensinamentos e doutrinas e por onde passaram alguns dos mais notáveis intelectuais da Grécia. Como esse bosque pertencia a Academus2, um de seus discípulos, esse centro irradiador de idéias passou a ser chamado de Academia. Porém, academia com sentido de “agremiação de caráter 2 Segundo o acadêmico Pe. Antônio Gonçalves Pereira, em sua Oração Acadêmica composta para a abertura da 5ª conferência da ABE, de 25 de junho de 1724, o nome do discípulo era Ecadêmio. (CASTELLO, 1969-71, vol. 1, tomo II, p. 71-79). 13 literário, artístico ou ainda científico” só aparece no século XVI, com o Renascimento, na Itália. A primeira academia italiana surgiu em Florença em 1540. Depois vieram as de Nápoles, Veneza e Roma. Essas academias, resultantes do exercício do espírito humanista, surgem principalmente sob o ponto de vista artístico, com a finalidade de difundir o culto retórico, negando qualquer tipo de superficialidade. Depois da Itália, elas passaram a existir também na França, onde a primeira academia, a Academia Francesa, foi fundada em 1629, como um tipo de reunião reservada. Assim, as academias se espalharam por toda a Europa e pelo mundo, chegando a Portugal, primeiro com algumas manifestações isoladas, depois com as “Conferências Discretas e Eruditas”, até culminar com a fundação da primeira academia oficial portuguesa, a Academia Real da História Portuguesa. No Brasil Colonial, as primeiras reuniões de letrados surgiram como reflexo dessas manifestações, já existentes em Portugal. Amostra disso é que a primeira academia brasileira, a Academia Brasílica dos Esquecidos (ABE), nasceu na Colônia como extensão da Academia Real de História (ARH), fundada em Portugal no ano de 1720. Fundada em 07 de março de 1724, em Salvador, Bahia, a agremiação brasileira teve como divisa o Sol e como legenda a sentença latina Sol oriens in Occiduo (O Sol que surge no Ocidente). O sentido literal da frase latina parece ser absurdo e ilógico; no entanto, trata-se de uma linguagem simbólica: o Sol nascente representa o 14 surgimento da ABE, um grande mérito para a Bahia e para o Brasil, que está na porção Ocidental do mundo. Algo importante a se observar é que, embora muito da academia portuguesa estivesse presente nesta academia brasileira, existem algumas diferenças fundamentais entre elas, como, por exemplo, a organização dos acadêmicos. A agremiação portuguesa contava com um número preestabelecido de acadêmicos numerários (40) e supranumerários (40), também chamados de acadêmicos de província (uma espécie de “efetivos” e “suplentes”). Os acadêmicos supranumerários eram responsáveis por colher dados das províncias e envia-los à Coroa Portuguesa. Antônio Caetano de Souza, acadêmico responsável pelas informações a respeito das províncias de ultramar, cuidou de coligi-las por meio de pesquisas bibliográficas, ficando, na prática, a responsabilidade para os acadêmicos supranumerários Sebastião da Rocha Pita e Gonçalo Soares da Franca3, os quais figuraram em diversas reuniões da Academia Portuguesa. A ABE teve como organizador e protetor o Vice-Rei Vasco Fernandes César de Menezes. Essa sociedade de letrados foi criada com o objetivo de escrever a História 3 Os dois nomes constam em todas as atas da ARH entre os anos de 1721 e 1734, ano da última publicação desses documentos.Quanto à menção de alguns autores, de que fora Inácio Barbosa Machado o encarregado de colher os dados do Brasil, parece constituir contradição, pois este acadêmico só passou a integrar a ARH oficialmente em 1734, em substituição ao fundador Manuel Caetano de Souza, Secretário Geral da ARH, falecido no final daquele ano (cf. Indice das Composiçoens que se acham neste volume com o nome de seus Authores. In Collecçam dos documentos e memorias da Academia Real da Historia Portugueza,que neste anno de 1734 se compuzerão, e se imprimirão por ordem os seus Censores, dedicada a El-Rey Nosso Senhor, seu Augustissimo Protector, e ordenada pelo Marquez de Alegrete Manoel Telles da Sylva, Secretario da mesma Academia. Lisboa Occidental: Officina de Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, MDCCXXXIV). 15 da América Portuguesa4 em quatro modalidades: natural, militar, eclesiástica e política. Tendo em vista que o intuito da ABE era o registro da História nestas quatro modalidades, a produção principal da agremiação deveria ser as Dissertações Históricas. Muito pouco, porém, se sabe sobre elas, inclusive quando e como foram apresentadas5. Realizaram-se 18 sessões prioritariamente quinzenais6, todas no Palácio do Vice-Rei Vasco Fernandes César de Menezes, sendo a primeira realizada em 23 de abril de 1724 e a última em 04 de fevereiro de 1725. Nunca houve repetição de presidente nas conferências. Cada qual era sempre escolhido por seu antecessor e se tornava responsável por conduzir a sessão seguinte, indicando o tema a ser tratado. 3. Produção da Academia Brasílica dos Esquecidos (ABE). A primeira agremiação de caráter histórico-literário do Brasil nos deixou um grande número de composições que constitui rica fonte de estudos para a memória nacional. Há dois modelos distintos de escrita encontrados na produção da ABE, as escritas em prosa, orientadas pela re-elaboração da Retórica Antiga, e em verso, da mesma forma relativa à Poética Antiga, que, afora as particularidades das produções coletivas, representam o modelo geral da escrita praticado no Brasil Colonial. 4 Esclarecemos que, ao nos referirmos ao objetivo da ABE – escrever a História da América Portuguesa – não estamos fazendo qualquer menção a obra de Sebastião da Rocha Pita. (PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976). 5 Os documentos referentes às Dissertações Históricas estão arquivados em microfilme nos Códices Alcobacenses da Biblioteca Nacional de Lisboa, mas deles não constam as datas de apresentação. 6 Conferir datas das sessões no Quadro 01 – páginas 19 e 20 16 A produção em prosa é representada pelas Orações Acadêmicas e pelas Dissertações Históricas, e cada uma delas cumpria um objetivo específico dentro da Agremiação, enquanto as composições em versos significavam o lado lúdico, o exercício de erudição e de conhecimento da poética na ABE. Embora tivessem papéis distintos dentro da agremiação, os textos, tanto de uma, quanto de outra forma, possuíam a mesma preocupação: ressaltar a arte de bem escrever, apresentando peculiaridades, como a emulação e a erudição. José Aderaldo Castello, n’O Movimento Academicista no Brasil 1641-1820/227, apresenta as conferências da ABE respeitando o seguinte modo de exposição: 1. Apresentação da Oração Acadêmica; 2. Apresentação das Composições de Elogio ao Presidente; 3. Apresentação das Composições referentes ao Primeiro Assunto ou Assunto Heróico; 4. Apresentação das Composições referentes ao Segundo Assunto ou Assunto Lírico. 3.1. O Verso Como o objetivo principal da ABE era apresentar para a Coroa as Dissertações Históricas, os torneios literários constituíram exercício de erudição à parte, de tal sorte que representam, por um lado, a peculiaridade (quanto à recitação) da ABE em relação a outras Academias, principalmente a ARH. Prova cabal desta afirmação é a forma de arquivamento da sua documentação: importam menos os poemas, que estão 7 CASTELLO, J.A. O movimento Academicista no Brasil 1641 – 1820/22. 3 v. 14 t. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, Esportes e Turismo, 1969 – 71. 17 devidamente guardados no Brasil, enquanto a documentação histórica (oficial) seguiu, muito cedo, para Portugal. Esse momento de recitação de versos demonstrava o lado palaciano e cortesão da Academia, pois era nessa ocasião que os acadêmicos podiam demonstrar, ao poder constituído, sua erudição e zelar pela manutenção de sua vida na Corte. Tais objetivos são demonstrados tanto pela forma escolhida para compor os versos (optando, preferencialmente, pelo epigramma latino e pelo soneto para as composições laudatórias), quanto pelo tema abordado (ao incluírem, nas sessões acadêmicas, temas referentes a acontecimentos relacionados às figuras da Corte, como a morte da Marquesa D. Teresa de Moscoso ou ao aniversário de Dom João V). Por isso, é lícito afirmar que, seguindo os preceitos poéticos, forma e matéria na ABE estão intimamente ligados. Os versos eram recitados após a Oração Acadêmica e, como já foi dito, atrelavam forma e matéria, obedecendo sempre aos preceitos retóricos e poéticos. Eram utilizados tanto na função laudatória quanto na função narrativa, histórica e lúdica. Sob essa perspectiva e levando em consideração a possível organização das sessões literárias, podemos classificá-los, do ponto de vista temático, em versos laudatórios, heróicos e líricos. Os versos em louvor aos presidentes eram os primeiros e constituíam parte imutável das conferências. Nesse momento eram recitadas composições, predominantemente sonetos e epigrammas, com a intenção específica de homenagear as figuras ilustres da Academia e da Corte, a começar pelo presidente escolhido e, 18 excepcionalmente, na primeira conferência houve, também, poemas recitados em louvor ao Vice Rei, à academia, aos acadêmicos e aos quatro mestres de história. O assunto heróico8, também denominado primeiro assunto era proposto para ser desenvolvido em versos heróicos, em grande parte decassílabos, que, por serem narrativos, foram associados aos temas formais e serviram com maior eficácia para determinados tipos de composições, por serem formas narrativas por excelência. Os temas recorrentes nesse primeiro assunto foram a História antiga e contemporânea e a discussão sobre a função e/ou alegoria cabível ao conhecimento das principais divindades mitológicas9 do mundo antigo. O assunto lírico10 ou segundo assunto, recitado logo após o assunto heróico, compreendia versos curtos, principalmente as redondilhas maiores, que possibilitavam uma melhor memorização dos poemas, organizados, em sua maioria, em forma de romances, silvas e décimas. Os temas eram mais flexíveis e menos comprometidos com a História; eram mais variados e, ao contrário dos heróicos, menos formais, relacionados a temas mundanos ou cortesãos. 