MÁRCIA CAMPOS DE OLIVEIRA BRINCAR NO HOSPITAL: UM ENCONTRO POSSÍVEL ASSIS 2005 MÁRCIA CAMPOS DE OLIVEIRA BRINCAR NO HOSPITAL: UM ENCONTRO POSSÍVEL Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientadora: Profa. Dra. Olga Ceciliato Mattioli ASSIS 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Oliveira, Márcia Campos de O48b Brincar no hospital: um encontro possível / Márcia Campos de Oliveira. Assis, 2005 165 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Psicanálise. 2. Brinquedos. 3. Pediatria – Aspectos psicos- somáticos. 4. Criança – Assistência hospitalar. 5. Humaniza- ção hospitalar – Psicologia. Título. CDD 362.2 616.89 DADOS CURRICULARES Nome: Márcia Campos de Oliveira Data de Nascimento: 10/03/1979 Filiação: Romeu Souza de Oliveira e Dinaurea Batista de Oliveira Formação Escolar: Curso de Pedagogia – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Unesp – Campus de Presidente Prudente 1997-2001 Pós - Graduação - Psicologia e Sociedade Área de Conhecimento: Infância e Realidade Brasileira Unesp – Campus de Assis 2002 - 2005 Aos que acreditam na força dos encontros na saúde. AGRADECIMENTOS À UNESP que na graduação e na pós-graduação deixou suas marcas institucionais na minha formação acadêmica, como aluna, pesquisadora e voluntária. Reafirmando, assim, seu tripé: ensino, pesquisa e extensão. Ao Hospital Estadual Dr. Odilo Antunes de Siqueira, pela singular contribuição nessa pesquisa. A CAPES pelo apoio financeiro que viabilizou a pesquisa. Em especial, aos participantes dessa pesquisa, pelos encontros brincantes. RESUMO OLIVEIRA, Márcia Campos de. Brincar no hospital: um encontro possível. Assis, 2005. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Unesp. A hospitalização da criança costuma ser vivenciada por ela com grande sofrimento psíquico potencializado pelo distanciamento da família, pela submissão aos procedimentos e rotinas hospitalares e por lidar com a fantasia ou o perigo real de morte. Durante a internação, a criança tem o seu corpo disponível para tratamento e para investigação e a sua privacidade fica subordinada à dinâmica hospitalar; tornando, portanto, a internação uma experiência demasiadamente intrusiva. O hospital quase sempre percebe a criança como ingênua e desconhecedora desse processo, tratando-a apenas semelhante a um corpo que sofre. Tais questões me levaram a eleger como objetivo principal dessa pesquisa, a discussão do brincar no contexto hospitalar. A pesquisa foi desenvolvida no ano de 2003, na pediatria do Hospital Estadual Dr. Odilo Antunes de Siqueira, localizado na cidade de Presidente Prudente/SP, com a participação de três crianças do sexo masculino, nas idades de três anos, quatro anos e dez meses e doze anos e cinco meses. Tomei por base o método psicanalítico para a compreensão do brincar, notadamente o pensamento de Freud, Klein e Winnicott. O brincar pode mostrar- se um instrumento valioso para um melhor enfrentamento da internação, por ser uma forma eficaz de expressar e de dominar a angústia bem como de administrar a agressividade e a destrutividade. De forma mais específica apoiei-me, para a realização desta pesquisa, na formulação teórica de espaço potencial elaborada por Donald Winnicott e assim, propor um trabalho junto à criança hospitalizada, o qual denomino encontro. O encontro baseia-se no brincar espontâneo e no oferecimento de acolhimento emocional à criança, descrito por Winnicott como holding. Durante os encontros, utilizei uma pasta contendo brinquedos, material escolar e acessórios tipicamente hospitalares. Os encontros foram diários, num total de onze, com duração de aproximadamente uma hora. A compreensão dessas experiências pautou-se pela escuta psicanalítica. Aponto como resultado principal dessa intervenção a mudança de atitude da criança após os encontros. Percebi ainda que brincar, desenhar e conversar produziu uma ressonância interna favorável na criança explicitada por meio dos desenhos, temas, brincadeiras e forma de enfrentamento da hospitalização; na brincadeira, temas hospitalares foram ocupados por outros relacionados à volta ao lar; alguns desenhos apontaram o sentimento da criança perante sua doença e, com os encontros, pude notar que tanto as mães ou os acompanhantes como também a equipe de saúde se mostraram atentos a essas mudanças. Palavras-chave: Brincar, espaço potencial, psicanálise, hospitalização infantil, psicossoma. ABSTRACT OLIVEIRA, Márcia Campos de. To play in the Hospital: a possible encounter. Assis, 2005. Masters Degree Dissertation. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Unesp. The child´s hospitalization can be revivified with great psychic suffering, reinforced due to the detachment of the family, the submission to the hospitalizing procedures and routines and for working with the fantasy or the real danger of death. During the internment, the child has his body available for treatment and for an investigation and consequently his privacy is subordinate to the hospitalizing dynamics, making, therefore, the internment an exceedingly intrusive experience. The hospital almost always notices the child as a naïve and an ignorant of such a process, just treating him similarly to a body that suffers. Such subjects have made me choose as the main objective of this research, the discussion of the playing in a hospital context. The research was developed in 2003, in Dr. Odilo Antunes de Siqueira´s pediatric wards State Hospital, located in Presidente Prudente –SP, with the participation of three male children of different ages, namely, one three-year-old child , a second one with four years and ten months old and a third one with twelve years and five months old. I took as a base the psychoanalytical method for the understanding of the playing notedly Freud´s, Klein´s and Winnicott´s thoughts. The playing can show to be a valuable instrument for a better facing of the internment, for being an effective form of expressing and of dominating the torture, as well as, of administering the aggressiveness and the destructiveness. In a more specific way, I held up for the accomplishment of this research, in a theoretical formulation of potential space elaborated by Donald Winnicott and, like this, a work close to the hospitalized children, which I call, denominate encounter. The encounter is based on the spontaneous playing and in the offer of emotional reception to the child, described by Winnicott as holding. During the encounters, I used a briefcase containing toys, school material and accessories typically hospital ones. The encounters were daily, totalizing eleven, with the duration of approximately one hour. The understanding of these experiences was entirely based on psychoanalytical listening and I can point out as principal result of this procedure after all encounters is the children´s changing of attitude. I also noticed that to play, to draw and to talk have produced a favorable internal or subjective resonance on the children demonstrated by drawings, themes, play and ways of affronting the hospitalization; in the plays, hospitalizing themes were acted by people related to the home living; some drawings stressed the child´s feeling before his disease and, with the other encounters, I could also notice that not only the mothers or the companions, but also the health staff also showed to be very attentive to these changes. KEY WORDS: To play/playing – potential space – psychoanalysis – infantile hospitalization – psicossoma LISTA DE ILUSTRAÇÕES Imagens Páginas F.1. Desenho de Pedro: as mãos ................... 93 F.2. Desenho de Guilherme: o hospital e a chuva forte. ................. 110 F.3. Desenho de Guilherme: a chuva forte ................. 111 F.4. Desenho de Sílvio: desenho colorido ................. 113 F.5. Desenho de Guilherme: a casa e as janelas fechadas ................. 122 F.6. Desenho de Guilherme: chuva bem forte ................. 123 F.7. Desenho de Guilherme: a coruja e a menina com o cabelo feio que parece uma bruxa. ................. 124 F.8. Desenho de Sílvio: uma paisagem ................. 127 F.9. Desenho de Sílvio: a pecinha quebrada ................. 131 F.10. Desenho de Guilherme: janelas abertas e mais chuva forte ................. 136 F.11. Desenho de Guilherme: Sílvio e a namorada e um temporal de chuva nas casas ................. 137 F.12. Desenho de Guilherme: outro menino e um caminhão estragado. ................. 138 F.13. Desenho de Guilherme: várias pessoas e os três porquinhos ................. 139 F.14. Desenho de Sílvio: caminhão indo para fazenda matar gado (leiloar) ................. 141 F.15. Desenho de Sílvio: três pessoas e um helicóptero ................. 142 F.16. Carta de Sílvio ................. 146 F.17. Desenho de Sílvio: uma estrada ................. 147 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO _______________________________________________________ 11 2. HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL _________________________________________ 17 2.1 - Desenvolvimento emocional __________________________________________ 19 2.2 - A hospitalização como evento traumático para a criança __________________ 24 2.3 - Adoecer ___________________________________________________________ 30 2.4 - A família __________________________________________________________ 33 2.5 - O hospital como ambiente facilitador___________________________________ 35 3. O BRINCAR AOS OLHOS DA PSICANÁLISE _____________________________ 44 3.1 - O brincar na clínica de Winnicott _____________________________________ 51 3.2 - O brincar no hospital ________________________________________________ 56 4. METODOLOGIA _____________________________________________________ 64 4. 1 – O método psicanalítico ______________________________________________ 64 4.2 - Caracterização da pesquisa___________________________________________ 69 4.2.1 - O local e a instituição _____________________________________________ 69 4.2.2 - Algumas questões pertinentes à humanização nesse hospital_______________ 71 4.3 – Participantes da pesquisa ____________________________________________ 73 4.4 – Instrumentos da pesquisa: pasta com brinquedos ________________________ 73 4.5 – Aspectos éticos da pesquisa___________________________________________ 74 4.5.1 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido __________________________ 74 4.6 – Sobre os procedimentos da pesquisa ___________________________________ 75 4.6.1 - Como a pesquisa foi recebida pela instituição? _________________________ 75 4.6.2 - Como me aproximei dos participantes? _______________________________ 76 4.6.3 - Como me apresentei à criança?