UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA INSTITUTO DE ARTES LENITA PORTILHO FURLAN APRENDIZAGEM DA LECTO-ESCRITA MUSICAL AO PIANO: UM DIÁLOGO COM A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA SÃO PAULO 2007 LENITA PORTILHO FURLAN APRENDIZAGEM DA LECTO-ESCRITA MUSICAL AO PIANO: UM DIÁLOGO COM A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Música, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista-UNESP, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Música. Orientadora: PROF.ª DR.ª MARISA TRENCH DE OLIVEIRA FONTERRADA SÃO PAULO 2007 A todos que constroem e reconstroem o saber, eternamente... A meus pais... AGRADECIMENTOS A conclusão deste trabalho só foi possível graças à colaboração direta e indireta de muitas pessoas. A todas elas a minha gratidão. À Prof.ª Dr.ª Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, pela confiança em mim depositada desde o início, por toda a orientação e apoio para a execução desta dissertação. Às crianças: Evelly, Jonathas, Lígia, Luís e Stephanie e suas famílias, por colaborarem em participar da pesquisa. À CAPES, pela Bolsa de Estudo, no período de março de 2006 a março de 2007. Aos professores: Prof. Dr. Alberto T. Ikeda, Prof.ª Dr.ª Dorotéia M. Kerr, Prof.ª Dr.ª Glória M. Machado, Prof.ª Dr.ª Luiza H. Christov, Prof.ª Dr.ª Martha Herr, Prof.ª Dr.ª Sonia R. A. Lima, da UNESP, e Prof. Dr. Pedro Paulo Salles, da USP, pelas contribuições à formação do meu pensamento científico. A todos os funcionários do Instituto de Artes da UNESP, em especial: Rosângela D. Canassa, Thaís Magalhães e M.de Lourdes T. Garces, da Secretaria da Pós-Graduação; Cristina da S. Santos, Fabiana Colares, Laura R. P. Pinho, Odair P. de Jesus, Sebastiana Freschi, da Biblioteca; Carlos H. Francisco, Expedito Manfrinato, Moacir V. da Silva, da Seção de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (SAEPE); Edmilson R. Bílio, da Portaria, pela agradável recepção às crianças da pesquisa; À monitora Helena K. T. Alves, do Setor de Computação. À Profa. Maria Apparecida F. M. Bussolotti, pela leitura e copidesque da dissertação. Aos amigos: Ana Carolina Carvalho pelas fotos; Fábio Miguel, Leila Vertamatti e Scheilla R. Glaser, pelo empréstimo de material bibliográfico; Priscila M. Oliveira e Valéria Mastrorosa, pela revisão do abstract, e Virgínia M. Oliveira pelos slides. À tia Nelma e Francisco por todo o apoio. Em especial, a meus Pais por tudo: incentivo, atenção, paciência, carinho e amor, a quem dedico este trabalho. Minha função como investigadora tem sido mostrar e demonstrar que as crianças ‘pensam’ a propósito da escrita, e que seu pensamento tem interesse, coerência, validez e extraordinário potencial educativo. Temos de escutá-las. Emilia Ferreiro (2002) RESUMO: Nesta pesquisa estuda-se o desenvolvimento da habilidade de leitura e escrita musical, a partir dos trabalhos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, que demonstram a existência de fases conceituais antecessoras à plena compreensão do sistema alfabético. O objetivo da pesquisa foi averiguar a existência de fases semelhantes no processo de aprendizagem da lecto-escrita de música. A metodologia empregada foi a pesquisa participativa, com crianças com idade entre 6 e 7 anos, na qual se utilizou o piano como instrumento principal. O tempo de realização deste estudo não foi suficiente para que se conclua quais são estas fases, mas pode-se afirmar que há diferentes comportamentos psicológicos nas crianças-sujeitos do estudo, observados no processo ao qual foram submetidas. Acredita-se que o trabalho possa contribuir para a Educação Musical, ao revelar hipóteses de leitura e escrita de partituras e, principalmente, para a Pedagogia do Piano, ao demonstrar que alunos iniciantes, mesmo antes de compreenderem plenamente a notação tradicional, pensam acerca de como podem ser os registros gráficos para este instrumento. PALAVRAS-CHAVE: alfabetização musical; educação musical; pedagogia do piano; cognição musical; psicologia da aprendizagem. ABSTRACT: This research