UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS JULIANO ALVES DIAS ET VERITAS LIBERABIT VOS O CATOLICISMO ENTRE O MODERNISMO E A TRADIÇÃO (1960-2013) FRANCA 2013 JULIANO ALVES DIAS ET VERITAS LIBERABIT VOS O CATOLICISMO ENTRE O MODERNISMO E A TRADIÇÃO (1960-2013) Tese apresentada à Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista, campus Franca, como requisito para a obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. Coorientador: Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi FRANCA 2013 Dias, Juliano Alves Et veritas liberabit vos: o catolicismo entre o modernismo e a tradição (1960-2013) / Juliano Alves Dias. – Franca : [s.n.], 2013 114 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Ivan Aparecido Manoel 1. Modernismo - Igreja Católica. 2. Concílios ecumênicos. 3. Encíclicas papais. I. Título. CDD – 262.91 JULIANO ALVES DIAS ET VERITAS LIBERABIT VOS O CATOLICISMO ENTRE O MODERNISMO E A TRADIÇÃO (1960-2013) Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura. BANCA EXAMINADORA Presidente:____________________________________________________ Prof. Dr. 1º Examinador:_________________________________________________ Prof. Dr. 2ºExaminador:__________________________________________________ Prof. Dr. 3ºExaminador:__________________________________________________ Prof. Dr. 4ºExaminador:__________________________________________________ Prof. Dr. Franca, 15 de setembro de 2013. AGRADECIMENTOS Agradeço a todos aqueles que de uma forma ou outra participaram de minha formação e da confecção deste trabalho. De modo particular, ao professor Dr. Ivan Aparecido Manoel, agradeço pela dedicação e confiança dispensados a mim. Sua luz muito me iluminou nos momentos de trevas acadêmicas e sua orientação foi meu guia pelos tortuosos caminhos da maiêutica histórica. Igualmente, ao professor Dr. Pedro Geraldo Tosi agradeço pela permanente tutoria, desde os dias de iniciação científica até este momento de suma importância. Seu companheirismo e comprometimento serão sempre lembrados como modelo exemplar de vida acadêmica. Aos meus pais e avós, deixo registrados meus sinceros sentimentos em agradecimento a toda dedicação para com minha pessoa. À minha esposa agradeço pelos passos que demos juntos, os tortuosos e os alegres. A você, Juliana, junto ao Lucas e à Maria Júlia, nossas fontes de felicidade, dedico este fruto de meus esforços. Quem, de três milênios, Não é capaz de se dar conta Vive na ignorância, na sombra, À mercê dos dias, do tempo. Johann Wolfgang von Goethe DIAS, Juliano Alves. Et Veritas Liberabit Vos: O Catolicismo entre o Modernismo e a Tradição (1960-2013). 2013.114 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2013. RESUMO: Quando se observa a história da Igreja em seu último século, nota-se uma disparidade de postura entre o período anterior ao Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) e sua posteridade. A Igreja aparentemente teria deixado certos posicionamentos, no entanto os papas pós-conciliares e os documentos eclesiais do magistério não confirmam essa concepção. Recentemente com o pontificado de Bento XVI (2005-2013) uma série de questões acerca do Vaticano II e suas intenções ganharam espaço no ambiente eclesial. O desfecho do ultramontanismo (1800-1960) parece ter assumido novos contornos e alguns de seus elementos passaram por uma releitura. Bento XVI, desde seu primeiro discurso à Cúria Romana, propôs uma visão de continuidade histórica do referido Concílio com o passado da Igreja, negando uma possível ruptura e reafirmando a condenação a certos aspectos do mundo moderno e àquilo que chamou de ditadura do relativismo. Para fazer valer tal proposição, seu pontificado se aproximou de setores conservadores do catolicismo e buscaram criar uma interpretação oficial para o Concílio que o coloque em sintonia com a história bimilenar da Igreja; seu intuito parece residir na exclusão de interpretações que fizeram do Concílio uma revolução interna na instituição eclesiástica e a abriram para aquilo que condenara anteriormente, o Modernismo. Diante de tais perspectivas históricas, pretende-se estudar os dezesseis documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, no afã de compará-los com os posicionamentos anteriores dados pelo Magistério da Igreja, de modo particular com encíclica Quanta Cura de Pio IX com seu Syllabus de erros (1864) e a Pascendi Dominici Gregis (1907) do papa São Pio X. A intenção primeira deste trabalho é vislumbrar as possíveis divergências entre o Vaticano II e o magistério pré-conciliar. Em segundo lugar, há de se debruçar sobre a atuação dos Pontífices pós-conciliares, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, na aspiração de entender o processo de crise identitária na história recente do catolicismo e as propostas de solução deste impasse. Para tanto, usar-se-á como fonte os citados documentos conciliares, e as encíclicas dos papas anteriores ao Vaticano II que condenaram o modernismo. Serve ainda de auxílio nessa pesquisa uma vasta bibliografia que oferece o respaldo histórico e teórico para este trabalho. A análise metodológica dos documentos em questão com o apoio da bibliografia arrolada será o guia para o estudo do tema desta investigação, até agora inédito em meios acadêmicos da historiografia da Igreja Católica Apostólica Romana, uma instituição que sobreviveu aos séculos e que, ainda hoje, influencia a vida de um grande contingente populacional. Palavras-chave: Igreja Católica. Concílios Ecumênicos. Tradicionalismo. Modernismo. Encíclicas Papais. DIAS , Juliano Alves . Et Veritas Liberabit Vos: The Catholicism between Modernism and the Tradition (1960-2013). 2013. 114 f. Thesis (Doctorate in History) - Faculty of Humanities and Social Sciences, São Paulo State Unicersity "Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2013 . SUMMARY : When one looks at the history of the Church in its last century, there is a difference in attitude between the period before the Second Vatican Council (1962-1965) and his descendants. The Church apparently had left certain positions, however the post- conciliar popes and church documents of the magisterium does not confirm this view. Recently with the pontificate of Benedict XVI (2005-2013) a series of questions about the Vatican and its intentions gained ground in ecclesial environment. The outcome of ultramontanismo (1800-1960) seems to have taken new shape and some of its elements passed through a rereading. Benedict XVI, from his first speech to the Roman Curia, proposed a vision of historical continuity of this council with the Church's past, denying a possible rupture and reaffirming the conviction to certain aspects of the modern world and to what he called the dictatorship of relativism. To assert such a proposition, his pontificate approached conservative sectors of Catholicism and sought to create an official interpretation of the council that put in line with the two thousand year history of the Church, its purpose seems to be the exclusion of interpretations that have made a revolution council the internal ecclesiastical institution and opened to what previously condemned, Modernism. Given these historical perspectives, we intend to study the sixteen documents of the Second Vatican Council, in its eagerness to compare them with previous positions given by the Magisterium of the Church, particularly with the encyclical Quanta Cura of Pius IX in his Syllabus of Errors (1864) and Pascendi Dominici Gregis (1907) of Pope St. Pius X. The primary intention of this work is to see the possible differences between the Vatican and the pre -conciliar magisterium. Secondly , there is the need to examine the performance of the post- conciliar Popes Paul VI , John Paul II and Benedict XVI , the aspiration to understand the process of identity crisis in recent history of Catholicism and the proposed solution to this impasse. To do so, it will use as a source cited the council documents and encyclicals of the popes prior to Vatican II that condemned modernism. It serves to aid in this research an extensive bibliography that provides the historical and theoretical support for this work. A methodological analysis of the documents concerned with the support of the bibliography will be mustered guide to the subject in this investigation, so far unheard of in academic historiography of the Roman Catholic Church, an institution that has survived the centuries and even today, influences the lives of a large contingent of the population. Keywords: Catholic Church. Ecumenical Councils. Traditionalism. Modernism. Papal Encyclicals. DIAS, Juliano Alves . Et Veritas Liberabit Vos: Le Catholicisme entre le Modernisme et la Tradition ( 1960-2013 ). 2013. 114 f. Thèse (Doctorat en Histoire) - Faculté des Sciences Humaines et Sociales , Université de l’Etat de São Paulo"Júlio de Mesquita Filho", Franca, 2013. RÉSUMÉ: Quand on regarde l'histoire de l'Eglise dans son siècle dernier, il ya une différence d'attitude entre la période d'avant le Concile Vatican II (1962-1965) et ses descendants. L'Église avait apparemment laissé certaines positions , mais les papes et l'Eglise post- conciliaire documents du magistère ne confirment pas ce point de vue . Récemment, avec le pontificat de Benoît XVI (2005-2013) une série de questions sur le Vatican et ses intentions gagné du terrain dans un environnement ecclésial. Le résultat de ultramontanismo (1800-1960) semble avoir pris forme nouvelle et certains de ses éléments passés à travers une relecture . Benoît XVI , dès son premier discours à la Curie romaine , a proposé une vision de la continuité historique de ce conseil avec le passé de l'Église , en niant une rupture possible et réaffirmant la conviction de certains aspects du monde moderne et à ce qu'il appelle la dictature du relativisme . Pour affirmer une telle proposition , son pontificat approché secteurs conservateurs du catholicisme et a cherché à créer une interprétation officielle du Conseil qui a mis en ligne avec les deux ans d'histoire de l'Eglise mille , son but semble être l'exclusion des interprétations qui en ont fait une Conseil révolution de l' institution ecclésiastique interne et ouvert à ce qui auparavant condamné , le modernisme . Compte tenu de ces perspectives historiques, nous avons l'intention d'étudier les documents seize du Concile Vatican II, dans son empressement à les comparer avec les positions antérieures données par le Magistère de l'Église , en particulier avec l'encyclique Quanta Cura de Pie IX dans son Syllabus des Erreurs ( 1864) et Pascendi Dominici gregis (1907) du pape saint Pie X. l'intention première de ce travail est de voir les différences possibles entre le Vatican et le magistère pré- conciliaire. Deuxièmement, il ya la nécessité d'examiner la performance de la post- conciliaire des Papes Paul VI, Jean- Paul II et Benoît XVI, l'aspiration à comprendre le processus de crise d'identité dans l'histoire récente du catholicisme et de la solution proposée à cette impasse . Pour ce faire , il utilisera comme source a cité les documents du conseil et des encycliques des papes avant Vatican II qui a condamné le modernisme. Il sert à aider dans cette recherche une bibliographie complète qui fournit le soutien historique et théorique de ce travail. Une analyse méthodologique des documents concernés avec le soutien de la bibliographie sera rassemblé Guide au sujet de cette enquête , jusqu'ici inédit dans l'historiographie universitaire de l'Eglise catholique , une institution qui a traversé les siècles et aujourd'hui encore , influence la vie d'un grand contingent de la population. Mots Clefs: Eglise Catholique. Conciles Œcuméniques. Traditionalisme. Modernisme. Encycliques papales . SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................. 