______________________________________ 76 4.7 - O encontro com a criança ____________________________________________ 76 4.8 – Análise dos dados___________________________________________________ 77 5. OS ENCONTROS _____________________________________________________ 80 5.1 - Pedro: seu brincar, sua voz. __________________________________________ 80 O convite à Neuza _____________________________________________________ 82 Primeiro encontro ______________________________________________________ 83 Segundo encontro ______________________________________________________ 86 Terceiro encontro ______________________________________________________ 87 Conversa com o estagiário _______________________________________________ 88 Quarto encontro _______________________________________________________ 89 Quinto encontro _______________________________________________________ 90 Sexto encontro ________________________________________________________ 91 Último encontro _______________________________________________________ 92 Conversa com a mãe. ___________________________________________________ 94 Notas________________________________________________________________ 96 5.2 - Sílvio e Guilherme: dois meninos, duas histórias. Sílvio: de um menino adaptado à revelação de uma pecinha quebrada. Guilherme: no desenho a sua forma de expressão. _____________________________________________________________ 98 Chegada à instituição:___________________________________________________ 99 Primeiro encontro: ____________________________________________________ 105 Segundo encontro _____________________________________________________ 115 Terceiro encontro _____________________________________________________ 128 Conversa com a enfermeira _____________________________________________ 128 Encontro com Sílvio e Guilherme. ________________________________________ 130 Quarto e último encontro _______________________________________________ 143 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________ 149 7. REFERÊNCIAS _____________________________________________________ 153 8. ANEXOS ___________________________________________________________ 163 11 1. INTRODUÇÃO Para o início dessa dissertação, intitulada Brincar no hospital: um encontro possível, a qual se propõe discutir o brincar no contexto hospitalar, pretendo apresentar a experiência originária que motivou essa pesquisa. No Hospital Estadual Dr. Odilo Antunes de Siqueira, localizado em Presidente Prudente – SP, experienciei, desde 1999, alguns papéis por causa das diferentes modalidades de intervenção às quais estive submetida nessa instituição, tais como: voluntariado, extensão universitária, iniciação científica e mestrado. Estas situações levaram-me a uma atitude de questionamento e de problematização do brincar no hospital. O processo exigiu um olhar mais atento e cuidadoso para esse objeto. A propósito, Freud afirma “Olhar as mesmas coisas repetidas vezes até que elas começam a falar por si mesmas”. (FREUD, 1914, p.32). Utilizo-me dessa afirmação para sintetizar o meu caminho pessoal nessa trajetória de pesquisa. Em diferentes momentos percebi aspectos particulares do brincar como, divertimento, comunicação e espaço de investimento afetivo. Enquanto voluntária na pediatria objetivava a promoção de melhor qualidade de vida para a criança hospitalizada, por intermédio de atividades lúdicas. Entreter era desejável e prioritário na sugestão das atividades. Nesse período percebia o brincar como forma de divertimento; assim, pensava a distração oportunizada pelo brincar, como forma de alívio de tensão causada pela internação. Participei também do projeto denominado Brinquedoteca Hospitalar, no vínculo de extensão universitária, o qual objetivava criar um espaço no hospital destinado ao brincar. A viabilização desse projeto se deu ao aproveitar em horários disponíveis, a estrutura física do refeitório, que era uma sala na pediatria com banheiro em anexo, mais pia e torneira, com um armário fechado onde se podia guardar os brinquedos disponibilizados somente no funcionamento da brinquedoteca: duas horas diárias, durante a semana. 12 A dinâmica da brinquedoteca assemelhava-se a de uma escola de educação infantil: mesas com quatro cadeiras, brinquedos classificados por faixa etária e brincadeiras sugeridas por estagiárias, visando assim, a estimulação no desenvolvimento infantil. Entretanto, percebi que mesmo havendo a divisão dos brinquedos por faixa etária, crianças maiores preferiam brincar com brinquedos tipicamente de crianças menores. Apesar das opções de brincadeiras que a brinquedoteca oferecia às crianças, em geral, elas preferiam brincar com temas ligados à hospitalização. Diante dessas constatações, resolvi observar o brincar espontâneo das crianças o que impulsionou a pesquisa de iniciação científica intitulada A ludicidade na pediatria, no período de 2000 a 2002, com apoio financeiro do CNPq/ PIBIC. Na pesquisa de iniciação científica o conteúdo das brincadeiras das crianças e os efeitos do brincar na dinâmica institucional se constituíram objeto de minha investigação. Assim foram realizadas aproximadamente quinze entrevistas com crianças, mães e acompanhantes; reuniões com a equipe de saúde e conversas informais para ouvir a instituição. As entrevistas realizadas com crianças e acompanhantes apoiavam-se no conceito de Ocampo sobre a entrevista semidirigida: Uma entrevista é semidirigida quando o paciente tem a liberdade de expor seus problemas começando por onde preferir e incluindo o que desejar. Isto é, quando permite que o campo psicológico, configurado pelo entrevistador, e o paciente se estruturem em função de vetores assinalados pelo último. (OCAMPO, 1981, p. 23). As entrevistas com as crianças se deram com a utilização de brinquedos, pois o brincar é uma forma de expressão, tal como a linguagem verbal o é no adulto. Assim, observei diariamente o brincar espontâneo da criança visando apreender possíveis significados e verificar relações do brincar com a hospitalização. Nesse sentido, a pesquisa caminhou para o entendimento psicológico do brincar. Os resultados dessa pesquisa apontaram para a mudança 13 de atitude na criança após as entrevistas, também para uma melhor aceitação de procedimentos e de rotinas médicas. A fim de investigar os efeitos do brincar na dinâmica institucional, utilizei como estratégia a indicação de participantes da pesquisa por diferentes setores da instituição hospitalar. Nessa modalidade de intervenção o desafio estava posto: qual criança internada deveria brincar? Apesar da escolha poder pautar-se em critérios objetivos como, por exemplo, crianças maiores de dois anos, a indicação basicamente se deu por critérios subjetivos, assim revelava mais da instituição do que a necessidade de brincar da criança. Essa estratégia evidenciou as diferentes percepções de criança e de brincar pela instituição. O critério para a indicação de uma criança de um setor podia ser a de uma criança que não saía do leito, que não conversava; no entanto, para outro setor, o critério era o oposto: a criança que deveria brincar era justamente aquela que protestava, que não parava quieta. Penso que o sentido de indicação como a primeira expressava a idéia de um brincar sendo entendido como terapêutico. Assim, nessa compreensão, a criança que não estava bem emocionalmente, ao brincar, poderia ficar melhor. A segunda indicação revelava o brincar enquanto elemento de sedução. O brincar parecia ser entendido como forma de desviar a atenção da criança; nesse ponto de vista, era considerado uma estratégia para acalmar, podendo ser utilizado antes de iniciar uma intervenção médica. Notei que de maneira geral, a percepção de criança pelo hospital expressa a idéia de que ela era um ser ingênuo e, portanto, devia ser tratada como um ser passivo em relação ao entendimento do seu processo de hospitalização. Percebi a multiplicidade de olhares para o brincar e para a criança. Isso me impulsionou a discutir o brincar no campo das relações humanas. Durante o mestrado, o problema ampliou-se partindo do brincar como forma de comunicação para a idéia de brincar 14 como vínculo, enquanto espaço de investimento afetivo. Baseio-me na idéia de brincar, palavra de origem latina, que significa vinculum. Assim, considero esse aspecto fundamental no que diz respeito à hospitalização infantil. Processualmente, minha prática intuitiva pôde ser nomeada e encontrou sustentação teórica. A teoria psicanalítica, através do pensamento e da clínica de Winnicott tem acolhido as reflexões advindas desse decurso. Encontro pauta-se no conceito de Winnicott denominado espaço potencial e é percebido nessa pesquisa como a intersecção da área de brincar entre duas pessoas, assim, na intersubjetividade há a possibilidade do encontro. O encontro entre mim e participantes de pesquisa é singular, construído num dado momento, com duração dosada para a relação. Nesse encontro surgiu um desenho, uma estória, um brinquedo, uma conversa, num gesto espontâneo. A história de vida de cada participante imprimiu singularidade na forma de expressão. Certos acontecimentos decorrentes da internação, antes tidos como ‘normais’ ou ‘naturais’, puderam ser resignificados e puderam sair do não-dito, do imperceptível para serem falados e vivenciados. Percebo o brincar como expressão da criatividade e da espontaneidade. O brincar dá sustentação à experiência emocional que a criança está vivendo. No brincar, a criança, expressa suas fantasias, diminui a ansiedade e tem um melhor enfrentamento da situação hospitalar. Pesquisas de Spitz (1979), Bowlby (2002) e Neto (1989) evidenciaram o transtorno emocional da criança no cenário da hospitalização infantil e de separação da mãe. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, a criança tem o direito a acompanhante durante a hospitalização. Desta forma, atualmente, os transtornos emocionais advindos da hospitalização podem ser diminuídos. 15 Com base em Outeiral (2003) defino a hospitalização como uma experiência traumática para a criança, pois provoca uma quebra no seu vir-a-ser. A criança é um ser em desenvolvimento, então, não está suficientemente preparada emocionalmente para dar conta da totalidade dessa experiência. Mello Filho (2002) e Hisada (2003) em trabalho com pacientes somáticos demonstram a importância de um holding, uma sustentação emocional para esses pacientes. A doença somática provoca uma cisão na unidade da pessoa, assim o holding oferecido é um recurso oportuno na tentativa de uma volta a integração. Moura (1999) defende a Psicanálise no Hospital Geral, pois, segundo ela, há um campo em que a psicanálise tem a contribuir. Para os pacientes internados, a Psicanálise pode auxiliar possibilitando nomear a dor e experiência da hospitalização. Para a equipe de saúde a psicanálise pode dar suporte às situações emocionalmente difíceis. Masseti (2001) demonstra os benefícios do lúdico no hospital, tendo por base a intervenção dos Doutores da Alegria. Junqueira (2003) propõe a atenção humanizada à criança internada e sugere um trabalho feito com as mães ou acompanhantes por entender que o estado emocional da mãe ou da acompanhante interfere no bem estar da criança internada. Outeiral (1982), em trabalho de preparação psicoterápica de criança para a cirurgia, demonstra que fantasia de destruição e ansiedades podem ser diminuídas no acolhimento à criança. Ele propõe um trabalho terapêutico lúdico, com brinquedos e desenho, bem como assistência emocional à família da criança e a equipe de saúde. Winnicott associou medicina e psicanálise no atendimento de crianças internadas. Em Consultas terapêuticas (1984) evidenciou a modificação da criança no enfrentamento da doença. Essa pesquisa justifica-se por sua abrangência, sua contribuição imediata, sua novidade e por apontar mais uma possibilidade da psicanálise sair do consultório. 16 Segundo o Anuário Estatístico de Saúde no Brasil, em maio de 2002, realizaram-se 1.780.195 internações em pediatria. Ou seja, um grande número de crianças passa pela vivência da hospitalização, a qual pode ser vivida pela criança com grande sofrimento psíquico, pelo distanciamento de pessoas queridas, pela submissão aos procedimentos e rotinas hospitalares, enfim, por ter que lidar com a fantasia ou perigo real de morte. O movimento de humanização no hospital lança um outro olhar para o paciente. Nesse sentido, a psicanálise tem condições de contribuir para uma melhor qualidade no cuidado ao paciente e promover uma melhor dinâmica institucional. Penso que essa pesquisa tem a contribuir para melhores condições emocionais para a criança hospitalizada. Nessa dissertação, discuto no capítulo 1 a hospitalização infantil, destacando cinco aspectos principais: o desenvolvimento emocional infantil, a hospitalização como evento traumático, o adoecer do ponto de vista psicodinâmico, a família e o hospital como ambiente facilitador. No capítulo 2, discuto o brincar aos olhos da psicanálise. No capítulo 3, trago a metodologia empregada nessa pesquisa, cujo método de investigação foi a psicanálise. No capítulo 4 trago os encontros com Pedro, Sílvio e Guilherme. Pedro: no seu brincar a sua voz. Sílvio, de menino adaptado à revelação de pecinha quebrada. Guilherme, no seu desenho a sua forma de expressão. 