8 É importante observar que, quando falamos em heróico, não nos referimos àquilo que é próprio dos heróis, mas sim à métrica heróica, o verso decassílabo, que originariamente pode ser classificado como heróico (cesura na 6ª e 10ª), com uso livre entre os acadêmicos, deixando, portanto, a denominação “heróico” limitada à métrica. Segundo Massaud Moisés (1988, p.512) denomina-se verso decassílabo o verso com dez sílabas. Tal verso era cultivado na França, por volta do século X, no entanto, na poesia trovadoresca galego-portuguesa foi esquecido no fim da Idade Média. O Classicismo italiano ressuscitou-o e pô-lo em circulação; Sá de Miranda divulgou-o em Portugal após sua estância na Itália (1521-1527) e de lá para cá tem sido dos metros mais empregados no idioma, geralmente, acentua-se na 6ª sílaba; quando o acento recai na 6ª e na 10ª recebe o nome de heróico por adaptar-se perfeitamente à poesia épica, de ritmo marcial e solene. 9 Cf. anexo II. 10 Vale lembrar que, entende-se por lírico não apenas composições amorosas e sentimentais, como muitas vezes entendemos, mas lírico remete-se ao sentido etimológico da palavra, ou seja, aquelas composições de métrica mais livre e temática menos histórica, que um dia foram recitadas ao som da lira (CUNHA, 2001, p. 477). 19 3.2. A Prosa A produção em prosa da ABE é representada pelas Orações Acadêmicas e pelas Dissertações Históricas. Ambas foram escritas com finalidades distintas, mas respeitando aos mesmos preceitos retóricos. Segundo a disposição das sessões apresentada por Castello (1969-71), as Orações Acadêmicas eram compostas e proferidas pelo presidente de cada conferência. Possuíam caráter introdutório, pois eram responsáveis pela abertura da sessão literária e, em tom laudatório, tratavam de temas históricos antigos e contemporâneos, religiosos e científicos, respeitando sempre a estrutura discursiva prescrita pela Retórica Antiga. A seguir, apresentamos um quadro das Orações Acadêmicas, do qual consta a data de sua apresentação, o autor e o assunto tratado. Com esse catálogo, pelo assunto de cada conferência, podemos constatar o tom laudatório dessa modalidade de escrita. QUADRO 01 ORAÇÕES ACADÊMICAS Data de apresentação Autor Assunto 1ª Conferência 23/ 04/ 1724 José da Cunha Cardoso Louvor à Academia e ao seu patrono, o Vice-Rei Vasco Fernandes César de Meneses. 2ª Conferência 07/ 05/ 1724 Sebastião da Rocha Pita Louvor e gratidão aos monarcas portugueses, por fundamentarem o império lusitano nas pilastras do Cristianismo, razão de tanto sucesso. 3ª Conferência 21/ 05/ 1724 João de Brito e Lima Louvor aos imortais acadêmicos, “esquecidos” apenas pela Fortuna. 4ª Conferência 04/ 06/ 1724 Francisco Pinheiro Barreto Louvor ao Vice-Rei pela criação da ABE, mina de ouro da Bahia. 5ª Conferência 25/ 06/ 1724 Antônio Gonçalves Pereira Exaltação à filosofia e àqueles que nela se fundamentam. 6ª Conferência 09/ 07/ 1724 Raimundo Boim de Sto.Antônio Louvor à prudência – arte das artes e ciência das ciências. 7ª Conferência 23/ 07/ 1724 Rafael Machado Louvor aos portugueses pela descoberta do Brasil. 20 8ª Conferência 06/ 08/ 1724 Antônio Roiz de Lima Louvor à clemência de César com seus inimigos. 9ª Conferência 27/ 08/ 1724 Sebastião do Vale Pontes Louvor à religiosidade do Vice-Rei, que por isso era adotado de muitas virtudes, governando bem, diferentemente de Nero. 10ª Conferência 10/ 09/ 1724 João Borges de Barros Louvor e incentivo ao sagrado, fortaleza que defende os reinos dos perigos e inimigos. 11ª Conferência 24/ 09/ 1724 Inácio de Azevedo Louvor ao Vice-Rei, que a exemplo de outros grandes nomes da História, arriscou a vida ao apagar um incêndio para salvar a vida de seus vassalos. 12ª Conferência 08/ 10/ 1724 João Álvares Soares Louvor à Academia e aos seus membros, que são melhores vistos do que imaginados. 13ª Conferência 22/10/1724 João Calmon Louvor à religiosidade de Dom João V, em razão de seu aniversário natalício. 14ª Conferência 12/ 11/ 1724 Ruperto de Jesus e Sousa Louvor ao Vice-Rei que com as armas triunfou na Ásia e com as letras triunfou na América. 15ª Conferência 26/ 11/ 1724 Luís da Purificação Louvor à ciência, principal figura da Academia. 16ª Conferência 27/ 12/ 1724 Félix Xavier Louvor ao Vice-Rei, que ao mesmo tempo em que toma em mãos as Letras para as levantar, na outra empunha a espada para as defender. 17ª Conferência 21/ 01/ 1725 José Pires de Carvalho Louvor e incentivo ao decoro. Já as Dissertações Históricas apresentavam caráter predominantemente narrativo e seu objetivo específico respondia à função primordial da Academia, apresentar uma História da América Portuguesa em quatro modalidades. Para isso, a Academia contou com quatro mestres, que foram, Caetano de Brito e Figueiredo, Inácio Barbosa Machado, Gonçalo Soares da Franca e Luís de Siqueira da Gama. Desse modo, ao contrário dos versos, que eram praticados por todos, fazer o registro histórico era privilégio de poucos. Da mesma forma, só os presidentes das sessões é que compunham e apresentavam as Orações Acadêmicas. 21 Essas Dissertações dividiam-se em capítulos, embora gozassem de certa autonomia estrutural que dava a cada capítulo feições de um discurso independente, em virtude, provavelmente, da apresentação seriada nas sessões da ABE. A seguir, apresentamos um índice das Dissertações Históricas, elaborado segundo suas modalidades, (Natural, Eclesiástica e Política) e a ubicação n’O movimento academicista no Brasil 1641-1820/22 (CASTELLO, 1969-71). Por meio deste índice podemos notar os assuntos tratados pelos autores. Faz-se necessário lembrar, entretanto, que ainda não constam desse índice as Dissertações de História Militar, de Inácio Barbosa Machado (cf. MORAES, 1999 v.2). No primeiro quadro, elencamos as Dissertações de História Natural, compostas por Caetano de Brito e Figueiredo. QUADRO 02 - Dissertações de História Natural Explicação 139 Aparato Isagógico às Dissertações Acadêmicas nas quais se descreve a natureza das coisas principais do Brasil no que somente pertence à História natural 139 Dissertação Primeira – Na qual se trata da geral e geográfica descrição de toda a América, com abreviada demonstração do mais raro e admirável que a Natureza nela produziu, em 21 de maio de 1724 147 Dissertação Segunda – Da origem dos índios e primeiros povoadores da América e se tiveram os Antigos dela algum conhecimento 157 Dissertação Terceira – Descreve-se o Brasil com outras particularidades pertencentes à sua natureza 167 Dissertação Quarta – Dos céus, planetas, constelações e climas brasílicos, em 27 de agosto de 1724 177 Dissertação Quinta – Dos climas, ares e meteoros brasílicos 187 Dissertação Sexta – Na qual se trata das aves do Brasil 195 Dissertação Sétima – Na qual se individuam os nomes, cores e diferenças das aves brasílicas 203 Dissertação Oitava – Na qual se descrevem os insetos voláteis do Brasil 215 22 Brito e Figueiredo, em tom narrativo, faz o registro das “coisas naturais” da América Portuguesa, argumentando sobre a fauna, a flora, a paisagem e, sobretudo, sobre os índios. No segundo quadro, apresentamos o rol de Dissertações de História Eclesiástica, escritas por Gonçalo Soares da Franca. QUADRO 03 - Dissertações de História Eclesiástica Explicação 223 Antilóquio das Dissertações da História Eclesiástica Brasílica 223 PRIMEIRA PARTE: Dissertação Primeira da história eclesiástica do Brasil: trata do seu descobrimento 231 Dissertação Segunda - Em que se descreve geograficamente o Brasil 241 Dissertação Terceira - Em que se resolve quem foram os primeiros povoadores do Brasil, quando e como a ele passaram 249 Dissertação Quarta – Se a América passou São Tomé 257 Dissertação Quinta – Se os Índios do Brasil tinham alguma Lei, como e quando a ele passou a Católica Romana 271 SEGUNDA PARTE: Dissertação Primeira da história eclesiástica do Brasil: trata da fundação das Igrejas 281 Dissertação Segunda – Continuam as fundações das Igrejas 293 Dissertação Terceira - Em que se prossegue, as ereções das Igrejas Paroquiais 305 Gonçalo Soares da Franca registra a História Eclesiástica em duas partes. Na primeira parte, fala do Brasil e da relação de seus primeiros habitantes com as leis e a fé. Tendo os índios como pagãos, narra a “conversão” (ou catequese) destes ao catolicismo. Na segunda parte, narra o estabelecimento efetivo da Igreja Católica na colônia e a fundação das primeiras paróquias. 23 É necessário lembrar que os dois pilares de sustentação do pensamento da ABE são a Igreja Católica e a Monarquia Absolutista. Nos textos da agremiação, há marcas constantes desse pensamento. No caso das Dissertações Históricas, compostas por Soares da Franca, a ideologia católica radical da escrita possibilita-nos chamá-los de “Tratado da Igreja Católica no Brasil Colônia”. Apresentamos, a seguir, no terceiro quadro, as Dissertações Políticas compostas por Luís de Siqueira da Gama. QUADRO 04 - Dissertações de História Política Explicação 07 Dissertação Primeira – Da origem e que coisas sejam Política, História, Dissertação e Brasil 09 Dissertação Segunda – Da divisão da Política, História, Dissertação e Brasil 17 Dissertação Terceira – Se os índios bárbaros do Brasil têm alguma espécie de política? 27 Dissertação Quarta – Se foi conveniente ao Estado a conquista do Brasil, que se reduzissem os índios, se os nacionais, por modo de República a grandes povoações 37 Dissertação Quinta – Da política com que se governam os Índios do Brasil nas suas aldeias e qual mais conveniente, se serem seus magistrados os patrícios ou se os estrangeiros 51 Dissertação Sexta – Do generoso despacho que deu o Rei Dom Felipe o primeiro de Portugal a Dom Antônio Felipe Camarão e qual seja maior política, se dilatar o merecimento com a esperança do prêmio ou antepor o galardão à súplica do beneficiário? 