9 CAPÍTULO 1 MODERNISMO ................................................................................... 20 1.1 O Mundo Moderno ................................................................................................. 21 1.2 Reação Católica: Ultramontanismo ........................................................................ 26 1.3 Às Raias Do Vaticano II .......................................................................................... 32 CAPÍTULO 2 CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II ........................................ 39 2.1 Um Antropocentrismo Litúrgico? .......................................................................... 45 2.2 Ecumenismo e Verdade ........................................................................................... 52 2.3 Uma Nova Resposta ao Mundo Moderno .............................................................. 68 CAPÍTULO 3 ENTRE A TRADIÇÃO E O MODERNISMO .................................... 77 3.1 Materialismo e Neopentecostalismo ....................................................................... 77 3.2 Tradicionalismo ....................................................................................................... 85 3.3 Hermenêutica da Continuidade .............................................................................. 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 99 REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 105 Fontes ............................................................................................................................ 105 Livros e Periódicos ........................................................................................................ 107 9 INTRODUÇÃO A Igreja Católica Apostólica Romana constitui, para a história, uma organização que sobreviveu aos séculos; para o fiel católico, este fato é consequência da promessa de Cristo a Pedro (Mt 16, 18); já, para o historiador, observador das ações dos homens ao longo do tempo, é o resultado de inúmeras negociações, pacificas ou não, no fluir da história com as mais diversas correntes. Nesse cenário, a contemporaneidade apresenta uma situação ímpar na história da Igreja que, ao longo das eras, mesmo diante da necessidade de diálogo e confronto, manteve certos pontos de seu discurso de forma clara; no entanto, durante e após o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) as condenações foram amenizadas senão suprimidas, isso levou ao nascimento de diversas interpretações sobre os posicionamentos da Igreja, o que gerou uma crise interna sem precedentes, uma crise de identidade que se reflete na educação oferecida para os futuros sacerdotes e para os leigos. Frente ao apelo por liberdade, feito pelo mundo, a Igreja perdeu sua unidade de voz e se encontra incutida pelos mais diversos pensamentos, muitos deles claramente condenados no período ultramontano (1800-1960). Ivan Manoel lembra que de 1800 a 1960 a Igreja Romana assumiu uma política de centralização e tradicionalismo, onde Roma figurava como a solução para os problemas enfrentados pela Igreja (MANOEL, 2004). O Vaticano II marca de forma sistemática uma interrupção desta “romanização”. No entanto, o ideal de recristianizar o mundo permanece neste Concílio, mas perde força em sua posteridade. A suavidade do discurso e até mesmo certa ambiguidade parecem ser as causas deste enfraquecimento. Recentemente, com o pontificado de Bento XVI (2005-2013)1 uma série de questões acerca do Vaticano II e suas intenções têm ganhado espaço no ambiente eclesial. O desfecho do ultramontanismo parece ter assumido novos contornos e alguns de seus elementos passaram por uma releitura. Bento XVI, desde seu primeiro discurso à Cúria Romana, propôs uma visão de continuidade histórica do referido Concílio com o passado da Igreja, negando uma possível ruptura e reafirmando a condenação ao mundo moderno e àquilo que chamou de ditadura do relativismo. 1 Seu pontificado terminou de forma rara, por meio de uma renúncia por questões de cansaço físico e espiritual, segundo o próprio papa. Mas, em seus oito anos a frente da Igreja, por meio de suas visões teológicas e litúrgicas, Ratzinger buscou dar um significado ao Vaticano II que levou a diversos questionamentos acerca do mesmo e que se constituem como referências para estas linhas. 10 O pontificado de Ratzinger foi marcado desde seu início por uma postura frente ao Vaticano II, a de uma Hermenêutica da Continuidade com a tradição católica. Em seu primeiro discurso de final de ano para Cúria Romana o papa condenou uma interpretação do Concílio como ruptura (BENTO XVI, 22 de dezembro de 2005). Após este discurso de posicionamento, que busca uma coerência com a história e filosofia da Igreja, um processo gradual se arrastaria até os dias atuais e culminaria na questão litúrgica. Para fazer valer tal proposição, seu pontificado se aproximou de setores conservadores do catolicismo e juntos buscaram criar uma interpretação oficial para o Concílio que o colocasse em sintonia com a história bimilenar da Igreja; seu intuito parece residir na exclusão de interpretações que fizeram do Concílio uma revolução interna na instituição eclesiástica e a abriram para aquilo que condenara anteriormente, o Modernismo. No ano de 2012, uma comoção maior surgiu em meios eclesiásticos por se comemorar os 50 anos do início dos trabalhos conciliares do Vaticano II. As diversas correntes existentes no seio do catolicismo, mais uma vez, tentam fazer valer seu ponto de vista e interpretação da vontade conciliar e da verdade católica. Este ponto, o da Verdade, é justamente o cerne da discussão que se processa na instituição eclesiástica, uma análise que é muito cara ao catolicismo na sua relação com o mundo moderno. O conceito de Verdade é debatido desde os tempos mais remotos da razão humana, Sócrates chegou à morte por defendê-la, contrariando os interesses políticos da Atenas de sua época que, por sua vez, fundamentavam-se sobre os alicerces do relativismo propagado pelos sofistas (CHAUI, 2000). Pilatos, antes de lavar as mãos, perguntou a Cristo o que era a verdade (Jo 18, 38), um ato relativista para não enfrentar as repercussões políticas de uma data atitude. No evangelho de João, ao procurar se definir àqueles que o interrogava, Jesus os convidava para seguirem suas palavras e prometia “... conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Jo 8, 32). Esta citação, em latim “et veritas liberabit vos”, intitula este trabalho como ênfase da discussão que se apresentará ao longo destas linhas, pois, a Igreja Católica Apostólica Romana entende a si própria como portadora da plenitude da verdade por meio da tradição católica (CDF, 06 de agosto de 2000) e, como tal, procurou, ao longo dos séculos, defender esta referida verdade, segundo ela, revelada pelo próprio Deus. Para além dos problemas teológicos que esta afirmação venha gerar, no campo histórico vê-se claramente como a problemática que se instaura quando uma instituição declara ser portadora da verdade e outros interesses se apresentam por grupos distintos. Os conflitos de interesse são inevitáveis. 11 Com o renascimento e o advento da Era Moderna ocorreu uma mudança de foco na mentalidade ocidental, na transição do teocentrismo medieval para o antropocentrismo moderno (CHAUI, 2000), novas concepções de fé cristã surgiram e o cisma protestante fez aparecer sobre a Terra novas visões acerca do conceito de “verdade cristã” (ROGIER, V. III, 1971). A burguesia que surgira e ganhara força no transitar da Idade Média para a Moderna começava a se tornar um poderoso autor histórico, fato que se concretizaria sob os ideais iluministas da Revolução Francesa (HOBSBAWM, 2004). A Revolução Francesa, por sua vez, varreu a Europa e criou um amontoado de corpos, diga-se de passagem, com um volumoso número de clérigos e religiosos que não juraram obediência à Constituição Civil do Clero (1790), para defender os interesses de liberdade comercial, igualdade jurídica e fraternidade entre aqueles que mataram o rei, o até então “pai da nação”. Na luta contra o Antigo Regime, o primeiro estado, o clero, foi particularmente combatido; obviamente os ideais cristãos por eles defendidos também foram questionados e o relativismo e o subjetivismo ganharam peso frente à ideia de verdade universal defendida pela Igreja. A reação católica aos ideais iluministas que se propagaram ao longo do século veio por meio das encíclicas papais. Gregório XVI (1831-1846) escreveu a Mirari Vos sobre o que chamou de “os principais erros de seu tempo” em quinze de agosto de 1832. Pio IX (1846- 1878), que vivenciou o fim dos Estados Pontifícios frente à Unificação Italiana (1870), que ocorreu sob os ares iluministas e os ecos dos ideais revolucionários, posicionou-se de forma rígida contra estes pensamentos que se condensavam sob a alcunha de Modernismo e que avançariam sobre a história nos tempos contemporâneos. Aos oito de dezembro de 1864, o referido papa promulgava a encíclica Quanta Cura com um Syllabus (índice) contendo 80 daquilo que chamou de "principais erros do nosso tempo". O 80º erro era a concepção de que “o Pontífice Romano pode e deve conciliar-se e transigir com o progresso, com o Liberalismo e com a Civilização moderna.” (PIO IX, 1864). São Pio X (1903-1914), por sua vez, escreveu a Pascendi Dominici Gregis sobre as doutrinas modernistas em oito de setembro de 1907. Ora, fica claro o posicionamento papal acerca do mundo moderno e suas propostas, o chamado Modernismo. A Igreja deveria se manter como guardiã da verdade contra o mundo que propunha o liberalismo e suas reivindicações. Para combater estas propostas a Igreja, que perdia poder temporal, voltou-se para uma nova organização interna, o já anteriormente citado, Ultramontanismo. Por meio dessa política, que pode ser delimitada entre 1800 e 1960, tendo por referência os pontificados de Pio VII a Pio XII, houve uma reafirmação do 12 magistério eclesiástico, a condenação à modernidade e a centralização de todos os atos da Igreja em Roma (MANOEL, 2004). Essa situação não foi mantida na Igreja após os anos 1960, e sua unidade de ação esfacelou-se, novas ondas se jogaram sobre a “barca de Pedro” e esta parece seguir ao sabor de correntes alheias à sua vontade. O marco inicial para esta realidade estaria no Concílio Ecumênico Vaticano (1962-1965). Nele, e com ele, novas vozes se fizeram ouvir no interior do Catolicismo e a Cúria Romana já não conseguiria manter seu controle sobre a hierarquia em seus mais diversos níveis. Com o alvorecer dos anos sessenta do século XX, a Igreja, sob a liderança do papa João XXIII (1958-1963) começava a encarar o mundo de outra forma, o que seria desenvolvido sob a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II, iniciado por João XXIII e concluído por Paulo VI (1963-1978), constitui-se como uma busca da Igreja Católica de se apresentar ao mundo moderno, onde a religião era questionada diante do desenvolvimento científico e do crescente antropocentrismo. O Vaticano II, para tanto, propôs mudanças no seio do catolicismo. Essas reorientações, no pós-Concílio, sobretudo no aspecto litúrgico, geraram uma interrupção com o período ultramontano da história eclesiástica e crises que ecoam até o momento hodierno. O Vaticano II gerou, por frutos, dezesseis documentos que tratam desde a concepção de Igreja, passando pela relação com outras religiões, até uma proposta de reforma litúrgica. Os documentos produzidos pelos padres conciliares no Vaticano II são um conjunto de quatro Constituições (Dei Verbum, sobre a Revelação Divina; Lumen Gentium, sobre a Igreja; Sacrosanctum Concilium, sobre a liturgia; Gaudium Et Spes, sobre a Igreja no mundo atual), três Declarações (Gravissimum Educationis, sobre a educação cristã; Nostra Aetate, sobre a Igreja e as religiões não-cristãs; Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa) e nove Decretos (Ad Gentes, sobre a atividade missionária da Igreja; Presbyterorum Ordinis, sobre o ministério e a vida dos sacerdotes; Apostolicam Actuositatem, sobre o apostolado dos leigos; Optatam Totius, sobre a formação sacerdotal; Perfectae Caritatis, sobre a renovação da vida religiosa; Christus Dominus, sobre o múnus pastoral dos bispos; Unitatis Redintegratio, sobre o ecumenismo; Orientalium Ecclesiarum, sobre as Igrejas Orientais Católicas; Inter Mirifica sobre os meios de comunicação social). Em dois trabalhos desenvolvidos por nós desde 2003, o primeiro acerca da relação inter-religiosa cristã, o ecumenismo (DIAS, 2005), e outro, em nível de mestrado, acerca da reforma litúrgica de 1969 (DIAS, 2011), constatou-se que as propostas feitas no Vaticano II 13 foram deturpadas e serviram para a penetração de concepções alheias e até opostas àquelas defendidas pelo catolicismo desde seus primórdios. Essas inovações têm levado os papas pós-conciliares a se posicionarem contra as mesmas; Paulo VI falara que a fumaça de Satanás entrara na Igreja: “da qualche fessura sia entrato il fumo di Satana nel tempio di Dio” (PAULO VI, Papa, 1972), João Paulo II (1978- 2005) por meio de seu cardeal-prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, Ratzinger, condenara as inovações no campo teológico e litúrgico da Igreja. O mesmo Ratzinger comandou os funerais de João Paulo II e fez uma homilia, antes do Conclave que elegeria o próximo papa, conclamando os cardeais-eleitores a escolherem um sucessor para a Cátedra de Pedro que combatesse o que ele chamou de “ditadura do relativismo” que vigorava no mundo contemporâneo (RATZINGER, 18 abril 2005). É significativo, o fato de que em seu brasão arquiepiscopal e cardinalício constava o mote Cooperatores Veritatis, uma referência à terceira epístola de João (III Jo 1, 8) e seu intuito em ser um cooperador pela verdade. O resultado foi a eleição do próprio cardeal que assumiu a Sé Petrina sob o nome de Bento XVI (2005-2013). Como papa, Ratzinger procurou dar sequência ao seu combate contra certos acontecimentos no interior da Igreja que se efetivaram após o Vaticano II. Enquanto cardeal, ele chegara a entender a Gaudium et Spes, a Constituição Pastoral do referido Concílio que apresenta a Igreja nos dias atuais, como uma espécie de anti-Syllabus (RATZINGER, 1985). Ora, o cardeal vislumbrava que o Vaticano II e seus frutos poderiam ter causado uma ruptura na história da Igreja, em seu posicionamento. A Igreja teria dentro dela o que combateu por séculos, o Modernismo. Na esteira do Concílio, as novidades foram sendo incorporadas ao sabor de ventos estranhos ao catolicismo, de modo particular na liturgia, que expressa de forma externa o que a Igreja professa enquanto fé. Dom Aloísio Roque Oppermann, scj, arcebispo de Uberaba desde 1996, fala de uma falta de preparo disciplinar e desobediência na aplicação do que era discutido no Concílio e propagado pela imprensa muito antes de ser aprovado. Segundo o arcebispo, que na época compunha o grupo dos jovens padres conciliares o ardor pelas inovações guiou muito das práticas que se iniciavam (OPPERMANN, 2009, 20 ago. 09). Na América Latina despontava a Teologia da Libertação, que, calcando-se em uma determinada interpretação do Vaticano II, da Gaudim et Spes em particular, propunha um modelo de Igreja sem uma hierarquia rígida e sob os auspícios da visão marxista vislumbrava a instalação de uma nova sociedade em que as comunidades eclesiais deveriam estar à frente de um processo de mudança (BOFF, 1981). 14 Nos anos setenta, e com forte crescimento nos oitenta, viam-se diversos bispos e padres instalarem em suas dioceses e paróquias novos conceitos acerca da fé católica refletida em novas organizações da comunidade e da liturgia, como é caso brasileiro da Diocese de Goiás que, com a posse de Dom Tomás Balduíno, em 1967, viu a religiosidade tradicional ser combatida em nome daquilo que se nomeou “Igreja do Evangelho” (ANDRADE, 2006). A verdade, vista como universal, defendida pela Igreja se esfacelava em cacos e o todo já não era mais visto uniformemente. Em interpretações subjetivas, dadas diante de realidades sociais particulares a unidade da fé se perdia, fato expresso em inovações litúrgicas que se construíam. João Paulo II, por meio da atuação do Cardeal Ratzinger, como prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, condenara o movimento acima citado como uma deturpação ideológica (CDF, 06 de agosto de 1984). No ponto oposto do posicionamento materialista da Teologia da Libertação, mas também se arrogando interpretação legítima do Vaticano II, surgiu a Renovação Carismática Católica. Sua origem remonta ao final dos anos sessenta, nos Estados Unidos, quando se pretendeu dar “continuidade entre o neo-pentecostalismo católico e pentecostalismo protestante dos anos 1900, bem como entre este e o ‘revivalismo’ americano do século XIX” (GÉREST, 1977/79). Ora, inseria-se dentro do catolicismo práticas e conceitos protestantes e a até então defendida verdade, mais uma vez, diluía-se sob os tempos pós-conciliares. A identidade católica, marcada por acreditar defender a verdade, encontrava-se assinalada por pontos de vista múltiplos, conflitantes e até opostos. A tradição, que buscou guardar o patrimônio da fé católica, para a Igreja, a verdade revelada por Deus, perdia espaço para as novidades do mundo moderno: em missas, por exemplo, o som do órgão começou a desaparecer dando lugar a guitarras e baterias; os clérigos abandonavam a veste talar, a batina, substituindo-a pelo clergyman protestante e depois por roupas civis; os hábitos mudavam e, embora Paulo VI tenha condenado o controle de natalidade (HUMANAE VITAE, 1968), os católicos faziam uso de anticoncepcionais. A unidade foi perdida frente ao subjetivismo, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade estavam diluídos nas vontades individuais de clérigos que olhavam para a sede do papado como um instrumento centralizador e incapaz de compreender as realidades locais. Para justificar atitudes de desobediência apelavam para o Concílio, visto desde então como espécie de revolução interna no seio da Igreja (BEOZZO, 2006), e se atribuíam o direito de interpretá-lo legitimamente. Restaria à instituição eclesial resignar-se e aceitar uma pluralidade discordante em seu seio para tentar manter sua existência? Não seria esse o caminho. Grupos de pessoas, clérigos 15 e leigos tentaram barrar essa onda de inovações calcadas nos ideais modernistas. A verdade defendida pela Igreja, aparentemente, se perdera em um limbo de opiniões heterodoxas, mas uma minoria nunca aceitou este fato, diante de tantas correntes, este agrupamento, depois de um período de afastamento, buscou refúgio em Bento XVI. Esta minoria que não aceitava nenhuma das inovações se organizou em torno de um movimento que defendia a tradição, surgia a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Um grupo de bispos e padres liderados por Mons. Marcel-François Lefebvre (1905-1991)2 quis permanecer fiel ao rito de São Pio V e assim se manteve, não celebrando a Missa no novo ritual confeccionado após o Vaticano II. Mas, com o passar do tempo, o peso da idade recaiu sobre o referido bispo, e sem ter um sucessor no grau do episcopado para comandar a Fraternidade São Pio X (1969)3, pretendeu ordenar novos bispos. Nesse ínterim, é importante destacar que o bispo, de acordo com o direito canônico (art. 377) é eleito e nomeado pelo papa; portanto, um outro bispo não pode sagrar um padre para se tornar bispo sem que o papa o determine. Um acordo foi feito em meados de 1988 entre Lefebvre e o Vaticano, quando João Paulo II era papa. Receando uma reviravolta no acordo, Mons. Marcel Lefebvre junto a outros bispos e padres, dentre eles Dom Antônio Castro Mayer, bispo brasileiro, sagrou quatro novos bispos sem o consentimento de João Paulo II. A reação de Roma foi manter a autoridade da Sé Petrina, e com uma carta apostólica intitulada Ecclesia Dei, Igreja de Deus, sob a autoridade de João Paulo II, excomungou, em dois de julho de 1988, os bispos sagrantes e os ordenados em dezessete de junho do mesmo ano: Mons. Lefebvre, Bernard Fellay, Bernard Tissim de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta (Ecclesia Dei, 1988). Os bispos em questão acreditavam que o Vaticano II constituiu uma quebra na Tradição da Igreja, e que o Novus Ordo Missae de Paulo VI, o novo ritual para se rezar a missa, representava uma protestantização da mesma. (30 GIORNI, n. 4, 1996). Suas intenções, portanto, eram permanecerem fiéis à Igreja, ao papa e à doutrina católica, mesmo que para isso fosse necessário desobedecer às ordens de Roma. Desde o processo de excomunhão, inúmeras tentativas foram realizadas para uma reunificação dos seguidores de Lefebvre, hoje liderados por Mons. Fellay, com Roma. O atual Pontífice, Bento XVI, foi um dos líderes do processo de reaproximação entre as partes em 2 Arcebispo francês que por suas convicções e desobediência a Roma foi excomungado em 1988. 3 O nome da fraternidade é uma referência a São Pio X, papa que lutou fervorosamente contra o Modernismo, que segundo os tradicionalistas teria entrado na Igreja com o Concílio Vaticano II. 16 questão quando era o prefeito da Congregação para Doutrina da Fé. O então cardeal Ratzinger junto a outros membros da Cúria romana demonstraram suas restrições ao rito de Paulo VI e sua afeição pelo rito de São Pio V (RATZINGER, 1996)4. O cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, celebrou inúmeras vezes e em diversas comunidades ligadas aos ideais de Lefebvre a Missa no Ritual de São Pio V, quando o mesmo já estava quase esquecido pelo restante do mundo católico que, por sua vez, transformara o rito de Paulo VI em regra. Ratzinger e outros bispos da Cúria conseguiram fazer com que muitos lefebvristas retornassem à comunhão com Roma, dando-lhes o direito de celebrar a Missa no Rito Tridentino e fazendo com que aceitassem alguns documentos do Vaticano II, como o que aconteceu no Brasil com a Administração Apostólica São João Maria Vianney, reintegrados à Sé vaticana por meio de um acordo entre o papa João Paulo II e Dom Licínio Rangel, sucessor de Dom Antônio Castro Mayer em Campos no Rio de Janeiro. O fato que se coloca então é o processo que teve início no final do pontificado de João Paulo II, quando este escreveu sua carta encíclica Ecclesia de Eucaristia (2003), por meio da qual ressaltou o sentido sacrifical da Missa e junto à encíclica encomendou à Congregação do Culto Divino um documento que combatesse os abusos da Missa de Paulo VI e impusesse restrições a este rito, o Redemptionis Sacramentum (2004). Já com o início do pontificado de Bento XVI em abril de 2005 um novo horizonte se abriu para os chamados tradicionalistas, de modo particular para a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Assim que eleito, um novo ânimo assolou os seguidores de Lefebvre, e poucos meses após a Missa de abertura de seu pontificado, o papa reunira-se em Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas, longe dos muros do Vaticano, com Mons. Bernard Fellay, sucessor direto de Lefebvre, e uma nova fase de acordos se abriu, gerando grandes expectativas das alas mais conservadoras da Igreja Católica5. Em 21 de janeiro de 2009, Bento XVI retirou a excomunhão que recaía sobre os quatro bispos sagrados por monsenhor Lefebvre, abrindo caminho para um diálogo crítico acerca do Concílio Vaticano II e para o restabelecimento da plena comunhão com a Sé de Pedro para os que se agremiaram a Fraternidade São Pio X. E aos 2 de julho de 2009, por meio do Motu Proprio Ecclesiae Unitatem, Bento XVI fez a união da Comissão Ecclesia Dei, que desde a excomunhão de Lefebvre cuida daqueles grupos que desejam manter-se sem as inovações pós-conciliares, à Congregação para 4 Em seus livros, Introdução ao espírito da liturgia (1999) e O sal da Terra, (1996) o cardeal Ratzinger expressa sua admiração pelo Rito de São Pio V, pleiteando para ele um lugar de destaque na Igreja Romana. 