17 HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL Segundo consulta no DATASUS1, de fevereiro de 2004, foram realizadas 133.595 internações em pediatria pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo 57.383 em regime público e 76.212 em regime privado. Tais números não dão conta de dimensionar a complexidade do tema hospitalização infantil; porém, mediante esses dados, pode-se afirmar que um número significativo de crianças passa por esta experiência, o que também justifica a discussão que se inicia. O argumento principal para o desenvolvimento deste trabalho é o de que a criança é um ser em desenvolvimento, assim é provável que ela não esteja suficientemente com recursos psíquicos para enfrentar a totalidade dessa experiência. A hospitalização interfere significativamente na vida da criança alterando também a rotina de seus familiares e de seu meio social mais próximo. Hospitalização infantil é um tema extremamente amplo que comporta uma série de fatores, como: econômicos, sociais, emocionais. Para que esse tema seja mais bem discutido, o texto foi organizado da seguinte forma: 2.1. O desenvolvimento infantil, numa breve revisão bibliográfica do desenvolvimento emocional para Winnicott. 2.2. A hospitalização como evento traumático para a criança, procurando conceituar a idéia de trauma. 2.3 Adoecer, do ponto de vista psicodinâmico, como auxiliador no entendimento da doença, num sentido global. 2.4. A família, a importância das condições emocionais da mãe e a qualidade da sua presença junto à criança hospitalizada, pois é consenso conceber esta presença como apoio para a criança. 1 . Acesso em: 01 fev. 2005. 18 2.5. O hospital como ambiente facilitador, apontando a partir de algumas experiências, estratégias as quais possam permitir ao hospital que se configure como ambiente menos hostil, podendo ao contrário, tornar-se um ambiente facilitador ao acolher mãe e criança, durante a internação, sobretudo quando prolongada. 19 2.1 - Desenvolvimento emocional Na perspectiva de Winnicott, o desenvolvimento emocional ocorre de maneira gradativa, pois parte de aspectos simples rumo ao aspecto complexo. A maturação de funções e as influências ambientais constituem o desenvolvimento. Newman (2003), conceitua o desenvolvimento na obra de Winnicott como a herança de um processo de amadurecimento e da acumulação de experiências da vida. A definição de Freud de imaturidade dando lugar à maturidade conforme a progressão da vida instintiva do indivíduo – fase oral, anal, fálica e genital não é invalidada por Winnicott. Ao se referir à proposta de Freud, Winnicott afirma: “Nós a temos como certa” e prossegue “nós procuramos outro aspecto do crescimento”. Nesse sentido, Winnicott propõe examinar o desenvolvimento em termos de dependência, partindo da dependência absoluta à dependência relativa, rumo a independência, a qual nunca é completa. Winnicott caracteriza o ambiente facilitador como preponderante no processo de desenvolvimento. No texto intitulado Desenvolvimento emocional primitivo (1945), ele afirma: “Um bebê não pode existir sozinho, psicológica ou fisicamente, necessitando realmente de uma pessoa que cuide dele no início” (WINNICOTT, 1988, p. 281). Portanto, para a discussão dos estágios iniciais é necessário falar dos cuidados ambientais. No texto A integração do ego no desenvolvimento da criança (1962), Winnicott conceitua ego, id e self e sugere o estudo do desenvolvimento egóico. Prossegue o autor, Ego é parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar em uma unidade. Id refere-se a fenômenos registrados, catalogados, vivenciados e eventualmente interpretados pelo funcionamento do ego. O self aparece depois que a criança começou a usar o intelecto para examinar o que os demais vêem, sentem, ouvem e o que pensam quando se encontram com ela. Nos estágios mais precoces do desenvolvimento, o funcionamento do ego relaciona- 20 se com o conceito de existência da criança como pessoa; portanto, para Winnicott, não há id antes do ego o que justifica o estudo do desenvolvimento egóico, também gradativo. Os processos iniciais de crescimento do ego são a integração, a personalização e a realização. O bebê imaturo está preste a sofrer uma ansiedade inimaginável e isso pode ser evitado pela capacidade da mãe em se identificar com ele e propiciar-lhe o cuidado de que necessita. O bebê é um ser imaturo que está vulnerável a sentir ansiedades impensáveis, tais como descritas no texto intitulado A integração do ego no desenvolvimento da criança (1962): desintegração, cair para sempre, não ter conexão alguma com o corpo, carecer de orientação. A proteção ao ego dada pela mãe favorece a construção de uma personalidade baseada na continuidade existencial. Essa proteção favorece a integração - o eu sou - e a construção de uma personalidade no padrão continuidade existencial em que prevalece o verdadeiro self; caso isso não ocorra, a criança tende a reagir a essas falhas ambientais, se esse reagir tornar-se constante a criança desenvolve, ao invés de um padrão baseado na continuidade existencial, um padrão de fragmentação do ser. O ego é inicialmente um ego corporal, que em condições favoráveis, permite à criança relacionar-se com o corpo e suas funções, ainda que não tenha adquirido a noção interior/exterior. O ego inicia as relações objetais na medida em que, além da satisfação instintiva, o bebê possa se adaptar ao objeto. O crescimento do ego relaciona-se a aspectos do cuidado: a integração depende do cuidado, a personalização liga-se ao manejo e as relações objetais necessita da apresentação de objeto. Dentre as possíveis distorções do ego há o uso de defesas, dentre elas a utilização de um falso self. No texto Distorções do ego em termos de falso e verdadeiro self (1960), Winnicott define a função do falso self como basicamente a de ocultar e proteger o verdadeiro self. Há graduações de falso self desde ocultação quase plena do verdadeiro self o que provoca um sentimento de não-existência – graduação patológica, até às organizações sociais – 21 graduação saudável. Se a mãe não permite ao bebê o sentimento de onipotência, de sentir-se deus, do gesto espontâneo, então, há uma submissão do bebê aos desejos da mãe o que resulta na construção de relacionamentos falsos da criança. Na dependência absoluta, estágio mais primitivo que pode ir até os quatro meses de vida, o bebê é estritamente dependente dos cuidados oportunizados pela mãe. A mãe por sua vez, através da preocupação materna primária – em geral ocorre no fim da gestação e nas primeiras semanas do nascimento do bebê – torna-se capaz de identificar-se com o bebê e dar- lhe aquilo de que necessita. Assim, além de prover os cuidados referentes à preservação da vida – handling, ela sustenta psiquicamente seu bebê – holding. A mãe proporciona um período de onipotência ao bebê. A área de ilusão é denominada como uma experiência que a criança pode tomar, ou como alucinação sua, ou como algo que pertence à realidade externa. Nessa etapa, o bebê não consegue perceber que o objeto atacado é o mesmo objeto valorizado; assim, ele ainda não construiu a noção de Eu-Não-eu. O amor da mãe pode ser percebido por ele em termos de cuidados físicos, apesar de ainda não ter controle disso. A agressão inicial do bebê está muito próxima a motilidade, nas experiências do id, sendo quase sinônimo de atividade. Segundo Newman (2003), fracassos nesse estágio de dependência absoluta podem resultar numa busca, ao longo da vida, por alguém que não desapareça, de quem se possa depender, ao mesmo tempo, esse alguém será submetido a testes tão severos de modo que a pessoa que sofreu fracasso possa dizer “Eu sabia desde sempre – não há ninguém de quem é realmente possível depender – o triunfo da desesperança” (NEWMAN, 2003, p. 132). Na dependência relativa, período que compreende aproximadamente a época do desmame até por volta dos dois anos, se a mãe é apenas suficientemente boa, pôde permitir a vivência de onipotência do bebê e na seqüência ela produz uma desadaptação gradativa das necessidades dele, mas prossegue na apresentação do mundo, o bebê consegue perceber nesse 22 estágio, um interior/exterior a partir da sua pele como membrana limitadora. A criança nota que a mãe é necessária. Em Winnicott encontra-se em termos estágio ruthlessness, ou inconsideração e concern, ou concernimento (equivalente à posição depressiva definida por Melanie Klein). Esses termos foram anteriormente traduzidos por estágio pré-preocupação e estágio preocupação; Davy Bogomoletz (2004) propõe a atualização desses termos para melhor expressar a idéia de Winnicott. Quando houver citação literal do texto, optei em deixar a tradução anterior. No estágio de concernimento, o bebê conseguiu unir agressão e amor em relação a um mesmo objeto. Para que isso ocorra é necessário que o bebê tenha a figura materna para receber a reparação e pode assim se preocupar. No texto intitulado O desenvolvimento da capacidade de se preocupar (1963), Winnicott aponta: “Preocupação indica o fato do indivíduo se importar, ou valorizar, e tanto sentir como aceitar responsabilidade”. (WINNICOTT, 1982, p. 70). Noutro texto intitulado A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal (1954), Winnicott afirma que a posição depressiva (estágio de preocupação) no desenvolvimento é uma conquista. Para essa conquista é necessário que os outros estágios tenham sido atingidos (na vida ou na análise) e que o bebê se estabeleça como pessoa total e se relacione com pessoas totais. A junção na mente da criança de aspectos do ambiente que cuida e o do que é excitante depende da maternagem suficientemente boa da mãe e da sua capacidade de sobrevivência. À medida que a criança é capaz de armazenar recordações de situações vividas como boas de modo que a sustentação oferecida seja incorporada ao ego, a mãe real passa gradativamente a ser menos necessária. Nesse sentido, a criança construiu um ambiente interno, portanto é capaz de lidar com outras situações de modo a propiciar esses cuidados incorporados. O mundo interno da criança é construído pelas experiências pulsionais, pelas coisas incorporadas, mantidas ou eliminadas, pelas relações totais ou pelas situações 23 magicamente introjetadas. Ela maneja o mundo externo conforme o manejo de seu mundo interno. Rumo à independência descreve a criança pré-escolar e a criança na puberdade. Esse período designa a capacidade de se confrontar com o mundo e todas as suas complexidades e de lidar com o seu mundo interno na realidade externa. Esse processo atinge os adultos na medida em que a independência nunca é absoluta. Assim, as experiências no trabalho, o casamento, a distinção entre o que é uma imitação dos pais e uma identidade pessoal constituem o contínuo processo desenvolvimento emocional. O desenvolvimento não é visto como linear e progressivo, através do mecanismo de regressão pode-se retornar a uma organização até então conquistada. Para designar o que é saudável no desenvolvimento, no texto intitulado O conceito de indivíduo saudável (1967), Winnicott aponta: “é saudável ter seis anos aos seis de idade, e dez aos dez.” (WINNICOTT, 1999, p. 6). Nessa afirmação, há a junção de aspectos biológicos aos psicológicos e o equilíbrio entre esses aspectos se traduz em saúde. O adulto reflete o desenvolvimento conquistado, entretanto, são possíveis as alterações no padrão conquistado nos estágios iniciais através, por exemplo, de análise pessoal, da vivência na cultura, das amizades, da paixão. Em Natureza Humana Winnicott afirma: “(...) seja qual for o grau que atribuirmos ao ambiente, o indivíduo permanece, e dá ao ambiente um sentido” (WINNICOTT, 1990, p. 220). Inicialmente o ambiente é exclusivamente a função materna de holding e handling, adaptação e desadaptação gradativa, permitir a ilusão e a desilusão, a mãe passa de um objeto subjetivamente concebido para um objetivamente percebido. Progressivamente o ambiente facilitador incorpora as funções paternais, familiares e sociais para a continuação do princípio de realidade na vida da criança. 