is a study of the development of the ability to read and write musical language. It is based on the studies of Emilia Ferreiro and Ana Teberosky which present the different cognitive levels through which a student passes before being able to understand the alphabet system. It investigates if there are similar levels in the process of learning, reading and writing music notation. The method for this research was centered on six and seven year old piano students. The study’s time period was not enough to name the levels of learning, but it is possible to say that there are different psychological behaviors in the children of this study. This work might contribute to Music Education as it demonstrates hypotheses about reading and writing scores and, mainly, because it contributes to Piano Pedagogy demonstrating that beginner piano students think about the piano scores even before they completely understand them. KEY WORDS: music literacy; music education; piano pedagogy; music cognition; psychology of learning. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.... 9 PRIMEIRA PARTE – DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS......20 1 A INICIAÇÃO À LECTO-ESCRITA EM MÚSICA NA VISÃO DOS MÚSICO-EDUCADORES.....21 2 A ALFABETIZAÇÃO SEGUNDO EMILIA FERREIRO: A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA ....55 SEGUNDA PARTE - DA EXPERIÊNCIA......71 3 O PENSAMENTO DA CRIANÇA TRADUZIDO EM SUA LEITURA E ESCRITA MUSICAL......72 CONSIDERAÇÕES FINAIS...122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....129 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.....135 APÊNDICES....138 O bom músico é aquele que entende a música sem partitura e a partitura sem a música. O ouvido não deve precisar do olho e o olho não deve precisar do ouvido externo. (Robert Jourdain, 1998). Desde 1995, exercia a função de pianista preparadora junto a um coral cênico de uma escola de idiomas na cidade de São Paulo. A cada ano, o regente do grupo escolhia uma obra a ser ensaiada ao longo do ano e apresentada em espetáculos cênico-musicais ao final do segundo semestre. Como a reta final das montagens exigia muitos ensaios extras, era comum que em tal período mais um ou dois pianistas fossem contratados. Assim, quando, em 1998, se aproximavam as apresentações do espetáculo de final de ano, o regente orgulhosamente me apresentou à mais nova integrante do grupo: uma pianista recém-chegada de uma grande universidade norte-americana, onde esteve, sob a orientação de um renomado professor, cursando o mestrado em interpretação pianística. Na verdade, já a conhecia por nome de longa data, por ser ela vencedora de vários concursos de jovens talentos do piano, o que, no primeiro momento, me causou até certo amedrontamento por vir a dividir tarefas com uma pessoa tão altamente qualificada. Porém, quando, após algum tempo sentada a meu lado, vendo-me tocar repetidas vezes a mesma página de um trecho musical, convidei-a a me substituir ao piano, ouvi-a dizer que não poderia tomar meu lugar naquele momento do ensaio por sua falta de capacidade de tocar lendo! Para tocar, teria que ler vagarosamente em casa até decorar! Ela só tocava de memória: não tinha domínio de leitura suficiente para tocar à primeira vista! E, no caso, a partitura era simples e escrita em idioma tonal de fácil realização técnico pianística... Este fato, aliado à prática como professora, em que, por muitas vezes, encontrei alunos com dificuldade de leitura e escrita musical, levou a querer compreender mais precisamente como se dá a aquisição da lecto-escrita em música, e, especificamente, da partitura pianística. O desenvolvimento da habilidade musical, ou seja, da capacidade de se expressar musicalmente, pode passar por vários caminhos, seja por meio da prática não orientada, seja pela prática sob orientação. Neste último caminho, o da prática orientada, há a possibilidade de o potencial de cada aspirante à expressão musical ser atingido com ou sem o uso da leitura e escrita. Nas práticas de Música Popular e Folclórica, é comum