5 Em 29 de agosto de 2005, o porta-voz da Sala de Imprensa da Santa Sé, Joaquín Navarro-Valls anunciou que no mesmo dia o papa Bento XVI se encontrou com Bernard Fellay no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo. 17 Doutrina da Fé; ou seja, a questão não é meramente pelo gosto litúrgico, ou pelas novidades conciliares, mas ambas, a liturgia e a reforma pós-Vaticano II tangem a questão da fé, a questão da verdade na visão católica. Destacou-se anteriormente que o pontificado de Ratzinger foi marcado em seu início por uma postura frente ao Vaticano II, a de uma Hermenêutica da Continuidade. Nesse âmbito é salutar realçar o tom conciliador do Pontífice, fato não tão claro no Ratzinger- cardeal, que não negava a possível existência de uma ruptura como o Ratzinger-papa. João Paulo II, em seu último livro, Memória e Identidade, declarara, que de forma indireta, nos documentos do Vaticano II encontrava-se uma síntese entre cristianismo e iluminismo, a filosofia do Modernismo (João Paulo II, 2005); o cardeal Ratzinger foi mais explícito e falou em um anti-syllabus; no entanto, como papa, assumiu uma postura de negação da ruptura histórica como um caminho para a restauração. Bento XVI levou o problema para o campo da hermenêutica, da interpretação, que em seu pensamento deve ser de continuidade com a tradição. Não nega o Concílio, mas quer dar a ele uma interpretação oficial que se distancie do subjetivismo atual, ou daquilo que ele chamou de ditadura do relativismo; a verdade é universal e perene segundo o Pontífice. As diversas celebrações papais, na forma ritual pós-conciliar, têm evocado aspectos há muito não vistos e identificados com a forma tradicional da missa, que o papa, por sua vez, estendeu a todo orbi católico com o Motu Proprio Summorum Pontificum (2007)6. O retorno a certos símbolos se deu a partir de uma celebração Versus Deum7 em janeiro de 2008, na qual o papa voltou-se para um crucifixo em um altar fixado à parede, ou ainda com o uso de paramentos antigos, de seus predecessores, em geral relacionados com os momentos mais conservadores da instituição romana, como a estola de São Pio V (1566-1572), a cruz pastoral de Pio IX (1846-1878) ou o trono usado por São Pio X (1903-1914). Percebe-se, portanto, que ao longo dos anos sessenta e nas duas décadas seguintes a Igreja passou por momentos de inovações e aquilo que combatera parece ter penetrado entre suas colunas. Os ideais que marcaram o início da Idade Moderna e se desenvolveram na Revolução Francesa penetraram na mentalidade de diversos clérigos e nas inovações pós- conciliares nos campos litúrgico e teológico e desfocaram a ideia de manutenção da verdade. 6 Por meio deste Motu Proprio, Bento XVI determinou que qualquer padre pode celebrar a Missa na forma pré- conciliar sem autorização de seu bispo, bastando, para isso, um número fixo de fiéis que o desejem. 7 Versus Deum, voltado para Deus. 18 O pontificado de João Paulo II e o início da atuação de Bento XVI foram marcados por ações que conduzem à concepção de retorno ao centro da tradição católica, à percepção de verdade revelada contra elementos do mundo moderno. Uma interrupção da tradição eclesiástica existiu, tanto no imaginário quanto na realidade dele decorrente. Bento XVI tentara, então, dar um nó em uma linha que é marcada por rugosidades. Na crise presente, o passado ressurge para uma perspectiva de futuro para esta instituição que sobreviveu aos séculos. Fato é que, cinquenta anos após a convocação do Concílio Vaticano II (1962-1965) e cerca de quatro décadas de utilização do novo rito da missa, é raro qualquer menção específica na historiografia recente da Igreja sobre o andamento de tal tema. A maioria dos livros de História da Igreja traça um levantamento de fatos até o Vaticano II (1962-1965), o apresentam como uma espécie de revolução interna da estrutura eclesiástica sem, contudo, aprofundar o tema ou mostrar as crises na Igreja decorrentes deste. Nota-se, portanto, a necessidade, frente à relevância do tema, de um estudo analítico para esclarecer as nuanças históricas desta realidade eclesial, seu posicionamento em relação ao mundo moderno, suas possíveis disparidades e as consequências disso para cristandade católica e para o mundo que acompanha com atenção o que propõe e sugere uma instituição que se tornou o legado de uma grande parcela da história da humanidade. Sendo assim, sobressai a importância desse direcionamento da Igreja Romana acerca de sua influência sobre um grande número de seres humanos e tantos outros a quem influi indiretamente com a transmissão de seus valores e prescrições. Portanto, justifica-se o interesse em reconstruir esse capítulo da história religiosa da humanidade, que interfere nas esferas cultural, social e política de todo o globo. Para tanto, inicia-se este trabalho com a apresentação de um estudo histórico sobre o mundo moderno, sua constituição, valores e a reação católica. Cabe então destaque ao Concílio de Trento (1545-1563) como combate ao protestantismo que desafiava a “verdade católica”, aos posicionamentos papais frente aos ares liberais que se espalhavam pela Europa e o mundo ao longo do que se construía como Ultramontanismo, e aos efeitos dos ideais iluministas e antropocêntricos que levaram ao desenvolvimento de um humanismo existencialista. Em um segundo momento, almeja-se lançar luzes sobre o processo histórico que levou a convocação do Concílio Ecumênico do Vaticano II, com análise de seus referidos documentos dando ênfase ao diálogo que se traçava com o mundo em pleno contexto de 19 Guerra Fria, bem como, aos conflitos entre as diversas correntes internas da instituição católica. Neste âmbito, há de se enfatizar as possíveis disparidades com o período precedente. Após estas reflexões parte-se para o estudo das recentes reações romanas, diante da instauração de uma crise identitária. Vislumbrar-se-á o posicionamento da Cúria Romana diante do assim chamado Modernismo e da Tradição. As ações papais, no pós-Vaticano II ganham destaque neste momento como reação ao cenário criado após o concílio quando uma multiplicidade de interpretações, muitas vezes contraditórias, precisam ser colocadas em uma mesma barca e apresentadas como facetas de uma única verdade. 20 CAPÍTULO 1 MODERNISMO Como já foi anteriormente colocado, inicia-se este trabalho com a apresentação de um breve estudo histórico acerca da relação da Igreja com o mundo moderno e seus elementos que tangem a realidade eclesiástica católica, que se chocam com a instituição e a fazem reagir. Sendo assim, é mister elencar que não é pretensão deste trabalho aprofundar a historicidade da Era Moderna, mas alguns elementos aqui serão destacados para enfatizar o posicionamento da Igreja de Roma. A designação temporal Idade Moderna está ligada diretamente à concepção ocidental de mundo. Após a queda do Império Romano do Ocidente (476) o cristianismo assumiu, enquanto instituição, papeis políticos de grande relevância, que de certa forma, apesar de inúmeras contradições e questionamentos tratados como heresias, permitiu à instituição católica uma configuração monárquica atuante e hegemônica na Europa. Neste âmbito, o renascimento comercial e urbano decorrente da reabertura do Mediterrâneo ao comércio cristão no período cruzadístico inaugurou um alvorecer de uma nova sociedade de caráter burguês e consequentemente de uma nova mentalidade enquanto se constituíam os Estados Modernos. As decorrências de tais mudanças levariam ao Renascimento Cultural que teve seu auge no século XVI. Todos estes elementos econômicos, sociais e políticos teriam o seu impacto na cultura em seu aspecto religioso, de modo particular, com a Reforma Protestante. Nesse cenário, o Racionalismo de Descartes (1596-1650) e o Empirismo de Hume (1711-1776), bem como, a crise da Metafísica em Kant (1724-1804) constituem elementos dessa modernidade que nascera rompendo com o pensamento solidificado pela Escolástica, a qual pertencera santo Tomás. O Teocentrismo dava, aos poucos, lugar ao pensamento antropocêntrico que viria ao auge por meio de uma secularização na Revolução Francesa. No âmbito político, as explicações já não eram dadas apenas pelo direito divino dos reis do bispo Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), o Absolutismo fora defendido por Hobbes (1588-1679), mas questionado posteriormente por Locke (1632-1704), ambos, no entanto, explicaram o poder partindo do homem e não de Deus, o desenvolvimento das ideias de Locke se daria na França, de modo particular, com o alvorecer do Iluminismo e suas características secularistas. Todos estes aspectos do desenvolvimento da modernidade fazem dela, de certa forma, um processo transitório até a consolidação de novos valores que, por sua vez, concretizam-se 21 com a Independência dos EUA (1776), a Revolução Francesa (1789) e a II Revolução Industrial no século XIX. Os ideais iluministas aplicados na nação norte-americana geraria a democracia moderna e os resultados da Revolução Francesa sustentariam uma nova realidade política nascente que colocaria a burguesia no patamar de autora histórica hegemônica junto aos resultados da Revolução Industrial. Diante disso, o antagonismo patrão-empregado também se faria sentir na contemporaneidade que expressa a solidificação destes aspectos da modernidade que, de certa forma, fazem nascer a análise marxista sobre esta situação. No entanto, diante destes pontos, é necessário se questionar acerca do início da problemática moderna para a Igreja, e ela encontra raiz no primeiro grande questionamento de sua autoridade na Era Moderna Ocidental, na Reforma Protestante. As linhas que se seguem buscam traçar a ação da Igreja em relação ao mundo moderno em três grandes momentos, as respostas eclesiástica ao protestantismo, ao conjunto de pensamento moderno através do Ultramontanismo e, por fim, na relação com contemporaneidade às vésperas do Vaticano II e a consolidação dos valores seculares até então desenvolvidos e que geram os conflitos nos movimentos trabalhistas. 