65 Dissertação Sétima – Da pena que deu o Governador Mem de Sá às arrogâncias do soberbo Cururupeba 81 Dissertação Oitava – Da política que usou Dom Duarte da Costa para vencer os Índios Tapuias e Tupinambás; e se fora glorioso ou não este triunfo 97 Dissertação Nona – Se fora decoroso e lícito o estratagema com que Dom Duarte da Costa triunfara dos Índios Tapuias e Tupinambás 109 Dissertação Décima – De um maravilhoso caso e apótema célebre devidamente ponderado nas histórias do Brasil 125 24 Nas Dissertações de História Política, Luís de Siqueira da Gama vai registrar como agia o governo português na Colônia e, de modo especial, a relação dos lusitanos com os primeiros habitantes da América Portuguesa, ou seja, como se deu a relação de subordinação dos índios aos portugueses neste período. Se nas Dissertações de História Eclesiástica o que impera na escrita é a orientação católica, nas Dissertações de História Política o que prevalece e dá o tom é a defesa da Monarquia Absolutista e do poder constituído. 3.3. Escolha do corpus Inicialmente, pela riqueza e particularidades do material, havíamos planejado trabalhar com todas as Dissertações Históricas (exceto as Dissertações de História Militar, uma vez que estas não foram publicadas na obra de Castello11), mas, conhecendo o modo de escrita do Brasil Colonial do século XVIII, e cientes do princípio das “Belas Letras”12 que vigorava na América Portuguesa, escolhemos apenas uma Dissertação Política, escrita pelo Mestre Luís de Siqueira da Gama. Percebemos que, pelas proporções do corpus, nosso trabalho seria mais frutuoso se nos debruçássemos apenas sobre um capítulo do conjunto de Dissertações, tomando esse texto como modelo para discussão. A leitura do conjunto nos permitiu esse procedimento, pois observamos haver uma reincidência da estruturação dos capítulos: uma estruturação argumentativa, segundo padrões retóricos. A escolha da Dissertação 11 Na verdade, essas Dissertações foram publicadas no volume II da tese de doutoramento do Dr. Carlos Eduardo Mendes de Moraes. 12 No início do século XVIII, ainda dependente das influências do latim e da Antigüidade Clássica, a moda no Brasil Colonial é a expressão das Belas Letras. História, literatura, astronomia e tantas outras matérias estão interligadas por serem escritas com base retórica, seguindo Aristóteles, Quintiliano, Tesauro, etc. 25 Sétima de História Política aconteceu em virtude de sua riqueza de elementos retóricos dos quais lançou mão seu autor, Luis de Siqueira da Gama, na sua composição. A Dissertação tem por nome Da pena que deu o Governador Mem de Sá às arrogâncias do soberbo Cururupeba (CASTELLO 1969-71, p.81-95)13. Siqueira da Gama trata do assunto persuadindo-nos, por meio de um discurso altamente coeso e argumentativo, de que o clemente e benévolo governante agiu de modo sensato e coerente aos preceitos políticos, éticos e morais da época, quando escolheu a prisão como modo para castigar o rebelde índio. 4. Material Bibliográfico e Metodologia de trabalho 4.1. Material bibliográfico Elegemos como material de trabalho a obra O movimento academicista no Brasil 1641-1820/22 (CASTELLO, 1969-71), edição que congrega quase toda a produção das academias literárias brasileiras desse período, impressa em três volumes com quatorze tomos14. Embora não haja uma apreciação crítica do que foi, efetivamente, o movimento academicista, essa importante obra constitui material fundamental para a compreensão do período, pois é a única que congrega os escritos inéditos do período e sistematiza essa produção de caráter coletivo. Uma vez que nos propusemos, inicialmente, a analisar as Dissertações Históricas da Academia Brasílica dos Esquecidos, destaca-se a importância do volume 13 Conferir anexo I. 14 O volume 1 tomo 5 nos interessa diretamente, pois trata das Academias propriamente ditas, notadamente da Academia Brasílica dos Esquecidos (tomos 1 a 4 – poesias e orações acadêmicas recitadas nas 18 conferências; tomo 5 – dissertações históricas). 26 I, tomo 5 da obra, por nele estarem contidas as Dissertações de História Natural, Política e Eclesiástica. Entretanto, para termos uma visão global da produção da ABE em seu contexto literário e histórico, utilizamo-nos de todos os tomos. Das leituras que constituem nossa fundamentação teórica, além das obras auxiliares consultadas, podemos destacar como obras fundamentais Arte Retórica (ARISTÓTELES s/d, p.13-221), Introdução à Retórica: a Retórica como Crítica Literária (TRINGALI, 1988), Breve História da Retórica Antiga (PLEBE, 1978) e Instituições Oratórias (QUINTILIANO, trad. para o português de Jerônimo Soares BARBOSA, 1944). Aristóteles, com a obra intitulada Arte Retórica é a base de toda a teoria retórica por nós utilizada. O filósofo grego, para os Esquecidos, significava referencial teórico tanto de retórica quanto de poética e, em âmbito maior, de oposição aos “modernos” na concepção de mundo, cujos avanços da ciência eram refutados com base no pensamento do filósofo grego. A Introdução à Retórica: a Retórica como Crítica Literária (TRINGALI, 1988), que pelo seu cunho didático e introdutório nos facilitou a entrada no mundo dos estudos sobre a Arte Retórica e A Breve História da Retórica Antiga (PLEBE, 1978), que traz uma importante contextualização histórica dos estudos retóricos. As Instituições Oratórias (QUINTILIANO, trad. para o português de Jerônimo Soares BARBOSA, 1944), em versão reduzida, na qual encontramos a síntese do pensamento e trechos das orações de grandes nomes, como Aristóteles, Cícero e do próprio Quintiliano. Nesta obra, encontramos muitas instruções para o domínio das técnicas da Arte Retórica, como, por exemplo, a descrição das partes do discurso, as 27 técnicas e o uso da argumentatio, a matéria e a forma adequadas para empregá-la nas diversas situações e, sobretudo, o que um orador deveria (ou não) fazer para argumentar e, conseqüentemente, persuadir. Trata-se, portanto, de um “manual” de Retórica. 4.2. Metodologia de trabalho Concomitantemente com a fundamentação teórica, propusemo-nos a desenvolver um trabalho exegético do texto, justamente por se tratar de uma pesquisa de cunho filológico. Realizamos um estudo sistemático da Dissertação Histórica escolhida, observando sua estruturação, as circunstâncias de escrita que a envolvem e os mecanismos argumentativos empregados, confrontando-os com os preceitos retóricos. Como se trata de uma pesquisa que envolve análise de um texto relativo à Arte Retórica, a qual orienta a escrita brasileira do século XVIII, os resultados obtidos serviram para estudo dos contrastes de concepção ocorridas na escrita do Brasil dos séculos XVIII e XXI. Assim, se forem considerados o conteúdo, o tipo de texto e a aplicação do texto em análise, haverá subsídio para o estudo do relato histórico segundo a norma culta vigente na época. 28 PPAARRTTEE IIII –– EESSCCOOPPOO DDAA PPEESSQQUUIISSAA 29 5. Retórica Definida por Houaiss (2001, p.2447) como “conjunto de regras que constituem a arte do bem dizer” e, muitas vezes, tomada como sinônimo de eloqüência, erudição e persuasão, ou utilizada em sentido pejorativo, como sinônimo de um falar pomposo e vazio de significado, a Retórica introduz-nos no mundo cultural clássico, pois dela fizeram uso grandes autores desde a Grécia Antiga até nossos dias. Quando, no entanto, aqui recorremos ao termo Retórica, faz-se necessário determinar seus limites conceituais, uma vez que Retórica, Oratória e Eloqüência são tomadas, na grande maioria das vezes, por sinônimos absolutos. Etimologicamente, as três palavras estão diretamente ligadas ao ato de falar. Retórica é de origem grega (rhêtorikós,ê,ón), derivado da substantivação do adjetivo feminino (CUNHA, 2001, p.682), com elipse do substantivo “técnica” – téchne (CUNHA, 2001, p.759). Oratória e eloqüência têm origem latina. O primeiro, provém do latim oratorìa,-ae e forma-se à imitação do termo Retórica, também por um adjetivo substantivado (CUNHA, 2001, p.563) e elipse do substantivo “arte” - ars, artis (SARAIVA, 2000, p.107) - equivalente à palavra técnica. O segundo constrói-se sobre o adjetivo eloquens – eloqüente (CUNHA, 2001, p. 289) e se liga ao verbo eloqui, que significa exprimir-se, enunciar seus pensamentos, falar com arte e elegância (SARAIVA, 2000, p.416). Mesmo assim, numa perspectiva ampla, nem sempre se pode usar um termo por outro, pois, segundo Tringali (1988, p. 13), eles apresentam sentidos comuns e diferenciais, como valor, produto e teoria. 30 Sob o ponto de vista do valor15, implicando juízo de qualidade positiva ou negativa, o termo eloqüência apresenta sempre sentido positivo e de elogio; Retórica, eventualmente, apresenta sentido negativo e pejorativo e, nesse caso, usa-se em oposição à eloqüência; já oratória, de uso mais restrito, goza de certa neutralidade. Do ponto de vista do produto, referimo-nos aos discursos efetivamente realizados, quer sejam apenas pronunciados, quer sejam escritos. Verifiquemos, por exemplo, a expressão a oratória ou a eloqüência política no Brasil, que se refere aos discursos propriamente ditos, produzidos na política brasileira. Note-se que, neste sentido, praticamente não se emprega o termo Retórica, pois o usual é oratória. Sob o ponto de vista teórico, mais freqüente e de maior aplicação é o termo Retórica, evidenciando seus aspectos investigativo e metalingüístico, nos quais se estudam a produção e a análise do discurso, observando-se a construção e a aplicação de seus modelos. Já oratória e eloqüência, nessas condições, apresentam menor freqüência de uso. Apoiados nessa terminologia, privilegiaremos o uso do termo Retórica, justamente por referirmo-nos a um conjunto de procedimentos com vistas a uma arte de bem escrever e bem falar - ars bene dicendi - 16, ou seja, técnica de composição, ou técnica retórica. Faz-se necessário, também, quando se fala em Retórica, definir o termo, delimitando o alcance de seu significado. Tendo nascido na Grécia, o seu sentido etimológico de organizar o discurso para convencer recebeu, por convenção, a denominação de Retórica Antiga. Com o decorrer do tempo, no entanto, o termo 15 Para percebermos tal diferença entre os termos, lembremos-nos dos elogios normalmente feitos a determinadas pessoas pela sua eloqüência ou a repulsa destinada a outras por sua chamada retórica vazia. Esta expressão possui exatamente o sentido pejorativo, que habitualmente destina-se aos discursos pomposos desprovidos de qualquer conteúdo ou significado efetivo. No entanto, não é essa a acepção de retórica que utilizamos no presente trabalho. 