24 A princípio, o indivíduo é um ser isolado; não há percepção do ambiente como externo. Na adaptação ativa, o bebê descobre o ambiente; numa reação à intrusão o ambiente surpreende o bebê. Assim, o padrão de descoberta constante do ambiente resulta numa experiência de indivíduo, fazendo com que ele se desenvolva a partir do centro. Noutro padrão, em que ambiente invade o bebê, existem reações às intrusões. Num padrão marcado por severos fracassos ambientais, o indivíduo existe por não ser encontrado, há uma sensação de futilidade, o verdadeiro self fica ocultado. 2.2 - A hospitalização como evento traumático para a criança A criança é um ser em desenvolvimento, portanto, não possui recursos psíquicos aprimorados para suportar a experiência da hospitalização, as falhas ambientais interferem na construção da sua personalidade. Posso supor que uma criança durante a dependência absoluta percebe o amor em termos de cuidados físicos – ainda que não reconheça a mãe como objeto externo – ao ser submetida a constantes procedimentos intrusivos sentidos em sua pele, tais como aparelhos, aplicação de injeção, dentre outros, identifica esses procedimentos intrusivos como padrão em sua vida. O início da construção da personalidade está marcado por essas experiências corporais. Se nessa etapa a criança necessita de um apoio de ego auxiliar, se isso é impedido de cuidados inconstantes, também é uma quebra no seu vir-a-ser. Uma criança na dependência relativa é capaz de identificar eu – outro. Recorre a defesas a fim de preservar seu self verdadeiro. Esse recurso também depende de um ambiente facilitador, até que essa seja capaz de lançar mão do seu mundo interno para manejo do mundo externo. Essa etapa também compreende a função social da agressão2. Quando não ocorre continência do ambiente externo, a criança tem que administrar grande dose de sua 2 Ver WINNICOTT, D. A agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional (1950). In: WINNICOTT, D. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. p. 355 – 374. 25 própria agressão. É possível escutar de crianças que ao serem indagadas sobre o porquê delas estarem no hospital, respostas como: “eu briguei com meu irmão”. Certo dia, ao passar pelo corredor da pediatria, vi um menino com mais ou menos quatro anos de idade que acabara de sair da UTI; ele estava na pediatria para recuperar-se da cirurgia e, no período pré-operatório sua mãe o acompanhou. Durante os dias no hospital, a mãe fazia tarefas escolares e trazia consigo um dicionário. No dia em que o vi, a mãe ainda não o acompanhava. O menino estava sentado no leito, manuseando o dicionário. Ao ver aquela cena, parei na porta de seu quarto e olhei fixamente. Diante da minha presença ele imediatamente ergueu o pijama, então pude ver uma cicatriz e pontos na região do tórax. Ao olhar para sua cicatriz perguntei: “Quem fez isso?” Ele prontamente respondeu: “Foi a mamãe”. Outra situação comum é perguntar para a criança como ela está e recorrentemente ouvir respostas como “estou bem” ou “vim passear no hospital”, demonstrando sua onipotência ou sua negação da realidade. É provável que essas sejam formas de lidar criativamente com a realidade externa, negando-a para enfrentá-la como uma experiência suportável. Penso que a regressão é um evento previsível da criança hospitalizada, funções adquiridas são perdidas, por exemplo, parar de andar, não saber ler. Então, a hospitalização, sobretudo prolongada, é um bloqueio no desenvolvimento da criança. Desse modo, recorro à tese de que a hospitalização é necessariamente um evento traumático para a criança, pois provoca uma quebra no seu vir-a- ser. O grau de intrusão depende da idade, do tempo de internação e do tipo de experiências às quais a criança é submetida. Spitz (1979), através do método de observação, do registro através de fotografias e filmagens e da utilização de testes fez uma descrição minuciosa da díade mãe-bebê. No seu livro intitulado O primeiro ano de vida, traz reflexões sobre esse estudo realizado em duas instituições: uma creche e uma casa para crianças abandonadas. A diferença entre essas 26 instituições reside no tipo de cuidado dispensado à criança. Na primeira instituição, a criança recebia cuidados maternos de mães substitutas e de mulheres grávidas, havia brinquedos e boa visibilidade para as crianças. Na segunda, após o terceiro mês, as crianças ficavam num cubículo sendo cuidadas por apenas cinco enfermeiras, era raro encontrar brinquedos e as crianças tinham como seu campo visual, em geral, apenas o teto. Esse estudo levou Spitz a construir seu ponto de vista sobre a relação inicial. Para ele, no início da vida não há ego. Portanto, é a mãe que serve de mediadora entre as satisfações instintivas da criança e o princípio de realidade. O comportamento da mãe é fundamental no desenvolvimento infantil, o desenvolvimento normal depende das boas relações com a mãe. Desse modo, os distúrbios de personalidade da mãe refletem-se em perturbações para a criança. Segundo Spitz, há relações inadequadas entre mãe e filho e relações insuficientes, ambas deixam suas marcas na personalidade da criança. A partir daí pode se formular dois conceitos: depressão anaclítica – privação parcial de afeto e hospitalismo – privação total de afeto. Na depressão anaclítica, a criança estabeleceu boas relações com a mãe, seu objeto de amor, antes da separação. Portanto, na volta do objeto de amor é possível a recuperação. As características dessa síndrome são, basicamente (SPITZ, 1979, p. 236): 1º mês: a criança torna-se chorosa e exigente, tende a apegar-se facilmente com outros contatos; 2º mês: o choro transforma-se em gemido, há perda de peso e parada no desenvolvimento; 3º mês: há recusa de contato, insônia, continua com perda de peso, há atraso motor, tendência para adoecer e rigidez facial; após o 3º mês: o choro é substituído por lamúria e o desenvolvimento começa a diminuir; após o 5º mês: tendência ao hospitalismo. Hospitalismo observado na Casa da Criança Abandonada reside na considerável carência afetiva das crianças que, apesar de receberem cuidados corporais, não dispunham de 27 suficiente atenção e manejo da figura humana. O índice de mortalidade nessa instituição era superior a de outras instituições. Em suma, para Spitz a privação materna tem sérias repercussões no desenvolvimento infantil, resultando em: carência emocional, deteriorização progressiva, interrupção no desenvolvimento da criança, disfunções psicológicas paralelas a mudanças somáticas, predisposição a infecção, elevada taxa de mortalidade quando a privação prossegue no segundo ano de vida. Bowlby (2002) afirma que a privação parcial ocasiona a angústia, a necessidade de amor, depressão e fortes sentimentos de vingança e de culpa. A criança, por ser imatura, não consegue lidar com essas emoções provadas pela privação parcial o que resulta em distúrbios nervosos e numa personalidade instável. A privação total pode prejudicar a capacidade de estabelecer relações do indivíduo. Portanto, para Bowlby “tudo o que acontece nos primeiros anos de vida pode ter efeitos profundos e duradouros”. (Idem, p. 7). A criança privada dos cuidados da mãe pode ter atraso no desenvolvimento físico, intelectual e social. A combinação de fatores como hereditariedade, idade e duração interferem nos efeitos de uma privação. No livro intitulado Cuidados maternos e saúde mental, Bowlby traz o relato da observação da hospitalização de um bebê de quatro meses, que após passar dois meses num hospital, teve seu peso reduzido a um número inferior ao do seu nascimento. Vinte e quatro horas após retornar a sua casa, o bebê voltou a sorrir e começou a ganhar peso, ainda que sua dieta não tenha sido alterada. No final do primeiro ano, sua aparência era a de uma criança normal. Portanto, para Bowlby, há uma significativa mudança no estado da criança após recuperar a mãe. Ainda nesse texto, o autor afirma que crianças de três a oito anos submetidas à hospitalização têm ansiedades comuns, tais como a idéia de que não voltarão as suas casas e a de que estariam sendo mandadas embora por serem más. 28 A hospitalização para Bowlby, bem como as mudanças de figura materna até os quatro anos de idade podem produzir uma personalidade psicopática incapaz de afeição. Ele afirma também que o afastamento repentino da mãe tende a provocar uma regressão na forma de pensar e de se comportar e isso implica uma dificuldade para voltar a crescer. Diante da separação, Bowlby elege três tipos de ansiedades: a ansiedade paranóide, a depressiva e a confusional. Segundo Neto (1989), os efeitos de uma hospitalização crônica em crianças pequenas evidenciaram-se com base nos sinais precoces de retraimento, apatia e indiferença, depressão, insuficiente ganho de peso, atos compulsivos como movimentos de cabeça etc e também no aparecimento de sinais tardios, tais como: afetividade limitada, pensamento abstrato limitado e diminuição do QI. Além do acesso a um tratamento qualificado em termos tecnológicos, a qualidade das relações humanas ajuda a catalogar o tipo dessas experiências; justamente nesse campo é que a questão torna-se mais delicada. Para Neto, a medicina tende a focalizar aspectos físicos dos casos atendidos negligenciando os aspectos psicológicos. Segundo uma pesquisa realizada em 1989 no Johns Hopkis Hospital, dois observadores disfarçados de recepcionistas gravaram durante três meses conversas entre médicos na Unidade de Terapia Intensiva, com 14 leitos e seus 99 pacientes. Apesar da presença constante de cinco ou seis médicos de plantão, os resultados constataram que, de meia em meia hora, os médicos falavam com as crianças em menos de um minuto e raramente olhavam diretamente para elas. As crianças passavam, mais da metade de cada hora do tempo, acordadas olhando para as paredes. Apresentavam-se retraídas e dissociadas daquele ambiente. Um terço do tempo, elas apresentavam comportamentos como chorar e gritar. Em três por cento do tempo, a criança assistia à televisão ou lia um livro. (NETO, 1989, p. 10) 29 Outeiral (2003), no livro intitulado Desamparo e Trauma: transferência e contratransferência, traz o conceito elaborado por Masud Khan em 1963 designado como trauma acumulativo, o qual resulta das fendas deixadas pela mãe como escudo protetor ao longo do desenvolvimento, fazendo com que esse trauma se acumule de forma silenciosa e invisível. Os resultados dessas fendas podem ser: o desenvolvimento de um ego prematuro e seletivo, organização de defesas contra as invasões ambientais, desequilíbrio na integração de impulsos agressivos, prejuízo na evolução das fases libidinais. Também pode haver múltiplas dissociações, necessidade de uma dependência em relação à mãe e ao meio ambiente, as idealizações e superproteção substituem catexias objetais. A relação com o próprio corpo e com o corpo do objeto de amor pode ser superíntima, intrusiva e tumultuada. As falhas ambientais nas primeiras etapas do desenvolvimento levam a congelar essas experiências de fracasso na esperança de que em outro momento da vida encontre um ambiente facilitador. Porém, se as reações a intrusões são padrão na vida da criança, ou se o reagir foi excessivo, há ameaça de aniquilamento e ansiedades impensáveis. O trauma, portanto rompe abruptamente a confiança no ambiente, provoca reações a intrusões e gera ódio. No texto intitulado O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família (1956), Winnicott afirma que o trauma varia de significado conforme a idade do indivíduo. O trauma causa colapso na confiança no meio ambiente no estágio de dependência absoluta, resultando num relativo fracasso da estrutura da personalidade e organização do ego. Há o aspecto natural do trauma à medida que a introdução do princípio de realidade acontece no processo de adaptação/desadaptação, no estágio da dependência relativa rumo a independência. De maneira geral, o trauma é uma quebra de fé. O meio ambiente interfere pelo fato de atravessar defesas. Quanto mais há 30 integração, mais a criança sofre ao ser traumatizada. “O trauma é a destruição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão súbita ou impredizível de fatos reais, e pela geração de ódio no indivíduo, ódio do objeto bom experienciado não como ódio, mas delirantemente como sendo odiado”. (WINNICOTT, 1994, p. 114). O texto denominado Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo (1963), Winnicott trata da relação entre trauma e a idade da criança através de um caso de perda da mãe para três filhos. Após a morte súbita da mãe, três meninos ficaram sob os cuidados de uma amiga da mãe que posteriormente tornou-se madrasta. A primeira criança, de quatro meses, não apresentou problemas de desenvolvimento, pois a mãe era, nessa etapa, um objeto subjetivo e a substituta assumiu seu lugar. Aos quatro anos, essa criança apresentou necessidade de falar sobre a morte evidenciada no seu brincar repetitivo. A segunda criança, de seis anos, levou aproximadamente dois anos para o processo de luto, apresentava compulsão para roubar. Essa criança aceitou a madrasta e lembra-se da mãe como uma pessoa desaparecida. A terceira de três anos, estava incapaz de se defrontar com a culpa por causa da morte da mãe, pois apresentava um apego especial ao pai. Tornou- se hipomaníaco e, aos treze anos, ainda apresentava sinais de distúrbio psiquiátrico. (Ibid., p. 84-85) A hospitalização percebida como evento traumático para a criança pode favorecer a disponibilização de recursos para o enfrentamento dessa experiência. Nessa dissertação, proponho a inserção do brincar no contexto hospitalar, questão que será discutida no próximo capítulo. 2.3 - Adoecer Outro aspecto central para a discussão da hospitalização infantil é o próprio adoecer, sob o ponto de vista psicodinâmico. Assim, para a compreensão do cenário da 31 dinâmica hospitalar que envolve a postura da instituição e o gerenciamento da doença por parte da criança e da família, é possível apoiar-se no conceito de psicossomática formulado por Winnicott. Júlio de Melo Filho (1989), citado na introdução de Explorações Psicanalíticas, afirma que a teoria psicossomática de Winnicott ainda está em esboço e, portanto, há possibilidade de ser desenvolvida. Segundo Winnicott, inicialmente há uma psique-soma instintiva-fisiológica. A psique se caracteriza pela elaboração imaginativa de partes, sentimentos e funções somáticas sendo que o ego é, inicialmente, um ego corporal. A integração psicossomática é parte do processo de desenvolvimento, rumo à personalização – “Eu sou”. Entretanto, para que haja um desenvolvimento saudável é necessário um ambiente facilitador. Em seu texto intitulado A mente e sua relação com o psique-soma (1949), Winnicott afirma que a mente tem sua raiz na necessidade do indivíduo de ter um ambiente perfeito. Desse modo, a atividade mental do bebê pode transformar o fracasso adaptativo em sucesso; assim, a sua compreensão livra a mãe de ser perfeita. Contudo, o bebê pode usar demasiadamente o pensamento para organizar e controlar os cuidados da psique-soma negligenciados por uma maternagem inconstante, o que resulta num crescimento excessivo da atividade mental para suprir cuidados ambientais, ocasionando um desenvolvimento aprisionado por um falso self criando-se dependência da mãe real. Observo uma constante necessidade de explicação sobre a doença e rotina, tanto de familiares como de crianças internadas. Penso que isso se dá em decorrência de, basicamente, dois fatores. O primeiro deles é a busca da diminuição da ansiedade pelo esclarecimento dos procedimentos, das rotinas tipicamente hospitalares e do prognóstico da doença. O segundo fator é o mais primitivo e revela a regressão inerente à internação, baseia-se na idéia de que diante da falha ambiental, da falta de holding, o indivíduo tenta suprir essa falta por intermédio da atividade mental. É uma tentativa de substituição da explicação pela 32 experiência. Nesse fator, o falso self pode aparecer como aspecto dominante, por isso acredito que as explicações dadas pela equipe são quase sempre insuficientes para confortar as mães/acompanhantes que ficam internadas com as crianças. GRESSLER, G.; MIRANDA, M. E. (2001) afirmam que alguns tipos de fracasso ambiental são nefastos: a) mãe psicótica: nesta situação a mãe consegue se identificar com o bebê, mas tem dificuldade para separar-se dele; b) a mãe que não pode entregar-se à preocupação materna primária: é difícil para essa mãe desempenhar seu papel junto ao bebê, por estar envolvida com algo ou por estar deprimida; c) a mãe atormentada: é a mãe que tem dificuldades para promover a continuidade e estabilidade dos cuidados que dispõe a criança. Esta situação seria a pior das três, pois violaria o sentimento de self do bebê. A instituição hospitalar, em termos ambientais, pode ser uma mãe psicótica, ou uma mãe que não se entrega à preocupação materna primária ou ainda uma mãe atormentada. A continuidade da integração psicossomática é perturbada por diversas reações a intrusões ambientais, assim o transtorno psicossomático é uma organização defensiva e isso configura seu lado positivo. O aspecto positivo do adoecer reside na tentativa de integração. Para Winnicott, a doença psicossomática teria sua raiz numa falha ambiental; múltiplos splittings seriam uma tentativa de retorno à integração inicial. Segundo Hisada: “É a doença de cada um. (...) Cada indivíduo tem seu modo de viver e de adoecer. O tipo de doença e a época da vida em que ela se manifesta tem relação com a sua história, com a natureza dos seus conflitos intrapsíquicos e com a forma de lidar com eles”. (HISADA, 2003, p. 8). O indivíduo pode transformar transtornos psíquicos em sintomas orgânicos e esse processo pode ajudar na organização de uma situação através da explicação, gerando, assim, um conforto a si próprio. 33 2.4 - A família Diante da hospitalização, sobretudo prolongada, há a necessidade de reorganização familiar para lidar com esse cenário. A família nem sempre é constituída estritamente por laços consangüíneos, ou seja, pai, mãe e filhos. Nessa dissertação, é considerada família o meio social mais próximo à criança. Há várias possibilidades de modificações na dinâmica familiar, decorrentes da hospitalização; dentre elas, a reorganização econômica, estrutural, social e emocional. A presença da mãe junto à criança no hospital gera a necessidade de transferência dos cuidados da casa e dos outros filhos para outra pessoa. Se a mãe tem um trabalho fixo deve então solicitar licença, que nem sempre é obtida em órgãos privados. O horário de visita, não raro, ocorre em horário comercial, por essa razão, pode até inviabilizar a visita dos demais familiares. Ao conversar com mães que acompanham filhos internados percebo o impacto econômico, social e emocional de uma hospitalização. Há casos de crianças vítimas de severas privações que chegam ao hospital desnutridas, vítimas de maus-tratos e encontram nesse ambiente, cuidados essenciais para a continuidade de sua existência. Dada a importância da mãe, apoio de ego na vida da criança, é possível reservar um espaço para pensar na mobilização e nas condições dessa mãe ao ter um filho hospitalizado. Miele (2004) descreve suas emoções ao ter que se organizar e se adaptar a uma filha chamada Sofia, que desde o nascimento foi submetida a tratamento em UTI. Penso que as condições emocionais da mãe/acompanhante são um fator relevante para a vivência da criança durante a hospitalização. Estudos realizados por SPITZ, BOLWBY e demais autores evidenciam a importância da presença da mãe junto à criança salientando que as condições emocionais da mãe que acompanha seu filho são fundamentais para a vivência da 34 hospitalização. A mãe fica de certa forma internada com a criança, ainda que ela não esteja doente. Desse modo, ela se vê inserida na dinâmica da instituição com regras estabelecidas, perdendo gradativamente sua identidade. Miele diz que se tornou “mãe de UTI” e “mãe de um bebê crônico”. Assim como Miele, várias mulheres experimentam esse processo, comumente sem expectativa de retorno às vidas. Miele fala em seu livro sobre os momentos solitários, sobre a necessidade de ter que lidar com os próprios limites sem saber ate aonde se pode ir. Segundo ela, escrever esse livro foi uma maneira de reconstruir as lembranças e fazer algo de positivo diante dessa vivência dolorosa. Ela descreve a dor de ter uma ferida narcísica, sua busca no sentido de identificar culpa no passado, sua frustração e desafio de lidar com a maternagem no contexto hospitalar; segundo ela, as recorrentes invasões no universo “mãe e bebê” são o que mais incomoda, pois o cuidado com o bebê é delegado a médicos e enfermeiras. “Conversar ajuda, é um passo importante; difícil é encontrar quem tenha tempo para ouvir” (MIELE, 2004, p. 73). Essa frase escrita por Miele denuncia um campo a ser explorado pela psicanálise. Ela afirma que aos poucos, amigos e familiares se afastaram e no próprio hospital entre as mães havia troca de experiência. Penso que um Hospital humanizado deve acolher as inquietações das mães que acompanham seus filhos para que estas possam ter mais recursos psíquicos para o enfrentamento dessa experiência e, dessa forma, possam ser “mães suficientemente boas" para seus filhos. Miele se adaptou aos limites institucionais, além das mudanças de hospital, das várias cirurgias, de levar a filha para casa na home care, ela dava banho, fazia massagem, cantava para ela, a embalava. Nessa atitude, ela rompeu a lógica da instituição. “Olha como os parâmetros dela melhoram no colo da mãe!”. Essa observação feita por uma médica demonstra que entre Sofia e sua mãe, nesse universo singular, havia um investimento tão intenso da parte da mãe que era de alguma forma reconhecido pelo bebê. Num trajeto de 35 ambulância de um hospital para outro, Miele percebeu um ‘barulho novo’ em sua filha. A médica checa essa observação, conclui que realmente havia um problema e afirma “Toda vez que a mãe faz a observação, infalivelmente acerta”. Nessa situação é possível perceber o confronto, não raro, entre o saber científico e o senso comum. Acredito que esse também é um fator que pode provocar tensão nas relações interpessoais no hospital. 2.5 - O hospital como ambiente facilitador O hospital pode se tornar um local menos hostil na medida em que promova, além do handling um holding tanto para a criança hospitalizada como para a mãe/acompanhante. Possivelmente, no intuito de promover um ambiente mais favorável, há o movimento de “humanização na saúde”. Aos olhos da política pública a Humanização em Saúde foi regulamentada com a Portaria nº 881, em 19/06/2001, sob o título de Programa Nacional de Humanização e Assistência Hospitalar (PNHAH). O Objetivo principal desse programa consistia em divulgar e promover a humanização em hospitais no Brasil. Esse Programa baseou-se nos resultados obtidos através da implementação de um projeto piloto, atingindo 10 hospitais, em diferentes regiões do país, contemplando assim, diferentes realidades sociais, políticas e econômicas. Paulatinamente foi sendo criada uma rede Nacional de Humanização. Cada instituição deveria constituir grupos de trabalhos próprios3, formados por representantes de todos os setores da instituição4, inclusive com a participação de usuários. Os grupos de 3 Os grupos de trabalhos, segundo o Ministério da Saúde, seriam responsáveis por: a) sensibilizar a gestão hospitalar; b) constituir grupos de trabalhos de humanização (GT), c) tomar parâmetros de humanização para avaliar a realidade do hospital e planejar suas ações de humanização, d) fazer diagnóstico da situação hospitalar em termos de serviços humanizados, e) elaborar e implementar um plano operacional de ação e humanização, f) avaliar os resultados de implementação do processo de humanização. 