1.1 O Mundo Moderno Para a Igreja Católica, o nascimento da Era Moderna, enquanto ruptura com seu aspecto hegemônico no período anterior, está associado ao surgimento de novas religiões cristãs no ocidente que escapam da autoridade papal e do aglomerado de pensamentos defendidos por Roma como verdade. No Oriente, já havia séculos ocorrera um cisma que, em sua essência, negara o aspecto monárquico do papado. Em 1054, o Patriarcado de Constantinopla se separa da autoridade romana dando início ao Catolicismo Ortodoxo. Mas, os elementos principais da fé cristã haviam sido mantidos, fatos expressos em suas liturgias e teologia. No Ocidente, no entanto, as novas religiões cristãs trouxeram consigo inovações litúrgicas e teológicas que foram combatidas pela Igreja. Não é pretensão deste trabalho analisar ou descrever minuciosamente os cismas eclesiais. Mas, faz-se necessário, ao menos, evocar as razões e os resultados de tais rupturas no cristianismo tendo em vista serem estas as raízes do posicionamento eclesiástico frente ao mundo moderno. Nesse sentido, é bom recordar que, ao contrário dos ortodoxos, que embora 22 autocéfalos, mantêm em si uma certa unidade, os protestantes não fazem o mesmo. Ao longo do tempo diversas outras comunidades cristãs surgiram de novos cismas dentro dos primeiros “cristãos reformados”, e com elas grandes discrepâncias teológicas e de culto. Portanto, é salutar dar ênfase àquelas comunidades mais tradicionais, dentre elas destacam-se os luteranos e anglicanos. O Luteranismo, surgido das aspirações e dos protestos de Lutero contra os abusos da Sé romana em relação à venda de “indulgências” para a construção da Basílica de São Pedro, que culminou na fixação das suas “95 teses” na porta da Catedral de Heildelberg em 1518, encontrava-se inserido num universo cultural de mudança de pensamento histórico com o processo do fim da Idade Média e início da chamada “Era Moderna”, com o retorno ao “Clássico” pelo “Renascimento”. As teses luteranas foram além da condenação dos excessos cometidos pelo poder papal com as indulgências; após muito refletir, o religioso agostiniano Lutero, cogitou a negação do “livre-arbítrio” e a afirmação da “predestinação” para a salvação das almas. O conceito de justiça pela fé e de função da fé-sozinha devia completar-se pela negação do livre arbítrio do homem, porquanto o homem que pudesse decidir-se por si mesmo seria seu próprio salvador, e não precisaria de Cristo. A essência do pecado está, justamente, em tentar o homem contrabandear algo de humano no processo da salvação. Comete uma iniquidade contra Deus quem quer e procura a justiça de Deus. A natureza humana só pode prevaricar. Pode-se provar que obras humanas, por boas que pareçam, sempre são pecados mortais. As obras dos justos são pecados, muito mais as obras dos injustos. [...] a sorte eterna de cada indivíduo só pode depender de Deus. Por conseguinte, Deus destina de antemão o homem não só para a bem-aventurança, como também para a eterna danação. Deus não quer dar a graça a todos. (ROGIER, V. III, 1971, p. 48). Assim, as teses de Lutero tocaram a teologia cristã a ponto de ofender a “filosofia da história” da Igreja Católica, que além de ser teleológica, é também teológica. Para o católico é a morte de cruz e a ressurreição de Cristo que lhe garantem a salvação mediante suas ações – boas obras – e a absolvição dos pecados dada por um padre através do sacramento da Penitência, sacramento que o luteranismo suprimiu em seu meio junto com outros, como o Crisma, e a Ordem. Este procedimento, segundo a apologética8 Católica, levou à quebra na sucessão apostólica nas comunidades protestantes, pois nas ordenações dos padres pelos bispos, e dos bispos por outros bispos, a Igreja acredita transmitir tal sucessão pela ação do “Espírito Santo” por meio da imposição das mãos do celebrante no ordenado. Tal problemática teológica renderia páginas sem fim de hermenêutica, exegese e apologética; no entanto, para este estudo, basta mencionar que a incompatibilidade de 8 Disciplina teológica que visa defender a fé contra teses contrárias. 23 pensamento foi elevada a tal ponto que a ruptura foi inevitável. Este cisma ficou conhecido como “Reforma”, e a reação da Igreja Católica em relação às ações de Lutero e seus seguidores como “Contrarreforma”, encabeçada, por sua vez, pelo Concílio de Trento (1545- 1563) que será abordado mais a frente. Já o Anglicanismo, teve origem nas ações do rei da Inglaterra, Henrique VIII (1509- 1547), acerca de uma questão de ordem matrimonial, que estava ligada ao problema da sucessão do trono Inglês: [...] Logo após a ascensão ao trono, Henrique tinha desposado Catarina de Aragão, tia de Carlos V. Catarina casara-se em primeiras núpcias com Arthur, irmão mais velho de Henrique. Morrera Arthur com apenas 15 anos de idade, sem que o matrimônio de Henrique fosse consumado. Em 1503, pediu-se ao Papa e alcançou- se dele dispensa do impedimento de afinidade. Dos cinco filhos havidos no matrimônio de Henrique, só logrou a princesa Maria. A sucessão do trono devia tornar-se problema mais tarde, pois a Inglaterra nunca tivera, até então, uma rainha à testa do governo. Acresce, ainda, a ardente paixão que o rei nutria pela dama da corte Ana Bolena. (ROGIER, V. III, 1971, p. 82). O rei pediu a nulidade de seu casamento com Catarina alegando incesto, por ter se casado com a esposa de seu irmão, com base no versículo 16 do capítulo 18 do Levítico, que proibia tal união. Em 1531, o papa Clemente proibiu o Rei de se separar e casar novamente até que se concluíssem investigações eclesiásticas na Inglaterra acerca do assunto. No entanto, o rei, sob as influências de Thomas Cromwell, membro do Parlamento, decidiu seguir o exemplo dos príncipes germânicos. [...] Numa reunião geral do Clero, convocada por razões de estado, o Rei exigiu uma declaração de que ele era o chefe supremo da igreja na Inglaterra. O bispo Fisher de Rochester propôs o acréscimo de uma restrição: quanto o permita a Lei de Cristo. Nestes termos, por sugestão do velho arcebispo Warham de Cantuária, a assembléia consentiu em declarar que “o Rei é o único chefe protetor da Igreja, seu supremo senhor, e também seu chefe supremo, quanto a Lei de Cristo o permitir”. (ROGIER, V. III, 1971, p. 84). Dessa forma, nasceu a Igreja Anglicana, conservando a estrutura Católica e abrindo caminho para as inovações teológicas de origem protestante. De modo particular, é com estes “reformadores” e outros protestantes históricos que o Concílio Vaticano II (1962-1965) procurou fundar um diálogo ecumênico através do decreto Unitatis Redintegratio, como se verá no próximo capítulo. No entanto, naquele momento de ruptura a resposta da Igreja não foi de diálogo, mas de condenação explícita por meio da convocação do já citado Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563). Utiliza-se aqui, o termo “ecumênico” como qualificativo da palavra “Concílio”, para gerar, desta forma, o significado de reunião geral de todos os bispos espalhados pelo mundo, em distinção aos Concílios plenários, nacionais ou provinciais. Este é o caso do Concílio 24 Ecumênico de Trento, pelo qual foram agregados representantes do episcopado Católico de para se posicionar frente às inovações doutrinais surgidas do Protestantismo. Concilio ecuménico quiere decir concilio universal. Es la asamblea de los obispos de todo el orbe católico convocada por el Romano Pontífice para deliberar y resolver los asuntos de la Iglesia universal bajo la presidencia y con la aprobación del Padre Santo. (SÁNCHEZ, 1962, p. 11). O Concílio Ecumênico não é somente um congresso de técnicos, mas solene manifestação da Igreja Universal.[...] O Concílio Ecumênico é, pois, a assembleia dos bispos da Igreja Católica e de outros prelados que ao mesmo tempo têm direito de ser convocados para estudarem e resolverem, juntamente com o Papa e sob sua autoridade, as mais importantes questões doutrinárias e disciplinares que interessam à vida da Igreja. (CHRISTOFORO, 1962, p.14, 15). Trento, o décimo nono concílio geral da Igreja, se caracterizou por ser a voz de Roma levantada contra as inovações doutrinárias dos protestantes. De 1545 a 1563 os bispos se reuniram em 25 sessões públicas sob a liderança dos legados pontifícios e promulgaram doutrinas que definiram as crenças da Igreja romana. Neste Concílio, de cunho dogmático, foram condenadas com anátema9 todas as teses reformistas dos protestantes, e foram esquematizados como dogmas os princípios da Fé Católica e dos Sacramentos que a compõe. Pio IV encerrou o Concílio, seu sucessor, o papa Pio V, publicou o que foi engendrado pelos padres conciliares: o Catecismo de Trento, o Breviário e o novo Missal Tridentino, usado até 1969, quando foi publicado o Ordo Missae de Paulo VI, fruto dos trabalhos pós-Vaticano II. El concilio de Trento definió con toda precisión los puntos fundamentales del dogma católico frente al confucionismo doctrinal anterior, que los protestantes con su propaganda hubieran tal vez asfixiado. Pero también dio una amplia base jurídica a la reforma anhelada por todos, pero falta de un cerebro, de una directriz, un plan orgánico. (SÁNCHEZ, 1962, p. 382). A questão litúrgica, neste contexto, que foi o cerne de nosso trabalho no mestrado (Dias, 2010), ganha destaque tanto em Trento quanto no Vaticano II, pois se expressa no culto o que se pratica na fé e, portanto, a relevância mais uma vez neste estudo. A liturgia foi um dos núcleos mais importantes de discussão ao longo do Concílio Tridentino, pois para o protestantismo a missa é apenas um memorial da paixão de Cristo e não um sacrifício como entendem os católicos e ortodoxos, este fato é bem elucidado nos XXXIX Artigos de Religião, obra protestante do século XVI. A ceia do Senhor não só é um sinal de mútuo amor que os cristãos devem ter uns para com os outros; mas antes é um sacramento da nossa redenção pela morte de Cristo, de sorte que para os que devida e dignamente, e com fé o recebem, o pão que partimos é uma participação do Corpo de Cristo; e de igual modo o cálice de bênção é uma participação do Sangue de Cristo. 9 Maior sentença punitiva dentro do Catolicismo, retirando aquele considerado herege da comunhão eclesiástica. 25 A transubstanciação (ou mudança da substância do pão e do vinho) na ceia do Senhor, não se pode provar pela Escritura Sagrada; mas antes repugna às palavras terminantes da Escritura, subverte a natureza do sacramento, e tem dado ocasião a muitas superstições. O Corpo de Cristo é dado, tomado, e comido na ceia, somente dum modo celeste e espiritual. E o meio pelo qual o Corpo de Cristo é recebido e comido na ceia é a fé. O sacramento da ceia do Senhor não foi pela ordenança de Cristo reservado, nem levado em procissão, nem elevado, nem adorado. (HOOKER, art. XXVIII) Diante dessa perspectiva, o Concílio de Trento gerou decretos reafirmando os dogmas Católicos fazendo uso da excomunhão para aqueles que lhe fossem contrários. A inovação protestante do culto cristão apenas como ceia e não como sacrifício de ação de graças propiciatório, fez os padres conciliares temerem pelo patrimônio da fé católica preservado na missa, fato que se pode notar nos documentos elencados, que dão ênfase a uma afirmação racionalizada, justificada pela Bíblia e pela Tradição e dogmatizada por este Concílio e nas condenações sob sentença de excomunhão: 940. E como neste divino sacrifício, que se realiza na Missa, se encerra e é sacrificado incruentamente aquele mesmo Cristo que uma só vez cruentamente no altar da cruz se ofereceu a si mesmo (Heb 9, 27), ensina o santo Concilio que este sacrifício é verdadeiramente propiciatório [cân. 3], e que, se com coração sincero e fé verdadeira, com temor e reverência, contritos e penitentes nos achegarmos a Deus, conseguiremos misericórdia e acharemos graça no auxilio oportuno (Heb 14, 16). Porquanto, aplacado o Senhor com a oblação dele e concedendo o dom da graça e da penitência, perdoa os maiores delitos e pecados. Pois uma e mesma é a vítima: e aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que, outrora, se ofereceu na Cruz, divergindo, apenas, o modo de oferecer. Os frutos da oblação cruenta se recebem abundantemente por meio desta oblação incruenta, nem tão pouco esta derroga aquela [cân. 4]. Por isso, com razão se oferece, consoante a Tradição apostólica, este sacrifício incruento, não só pelos pecados, pelas penas, pelas satisfações e por outras necessidades dos fiéis vivos, mas também pelos que morreram em Cristo, e que não estão plenamente purificados [cân. 3]. (CET, n. 940) Ao reafirmar os dogmas católicos a respeito da missa, o Concílio de Trento faz uso do anátema para aquele que dizer coisa em contrário em um claro apontamento das doutrinas protestantes: 948. Cân. 1. Se alguém disser que na Missa não se oferece a Deus verdadeiro e próprio sacrifício, ou que oferecer-se Cristo não é mais que dar-se-nos em alimento — seja excomungado [cfr. n. 938]. 949. Cân. 2. Se alguém disser que Cristo não instituiu os Apóstolos sacerdotes com estas palavras: Fazei isto em memória de mim (Lc 22, 19; l Cor 11, 24), ou que não ordenou que eles e os demais sacerdotes oferecessem o seu Corpo e Sangue — seja excomungado [cfr. n. 938]. 