16 A ars bene dicendi foi apresentada e defendida por Quintiliano. (QUINTILIANO, 1944, p. 39). 31 sofreu modificações sucessivas e, algumas de suas partes, que se tornaram autônomas, fizeram representar toda a arte. Não obstante, as novas Retóricas, surgidas por esse processo, nunca invalidaram as anteriores, ao contrário, sempre se subordinaram à “boa Retórica”, à Retórica Antiga. Atualmente, convivemos com muitas “Retóricas”: a) a Retórica Antiga, arte grega e latina documentada pelas obras de Aristóte- les, Cícero, Quintiliano e, qualificá-la “Antiga”, significa afirmar essencialmente que ela nasceu e se formou na Antigüidade Clássica, não implica reputá-la como “velharia superada”, pelo contrário, nunca foi tão atual; b) a Retórica Clássica, que se consolidou durante o Classicismo da Renascen- ça e desapareceu no século XIX, quando originou-se a Estilística como ciência autônoma. Hoje, esta Retórica Clássica só sobrevive em algumas áreas muito restritas do conhecimento; c) a Retórica das Figuras, que reduz a elocução apenas às figuras de estilo ou figuras retóricas de linguagem como, por exemplo, a metáfora, a aliteração e a ironia; d) a Retórica Nova, que se restringe ao estudo da invenção e se inclui na lógica da argumentação provável e não científica; e) a Retórica Semiótica, que opera uma semiotização da Retórica deixando- se re-elaborar pela Semiótica. Em nossos dias, na prática, só são levadas em conta a Retórica Antiga e a Retórica das Figuras, uma vez que a Clássica se desfez na estilística, a Nova faz parte 32 da Lógica e a Semiótica, por sua vez, ocupa-se da Retórica Antiga e da Retórica das Figuras17. 5.1. Histórico18 A Retórica é considerada, desde a Antigüidade até nossos dias, a arte da palavra por excelência. Designa o método de construir o discurso artisticamente e, conseqüentemente, a arte de persuadir. Desse germe, desenvolveu-se a arte que constitui um pilar da cultura antiga. De formas diversas, durante nove séculos, a Retórica fez parte da vida de gregos e romanos. Vários fatores concorreram para o seu desenvolvimento. O prazer de falar e de fazê-lo artisticamente já era, na Antigüidade, cultivado pelos gregos. Na Grécia, o cidadão era estimulado à vida pública e a Retórica tornara-se, então, condição prévia para uma carreira vitoriosa. A educação retórica, combinada com o ensino da Lógica e da Dialética, devia capacitar o discípulo a influenciar seus ouvintes. A Retórica dá os primeiros sinais de vida na Grécia e na Sicília. As suas origens remontam a Empédocles e aos pitagóricos, que desenvolveram uma Retórica medicinal pelo poder encantatório que se conferia às palavras e ao discurso. 5.1.1. Córax e Tísias (Século V a.C.) Atribui-se a Córax e Tísias o mais antigo tratado de Retórica de que se tem notícia. Foram eles os primeiros a teorizar e a sistematizar métodos e preceitos para a boa escrita e fala. Deles, sabemos ainda que o primeiro foi mestre e o segundo, 17 Esta divisão e classificação das “várias Retóricas” foi proposta por Tringali (1988, p. 09-11). 18 Os dados relativos a este breve histórico estão baseados, preferencialmente, em Plebe (1978). 33 discípulo, de acordo com a conhecida anedota referida por Hermógenes, segundo o qual Tísias teria se recusado a pagar a Córax pelo ensino recebido, afirmando que, se fora bem instruído por ele, estava em condição de o convencer a renunciar ao honorário e, se não o estava, é porque fora mal instruído, não sendo, portanto, devedor de honorário. Segundo o testemunho platônico, o fundamento filosófico da Retórica de Tísias (e, pois, com toda a probabilidade, também o da de Córax) era que “o verossímil é mais estimável do que o verdadeiro”. A base da Retórica de Córax e de Tísias era a procura do verossímil e, portanto, a sua Retórica devia ser de tipo caracteristicamente probatório, de procura de provas, tipo que depois seria referido e discutido por Aristóteles. Com isso, a Retórica assumia o aspecto de ars19, com preceitos assentados cientificamente. Sabe-se, entretanto, que a Retórica Siciliana, do V século a.C., não se exauriu com Córax e Tísias. Enquanto estes defendiam uma Retórica científica, baseada na demonstração técnica do verossímil, uma outra escola, contemporânea, praticava e teorizava uma Retórica não científica, mas psicagógica20, fundada na sedução irracional que a palavra, sabiamente usada, exerce sobre a alma dos ouvintes. Nas raízes dessa corrente da Retórica irracional estão os denominados “discursos de Pitágoras”. Os traços fundamentais desses discursos são o seu propósito de usar estilo e argumentos diferentes conforme sejam diferentes os ouvintes, baseada no emprego constante da figura da antítese. 19 Substantivo feminino latino ars, artis, que significa arte, habilidade, técnica (SARAIVA, 2000, p.107). 20 Referente à psicagogia – conjunto de processos e métodos psicoterapêuticos. Do grego psikhagogikós, é, ón, que significa atraente e sedutor (HOUAISS, 2001, p.2325) 34 5.1.2. Os pitagóricos (Século V a.C.) As origens da teoria psicagógica da Retórica estão unidas à distinção parmenídica21 entre o mundo da verdade e o mundo da opinião, distinção que surge no centro das correntes pitagóricas da Magna Grécia. Para Parmênides, enquanto a característica do mundo da verdade é dada pelo raciocínio científico, a característica do mundo da opinião é sujeita ao fascínio enganador da palavra. A tarefa da Retórica podia apresentar-se, então, para os pitagóricos, como a de explorar a força de atração e sedução da palavra. Compreende-se, assim, que, no ambiente da Magna Grécia do século V a.C., Parmênides, nutrido pelo pensamento pitagórico, haja falado de um ordenamento enganoso da palavra, próprio da opinião, anunciando pela primeira vez, uma formulação teórica da Retórica, que provavelmente teria grande êxito no pensamento antigo. Defendia ele que a eloqüência era enganadora, assim como a música era encantamento, porque ambas não são ciências demonstrativas, mas artes médico- mágicas, cuja essência reside propriamente na força de uma persuasão psicológica, irracional. Por isso, o círculo pitagórico não pretendia negar à Retórica o caráter de uma arte, de uma technologia, pois a eloqüência requeria uma arte apurada, tal qual a medicina. Todavia, o círculo não compreendia essa arte no sentido absoluto que uma disciplina preceituaria, ou seja, não a compreendia como conhecimento sistematicamente organizado para o aprendizado. 21 Referente a Parmênides, filósofo nascido em Elea por volta de 510 a.C. Fundou a escola eleática de filosofia. 35 5.1.3. Górgias (485 – 375 a.C.) Se, por um lado, investigam-se as primeiras teorias retóricas na efervescência do pensamento da Magna Grécia, por outro, também na Grécia continental, já vinha sendo criado o humus para a afirmação das doutrinas retóricas. Cícero observou que o primeiro ideal de uma educação retórica se encontra no episódio homérico da Fênix, no livro IX da Ilíada, quando Fênix foi dado à Aquiles por Peleu, seu pai, como companhia de guerra do jovem, para torná-lo hábil nas palavras e autor de façanhas. Por isso, Homero parece já indicar uma proximidade da Retórica com a poesia. Coube a Górgias, discípulo de Empédocles e Tísias, levar a Retórica a Atenas, para onde fora como embaixador dos sicilianos. Para Górgias, segundo o que afirmou Plutarco, a Retórica era a arte relativa aos discursos, que tinha a sua força no seu artífice e na persuasão discursiva; arte criadora de uma crença, e não de ensinamentos. 5.1.4. Os sofistas (Século V a.C.) Em Atenas, essa arte se consolida definitivamente por obra dos sofistas, que abrem as primeiras escolas de Retórica, nas quais se ensinavam, entre outras coisas, a fazer belos discursos sobre qualquer assunto. Como professavam o ceticismo (não achavam que se poderia chegar à certeza), consideravam verdade e justiça como relativas e, em conseqüência, treinavam seus alunos a defender quaisquer dos lados de uma questão, não importando se justo ou injusto, cobiçando apenas ganhar a causa, sem levar em conta os aspectos éticos. É necessário salientar que, com os sofistas, cria-se a prosa artística. 36 O êxito obtido pela Retórica gorgiana e por aqueles que a professaram foi grande. Entre estes destacam-se, sem dúvida, Sócrates e, principalmente, Platão, o qual se encontrou diante de um dos primeiros problemas a exigir urgente discussão e solução: o das relações entre Retórica e Filosofia. 5.1.5. Platão (427 – 347 a.C) Platão, para combater os abusos dos sofistas, radicalizou e modificou os rumos que assumiram a Retórica, investindo violentamente contra os abusos daquela doutrina e resgatando uma direção ética para a arte, sugeriu uma Retórica ideal. Partiu, portanto, do conceito sofístico de Retórica como teoria do discurso persuasivo, que versa indiferentemente sobre justo e injusto diante de uma multidão inculta, por achar que a Retórica não se justificava como mera atividade formal de persuadir, não importando sobre o quê. Para o filósofo, a persuasão dependia da matéria tratada, que a salvaria ou a condenaria. Acreditou e defendeu que o ponto mais vulnerável da Retórica decorre da sua natureza e de seu conteúdo, pois não se pode defender o justo e o injusto igualmente. Julgava que a Retórica, sob pena de se negar, deveria ser justa, não podendo em hipótese nenhuma praticar a injustiça. Sendo assim, um criminoso deveria ser sempre punido e nunca inocentado. Indignava-o a ilusória pretensão, de que se gabavam os oradores de gozarem de importância e poder no Estado. A seu ver, o orador não praticava outra coisa senão bajular e lisonjear as multidões, razão pela qual a simples oratória não conseguia se elevar até o nível de uma ciência ou de uma arte. 37 As restrições que Platão fez à Retórica, com o peso de sua autoridade, repercutiram até os tempos do cristianismo e pelos séculos afora e são, provavelmente, responsáveis pela acepção pejorativa que acompanhou o termo ao longo da História. Possivelmente esta restrição platônica é a base de uma linha contestatória da Retórica, que tende a reduzi-la à prática vã do discurso belo, porém vazio e desarticulado. 