4 Em pesquisa realizada no portal humaniza em 22/02/2004 para mapear a participação dos profissionais por especialidade foram obtidos os seguintes resultados: 47 registros da área de psicologia, um registro da área de pedagogia, 153 registros da área de enfermagem, um registro da área de medicina. 17 registros da área de terapia 36 trabalho tinham acesso aos materiais produzidos pelo Ministério da Saúde sobre humanização em hospital, tais como, vídeos e materiais impressos; além de participação em eventos e supervisão de técnicos. A idéia era de que esses grupos de trabalhos fossem multiplicadores em suas instituições. Esses grupos deviam ter regimento interno próprio. Com a finalidade de oportunizar um intercâmbio entre as experiências de humanização em hospitais foi criado o portal: www.humaniza.org.br, tendo em seus conteúdos fórum de debates, mapa das experiências, artigos sobre a humanização, biblioteca, dentre outros. Webmasters recebiam dúvidas e críticas dos visitantes desse site, se comprometendo a respondê-las. O Programa Nacional de Humanização e Assistência Hospitalar teve seu término em 30 de junho de 2003. A partir dessa data, o Departamento de Desenvolvimento e Pesquisa da Saúde Mental e Psicossocial da Organização não governamental denominada A CASA5 se responsabilizou em gerenciar o site, agora com outro domínio, www.portalhumaniza.org.br. A CASA conta com uma equipe de psicanalistas, psicólogos, médicos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, filósofos e estagiários. No portal www.portalhumaniza.org.br estão cadastrados mais de quatrocentos hospitais participantes da Rede Nacional de Humanização6. Dentre eles, foram encontradas no mapa de iniciativas doze experiências com brinquedoteca, em dez instituições hospitalares do país7. O apoio governamental à humanização em saúde passou para uma organização não governamental, isso revela o pouco comprometimento em relação ao tema. Segundo o DATASUS, há 5864 hospitais no país e apenas 400 participam do Programa de Humanização, ocupacional, oito registros da área de assistência social, 14 registros da área de fisioterapia. Através desses dados pode-se perceber que a área de enfermagem é a mais envolvida na questão da humanização. 5 A CASA foi fundada em 1979. site: www.acasa.com.br, endereço: Rua João Maia, 118 – Aclimação. CEP 04109-130. 6 47 na região norte, 138 na região nordeste, 44 na região centro oeste, 71 na região sul e 117 na região sudeste, totalizando 417 instituições participantes. (acesso em 22/02/2004) 7 Hospital e Maternidade Nossa Senhora Aparecida – BA; Hospital de Urgência e Emergência Dr. Clementino Moura Socorrão II – MA; Santa Casa de Misericórdia de Passos – Hospital Regional Centro Oeste – MG; Hospital Regional Sorriso – MT; Santa Casa de Misericórdia de Campos – RJ; Hospital Universitário URCAMP – RS; Hospital das Clínicas UNICAMP – SP; Hospital de Reabilitação de Anomalias Crâniofaciais HRAC/USP – SP; Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Limeira - SP, SAMEB – Serviço de Assistência Médica de Barueri – SP. 37 com base no site. Dentre os 400 hospitais participantes, apenas 10 apresentam projetos de brinquedoteca, o que confirma a idéia de que a articulação lúdica e hospital ainda se mostra como uma novidade. A Humanização em saúde envolve várias questões, dentre elas é possível citar: 1) formação profissional; 2) administração hospitalar; 3) qualidade das relações interpessoais; 4) apoio financeiro. A humanização em saúde é um tema que se mostra controverso por algumas razões: a) falta de parâmetros para avaliar e identificar o que é a humanização, b) apelo à emoção imediata o qual interfere na continuidade de ações que promovam a melhoria no atendimento, podendo em algumas situações ser extremamente sensacionalistas, c) recrutamento de voluntários abortando a contratação de profissionais, ou delegando a terceiros a tarefa de lidar humanamente com o paciente, d) acolhimento de iniciativas diversificadas a fim de entreter o paciente, e) deslocamento do foco do problema das relações entre pessoas para planejamento de atividades. No portal humaniza8 o artigo intitulado Infecção Hospitalar diminui com a implantação do Programa de Humanização, publicado pela Internet em 12 de setembro de 2003, trouxe a experiência do Hospital Pequeno Príncipe de Curitiba (PR). Esse hospital implantou o projeto família participante (1997) cujo objetivo é manter a criança em constante acompanhamento dos familiares, os quais recebem treinamento para prevenir infecções como, por exemplo, dicas para o uso do álcool em complemento a lavagem das mãos. Os resultados desse projeto apontaram para a diminuição do tempo de permanência no hospital em 50% e de diminuição da taxa de infecção hospitalar em 20%. A continuidade desse projeto se dá por 8 . Acesso em: 02 fev. 2005. 38 conta dos índices de diminuição de infecção e não exatamente priorizando a retomada de vínculos da criança como melhor vivência da hospitalização. Pesquisa realizada por Masetti (2001), de janeiro a outubro de 1997, no Hospital Nossa Senhora de Lourdes e Hospital Israelita Albert Einstein, ambos localizados em São Paulo-SP, pretendeu analisar o impacto do trabalho dos Doutores da Alegria no ambiente hospitalar na perspectiva dos profissionais, pais e da própria criança. Em relação à criança foram solicitados 90 desenhos sendo 68 no grupo pesquisa e 22 no grupo controle. Os desenhos eram pedidos em dois momentos, antes e depois da interação com os palhaços. Foram pedidos dois desenhos em cada momento, um desenho relativo aos sentimentos da criança em estar hospitalizada e o outro de uma figura humana. Os desenhos foram analisados nas categorias: estilo, forma e tamanho, nos dois momentos. Segundo os profissionais, após a interação da criança com os Doutores da Alegria notou-se mudança em seu comportamento. As crianças foram consideradas mais ativas, mais colaboradoras com a equipe, alimentavam-se melhor, aceitavam as medicações e exames e o contato entre profissionais e criança aumentou. Para os pais, as crianças também mudavam de comportamento. Falavam mais, brincavam e se alimentavam melhor. A análise dos desenhos e das histórias apontou para a mudança nos conteúdos, no aumento de histórias positivas e com final feliz, na maior expressão de conflitos, no aumento do tamanho dos desenhos, no maior uso de cores. As alterações observadas na produção das crianças expressavam a mudança de posicionamento perante sua internação. O desenho de um garoto, por exemplo, passou de um menino que morria para o de um super-herói que salvava o gigante. Segundo Masetti, “Desenhar aqui é entendido como uma concretização material e visual da experiência de existir da criança. As correspondências formais e gráficas espelham a organização interna do universo da criança”. (MASETTI 2001, anexo 03). 39 Essa pesquisa subsidiou sua dissertação de mestrado intitulada Boas misturas9: possibilidades de modificações da prática do profissional da saúde a partir do contato com os Doutores da Alegria, em 2001. A questão que motivou uma investigação pormenorizada, segundo Masetti, foi: Como a mesma criança poderia ter respostas tão diferentes a artistas e profissionais da saúde? Através da análise10 do grupo focal, formado por profissionais de saúde de quatro hospitais onde os palhaços e artistas do Programa Doutores da Alegria atuam, objetivou buscar indícios de transformações na forma com que os profissionais falam das relações com seus pacientes a partir do convívio com o trabalho dos Doutores da Alegria. Para Masetti, o termo humanização carrega a pressuposição de que é possível não ter uma relação no cuidado com o paciente, uma vez que a humanização contribui para a departamentalização das funções dentro do hospital, do emocional cuida o psicólogo, do brincar o recreacionista, da vida espiritual o padre. (MASETTI, 2001, p. 12). Segundo Masetti, a participação do Doutores da Alegria em hospitais só foi possível porque aconteceu no contexto de abertura hospitalar rumo à humanização no atendimento. Além disso, o que valida as práticas no âmbito hospitalar é a visão terapêutica, ou seja, por a intervenção dos Doutores da Alegria ter gerado resultados positivos na internação, isso assegurou seu espaço. Entretanto, o autor afirma que a terapêutica não é a perspectiva dos Doutores da Alegria e sim uma interação artística no âmbito hospitalar. Assim, a grande crítica que Masetti faz ao movimento de humanização hospitalar reside em afirmar que a humanização acaba por consolidar as especialidades no cuidado ao paciente. O que desloca o foco do problema de melhoria da qualidade das relações humanas para a criação de atividades para a promoção do bem-estar do interno. Isso reforça a cota mínima de responsabilidade do profissional no vínculo afetivo com o paciente, uma vez que a atenção ao doente é dividida. 9 Boas misturas são encontros onde os indivíduos em mistura coexistem, sem que um destrua a natureza do outro deixando que a potência de cada um se expresse nos encontros. (MORGANA, 2001, p. 17). 10 A análise baseou-se na construção do mapa de associação de idéias (SPINK, 1999), MORGANA, 2001, p. 49. 40 Para Masetti, a ação dos Doutores da Alegria em âmbito hospitalar favorece ao profissional da saúde reavaliar sua atuação, pois esses doutores especiais rompem com a lógica institucional e permitem que o profissional possa experimentar uma outra maneira de viver sua identidade. “Os palhaços são vistos como pessoas que ‘quebram’ o ritmo dos acontecimentos” (Ibid., p. 63). Apoiados na ação dos Doutores da Alegria foram eleitos 14 indicadores como possíveis influências na prática profissional: 1. Percepção dos fatos a partir de novos parâmetros. 2. Ação como contexto referencial. 3. Exercício do poder das paixões alegres (ação, liberdade). 4. Vivência de cada encontro como um grande acontecimento. 5. Transformação da experiência da doença em possibilidade de desenvolvimento. 6. Estabelecimento de relações simétricas. 7. Construção de vínculos que permitam a expressão de sentimentos e dificuldades cotidianas. 8. Corpo vivido de forma integrada. 9. Percepção da realidade através dos sentidos. 10. Estabelecimento de relações de confiança. 11. Sucesso do tratamento ligado à qualidade do processo de relação estabelecido. 12. Percepção de que a situação da criança pode ser reconhecida e transformada e não minimizada. 13. Modelo de atuação construído a partir da relação. 