950. Cân. 3. Se alguém disser que o sacrifício da Missa é somente de louvor e ação de graças, ou mera comemoração do sacrifício consumado na cruz, mas que não é propiciatório, ou que só aproveita ao que comunga, e que não se deve oferecer pelos vivos e defuntos, pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades — seja excomungado [cfr. n. 940]. 951. Cân. 4. Se alguém disser que o santo sacrifício da Missa é uma blasfêmia contra o santíssimo sacrifício que Cristo realizou na Cruz, ou que aquele derroga este — seja excomungado [cfr. n. 040]. 26 952. Cân. 5. Se alguém disser que é impostura celebrar Missas em honra dos Santos com o fim de conseguir a sua intercessão junto a Deus, como é intenção da Igreja — seja excomungado [cfr. n. 941]. 953. Cân. 6. Se alguém disser que o Cânon da Missa contém erros e por isso se deve ab-rogar - seja excomungado [cfr. n. 942]. 954. Cân. 7. Se alguém disser que as cerimonias, as vestimentas e os sinais externos de que a Igreja Católica usa na celebração da Missa são mais incentivos de impiedade do que sinais de piedade — seja excomungado [cfr. n. 943]. 955. Cân. 8. Se alguém disser que as Missas em que só o sacerdote comunga são ilícitas e por isso se devem ab-rogar — seja excomungado [cfr. n. 944]. 956. Cân. 9. Se alguém disser que o rito da Igreja Romana que prescreve que parte do Cânon e as palavras da consagração se profiram em voz submissa, se deve condenar, ou que a Missa se deve celebrar somente em língua vulgar, ou que não se deve lançar água no cálice ao oferecê-lo, por ser contra a instituição de Cristo — seja excomungado [cfr. n. 943, 945 s]. (CET, n. 948-956). Transformados em sentenças dogmáticas a fé católica sobre a missa, coube então implantar as decisões conciliares, que conforme destaca Fischer-Wollpert (2006) ficou a cargo de São Pio V, papa reinante entre 1566 e 1572, período no qual publicou em 1566 o Catecismo Romano, em 1568 o novo Breviário e, em 1570, o Missal. O Catecismo enaltece o sentido de Sacrifício da Missa, e o Missal é a reafirmação da estrutura do Rito Romano de Gregório Magno (509-604), doravante outorgado ao mundo católico. Todos estes aspectos do Concílio de Trento norteariam a Igreja até os anos 1960 quando na efervescência do Vaticano II uma nova visão de mundo e Igreja seria conclamada dentro da própria instituição. O caminho até lá é o que se pretende elucidar a partir de agora. O mundo moderno nasce para a Igreja como um sinônimo de desafio às suas autoridade e verdade que são reforçadas com sentenças dogmáticas e unidade litúrgica. Ao longo do tempo os questionamentos à instituição católica só cresceria e sua resposta seria uma tentativa de controle absoluto por parte de Roma enquanto sede do catolicismo. 1.2 Reação Católica: Ultramontanismo A Era Moderna no Ocidente foi marcada desde então pela constituição política de um absolutismo monárquico, bem como, posteriormente, pelo questionamento deste com os ideais iluministas que não seriam aceitos pela Igreja Católica que, por sua vez, aproximara-se do modelo político vigente. Não é foco desse trabalho tratar o denominado Antigo Regime ou as Revoluções contra o mesmo, mas os elementos que se fizeram questionadores dele somam- se àquele primeiro enfrentamento contra a autoridade eclesiástica que a Reforma Protestante 27 fizera e dá início ao que seria chamado pela Igreja de Modernismo e que geraria sua resposta, o Ultramontanismo na denominada Idade Contemporânea. A acepção de Modernismo encontra-se na Carta Encíclica do papa são Pio X (1903- 1914), a Pascendi Dominici Gregis, datada de 8 de setembro de 1907, que define teoricamente algo há muito combatido pela a Igreja: [...] Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias. Certo é que se alguém se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da fé têm sido até hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcançaram os modernistas. Tão longe se adiantaram eles, como já o notamos, que destruíram não só o catolicismo, mas qualquer outra religião. Com isto se explicam os aplausos dos racionalistas; por isto aqueles dentre os racionalistas que falam mais clara e abertamente, se vangloriam de não ter aliados mais efetivos que os modernistas. E de fato, voltemos um pouco, Veneráveis Irmãos, à prejudicialíssima doutrina do agnosticismo. Com esta, por parte da inteligência está fechado ao homem todo o caminho para chegar a Deus, ao passo que se torna mais aberto por parte de um certo sentimento e da ação. Quem não percebe, porém, que isto se afirma em vão? (PIO X, 1907). O Modernismo, no início do século XX é definido como junção de todos os erros, de todas as heresias. Mas que erros são estes já condenados pela Igreja? Eles não se restringem ao Iluminismo, mas este se soma a outros elementos que se fazem presentes na modernidade. Há uma lista de erros que precede esta definição e que se encontra no Syllabus da Encíclica Quanta Cura (1864) de Pio IX (1846-1878), ali, com veremos a diante, são condenados o panteísmo, o racionalismo, o socialismo, o comunismo, sociedades secretas e outros elementos que faziam frente ao pensamento católico. E mesmo antes, Gregório XVI (1831-1846) escrevera a Mirari Vos sobre o que chamou de “os principais erros de seu tempo” em 1832, sua descrição do mundo que o cercava tendia às raias de uma visão quase apocalíptica: Em verdade, triste e com o coração dolorido, dirigimo-Nos a vós, a quem vemos cheios de angústia, ao considerar a crueldade dos tempos que fluem para com a religião que tanto estremeceis. Na verdade, poderíamos dizer que esta é a hora do poder das trevas para joeirar como o trigo, os filhos de escol (Lc 22,53); "a terra ficou infeccionada pelos seus habitantes, porque transgrediram as leis, mudaram o direito, romperam a aliança eterna" (Is 24,5). Referimo-Nos, Veneráveis Irmãos, aos fatos que vedes com vossos próprios olhos e todos choramos com as mesmas lágrimas. A maldade rejubila alegre, a ciência se levanta atrevida, a dissolução é infrene. Menospreza-se a santidade das coisas sagradas, e o culto divino, que tanta necessidade encerra, não é somente desprezado, mas também vilipendiado e escarnecido. Por esses meios é que se corrompe a santa doutrina e se disseminam, com audácia, erros de todo género. Nem as leis divinas, nem os direitos, nem as instituições, nem os mais santos ensinamentos estão ao abrigo dos mestres da impiedade. (GREGÓRIO XVI, 1832, n. 2). 28 Na relação com o mundo moderno e com os valores nele presentes, a instituição parece estar em constante ameaça. Neste aspecto, é significativo seu posicionamento enquanto guia desprezado e atacado que, ainda assim, busca agir no mundo, retomar seu papel há tempos perdido. Frente a isso, vemos o Ultramontanismo enquanto conceito e política a ser seguida pela Igreja como, também, uma tentativa de fazer valer sua voz em mundo de mudanças aceleradas. De acordo com Ivan Manoel (2004), pode-se definir o Ultramontanismo como uma política de centralização e tradicionalismo, adotada entre 1800 e 1960, por meio da qual, a Igreja Romana faz figurar sua sede, Roma, como a solução para os problemas enfrentados pela Igreja. Segundo Manoel tal postura caracterizava-se por: Em uma definição bastante esquemática, entende-se por catolicismo romanizado ou ultramontano aquele catolicismo praticado de 1800 a 1960, nos pontificados de Pio VII a Pio XII, informado por um conjunto de atitudes teóricas e práticas, cujo eixo de sustentação se apoiava em: 1) reforço do tradicional magistério, incluindo-se a retomada do tomismo como única filosofia válida para o cristão e aceitável pela Igreja; 2) condenação à modernidade em seu conjunto (sociedade, economia, política, cultura); 3) centralização de todos os atos da Igreja em Roma, decretando- se para isso, a infalibilidade do Papa, no Concílio Vaticano I, em 1870, de modo a reforçar a hierarquia, onde o episcopado foi bastante valorizado, submetendo todo o laicato ao seu controle; 4) adoção do medievo como paradigma de organização social, política e econômica. O objeto dessa política era, de imediato, preservar a instituição em face das ameaças do mundo moderno e, a médio e longo prazo, recristianizar a sociedade, de modo a recolocar a Igreja como centro do equilíbrio mundial (MANOEL, 2004, p.45). Ao longo deste período, vê-se a atuação de vários papas, como destacaremos a seguir, na tentativa de efetivar esta política acima elencada que se construía em seus diversos objetivos tento a Idade Média como referência, época, como já elucidada anteriormente, marcada por uma relativa hegemonia do pensamento católico no Ocidente. Gregório XVI, papa reinante de 1831 a 1846, presenciara o ardor revolucionário nos Estados Pontifícios, em diversas cidades que se rebelaram, buscando manter a autoridade romana sobre as mesmas. Estes acontecimentos explicam, em partes, o que se destacou acima na citação de sua Mirari vos na qual a Igreja se apresenta ameaçada. O Pontífice declarara nesta encíclica a imutabilidade da doutrina e disciplina da Igreja enquanto condenara o indiferentismo religioso, a liberdade de consciência e de imprensa, bem como, a rebeldia contra o que chama de legítima autoridade, numa clara reação aos ideais de um poder que emane do povo: Mas, tendo sido divulgadas, em escritos que correm por todas as partes, certas doutrinas que lançam por terra a fidelidade e submissão que se devem aos príncipes, com o que se alenta o fogo da rebelião, deve-se vigiar atentamente para que os povos, enganados, não se afastem do caminho do bem. Saibam todos que, como 29 disse o apóstolo, toda autoridade vem de Deus e todas as que existem foram ordenadas por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordem de Deus e se condena a si mesmo (Rom 13, 2). Portanto, os que com torpes maquinações de rebelião se subtraem à fidelidade que devem aos príncipes, querendo tirar-lhes a autoridade que possuem, ouçam como contra eles clamam todos os direitos divinos e humanos. (GREGÓRIO XVI, 1832, n. 13). Dessa forma apregoa mais uma vez que não deve haver separação entre Igreja e Estado: “Mais grato não é também à religião e ao principado civil o que se pode esperar do desejo dos que procuram separar a Igreja e o Estado, e romper a mútua concórdia do sacerdócio e do império” (GREGÓRIO XVI, 1832, n. 15). A tentativa é de manter a ordem vigente não cedendo aos interesses daqueles visam rompê-la; para tanto, subordina a autoridade política à religiosa, dando ênfase à visão calcada na fé cristã: Finalmente, secundem os príncipes estes nossos santos desejos de feliz êxito das coisas sagradas e profanas com seu poder e autoridade, pois não a receberam somente para o governo temporal, mas também para a defesa e guarda da Igreja. Saibam que, quanto se faz em favor da Igreja, destina-se, ao mesmo tempo, ao bem- estar e à paz do império; convençam-se sempre mais que devem maior estima à causa da fé que à do reino, e que serão maiores se, segundo S. Leão, à sua coroa de reis se ajuntar a da fé. Já que tem sido constituídos como pais e tutores dos povos, proporcionar-lhes-ão verdadeira felicidade e tranquilidade, se dirigirem seus cuidados especialmente para conservar incólume a religião daquele Senhor, cujo poder está expressado naquela passagem do salmo: Rei dos reis e Senhor dos que dominam. (GREGÓRIO XVI, 1832, n. 19). O sucessor de Gregório XVI, foi Pio IX, este governou a Igreja de 1846 a 1878 e se destacou por ser o papa que viu o fim dos Estados Pontifícios, a Unificação Italiana (1870), ao passo em que se isolara dentro dos muros do Vaticano recusando qualquer relação com o novo Estado que surgira, fato que se manteria até o Tratado de Latrão em 1929. Estes eventos externos relegam, na opinião de muitos, a significação interna deste pontificado (que foi, na verdade, o mais longo de toda a história do papado) para um plano secundário. Digno de nota foi o desenvolvimento do centralismo papal, que se designaria como “ultramontanismo” e foi por muitos combatido. Pio IX estava cônscio, também, de sua missão de mestre da Cristandade: Em 1849, fizera consulta aos bispos do mundo sobre a possibilidade da proclamação do dogma da concepção imaculada de Maria. Em sua grande maioria, os bispos expressaram a sua concordância [...] Em 1864 publicou uma encíclica, acompanhada de um resumo (“Syllabus”) dos principais erros da época: Panteísmo, naturalismo [...]