5.1.6. Isócrates (436 – 338 a. C.) Enquanto Platão se indispunha, oficialmente, contra a Retórica, seu grande adversário e contemporâneo, Isócrates, buscou conciliar as duas linhas da Retórica. Procurou cumprir igualmente a exigência gorgiana de uma arte da persuasão e a exigência da busca filosófica, defendendo a idéia de que a sabedoria, ou filosofia, de nada vale sem a Retórica, assim como esta nada vale sem a sabedoria. Nas suas palavras, a Retórica se faz uma arte de bem pensar, bem viver e bem falar. É com Isócrates que a elocução conhece dias de glória e se inicia a prosa artística. Para ele, a palavra é um dom divino, pois a arte da palavra não é um mero exercício formal, mas uma técnica que, ao mesmo tempo, é educação e desenvolvimento do homem. Todavia, este retor cuidou muito mais do aperfeiçoamento do estilo da elocução do que do estudo de seu conteúdo, levando ao máximo desenvolvimento a técnica da simetria e da antítese, que herdara de Górgias. Isto provocou, contra si, primeiro a hostilidade de Platão e, a seguir, a de Aristóteles, os quais viam nele o triunfo da pura forma e da falta de conteúdo. 38 5.1.7. Aristóteles (384-322 a.C.) Também no domínio da Retórica, a primeira posição de Aristóteles foi determinada pela influência platônica. A obra em que exprimiu, ainda em sua juventude, por volta de 360 a.C., seu pensamento sobre essa arte foi o diálogo Gryllos, de que restam apenas poucos fragmentos. Esse diálogo representa apenas uma primeira fase, transitória, do pensamento retórico aristotélico; sua teoria Retórica madura se encontra nos seus três livros Sobre a Retórica, que sintetizam essa arte. Aristóteles sustenta que a Retórica é a arte de descobrir, em qualquer questão, os meios de persuadir, defendendo com maestria a tese de que a “verdadeira retórica deve ser, antes de tudo, uma técnica rigorosa do argumentar” (PLEBE 1978, p. 38), propondo-se, pois, a fundar uma autêntica Técnica da Retórica. Essa é a premissa embrionária que irá nortear as teorias argumentativas em toda a História da Linguagem, inclusive nos nossos dias. Por essa razão, daremos à teoria retórica aristotélica maior ênfase. 5.1.8. Retórica em Roma (Século II a.C.) Da Grécia, a Retórica vai para Roma, que a transmite como herança ao mundo ocidental. A partir do II século a.C., afluíram os retóricos helenísticos a Roma e ali se dedicaram ao ensino. A intensa vida política de Roma requeria forte estímulo à arte da palavra, mas, ao contrário do que ocorrera na Grécia, em Roma, a Retórica tencionava, assim como a literatura, atingir fins exclusivamente práticos. 39 5.1.8.1. Rhetorica ad Herennius (86?-82? a.C.) Só no I século a.C. chegaram a Roma os estilos retóricos de arte do oriente helênico. O mais antigo manual de Retórica, em latim, é o Rhetorica ad Herennius, antes atribuído a Cícero e depois a um certo Cornífício, na verdade, de autoria desconhecida, composto por volta de 86-82 a.C. É a obra de um erudito, o qual, não muito jovem, escreveu esse tratado técnico para seu amigo Herennius. Na obra examinam-se os deveres do orador e a divisão da matéria retórica, em particular, a invenção e a elocução. Quanto ao conteúdo, a Rethorica ad Herennius apóia-se, especialmente, em Aristóteles, embora o autor aparente pouco interesse pela problemática filosófica, já que seu objetivo fundamental é o de dar preceitos para a escrita, para a fala e classificá-las. Esse tratado puramente técnico vai exercer grande influência, gozar de autoridade em Roma e, posteriormente, em todo o Ocidente. Embora a Retórica ad Herennius tenha sido de grande importância para Roma e para todo o Ocidente, Cícero é o grande nome da Retórica em Roma e exerce, ainda hoje, forte influência sobre a civilização ocidental. O estudo da Retórica ciceroniana, criado na Antigüidade por Quintiliano, não desaparece nem mesmo na Idade Média e domina a Renascença, beneficiando-se da querela entre aristotélicos e platônicos. 5.1.8.2. Cícero (102 – 43 a.C.) Mais ou menos na mesma época em que foi elaborada a Retorica ad Herennius, Cícero escreveu De inventione (Sobre a invenção). Trata-se de uma obra de sua juventude (considerada, por vezes, como uma reedição Retorica ad Herennius), 40 composta de dois livros, nos quais analisa a questão referente à busca de argumentos. No entanto, os grandes textos do autor somente aparecerão a partir de 55 a.C. Experiente e maduro, Cícero deu ao público trabalhos mais profundos, como De oratore (Sobre o orador), Brutus (Sobre o orador Bruto); Orator (O orador) e De optimo genere oratorum (Sobre o melhor gênero de oradores). Nestas obras, o orador romano trata a problemática retórica no nível das disputas filosóficas e defende o caráter complementar e necessário de ambas as disciplinas. Logo depois de Cícero, a Retórica Latina entra em crise. A queda da República sufocou aquela liberdade indispensável para o florescimento de uma legítima oratória e, assim como a queda das tiranias sicilianas assinalou o primeiro despontar da Retórica Grega, assim também a queda da República romana assinalou o primeiro ocaso da Retórica Latina. A mais clara teorização dessa decadência da Arte Retórica em Roma é dada pelo conhecido Dialogus de Oratoribus (Diálogo dos Oradores) que, hoje, a maior parte dos filólogos atribui ao período juvenil de Tácito. 5.1.8.3. Quintiliano (35 – 95 d.C.) O último produto notável da Retórica Latina, praticamente contemporâneo ao Dialogus de Oratoribus, foi a Institutio Oratoria (Instituição Oratória) de Quintiliano, que consolidou toda a Retórica Antiga. Sua originalidade não é grande, pois o autor depende muito dos tratadistas gregos e latinos precedentes, em especial Cícero. Todavia, é importante o vigor com que retoma os seus conceitos e os reapresenta de forma adequada à sua época. 41 Quintiliano, sem negar a importância da persuasão, define a Retórica como a arte de bem dizer. Apresenta uma visão atualizada do que seja a Arte Retórica, mostrando que a persuasão, objeto primeiro da Retórica aristotélica, torna-se a conseqüência do dizer (escrever) com arte e primor. Mesmo não existindo mais os grandes impérios antigos, o cultural grego e o dominador romano, a Retórica continua a dominar em toda a Idade Média, na Renascença e, ainda, mesmo que de um modo mais atenuado, em nossos dias. 5.1.9. Santo Agostinho (354 – 430) Na Idade Média, com o advento e ascensão do cristianismo, dá-se a assimilação da Retórica pagã aos interesses evangélicos e, entre tantos, o orador mais influente é, sem dúvida, Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja Católica. No obscuro período da Idade Média, a Retórica faz parte do ensino, do chamado Trivium formado por três disciplinas: a Gramática, a Lógica e a Retórica. A gramática ensinava a escrever e falar corretamente, a Lógica ensinava a bem pensar e a Retórica, a escrever e falar bem, desdobrando-se nas artes de pregar e de escrever cartas. 5.1.10. Retórica a partir da Renascença Na Renascença, da Retórica Antiga se desprende a chamada Retórica Clássica, ou seja, a Retórica da Elocução, arte de composição e estilo. Isso não significa, contudo, que a Retórica Antiga tenha se extinguido, pois, com os jesuítas, ela se firma nos programas de ensino; a querela entre católicos e protestantes dá-lhe um novo 42 vigor, especialmente no tocante ao aspecto do bem falar. Lembremo-nos, ainda, das academias européias e dos lugares tradicionais em que a Retórica foi a orientação de escrita. No Brasil, é notável a presença da Retórica nos sermões de Padre Vieira, por exemplo, e em boa parte das composições vinculadas ao Movimento Academicista, nosso objeto de estudo. Como se vê, a história da Retórica Antiga até o século XVII é longa e multiforme. 5.2. Fundamentos da Retórica Aristotélica A Retórica Antiga (ou Aristotélica) tem suas fontes primordiais em Aristóteles, que foi o mais importante dos discípulos de Platão e, juntamente com seu mestre, teve profunda influência em todo o pensamento ocidental. 5.2.1. Aristóteles Nascido em Stágeira, na Calcidice, em 384 a.C., filho do médico Nicômaco, Aristóteles viveu grande parte de sua vida em Atenas, onde estudou na Academia de Platão. Foi preceptor de Alexandre, filho de Felipe II, e fundador do famoso Liceu ou “Escola Peripatética", assim chamada devido ao hábito de Aristóteles discutir filosofia enquanto caminhava (em grego peripatêo, "eu passeio") pelas alamedas da escola. Nessa escola, ele e seus discípulos realizaram um grande número de pesquisas filosófico-científicas e reuniram um vasto material referente a todo o conhecimento da época. 43 Sobre o pensamento de Aristóteles, sabemos que o pensador rejeitou a teoria das formas ("idéias") de seu mestre Platão, por envolver conceitos excessivamente abstratos. Para ele, existem apenas seres e objetos concretos e reais, que podem ser percebidos pelos sentidos e analisados em termos de forma, constituição, construção e finalidade. Esta concepção permeia toda a obra aristotélica; sua contribuição fundamental à filosofia foi, sem dúvida, a criação da lógica formal e da lógica material, métodos que organizaram e ordenaram o raciocínio e o pensamento da época. Aristóteles deixou grande quantidade de obras de caráter didático, destinadas ao público em geral, sob a forma de diálogos. Nenhum desses textos exotéricos (externos) chegou até nós; possuímos apenas pequenos trechos e um ou outro resumo. Sobreviveram somente os escritos esotéricos (internos), concisos e de caráter mais técnico, baseados nas anotações do filósofo para aulas e exposições destinadas aos discípulos da escola. Entre os escritos do filósofo que chegaram até nossos dias estão dois grandes tratados: Techne Rhetorike (Arte ou Técnica Retórica) e Techne Poietike (Arte ou Técnica Poética), textos de importância capital para os estudos relativos à linguagem e, principalmente, à prática do bem escrever. Em seu primeiro tratado, Aristóteles aborda a progressão discursiva, etapa por etapa e, no segundo, a progressão da obra, imagem por imagem. Ambas possuem, portanto, dois encaminhamentos específicos, duas técnicas autônomas. Justamente por serem tomadas como autônomas, fundamentaremos as bases de nossos estudos apenas em seu primeiro tratado. 