14. Foco no presente. Desses 14 indicadores, seis não foram detectados nas falas dos profissionais: a) exercício do poder a partir das paixões alegres; b) vivência de cada encontro como um grande 41 acontecimento; c) estabelecimento de relação de confiança; d) compreensão de que a situação da criança possa ser transformada e não minimizada; e) modelo de conhecimento construído a partir da relação; f) foco no presente. Os dificultadores estão ligados a aspectos da formação do profissional com ênfase na técnica. Por outro lado, o hospital é visto como um local que drena muita energia, o que, na visão dos entrevistados, inviabiliza o acontecer do inusitado ou criativo. Outro aspecto destacado foi a expressão de sentimentos que profissionalmente é, em geral, entendida como negativa, como algo que pode abalar a relação de confiança com o paciente. Moura (1999) no livro intitulado: Psicanálise e Hospital: a criança e sua dor, discute o papel do psicanalista no ambiente hospitalar, destaca a singularidade do processo de hospitalização e apresenta vinhetas da interação psicanalista e pessoa internada. Esse livro traz reflexões de 20 anos de trabalho em hospital. Marisa Decat de Moura é vinculada ao Hospital Mater Dei de Belo Horizonte-MG. Esse hospital conta atualmente com uma equipe de psicanalistas que interagem na instituição. Moura afirma que a psicanálise não era vista com bons olhos no hospital, tanto dentro como fora dele. Assim, sua prática foi sendo construída nesse espaço ao tatear as possibilidades de intervenção do psicanalista em hospital. Para Moura, a psicanálise no hospital difere da psicanálise ortodoxa no que tange ao espaço, ao tempo e ao setting, pois a especificidade do ambiente hospitalar impõe um enquadre que leve em consideração a dinâmica do hospital e o paciente inserido nessa dinâmica. Entretanto, tais especificidades não diminuem o efeito terapêutico da intervenção do psicanalista, mas exige dele formação teórica e pessoal para lidar com situações que apareçam no âmbito hospitalar. O referencial teórico adotado por essa equipe é o referencial lacaniano; segundo Moura, esse referencial tem respondido às questões clínicas surgidas no hospital. Nesse livro são trazidas algumas dessas questões, tais como: situar o lugar do psicanalista no hospital, 42 delimitar as possibilidades de ação do psicanalista nesse espaço de tempo e compreender por que alguns acontecimentos afetam de maneira peculiar esses profissionais. Isso impele a indagar: por que a psicanálise no hospital? A escuta psicanalítica por sua especificidade pode detectar se há crise subjetiva e assim poder intervir. A hospitalização é uma experiência singular e cheia de significados próprios. Para Moura, a Psicanálise pode dar lugar ao tempo de urgência com o tempo de compreender, o paciente pode formular suas questões e estabilizar a crise. A psicanálise, portanto, vem a trabalhar com o material que não pode ser verbalizado, com a dor que a pessoa não consegue nomear, com aquilo que acontece independente do controle consciente da pessoa. Desse modo, no hospital, a escuta psicanalítica tem um impacto de grande relevância visto que sentimentos de aniquilamento e de cura se misturam, a incerteza da existência causa desespero. Daí a psicanálise não dá a resposta, mas permite que perguntas possam ser formuladas, proporcionando acolhimento a dor de existir. Moura, em participação numa mesa-redonda durante o I Simpósio Internacional de Psicologia, realizado na UNESP/Assis em setembro de 2003, compartilhou uma situação ocorrida no Hospital Mater Dei para ilustrar o sofrimento da equipe de saúde. Segundo Moura, um bebê nasceu morto. Imediatamente, foi levado ao necrotério, sem ser mostrado a mãe. Esse procedimento foi além de exigências hospitalares. O nascimento do bebê morto gerou uma angústia tão intensa nos profissionais que a única saída naquele momento era “se livrar desse bebê”. Essa atitude pode posteriormente ser discutida entre os profissionais com o amparo de um psicanalista. Com esse exemplo é possível desnaturalizar certos procedimentos hospitalares, os quais se apresentam como rígidos e destros, em seu conteúdo manifesto; quando seu conteúdo latente diz da incapacidade emocional da instituição em lidar com uma situação que causa grande angústia e, sem recursos emocionais para lidar com essas situações, 43 busca uma saída institucional a qual traduza esse mal-estar inconsciente em norma, pelos profissionais. A participação de um psicanalista pode acolher a equipe. Noutra experiência, Moura traz o seguinte relato: Um pediatra de plantão solicitou que um psicanalista fosse ver uma criança de cinco anos que estava internada há 10 dias. Essa criança não estava com acompanhante e sua breve história consistia num abandono pela mãe, ainda quando bebê. Atualmente a criança morava com o pai, a madrasta e sete irmãos. Atendendo à solicitação institucional, a analista foi ver a criança. Ao se aproximar diz seu nome, quem é e porque estava ali. A criança não responde, apenas olha para a analista. No quinto encontro, a criança faz caretas para a analista que retribui. No encontro subseqüente, o silêncio foi rompido. A criança começa a falar da sua história, das suas dores. O silêncio, o brincar, a verbalização. O silêncio da criança que não foi suportado por outros profissionais pôde ser acolhido, respeitado e compreendido pela analista. Moura justifica a importância de se ouvir o que a criança tem a dizer. A linguagem lúdica é uma forma importante de expressão da criança. Poder dramatizar temas ligados à hospitalização, ao sofrimento da doença e ao tratamento podem contribuir para um melhor enfrentamento da hospitalização infantil. As iniciativas citadas demonstram um outro olhar para a hospitalização infantil, pautada na idéia de que a criança pode lidar melhor com sua doença e sua hospitalização ao ser acolhida. Esse acolhimento pode vir da própria presença da mãe, como do manejo da equipe médica e até mesmo da disposição de ser escutada. No capítulo a seguir, trago o brincar como recurso que favorece uma melhor vivência da hospitalização. 44 3 O BRINCAR AOS OLHOS DA PSICANÁLISE O brincar tem sido estudado por várias áreas do conhecimento, bem como os seus aspectos lúdico, educativo, estimulador, terapêutico político e social, dentre outros. Esse capítulo pretende abordar o brincar do ponto de vista da psicanálise, notadamente, pela escola inglesa representada por Melanie Klein e Winnicott, como também pesquisadores que têm contribuído para o debate de idéias referentes a essa temática. O ponto de partida dessa discussão aponta as formulações de Freud sobre o brincar. Freud, em seu artigo intitulado Além do princípio de prazer, discute o significado psicológico do brincar com base na observação de um bebê de dezoito meses, seu neto, considerado por ele um bom menino visto que este obedecia às ordens dadas, não incomodava os pais à noite e nunca chorava quando sua mãe se ausentava. O menino tinha como brincadeira recorrente lançar objetos para longe de si dizendo ‘o-o-o-ó’. Segundo o texto, certo dia foi observado um jogo espontâneo do bebê com um carretel de madeira amarrado a um pedaço de cordão. O jogo consistia em segurar o carretel pelo cordão e lançá-lo para longe de seu campo de visão emitindo ‘o-ó-ó’0. Logo em seguida, puxá-lo de volta. Esse brincar tematizava o desaparecimento e o retorno. Para Freud, a interpretação do jogo tornou-se óbvia: O que a criança não poderia expressar na partida da mãe transferia ao brinquedo, essa renúncia instintual dava lugar à realização cultural da criança que podia sair da passividade imposta pela experiência para a atividade do jogo, essa repetição de experiência é produção de prazer. “A reexperiência de algo idêntico, é claramente, em si mesma, uma fonte de prazer”. (FREUD, 1920, p. 46). No jogo, há satisfação do impulso da criança, nesse caso, de vingar-se da mãe por afastar-se. Para Freud: É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim procedendo, ab-reagem à intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação. Por outro lado, é óbvio que todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas 45 crescidas fazem. Pode-se também observar que a natureza desagradável de uma experiência nem sempre a torna inapropriada para a brincadeira. Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências serão tema da próxima brincadeira, contudo, não devemos, quanto a isso desprezar o fato de existir uma produção de prazer provinda de outra fonte. Quando a criança passa da passividade da experiência para atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto. (FREUD, 1920, p. 28). Com base nas idéias trazidas por Freud é possível afirmar que a compulsão à repetição é um aspecto inerente ao jogo, cujo funcionamento traz prazer, ainda que verse sobre experiências desagradáveis. O jogo, portanto, está sob o princípio de prazer, traz a compulsão à repetição e torna o passivo em ativo. Para Melanie Klein, um simples brinquedo pode ter diferentes significados e, para compreendê-los, é necessário articular as conexões anteriores realizadas durante a análise infantil, bem como a situação atual da análise. O conteúdo latente só pode ser descoberto em análise profunda. Assim, o brincar aos olhos do observador não é a mera composição de símbolos, mas uma forma importante de expressão da criança, pois ela age ao invés de falar. Com base na análise lúdica, Klein percebeu uma correspondência entre as associações a elementos isoladas feitos pela criança ao brincar e a associação de elementos isolados do sonho, no adulto. O brincar da criança, para Klein, corresponde à associação livre do adulto. Segundo Klein, “Para o entendimento da brincadeira é necessário: observar o conteúdo dos jogos, a maneira como a criança brinca, os meios de que se utiliza e os motivos que se ocultam na mudança de jogo”. (KLEIN, 1969, p. 31). Klein em seu texto intitulado A personificação no brincar das crianças (1929) afirma que as personagens ou personificações nos jogos das crianças se originam de imagos internas através dos mecanismos de cisão e de projeção. Segundo ela, a cisão e a projeção constituem-se defesas contra a ansiedade. Assim, para Klein, se a fantasia da criança for livre o bastante, então, ela atribuirá ao analista os papéis mais variados e contraditórios durante a análise do brincar. Esse procedimento pode trazer grande redução da ansiedade, pois, o 46 conflito intrapsíquico entre superego e id torna-se menos violento e pode ser deslocado par ao mundo externo. A redução do conflito ou o seu deslocamento para o mundo externo por intermédio do mecanismo de cisão e de projeção é, segundo, Klein, um dos principais incentivos para a transferência. Desse modo, cabe ao analista assumir os papéis que lhe forem atribuídos pela criança, ou pelo menos é necessário a indicação de que os papéis foram incorporados para o progresso analítico. Portanto, a atitude da criança em relação à realidade se revela através da brincadeira. Para Klein, o conteúdo dos jogos, que se repete diversas vezes, sob as mais variadas formas é idêntico ao núcleo das fantasias masturbatórias. Assim, uma das funções principais da brincadeira da criança é oferecer descarga para essas fantasias. Aberastury teoriza uma leitura psicanalítica do brinquedo. Em seu livro intitulado A criança em seus jogos, a autora objetiva discutir a relação entre a maturação e o desenvolvimento e pretende identificar o aparecimento e o desaparecimento da atividade lúdica conforme a idade da criança. Por meio da atividade lúdica, a criança expressa seus conflitos e, deste modo, podemos reconstruir seu passado, assim como no adulto fazemo-lo através das palavras. Esta é uma prova convincente de que o brinquedo é uma forma de expressar os conflitos passados e presentes. (ABERASTURY, 1992, p. 17). Segundo a autora, o brincar do primeiro ano de vida da criança fornece as bases para o brincar e para as sublimações da infância e conduz a jogos amorosos. Quanto ao objeto brinquedo, alguns permanecem sem modificação ao longo do tempo, outros, por serem fabricados pelos adultos, refletem sua necessidade de lidar com situações de perigo, tais como, disco voadores e elementos da guerra atômica. Em seu texto intitulado A criança normal e o brinquedo: um estudo de psicologia evolutiva, Outeiral (1998) relaciona o brincar segundo o desenvolvimento humano. No 47 período dos seis primeiros anos de vida, segundo o autor, o interesse da criança é baseado fundamentalmente na mãe, assim sua primeira atividade lúdica refere-se à presença ou à perda da mãe, a criança utiliza o próprio corpo para brincar e, aos poucos, os objetos começam a funcionar como símbolos. Na segunda