. (FISCHER- WOLLPERT, 2006, p.155). Pio IX se tornaria o papa que proclamara não só o dogma da Imaculada Conceição de Maria, mas também o da Infalibilidade Papal como destacar-se-á mais adiante. É dele, o índice de erros do que se convencionou chamar de Modernismo. Acompanhando a encíclica Quanta Cura um anexo continha o Syllabus errorum que enfatizava os seguintes pontos em seu índice: 30 I. Panteísmo, Naturalismo e Racionalismo Absoluto. II. Racionalismo Moderado. III. Indiferentismo, Latitudinarismo. IV. Socialismo, Comunismo, Sociedades Secretas, Sociedades Bíblicas, Sociedades Clérico-Liberais. V. Erros Sobre a Igreja e os Seus Direitos. VI. Erros de Sociedade Civil, tanto Considerada em Si, Como nas Suas Relações com a Igreja. VII. Erros acerca da Moral Natural e a Moral Cristã. VIII. Erros Acerca do Matrimônio Cristão. IX. Erros acerca do Principado Civil do Pontífice Romano. (PIO IX, 1864). Todos estes elementos, alguns já destacados pela Mirari vos de Gregório XVI formam um conglomerado diverso, mas visto sob um mesmo prisma de fatores decorrentes da modernidade e contrários aos ensinamentos católicos, o que a leva à condenação papal. Cabe destaque aqui a questão da liberdade religiosa e de pensamento, que seriam tão caras ao Vaticano II com sua proposta ecumênica, como se destacará no próximo capítulo, e aqui são condenadas: 15 É livre a qualquer um abraçar e professar aquela religião que ele, guiado pela luz da razão, julgar verdadeira. Letras Apostólicas "Multiplices inter", de 10 de Junho de 1851. Aloc. "Maxima quidem”, de 9 de Junho de 1862. 16º No culto de qualquer religião podem os homens achar o caminho da salvação eterna e alcançar a mesma eterna salvação. Enc. "Qui pluribus", de 9 de Novembro de 1846. Aloc. "Ubi primum", de 17 de Dezembro de 1847.E nc. "Singulari quidem" de 17 de Março de 1856. 17º Pela menos deve-se esperar bem da salvação eterna daqueles todos que não vivem na verdadeira Igreja de Cristo. Aloc. "Singulari quadam", de 19 de Dezembro de 1854. Enc. "Quanto conficiamur", de 17 de Agosto de 1863. 18º O protestantismo não é senão outra forma da verdadeira religião cristã, na qual se pode agradar a Deus do mesmo modoque na Igreja Católica. Enc. "Noscitis et Nobiscum", de 8 de Dezembro de 1849. (PIO IX, 1864, n. 15-18.) A defesa da fé católica como verdade é reforçada e a escolha, por liberdade de consciência, de outra forma de religião é reprovada pela instituição. Cerca de cem anos após estas represálias, o diálogo inter-religioso que o Vaticano II promoveria se tornaria uma das causas da crise identitária da Igreja contemporânea. A Igreja do período ultramontano nada mais faz do que reafirmar aquela identidade oriunda do período tridentino quando se fundamentou no antagonismo em relação ao protestantismo. Em partes, no Ultramontanismo, a identidade se reforça em relação aos demais erros aqui apresentados. Mas a problemática que se segue é a nova visão em relação a esta modernidade que se configuraria ao longo do período do II Concílio Ecumênico do Vaticano. Estes aspectos, ao somarem-se aos abaixo citados, só fazem crescer a disparidade em relação aos dois períodos elencados, ao tratar dos Erros acerca do Principado Civil do Pontífice Romano a questão de possibilidade de aceitação de qualquer elemento do modernismo é descartada: 31 75º Os filhos da Igreja cristã e católica discutem entre si acerca da compatibilidade da realeza temporal com o poder espiritual. Letras Apostólicas "Ad Apostolicae", de 22 de Agosto de 1851. 76º A ab-rogação do poder temporal que possui a Sé Apostólica contribuiria muito para a felicidade e liberdade da Igreja. Aloc. "Quibus quantisque", de 20 de Abril de 1849. N. B. : Além desses erros, explicitamente apontados, há muitos outros que implicitamente são reprovados pela doutrina já proposta e estabelecida a respeito do Principado do Pontífice Romano; a qual todos os católicos firmissimamente devem professar. Esta doutrina se acha exposta com clareza nas Alocuções "Quibus quantisque", de 20 de Abril de 1849; "Sisemper antea", de 20 de maio de 1850 nas Letras Apostólicas "Cum Catholica Ecclesia", de 26 de Março de 1860; nas Alocuções "Novas", de 28 de Setembro de 1860, "Jamdudum" de 18 de Março de 1861, e "Maxima quidem", de 9 de Junho de 1862. 77º Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos. Aloc. "Nemo Vestrum", de 26 de Julho de 1855. 78º Por isso louvavelmente determinaram as leis, em alguns países católicos, que aos que para aí emigram seja lícito o exercício público de qualquer culto próprio. Aloc. "Acerbissimum", de 27 de Setembro de 1852. 79º É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manifestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste do Indiferentismo. Aloc. "Nunquam fore", de 15 de Dezembro de 1856. 80º O Pontífice Romano pode e deve conciliar-se e transigir com o progresso, com o Liberalismo e com a Civilização moderna. Aloc. "Jamdudum cernimus", de 18 de Março de 1861. (PIO IX, 1864, n. 75-80). Aqui a problemática tange a esfera civil e os ideais liberais de Estado laico e liberdade religiosa. Defende-se ainda a ideia de religião oficial do Estado e censura-se a aceitação de qualquer dito progresso da modernidade. É salutar destacar que mesmo diante das inovações técnicas a Igreja Romana está preocupada com a problemática moral, não vê melhora na condição humana, mas uma deterioração dos costumes nas inovações da modernidade, principalmente na mentalidade laicizante que a mesma carrega. Pensa-se, por exemplo, na Revolução Industrial, com seus inventos e novos aspectos da produção, mas que lançaram as relações humanas em novo patamar na relação patrão-empregado como destacaria Leão XIII, o que se mostrará mais a frente. Pio IX foi ainda decisivo para história do Catolicismo deste período por convocar e realizar o I Concílio do Vaticano, o vigésimo concílio da Igreja que realizara-se de 1869 a 1870, sendo interrompido pela guerra franco-alemã mas deixando como legado mais um elemento na centralização do poder romano sobre toda a Igreja, a proclamação do dogma da Infalibilidade Papal: [...] No que respeita à questão da infalibilidade, o concílio proclamou que o poder do papa é o poder de jurisdição mais alto sobre a Igreja universal em questões de fé, de costumes e de governo da Igreja. [...] E, quando o papa fala ex-cathedra, ou seja, quando define, no exercício de suas funções, com pastor e mestre, uma doutrina 32 vinculada para toda a Igreja, possui ele, em virtude se assistência divina, que lhe foi anunciada na pessoa de Pedro, aquela infalibilidade, com a qual o Redentor quis prover a sua Igreja na definição de questões de fé e moral. Por isso, tais definições são inalteradas em si mesmas, não dependendo da concordância da Igreja como um todo [...]. (FISCHER-WOLLPERT, 2006, p.238). É evidente o fortalecimento da centralização em Roma das decisões eclesiásticas em um período marcado pelo fim dos Estados Pontifícios e pela perda de poder, em termos políticos e territoriais. Se, por um lado, a Igreja tentava controlar qualquer voz dissonante interna, por outro, na relação com o mundo, sua autoridade era mais uma vez questionada. Ao longo do século XX as ações papais procurariam se pautar nestes conceitos ultramontanos mesmo diante das rápidas mudanças oriundas de duas guerras mundiais e da Guerra Fria, até que uma nova forma de se apresentar e se relacionar com o mundo fosse posta em pauta no Vaticano II. 1.3 Às Raias do Vaticano II Ao fim do século XIX e início do XX a Igreja manteria essa política de centralização enquanto lidava com novas questões que ganhavam destaque na contemporaneidade. O sucessor de Pio IX foi Leão XIII (1878-1903). O referido papa entrou para a história como aquele a dar uma resposta à questão social, condenando o capitalismo e o socialismo ao propor uma Doutrina Social da Igreja ao mesmo passo em que declarara nulos os sacramentos da Igreja Anglicana pela bula papal Apostolicae curae (1896). Estes elementos são de suma importância, uma vez que o Vaticano II omitiria qualquer pronunciamento acerca do socialismo, mesmo estando em período de Guerra Fria e se preocuparia com a questão ecumênica como já fora relatado anteriormente. Cabe ainda destacar que Bento XVI (2005-2013) daria novos mecanismo para a relação com os anglicanos por meio da Constituição Apostólica Anglicanorum Coetibus de 2009. Karl Marx (1818-1883) escrevera o primeiro volume de O Capital em 1867 e o Manifesto do Partido Comunista em 1848, a crítica ao capitalismo e a conclamação a revolução armada estava já estabelecida no início da segunda metade do século XIX, mas a problemática ainda se mantinha mais atrelada ao campo das ideias. A resposta da Igreja às inovações industriais, sejam técnicas, sejam na relação trabalhista, só viria em 1891 com a 33 encíclica papal de Leão XIII denominada Rerum Novarum, por meio da qual se fundamentaria o arcabouço católico sobre o problema. O Ultramontanismo ganhara um novo elemento para se posicionar desde então. A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito. Por toda a parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só basta para mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o génio dos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito humano. (LEÃO XIII, 1891, n.1). Leão XIII parte da análise das mudanças econômicas e sociais trazidas pela modernidade e aponta as consequências da concentração de renda no capitalismo e o temor dos ares revolucionários. Defende a propriedade privada com o argumento de que da “[...] mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador [...]” (LEÃO XIII, 1891, n.5), mas que a mesma esteja voltada para a coletividade: [...] Eis, aliás, em algumas palavras, o resumo desta doutrina: Quem quer que tenha recebido da divina Bondade maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da alma, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento, e, ao mesmo tempo, como ministro da Providência, ao alívio dos outros. «E por isso, que quem tiver o talento da palavra tome cuidado em se não calar; quem possuir superabundância de bens, não deixe a misericórdia entumecer-se no fundo do seu coração; quem tiver a arte de governar, aplique-se com cuidado a partilhar com seu irmão o seu exercício e os seus frutos» (LEÃO XIII, 1891, n.12). Entendendo que o Estado deve estar a serviço da sociedade, elenca que o mesmo deve proteger a propriedade privada, impedir greves e proteger os mais pobres. “[...] A classe indigente, [...] conta principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores [...]” (LEÃO XIII, 1891, n.20). Pautando os limites do Estado dentro da lei, o Pontífice condena o Socialismo como fator viciante do Estado e usurpador do direito à propriedade privada (LEÃO XIII, 1891, n.3) e como solução ao conflito nega a luta de classes e propõe a cooperação entre as mesmas através da caridade: [...] Façam os governantes uso da autoridade protetora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, 34 como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua ação jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver [...]