44 5.2.2. A Arte Retórica A Arte Retórica é composta por três livros. O Livro I é o livro do orador. Nele, Aristóteles trata principalmente da concepção dos argumentos na medida em que eles dependem do orador e de sua adaptação ao público. O Livro II é o livro do público. Nele são focalizadas as emoções e, novamente, os argumentos, mas somente na sua recepção pelo público. O Livro III é o livro que trata da ordem das partes do discurso, com ênfase na elocutio e na dispositio. É neste livro que Aristóteles define Retórica como “a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (ARISTÓTELES, s/d, p.33). Dessa Retórica Aristotélica, encontramos a teoria no próprio Aristóteles, a prática com Cícero e a pedagogia com Quintiliano. Entretanto, a prática até o período que abrange nossa pesquisa é baseada essencialmente nos princípios aristotélicos, embora Cícero e Quintiliano muito tenham contribuído para o aperfeiçoamento desta arte. Embora a Retórica seja conhecida e muito já se tenha discutido sobre ela, ainda há dificuldades em situá-la no campo do saber. Em que espécie de saber se localiza a Retórica? É uma ciência, uma técnica ou uma arte? Segundo Tringali (1988, p.32): ... a retórica é uma disciplina, no sentido de saber organizado de acordo com o que a própria etimologia da palavra nos revela. Ela se prende à raiz do verbo discere (aprender) e, da palavra que se forma por analogia, discipulus (aluno, aquele que aprende). Disciplina corresponde, então, ao objeto de aprendizado, matéria de estudo. 45 Na definição de Tringali, a Retórica tem um aspecto didático e, embora na Antigüidade já tenha sido considerada uma ciência22, atualmente é concebida pela maioria dos teóricos como uma técnica, uma arte, por se tratar de um saber aplicado. Levando em consideração a definição de “técnica” (HOUAISS, 2001), como conjunto de procedimentos ligados a uma arte, e a definição de “arte” (ibid. id.), como acervo de normas e conhecimentos indispensáveis ao exercício correto de uma atividade, temos na Retórica um conjunto de regras praticadas e ensináveis, que capacitam o orador ao bem falar e, conseqüentemente, a praticar com eficácia o convencimento. Por isso, consentimos com a concepção de Tringali e a adotamos para nossos estudos. Definida a Retórica, é necessário conhecermos seus elementos estruturais e seus objetivos, que se baseiam sobre três elementos fundamentais: a quaestio (questão), a oratio (discurso) e o orator (orador). Oportunamente, como de costume é feito ao se tratar do assunto, abordaremos o discurso e o orador conjuntamente. Primeiramente, trataremos de seus elementos estruturais: Quaestio vem do latim e se liga ao verbo quaerere que significa ‘procurar’, ‘indagar’, ‘investigar’ (SARAIVA, 2000, p.988). A quaestio é o objeto de dúvida, aquilo que se investiga. Lato Sensu, todo e qualquer discurso, retórico ou não, gira sempre ao redor de um tema. Quando esse tema é problematizado surge a quaestio. Trata-se de um problema a resolver. Demanda, na maioria das vezes, mais de uma resposta, o quê introduz uma questão dialética23. Diante de tal tipo de questão formam-se partidos opostos na defesa 22 Entende-se ciência, nesta acepção, como tradicionalmente se entendia: conhecimentos sistematizados e disciplinados sobre um determinado assunto, justificados por uma longa experiência de erros e acertos. (TRINGALI, 1988). 23 Questões progressivas, movidas por oposições. 46 das partes. Nós somos diariamente rodeados por questões dúbias. Para umas, há respostas científicas, para outras, respostas dialéticas e/ou retóricas e, para outras, ainda, falsas respostas. Pode-se exemplificar como questões dialético-retóricas algumas questões levantadas na ABE, como um dos assuntos da 10ª conferência, de 10 de setembro de 1724, em que se discutiu onde teve mais glória Trajano, se na vitória que alcançou, cujo triunfo não chegou a lograr por se ter lhe antecipado a morte, ou se sua estátua, em que ostentou obséquios Adriano, a quem o Senado atribuíra o triunfo ou, ainda, na 2ª sessão, de 07 de maio de 1724, em que se discutiu quem amou mais finamente, Clície ao Sol ou Endimião à Lua. Esses são exemplos de questões dúbias por natureza, porque, diante delas, é pelo poder de argumentação – e conseqüentemente de persuasão - do orador (locutor) que o auditório (interlocutor) se posicionará (ou não) contra ou a favor de uma das partes da questão apresentada. No caso da ABE, esses tipos de questões eram constantes e exigiam, dos seus acadêmicos, habilidade e conhecimento dos preceitos retóricos para comporem seus discursos, além de grande erudição para discorrerem sobre o assunto em pauta. Sem uma questão não se inaugura o processo retórico, visto que a máquina Retórica só se movimenta quando instigada por uma questão que se divide em tese (questão geral) e hipótese (questão particular). A tese é uma questão posta em termos gerais, sem particularizações, de modo indeterminado e independente das circunstâncias. Ela generaliza e compreende tanto questões teóricas como práticas, tratando um tema de forma abstrata. 47 Já a hipótese é uma questão posta em termos particulares, em que as circunstâncias são determinadas. Por exemplo, na indagação O que é justiça?, estamos diante de uma tese ou questão geral, mas ao sermos indagados se é justo castigar uma pessoa que, num certo tempo e lugar, matou alguém, deparamo-nos com uma hipótese, ou seja, uma questão particularizada. Segundo Tringali (1998, p.48-9), a diferença entre as duas redunda num problema de perspectiva. A quaestio se vincula ao problema dos gêneros retóricos e pode ser classificada e subdividida sob diversos aspectos. A partir do cristianismo, por exemplo, costumou- se dividir a Retórica em dois gêneros: sacro e profano. Adotamos, no presente trabalho, uma perspectiva aristotélica, por isso nos interessa a tríade clássica a seguir. 5.2.3. Os gêneros do discurso segundo Aristóteles Segundo Aristóteles (s/d, p.39-41), o discurso comporta três elementos: a pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala; o fim do discurso refere-se a esta última, denominada ouvinte. Deste modo, o critério de classificação dos gêneros oratórios elaborados pelo pensador grego leva em consideração, essencialmente, a atitude do ouvinte em relação ao discurso. O auditório, depois de ouvido o discurso, irá apreciar, julgar ou votar, posicionando-se (ou não) contra ou a favor da questão apresentada. Não podemos deixar de mencionar outra característica dos gêneros retóricos: a delimitação temporal, pois o tempo é bem marcado no discurso, que, na maioria das vezes, irá convergir para um fato presente e atual, para um fato passado, ou para um fato futuro, mantendo sempre um certo juízo de valor. 48 A partir dos três elementos do discurso apresentados por Aristóteles, podemos distinguir três gêneros: o deliberativo, o judiciário e o demonstrativo ou epidíctico, que, segundo Tringali (1988, p. 52 - 59) podem ser denominados, respectivamente, por gênero político, forense e laudatório24. Cada um deles possui especificidades e finalidades distintas. Cabe ao gênero deliberativo aconselhar ou desaconselhar. Neste gênero, o orador deve persuadir o auditório, ou seja, uma assembléia deliberativa, a votar contra ou a favor de determinada causa, decidindo, portanto, sobre um fato, quer seja ele de caráter particular ou público. O tempo do discurso deliberativo ou político é, na maioria das vezes, o futuro, pois se deve deliberar, geralmente, sobre algo em questão. Os valores defendidos nesse tipo de discurso são sempre o útil e o nocivo, uma vez que todo projeto diligencia (ou pelo menos deve diligenciar) o bem comum e, em última instância, a felicidade individual. Stricto sensu, o discurso deliberativo sempre termina numa votação; lato sensu, considera-se deliberativo um texto que, na maioria das vezes, destina-se a um fato futuro, que aconselha ou desaconselha. Já ao gênero judiciário compete acusar ou defender. Nesse caso, os discursos são pronunciados em função de um julgamento formal que termina com uma sentença. O auditório, convertido em juiz, condena ou absolve; por isso há sempre um réu que será declarado culpado ou inocente. Esse gênero tem como valores o justo e o injusto. Quanto ao tempo, o discurso judiciário ou forense se volta para um fato passado, uma vez que só se acusa ou se defende alguém, a partir de um ato cometido no passado. É necessário esclarecer, entretanto, que, a rigor, o discurso judiciário pressupõe um julgamento formal, mas, em sentido amplo, considera-se judiciário todo 24 Segundo Aristóteles, os gêneros são deliberativo, judiciário e demonstrativo. 49 texto em que se acusa ou defende, em que se condena ou absolve um réu, independente da formalização ou não do julgamento. Ao gênero demonstrativo cabe louvar ou vituperar alguma coisa ou pessoa, compreendendo, portanto, o discurso de enaltecimento, exaltação e glorificação ou, ainda, o discurso de vilipêndio, de censura ou de injúria; há, ainda, outros nomes para o mesmo gênero, como laudatório ou epidíctico, pois quem vitupera louva pelo avesso. O discurso demonstrativo ou laudatório pode exercer uma profunda influência sobre o ouvinte, colocando em crise seus valores, mas não implica, necessariamente, que o ouvinte decida sobre ele depois de concluído. Normalmente, o objeto desse tipo de discurso é o belo, especialmente a beleza da virtude, em contraposição à feiúra do vício. No que se refere ao tempo, notamos que, enquanto o discurso judiciário versa necessariamente sobre um fato passado e o deliberativo sobre um fato futuro, o discurso demonstrativo versará preferencialmente sobre o presente, aquilo que interessa hoje e agora. Não podemos esquecer a utilização que é feita com freqüência das lembranças do passado ou das suposições do futuro no presente. Contudo, advertimos que um discurso nem sempre poderá ser absolutamente classificado dentro de um único gênero. Haverá, com certeza, predominância, mas não submissão absoluta. É necessário, no entanto, explicitar que, qualquer que seja o gênero, a Retórica possui sempre duplo objetivo - ensinar a fazer discursos para o convencimento e ensinar a fazê-los bem. Importa saber, deste modo, o que se entende por discurso e o que se entende por discurso retórico. 