metade do primeiro ano de vida, a diferença anatômica entre os sexos aparece como tema no brincar: os meninos optam por objetos que possam penetrar e as meninas preferem colocar objetos em local oco. No período de um a três anos, a criança começa a separar-se da mãe e a explorar o mundo que a cerca, assim o movimento torna-se importante. Nessa etapa, o jogo dramático se inicia. Entre os dois e três anos, o crescimento egóico permite à criança recriar e reter imagens; portanto, o desenho passa a ser um meio freqüente de expressão podendo também inventar palavras e brincar com sons atribuindo-lhes novos significados. Na criança pré- escolar, os desejos genitais aumentam de intensidade e aparecem sublimados em vários tipos de atividades, porém apenas uma parte desses desejos constitui a relação edípica com os pais. Em geral a criança, nessa etapa, opta por brincar de casinha, papai-mamãe, criar amigos imaginários e prefere personagens ligados a família. Dos seis aos dez anos de idade, período equivalente à latência, o brincar assume a sublimação da criança que opta por brincar de professor e aluno, o que reflete seu novo ambiente. Há formação de grupos que funcionam como espaço transicional entre a proteção, a segurança familiar, a dúvida, a incerteza da vida na sociedade adulta. O esporte começa a interessar, há o cultivo de herói e o corpo volta a ocupar um papel importante. Diferentemente de Melanie Klein e Aberastury, Winnicott preocupou-se com o que caracteriza o brincar da criança pequena, independente do conteúdo. O estado de quase alheamento pertinente ao brincar impeliu Winnicott a teorizar o brincar. Ele designou um lugar e um tempo para o brincar: o espaço potencial, ou seja, na linha entre o que é 48 subjetivamente concebido e o que é objetivamente percebido, constituindo-se numa área de experimentação. Portanto, certas situações só podem ser vivenciadas no brincar, pois é uma forma criativa de lidar e suportar a realidade. Winnicott em seu texto intitulado O brincar: uma exposição teórica, afirma: A fim de dar um lugar ao brincar, postulei a existência de um espaço potencial entre o bebê e a mãe. Esse espaço varia bastante segundo as experiências de vida do bebê em relação à mãe ou figura materna, e eu contrasto esse espaço potencial (a) com o mundo interno (relacionado à parceria psicossomática), e (b) com a realidade concreta ou externa (que possui suas próprias dimensões e pode ser estudada objetivamente, e que, por muito que possa parecer variar, segundo o estado do indivíduo que a está observando, na verdade permanece constante). (WINNICOTT, 1975, p. 63). Para Winnicott, através do brinquedo, a criança lida criativamente com a realidade externa, pois a brincadeira é universal, própria da saúde, conduz a relacionamentos grupais, facilita o crescimento, é uma forma de comunicação na psicoterapia. As crianças brincam para controlar idéias ou impulsos que conduzem à angústia se não forem dominados11. As experiências das crianças evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras, as quais tendem para uma unificação e integração geral da personalidade, servindo de elo entre a relação do indivíduo com a realidade interior e a relação do indivíduo com a realidade externa ou compartilhada. O brincar serve também para administração da agressividade e da destrutividade. Somente no brincar um objeto pode ser: destruído e restaurado, sujo e limpo, morto e trazido de volta, favorecendo, portanto, a conquista da ambivalência. A contribuição original do pensamento de Winnicott reside na postulação de uma terceira área de experimentação denominada espaço potencial12. A transicionalidade acontece dada a experiência primitiva de ilusão-desilusão oportunizada pelos cuidados maternos suficientemente bons, em que mãe alterna a oportunidade do bebê ser deus, de exercer sua 11 WINNICOTT, D. Por que as crianças brincam? A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1982. p. 161-165. 12 ABADI, S. Explorações: perder-se e achar-se no espaço potencial. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 807-816, 2002. 49 onipotência e de mostrar-lhe o princípio de realidade. Somente a partir da criação de um espaço intermediário entre o dentro/fora; externo/interno mais o investimento ilusório no mundo é que se constrói um psiquismo capaz de suportar a realidade objetiva. Portanto, para Winnicott a aceitação da realidade depende do uso dessa área intermediária experienciada pelas artes, religião e pelo brincar que media a relação da pessoa com a realidade externa. Winnicott, em seu texto intitulado O Destino do Objeto Transicional (1959), exemplifica o espaço potencial a fim de demonstrar que este não acaba no término da infância: Não há dúvida de que percebem com facilidade o que quero dizer. Colocando-o de modo bastante grosseiro: vamos a um concerto e ouvimos um dos últimos quartetos de corda de Beethoveen (estão notando que sou intelectual). Esse quarteto não é apenas um fato externo produzido por Beethoven e tocado pelos músicos, e não é um sonho meu, que, em realidade, não teria sido tão bom. A experiência, aclopada à preparação que eu mesmo fiz para ela, capacita-me a criar um fato glorioso. Eu o desfruto porque digo que o criei, alucinei-o, e é real e teria estado lá houvesse eu ou não sido concebido. (WINNICOTT, 1994, p. 47). No espaço potencial também se dá a criação e o uso do objeto transicional, que é a primeira possessão não-eu do bebê. Ele pode ser um pedaço de cobertor, um ursinho, o cabelo da mãe entre outros. Dentre as características do objeto transicional posso destacar: o bebê assume direitos sobre o objeto; o objeto é acariciado, amado e mutilado; ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê; deve parecer ter vitalidade ou realidade próprias (textura); ele é oriundo do mundo exterior do nosso ponto de vista, mas não o é do ponto de vista do bebê e seu destino é perder o sentido. A superposição da área de brincar da criança e de outra pessoa pode, segundo Winnicott, introduzir enriquecimentos: "O professor visa ao enriquecimento, em contraste, o terapeuta interessa-se especificamente pelos próprios processos de crescimento da criança e pela remoção de bloqueios ao desenvolvimento que podem ter-se tornado evidentes”. (WINNICOTT, 1975, p.74). Lapastini, em seu texto intitulado Transicionalidade, ao se referir ao espaço potencial afirma: “assim, entre duas pessoas ou mais, cria-se uma área especial só delas, criação única própria daquela relação”. (LAPASTINI, 2001, p. 368). 50 O encontro, dito nessa pesquisa, se dá nesse espaço, na área de experimentação, na superposição da minha área de brincar e a da criança permitindo que esta entre em contato com emoções dolorosas e possa suportar criativamente a realidade hospitalar, não raro se apresente de forma demasiadamente intrusiva para a criança hospitalizada. Através do brincar a criança pode se expressar e re-significar certos conteúdos até então negados. Em A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald Winnicott, Abram (2000) afirma que o brincar, para Winnicott, é uma aquisição na teoria do desenvolvimento emocional, pois através da ponte estabelecida entre o mundo interno e mundo externo, ou seja, na transicionalidade, há o viver criativo e as experiências de self que se estendem por toda a vida. Para Abram, na década de 30 Winnicott descreveu o brincar no contexto das relações humanas, já na de 70, destacou o seu valor para a psicoterapia. Assim, o brincar se constituiu a base de sua técnica terapêutica em diversos settings, desde o jogo de espátula ao jogo do rabisco. O brincar é um indicador de desenvolvimento do sentimento de ser do bebê. A criança que é capaz de brincar é capaz de criar um modo de vida particular e de comunicar-se. Abram define funções do brincar como a expressão da agressão, experiências do self, a forma de lidar com a ansiedade e de descobrir o self através de experiências enriquecedoras. Também por intermédio do brincar a amizade pode acontecer, pois a criança pode admitir que exista outra pessoa independente dela. Finalmente, assim como os sonhos o brincar tem a função de auto-revelação. Abram afirma que o brincar em Winnicott é inicialmente situado no contexto das relações humanas, portanto, a mudança nas relações transforma o brincar da criança. Esse é o aspecto de desenvolvimento do brincar conforme as relações objetais da criança. Inicialmente, o bebê só consegue perceber o objeto de forma subjetiva, assim objeto e bebê se fundem. O objeto é repudiado, novamente aceito e percebido objetivamente, assim o bebê é capaz de 51 confiar no ambiente. Posteriormente, a criança é capaz de brincar sozinha na presença de alguém, um dos paradoxos descritos por Winnicott que, segundo ele, não deve ser resolvido, mas aceito. Estar só na presença de alguém expressa a confiança de que a pessoa amada está disponível e permanece disponível quando é lembrada, após ser esquecida. O brincar solitário evolui para o brincar em conjunto. 3.1 - O brincar na clínica de Winnicott Winnicott escreveu três livros sobre sua técnica: Holding e Interpretação, Consultas Terapêuticas e The Piggle. Nesses livros fica evidente que Winnicott adapta o setting analítico segundo a necessidade do paciente. Ele afirma: “Faço análise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita de análise então faço alguma outra coisa”. Isso demonstra sua capacidade de adequar o setting analítico ao que é possível e desejável fazer conforme cada caso individualmente. Masud Khan afirma que, durante o tempo em que Winnicott passou no Paddington Green’s Hospital e no Queen’s Hospital for Children, tempo esse que se estendeu por um período de quatro décadas, ele teve contato com cerca de 60.000 bebês, crianças, mães, pais, avós e algum casal parental. Ainda que não se possa ter certeza da exatidão dos números apontados por Khan, é possível perceber a vasta experiência de Winnicott, que associou a pediatria e a psicanálise. Fazer alguma outra coisa tem como base o brincar. Em seu texto intitulado A observação de bebês em uma situação estabelecida (1941), Winnicott traz um instrumento de observação de bebês entre os cinco e treze meses de idade. Caso se trate de uma criança pequena, peço à mãe para sentar-se no lado oposto ao que me encontro, com o ângulo de mesa entre nós dois. Ela senta com o bebê nos joelhos. De forma rotineira, coloco um depressor de língua brilhante em ângulo reto na beirada da mesa e convido a mãe a colocar a criança em uma posição tal que, se a criança desejar tocar na espátula, isto seja possível. Comumente a mãe entende o que pretendo e me é fácil descrever gradualmente para ela 52 que deverá haver um período de tempo no qual eu e ela contribuiremos o menos possível para a situação, de forma que o que acontecer possa ser creditado à criança. Vocês podem imaginar que as mães, através de sua habilidade ou relativa inabilidade em seguir esta sugestão, mostram algo como são em casa; se a possibilidade de uma infecção as deixa ansiosas, ou se têm fortes sentimentos morais contra pôr coisas na boca. Se são precipitadas, ou se movem impulsivamente, estas características virão à tona. (WINNICOTT, 1988, p. 140). A partir dessa situação estabelecida, Winnicott denominou três estágios os quais podem ser considerados normais no comportamento do bebê: 1º estágio: retorno gradual e espontâneo do interesse da criança pela espátula, o bebê está num dilema; 2º estágio: período de hesitação, aceitação da realidade do seu desejo pela espátula, surge a autoconfiança acompanhada de livre movimentação corporal; relacionada à manipulação da espátula, começa a brincadeira de ser alimentado e alimentar, por exemplo; 3º estágio: O bebê deixa cair a espátula como por engano e fica feliz quando recebe a espátula de volta podendo novamente jogá-la. O fim desse estágio se dá quando o