. (LEÃO XIII, 1891, n.35). A solução papal é a implantação de uma moral cristã na relação capitalista patrão- empregado. Nesse âmbito, conclama a constituição de associações operárias católicas contra aquelas que, por sua vez, de raiz socialista, agregam valores contrários aos defendidos pela Igreja: Certamente em nenhuma outra época se viu tão grande multiplicidade de associações de todo o género, principalmente de associações operárias. Não é, porém, aqui, o lugar para investigar qual é a origem de muitas delas, qual o seu fim e quais os meios com que tendem para esse fim. Mas é uma opinião, confirmada por numerosos indícios, que elas são ordinariamente governadas por chefes ocultos, e que obedecem a uma palavra de ordem igualmente hostil ao nome cristão e à segurança das nações: que, depois de terem açambarcado todas as empresas, se há operários que recusam entrar em seu seio, elas fazem--lhe expiar a sua recusa pela miséria. Neste estado de coisas, os operários cristãos não têm remédio senão escolher entre estes dois partidos: ou darem os seus nomes a sociedades de que a religião tem tudo a temer, ou organizarem-se eles próprios e unirem as suas forças para poderem sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerável. Haverá homens, verdadeiramente empenhados em arrancar o supremo bem da humanidade a um perigo iminente, que possam ter a menor dúvida de que é necessário optar por esse último partido? (LEÃO XIII, 1891, n.32). A Igreja agora convoca a ação do laicato católico de forma organizada no combate daquilo que considera perigo iminente e que, de fato, teria sua experiência fundada a partir de 1917 com a Revolução Russa. A futuro, não poucos, veriam nesta convocação uma legitimidade para agir no campo político a partir da Igreja, uma militância que a instituição teria dificuldades para controlar como é o caso da Teologia da Libertação a que se ocupará estas linhas mais a frente. Pio X (1903-1914), o único Pontífice canonizado do século XX – pois o processo de João Paulo II (1978-2005) ainda se encontra na fase pós-beatificação quando estas linhas estão a ser escritas – teve sua história marcada pelo vislumbre da I Guerra Mundial, pelo reforço da autoridade romana no combate ao modernismo e pela tentativa de renovação dos elementos da fé católica. Em seu brasão figurava o mote Instaurare omnia in Christo (Restaurar todas as coisas em Cristo) o que expressa bem sua atuação, não no sentido de inovações, já condenadas, mas restauração dos elementos que compõem aquele arcabouço dito católico, como a música sacra, a frequência nos sacramentos etc: “Suas múltiplas reformas principiaram pela música sacra, seguida pela reformulação do Código de Direito Canônico. Através de um decreto de 20 de dezembro de 1905, recomendou o papa a 35 comunhão frequente e mesmo diária, já desejada pelo concílio de Trento.” (FISCHER- WOLLPERT, 2006, p. 157). Sua eleição foi marcada pela intervenção secular do imperador da Áustria contra o cardeal Rampolla (FISCHER-WOLLPERT, 2006, p. 158) o que o faria proibir qualquer ingerência do Estado, sob pena de excomunhão, nas futuras eleições papais. Foi ele, como já mencionado anteriormente, que definiu o modernismo e o combateu por meio da Pascendi Dominici Gregis (1907). Contra a introdução de tais elementos em meios eclesiásticos os candidatos às ordens religiosas deveriam proferir o seguinte juramento antimodernista: Eu, N., firmemente aceito e creio em todas e em cada uma das verdades definidas, afirmadas e declaradas pelo magistério infalível da Igreja, sobretudo aqueles princípios doutrinais que contradizem diretamente os erros do tempo presente. Primeiro: creio que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza e pode também ser demonstrado, com as luzes da razão natural, nas obras por Ele realizadas (Cf. Rm I 20), isto é, nas criaturas visíveis, como [se conhece] a causa pelos seus efeitos. Segundo: admito e reconheço as provas exteriores da revelação, isto é, as intervenções divinas, e sobretudo os milagres e as profecias, como sinais certíssimos da origem sobrenatural da razão cristã, e as considero perfeitamente adequadas a todos os homens de todos os tempos, inclusive aquele no qual vivemos. Terceiro: com a mesma firme fé creio que a Igreja, guardiã e mestra da palavra revelada, foi instituída imediatamente e diretamente pelo próprio Cristo verdadeiro e histórico, enquanto vivia entre nós, e que foi edificada sobre Pedro, chefe da hierarquia eclesiástica, e sobre os seus sucessores através dos séculos. Quarto: acolho sinceramente a doutrina da fé transmitida a nós pelos apóstolos através dos padres ortodoxos, sempre com o mesmo sentido e igual conteúdo, e rejeito totalmente a fantasiosa heresia da evolução dos dogmas de um significado a outro, diferente daquele que a Igreja professava primeiro; condeno semelhantemente todo erro que pretenda substituir o depósito divino confiado por Cristo à Igreja, para que o guardasse fielmente, por uma hipótese filosófica ou uma criação da consciência que se tivesse ido formando lentamente mediante esforços humanos e contínuo aperfeiçoamento, com um progresso indefinido. Quinto: estou absolutamente convencido e sinceramente declaro que a fé não é um cego sentimento religioso que emerge da obscuridade do subconsciente por impulso do coração e inclinação da vontade moralmente educada, mas um verdadeiro assentimento do intelecto a uma verdade recebida de fora pela pregação, pelo qual, confiantes na sua autoridade supremamente veraz, nós cremos tudo aquilo que, pessoalmente, Deus, criador e senhor nosso, disse, atestou e revelou. Submeto-me também com o devido respeito, e de todo o coração adiro a todas as condenações, declarações e prescrições da encíclica Pascendi e do decreto Lamentabili, particularmente acerca da dita história dos dogmas. Reprovo outrossim o erro de quem sustenta que a fé proposta pela Igreja pode ser contrária à história, e que os dogmas católicos, no sentido que hoje lhes é atribuído, são inconciliáveis com as reais origens da razão cristã. Desaprovo também e rejeito a opinião de quem pensa que o homem cristão mais instruído se reveste da dupla personalidade do crente e do histórico, como se ao histórico fosse lícito defender teses que contradizem a fé o crente ou fixar premissas das quais se conclui que os dogmas são falsos ou dúbios, desde que não sejam positivamente negados. Condeno igualmente aquele sistema de julgar e de interpretar a sagrada Escritura que, desdenhando a tradição da Igreja, a analogia da fé e as normas da Sé apostólica, recorre ao método dos racionalistas e com desenvoltura não menos que audácia, aplica a crítica textual como regra única e suprema. 36 Refuto ainda a sentença de quem sustenta que o ensinamento de disciplinas histórico-teológicas ou quem delas trata por escrito deve inicialmente prescindir de qualquer ideia pré-concebida, seja quanto à origem sobrenatural da tradição católica, seja quanto à ajuda prometida por Deus para a perene salvaguarda de cada uma das verdades reveladas, e então interpretar os textos patrísticos somente sobre as bases científicas, expulsando toda autoridade religiosa, e com a mesma autonomia crítica admitida para o exame de qualquer outro documento profano. Declaro-me enfim totalmente alheio a todos os erros dos modernistas, segundo os quais na sagrada tradição não há nada de divino ou, pior ainda, admitem-no, mas em sentido panteísta, reduzindo-o a um evento pura e simplesmente análogo àqueles ocorridos na história, pelos quais os homens com o próprio empenho, habilidade e engenho prolongam nas eras posteriores a escola inaugurada por Cristo e pelos apóstolos. Mantenho, portanto, e até o último suspiro manterei a fé dos pais no carisma certo da verdade, que esteve, está e sempre estará na sucessão do episcopado aos apóstolos, não para que se assuma aquilo que pareça melhor e mais consoante à cultura própria e particular de cada época, mas para que a verdade absoluta e imutável, pregada no princípio pelos apóstolos, não seja jamais crida de modo diferente nem entendida de outro modo. Empenho-me em observar tudo isso fielmente, integralmente e sinceramente, e em guardá-lo inviolavelmente, sem jamais disso me separar nem no ensinamento nem em gênero algum de discursos ou de escritos. Assim prometo, assim juro, assim me ajudem Deus e esses santos Evangelhos de Deus. (AAS, 1910, pp. 669-672). O texto integralmente acima citado é uma tradução do original em latim que se encontra registrado na Acta Apostolicæ Sedis, de 1910, entre as páginas 669-672 e foi disponibilizado pelo grupo São Pio V, compostos por fiéis católicos de Curitiba-PR, em seu site na internet. Como se destacará no último capítulo deste trabalho, nos últimos anos tem surgido vários grupos, denominados tradicionalistas, que procuram recuperar certos aspectos do Ultramontanismo como elemento da identidade católica perdida nas últimas décadas. O referido juramento condensa a condenação da Igreja ao mundo moderno e seus ditos erros que afrontam a verdade católica. De modo particular no campo teológico e doutrinal as condenações a qualquer inovação são explícitas; o patrimônio da fé, transmitida pela tradição, deveria ser mantido. São Pio X morreu ao raiar do primeiro conflito bélico mundial conclamando a paz entre as nações. Entrou para história como um fomentador da liturgia, da eucaristia e combatente contra as inovações modernistas. Não é por menos que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X escolheu a ele para autonomear-se e se levantar contra o Vaticano II, visto por eles como infiltração modernista. Bento XV (1914-1922) sucedeu a Pio X no alvorecer da I Guerra. Sua principal ação, além da condenação do conflito, foi a promulgação do Código de Direito Canônico de 1917 que nortearia a Igreja até a publicação do novo Código, datado de 1983, como portador da disciplina ultramontana. 37 Pio XI (1922-1939), por sua vez, vivenciou o pós-guerra, a depressão e o vislumbre da II Guerra Mundial (1939-1945). Assinou com o governo fascista de Mussolini o Tratado de Latrão (1929) pondo fim à questão romana, mas dele se distanciou na medida em que o mesmo se aproximava de Hitler. Em 1931, comemorando quarenta anos da Rerum Novarum de Leão XIII retomou a questão social condenando mais uma vez o liberalismo naquele cenário de depressão e o socialismo, que agora já não era apenas teórico, por meio da encíclica Quadragesimo anno. Em 1937 condenara o Nazismo e seu racismo com a encíclica Mit brennender Sorge escrita originalmente em alemão e com destino certo, da mesma forma como havia procedido em 1931 ao escrever em italiano a Non abbiamo bisogno apontando os erros dos fascistas. No âmbito do laicato, conclamou os fiéis a agirem na sociedade de forma atuante sob os designíos da fé católica de forma organizada. Em 1938 criara uma direção central para a Ação Católica que estava a atuar entre a juventude, no campo e em vários setores da sociedade a fim de defender os interesses católicos apregoados pela Doutrina Social da Igreja. Pio XII (1939-1958), cuja memória é marcada pela proclamação do dogma da Assunção de Maria de 1950 e por controvérsias historiográficas acerca de uma suposta falta de condenação mais clara sobre o Nazismo e o Holocausto (CORNWELL, 2000, p.313) e cuja polêmica não se adentrará estas linhas, pois desviaria demasiadamente o foco deste trabalho, teve uma atuação para além da Guerra. Preocupou-se com diversos assuntos internos da Igreja, em 1943 escrevera a encíclica Mystici Corporis reforçando a ideia da Igreja como corpo de Cristo, por meio da Mediator Dei, de 1947, buscara conter qualquer tipo de inovação litúrgica (n. 52). Em 1950, através da Humani Generis, apontava opiniões