50 5.2.4. O Discurso Retórico: Dialético e Persuasivo. A palavra discurso deriva do latim dis+currere, ou seja, percorrer em diferentes direções, discorrer (CUNHA, 2001, p.269). Daí, então, a palavra discurso evocar, etimologicamente, o percurso de um tema sob vários ângulos. Discurso pode ser tomado, pois, em três acepções distintas: Lato sensu, o discurso significa fala, sentido que lhe deu Saussure em oposição à língua25. Discurso pode ser considerado também como texto, ou seja, uma fala completa com princípio, meio e fim, formando uma unidade temática. Pode, ainda, o discurso retórico ser considerado aquele que engloba os dois sentidos anteriores. Esclarecemos que “em Aristóteles, encontramos uma definição satisfatória e ampla – discurso retórico é um texto persuasivo e dialético” (TRINGALI, 1988, p. 19). Partindo dessa concepção aristotélica, podemos afirmar que, do ponto de vista da matéria, o discurso retórico apresenta sempre uma questão dúbia e discutível a respeito da qual não se chega à certeza, mas às probabilidades. É, portanto, dialético. Cumpre agora entender um pouco melhor o conceito aristotélico dos termos dialético e dialética. 5.2.4.1. O discurso retórico dialético Aristóteles distingue três áreas de conhecimento: uma área de conhecimentos científicos, uma de falsos conhecimentos e uma outra de conhecimentos dialéticos e 25 Referência à dicotomia saussuriana denominada langue/parole (em português fala/discurso), em que langue designa todo o sistema da língua, isto é, o conjunto de todas as regras que determinam o emprego dos sons, das formas e relações sintáticas, necessárias para a produção dos significados e parole caracteriza a fala, ou seja, parcela concreta e individual da langue, posta em ação por um falante em cada uma de suas situações comunicativas concretas. (LOPES, 2001, p. 76-77) 51 prováveis. Quando confrontamos essas três áreas de conhecimentos, o conceito de dialético se esclarece significativamente. Vejamos. Os conhecimentos científicos são aqueles adquiridos por meio de raciocínios científicos, chegando sempre à certeza. Esse modo de conhecer pertence a uma disciplina que Aristóteles chamou de Analítica, caracterizada por leis lógicas do pensamento. Nela, a conclusão decorrente de raciocínios analíticos procede, inevitavelmente, das premissas e, do ponto de vista do conteúdo, gera a certeza, porque os raciocínios são verdadeiros, e são verdadeiros porque evidentes. Os chamados conhecimentos falsos são aqueles obtidos através de raciocínios falsos, isto é, através dos sofismas, modo de conhecer da Sofística. A Sofística é parte da lógica de Aristóteles que estuda os raciocínios sofísticos, por meio dos quais se chega a falsos conhecimentos, mas que simulam ser verdadeiros e, com aparência de verdadeiros, visam a enganar. A ideologia, por exemplo, enquanto visão de mundo de uma classe dominadora, alimenta-se de sofismas; diz-se, por exemplo, ao pobre trabalhador, que sua verdadeira recompensa o aguarda nos céus. Cabe ao espírito crítico desmascarar os sofismas. Esse tipo de conhecimento, para Aristóteles, também não é objeto da Retórica. Já os conhecimentos dialéticos são aqueles adquiridos através de raciocínios possíveis e prováveis, pois através deles se chega ao estado de opinião. Cabe à Dialética o estudo deste tipo específico de raciocínio. Segundo a concepção de Aristóteles, só se incluem na esfera da Retórica as questões dialéticas. Para se entender a natureza dos raciocínios dialéticos, imaginemos uma situação em que nos encontramos diante de uma questão que suscita dúvida, para a qual há duas 52 soluções prováveis. A ciência resolve a dúvida e chega à certeza. No entanto, se estivermos diante de uma dúvida para a qual não há uma resposta científica e exige-se uma decisão e tomada de atitude, buscaremos a alternativa mais provável, a mais contundente e, se desse modo não chegarmos à certeza, ao menos faremos opção pelo provável. Estamos, nesse caso, no campo do raciocínio dialético. Os raciocínios dialéticos, ao contrário dos científicos, oferecem probabilidades, isto é, opiniões gerais obtidas a partir do próprio discurso. Esse tipo de raciocínio se apóia na autoridade da crença da maioria dos homens ou na maioria dos entendidos, e não na evidência do juízo. Portanto, toda vez que, diante de uma dúvida, não for possível chegar à certeza (à ciência), mas a probabilidades, estamos diante de uma questão dialética, objeto do discurso retórico. Pelo fato de a Retórica e a Dialética encerrarem grandes afinidades entre si - pois ambas pertencem à mesma área de conhecimento e tratam de raciocínios prováveis - os discursos retóricos são susceptíveis de refutação. Muitos outros pensadores discorreram sobre a Dialética, como, por exemplo, os estóicos, além de Platão, Kant, Hegel e Marx. Explicitamos, entretanto, que, para Aristóteles, a Dialética é uma parte da lógica, a lógica do provável, e é justamente nesse sentido aristotélico que utilizamos o termo dialética no presente trabalho. 5.2.4.2. O discurso retórico persuasivo Se do ponto de vista da matéria o discurso retórico se ocupa de questões dialéticas ou dúbias, do ponto de vista formal, o discurso retórico se especifica por reunir um conjunto de preceitos de escrita com a finalidade de bem escrever para 53 melhor convencer, ou seja, tentar persuadir a respeito de uma questão provável. É seu intento de persuasão que confere o traço diferencial do discurso retórico em relação a qualquer outro tipo de escrita. Para compreendermos este traço distintivo do discurso retórico basta lembrarmos que, ao utilizarmos a expressão discurso retórico, a característica que primeiro nos vem à mente é a persuasão. E não poderia ser diferente, por ser esta o desígnio primeiro da Arte Retórica Aristotélica. A Língua Portuguesa, em seu uso, é rica em expressões e termos polissêmicos, por isso, uma mesma palavra pode ser tomada em vários sentidos. Na terminologia por nós empregada, tomamos o verbo persuadir em seu sentido primitivo e, para explicitarmos sua significação, recorremos à etimologia do vocábulo. Persuadir deriva do verbo latino persuadere (per+suadere), em que o prefixo per significa ‘de modo suave e completo’ e o verbo suadere significa ‘aconselhar, não impor’. Daí o sentido de persuadere ser aconselhar, levar alguém a aceitar um ponto de vista de modo suave, habilidosamente (CUNHA, 2001, p.599). Embora muitas coisas que não pertençam ao campo da Retórica também persuadam, tudo o que persuade guarda afinidades com essa arte. Sem persuasão não há Retórica, no sentido estrito da palavra. A tarefa do orador consiste, então, em persuadir (ou tentar persuadir) um auditório, por meio de um discurso, a aceitar o seu ponto de vista sobre uma questão e rejeitar o ponto de vista contrário. Essa tentativa de convencimento pode acontecer de três modos: pelo convencer, pelo comover e pelo agradar. A primeira se diz lógica, a segunda afetiva e a terceira estética. 54 A etimologia dos vocábulos em questão pode nos ajudar a entender essas três funções essenciais do discurso retórico. O convencer, do latim cum+vincere – vencer o opositor com sua participação, (CUNHA, 2001, p. 213) tecnicamente denota persuadir a opinião de outrem através de provas lógicas; o comover, do latim cum+movere – persuadir com o coração, (CUNHA, 2001, p.199) denota convencer pela excitação afetiva, em que a vontade arrasta o intelecto a aderir ao ponto de vista do orador e o agradar, que corresponde à terminologia latina placere – agradar e delectare – seduzir, deleitar (SARAIVA, 2000, p. 904 e 349) significa que o discurso retórico, ao deleitar, ajuda a alterar a opinião de outrem pela beleza do discurso que se afina ao gosto do interlocutor e, nessa acepção, assenta-se o objetivo da Retórica como uma arte de bem falar. Quintiliano, o mais recente dos retores da Antigüidade, é partidário desta opinião. 5.3. Quintiliano A finalidade última da Retórica aristotélica é persuadir. Entretanto, no século I da era cristã, Quintiliano, em nome da lógica, critica a validade desta definição. Para ele, persuadir não é parte integrante do conceito de Retórica, porque nem todo discurso persuade, e muitas outras coisas, além do discurso retórico, podem persuadir como, por exemplo, o dinheiro, o poder, a virtude, etc. Quintiliano define, então, Retórica como a arte de falar bem, a ars bene dicendi. Mas, na prática, ele continua ensinando seus discípulos que, acima de tudo, convém ganhar a causa, o que só acontece com a persuasão. 55 Ora, Quintiliano não se afasta do quadro geral da Retórica Antiga, de que se tornou o mais admirável divulgador. Entretanto, sua definição de Retórica representa um desvio que acabará levando, posteriormente, a separar e dar autonomia à elocução como parte única e fundamental da Retórica, o que se consuma na Renascença. Resta- nos, agora, a dúvida – A Retórica é arte de falar bem ou a arte de persuadir? Quem tem a razão: Aristóteles ou Quintiliano? Na verdade, a Retórica persegue os dois objetivos. Sem o intuito do convencimento, a Retórica se desvirtua. Pois bem, para convencer, o discurso necessita ser bem feito. Dizer bem é uma propriedade inegável da Retórica, mas não a define. Um texto bem escrito ou bem pronunciado pode ser retórico e uma atitude também pode ser Retórica (por exemplo, o choro). Isso não significa que devemos negar o poder da sedução que a arte de escrever e falar bem geralmente exerce sobre seus ouvintes/ leitores. Em nosso trabalho, todavia, defendemos a unificação dos conceitos propugnados pelos antigos, notadamente Aristóteles e Quintiliano. Definimos como discurso retórico a escrita composta com habilidade e primor, seguindo os preceitos impostos, sobretudo pelos antigos, que intenta convencer. Essa unificação dos conceitos se justifica como opção metodológica que leva em conta as particularidades do texto selecionado para representação do corpus da produção em prosa da ABE. Tendo Siqueira da Gama recorrido à persuasão aristotélica e ao bem escrever prescrito por Quintiliano, não podemos desprezar nenhuma das orientações. 56 5.4. As Partes do Discurso Retórico O discurso retórico é estudado sob dois aspectos fundamentais - matéria e forma - compreendendo sempre uma questão dialética, desenvolvida por meio de teses e hipóteses, dentro de um determinado gênero discursivo, assuntos sobre os quais já tratamos. Segundo as prescrições retóricas, para maior êxito do orador em seu discurso, essa matéria deve ser sistematicamente organizada, atribuindo-se a divisão em etapas de elaboração, às quais convencionou-se chamar de partes do discurso. Em termos práticos, segundo a Retórica Antiga, depois de posta a questão, o orador começa a construir o seu discurso percorrendo algumas etapas. Ele deve buscar o material, fazer um plano, redigir, decorar e pronunciar o discurso em público. Constituem tais etapas a inventio (invenção), a dispositio (disposição), a elocutio (elocução), a memoria (memória) e a actio ou pronuntiatio (ação). 5.4.1. Inventio De fato, a elaboração de qualquer discurso inicia-se com a seleção e reunião do material a ser trabalhado. Esse é o momento da inventio (invenção). O termo invenção originou-se do latim inventio - palavra ligada ao verbo invenire (SARAIVA, 2000, p.633), que significa encontrar, descobrir, achar - designando, portanto, o ato de procurar e achar. Nas ciências a nas artes denomina a descoberta do novo, do original e do desconhecido. Na Arte Retórica, a invenção significa, especificamente, procurar e achar o que está escondido e guardado. Stricto sensu, limita-se à busca das provas que constituem a substância da invenção, ou seja, à descoberta de argumentos. 57 5.4.2. Dispositio Depois de reunir o material, de juntar as provas necessárias, chega o momento de colocar cada coisa em seu devido lugar. Trata-se da etapa da dispositio (disposição). Esta etapa consiste na distribuição das partes dentro do todo, ordenando- as de modo a constituir uma unidade complexa. É o ato de fazer o arranjo das idéias. Organiza-se o discurso. A ordem de seqüência das partes obedece a critérios lógicos, mas o que, em última análise, determina a disposição do discurso são o objetivo e as necessidades do orador frente ao seu auditório. Sempre houve reação contra os excessos de divisões e subdivisões do discurso e se aconselha, mesmo que as partes não se mostrem evidentes, que passem despercebidas, dissimuladas de modo a dar a impressão de um todo indivisível. Da mesma maneira, nunca se chega a um plano fixo e invariável. Aliás, é conveniente que o plano se acomode às circunstâncias. Em todo caso, apoiado num grande número de modelos de divisão do discurso, Tringali (1988, p.61-101) nos apresenta as seguintes partes constantes no discurso, tendo-se em vista que se referem, notadamente, ao discurso judiciário: • Exórdio – parte introdutória do discurso; • Proposição – assinala, em relação ao tema e à questão, o partido que o orador vai tomar, pois todo discurso sempre deve indicar uma tomada de posição; • Partição – o orador indica aos ouvintes o roteiro a ser percorrido, quais as etapas vai enfrentar no desenvolvimento do discurso; • Narração – contam - se fatos implicados pelo discurso, entretanto, não 58 se pode confundir narração com os exemplos, que são instrumentos de prova. A narração diz respeito à causa toda. Recomenda-se que ela seja breve, clara e verossímil para atingir os objetivos do discurso. Em geral, inclui-se na narração a descrição, que ganha grandes proporções nos discursos laudatórios, quando se elogiam lugares ou pessoas; • Argumentação26 – é a parte mais densa e substancial do discurso, pois, nela se concentram as provas. A argumentação compreende a confirmação e a refutação; • Digressão – é eventual, ocorre ou não, e é móvel, insere-se em qualquer momento que se faça oportuno. Não se trata de mera divagação, mas tem sempre um propósito específico; • Peroração – é a conclusão, o momento decisivo porque “finis coronat opus27”. 5.4.3. Elocutio Selecionadas as provas (inventio) e organizado o discurso (dispositio), chega- se ao momento da elocutio (elocução), ocasião em que o orador deve escolher a expressão adequada para suas idéias. Elocução, etimologicamente, deriva do verbo latino ‘eloqui’, (SARAIVA, 2000, p.416) que significa falar, exprimir-se com palavras, falar com arte. Mas, na terminologia da Retórica, indica, de preferência, a ação de escrever o discurso, já que 26 À argumentação (argumentatio), parte de maior relevância para o nosso trabalho, reservamos uma sessão. Conferir p.61 27 Tradução: O fim coroa a obra. 59 sempre foi regra para os grandes oradores da Antigüidade escrever o discurso, decorá- lo e depois pronunciá-lo em público. Praticamente, a elocução é o ato de compor, de redigir o discurso. Equivale à invenção, uma vez que, enquanto na invenção se buscam provas, na elocução se buscam palavras; a invenção trata do que se deve dizer, a elocução, do modo como se deve dizer. O princípio que rege a Retórica é o de que não se escreve bem sem ter idéias e sem amadurecê-las; só escreve bem quem pensa bem. Portanto, a elocução não se limita apenas a escrever o discurso, mas a escrevê-lo bem, com arte e primor. A linguagem do discurso deve ser qualificada e elaborada. Por isso, requer do orador o domínio completo de seu instrumento capital de trabalho: a língua. O problema fundamental da elocução reside em saber quais são as suas qualidades, quais os vícios a evitar e quais as virtudes a ostentar. Há, contudo, uma tendência em resumir a quatro as virtudes capitais da elocução, a saber: a correção, a clareza, a adequação e a elegância. 5.4.4. Memoria Esta etapa diz respeito à memorização do discurso, a memória. O culto à memória sempre se ligou à Retórica e o exercício de decorar, inclusive com excessos, é considerado uma herança que as escolas receberam da Retórica. Além do que, a civilização grega legou-nos toda a sua cultura a partir de uma tradição oral. Hoje vivemos numa sociedade pautada na escrita, em que a memória é menos solicitada do que era na Antigüidade, em que a memorização se impunha quando os 60 materiais de anotações não existiam ou eram escassos. Ademais, a educação antiga, sob o império da Retórica, exaltava a memória. Em relação ao orador, na Antigüidade vigorou a regra rígida de que se deveria, em primeiro lugar, escrever o discurso, e aconselhava-se que o escrevesse por inteiro. No entanto, era regra, também, que o discurso não fosse lido e o orador que o fizesse estava sujeito a ser repreendido severamente. O discurso deveria ser decorado e reproduzido no momento oportuno. Depois de elaborado e decorado, seguia-se à última e definitiva fase do discurso: a actio ou pronuntiatio (ação). Antes de ser pronunciado, o discurso existe apenas em potência. Depois de pronunciado, ele sobrevive, na forma escrita, apenas como documento, já que a sua essência se completa com a representação. 5.4.5. Actio ou Pronuntiatio O discurso se realiza quando vem a público. Não podemos nos esquecer de que o discurso é uma prática significativa e comunicativa que pressupõe a existência de um orador, uma mensagem e um auditório. Orador e auditório se correlacionam, um atua sobre o outro numa relação interacional. A ação consiste em uma atividade complexa, cujo eixo central é ocupado pela pronuntiatio ou pronunciação, a declamação. Tinha por finalidade produzir um efeito sensorial sobre o ouvinte. A Retórica ensina que para ir ao real sentido de um discurso é preciso sobrepujar as palavras, que por sua existência densa, exigem uma intervenção corporal sob a forma de uma operação vocal, quer seja pronunciada e ouvida, quer seja apenas uma articulação interiorizada. 61 Paul Zumthor (2000) acrescenta, ainda, que o corpo está sempre comprometido na percepção plena do poético, por isso, para o êxito do discurso, o orador deve atrelar à pronunciação outras linguagens não verbais que enriqueçam a sua significação. Essas linguagens não verbais acompanham e ajudam a comunicação verbal (a pronunciação) de forma acessória e subsidiária. Nelas, inclui-se a prosódia, traços significativos que acompanham a expressão oral, a gestualidade e o comportamento do orador, que abrangem gestos, atitudes e posturas. Todo esse esquema discursivo que verificamos é o embrião do esquema dissertativo tradicional usado ainda hoje. Se compararmos as estruturas de um discurso comprovadamente retórico e um texto discursivo-argumentativo produzido em nossos dias, perceberemos com facilidade que exórdio e proposição correspondem à introdução; narração e argumentação, ao desenvolvimento e peroração equivale à conclusão. Por esse motivo, defendemos a idéia de que os preceitos retóricos, sistematizados e propostos na Antigüidade para composição de um bom discurso, exercem influência até hoje na produção de textos argumentativos. 6. A Argumentatio: Fundamento Persuasivo da Retórica Conscientes do papel social da língua, os gregos, antes de Aristóteles, já ousavam dizer que a Retórica seria a síntese da arte da persuasão e do viver social; a palavra era vista não só como um exercício formal, mas como uma técnica que levava à educação e ao desenvolvimento do homem. 62 Como vimos, a Arte Retórica foi, de fato, ordenada e sistematizada com Aristóteles. Os estudos até então eram incertos e nebulosos para os ditos eruditos da época - estudos estes que viriam a fundamentar a estrutura discursiva até nossos dias. Surgem assim, três gêneros retóricos discursivos, todos os três fundamentados sobre uma técnica rigorosa, baseada na