que o conhecimento musical seja transmitido por gerações, sem o uso da escrita musical ocidental, porém, no campo da chamada Música Erudita, o uso da leitura e escrita musicais se faz presente durante a aprendizagem, sendo considerado essencial para a compreensão desse idioma musical. Nesta área, conforme a citação em epígrafe de ROBERT JOURDAIN (1998), o bom músico é aquele que, ao ler uma partitura, sabe quais são os sons que dela devem resultar, mesmo que ainda não tenham sido fisicamente produzidos, pois seu domínio da lecto-escrita musical lhe permite imaginar e sentir como devem ser. Assim, no campo da chamada Música Erudita, uma das tarefas do professor de música é qualificar o aluno à decodificação e codificação de uma partitura musical, ou seja, ajudá-lo a compreender o código da escrita musical. A tarefa de leitura e escrita musicais, ao longo dos anos, tem passado por sucessos e fracassos. É freqüente, nas escolas de música brasileiras em todos os níveis, deparar-se com queixas de alunos e professores a respeito da falta de domínio da leitura e escrita musicais, principalmente entre os alunos de piano, que, por vezes, por não estarem, desde o início do processo de aprendizagem, inseridos em um contexto de prática de leitura-escrita, nem sempre se familiarizam com estes processos. Essa falha na aquisição dessa capacidade compromete os níveis mais avançados da aprendizagem da música, pois dificulta a compreensão de assuntos técnicos que exigem, por parte do músico, a profunda compreensão do código. O que é possível perceber, por meio de contato com alunos e professores, e por dados levantados informalmente, é que eles próprios atribuem essa falta de competência a falhas na formação básica inicial, que incidem na dificuldade de compreensão do código de escrita e no estabelecimento de relações entre os elementos desse código e o fenômeno sonoro. Embora a configuração desse quadro possa ser atribuída a fatores diversos, um dos quais é a ausência da música, como disciplina autônoma, no ensino fundamental e médio desde a década de 1970, outro fator pode ser, ainda, destacado: a possível falta de compreensão, por parte das instituições e dos professores, do que seja, realmente, o processo de leitura e escrita. Esse pode ser o motivo pelo qual ainda não há uma sistematização dos procedimentos de sensibilização à lecto-escrita musical para o pré-escolar na maioria dos estabelecimentos de ensino. Ao que parece, os avanços obtidos a respeito da linguagem oral e escrita durante o século XX não exerceram grande influência no ensino de música, permanecendo o hábito de fazer o aluno decorar fórmulas escritas que, para ele, apresentam pouco ou nenhum significado. Diante disso, pode-se afirmar que, entre os estudantes de música de qualquer faixa etária, é possível detectar um número considerável de alunos que se sentem desestimulados a continuar os estudos musicais, talvez, por não se adequarem aos métodos de leitura musical, tradicionalmente utilizados. O fracasso no domínio da leitura musical pode ocasionar um desestímulo no aluno e, conseqüentemente, a desistência de desenvolver tal habilidade, muitas vezes comprometendo sua formação musical. É possível expressar-se musicalmente, sem a utilização do código escrito, mas o estudo de obras musicais de caráter complexo exige o domínio da lecto-escrita. Em paralelo com a linguagem verbal, pode-se dizer que é possível comunicar-se sem o uso da escrita, mas a forma da expressão oral não é tão complexa quanto aquela. Ao estudar a música erudita sem utilização da leitura e escrita, ou com uma utilização deficitária, não se poderá atingir a complexidade alcançada por ela em seu desenvolvimento no decorrer do tempo, desde os primeiros registros de notação musical, até os contemporâneos. Diante desse quadro, o período inicial do desenvolvimento da habilidade de leitura e escrita em música, também chamado de ‘alfabetização musical’, pode ser visto como uma etapa importantíssima na construção da capacidade de lecto-escrita, e a maneira como se dá levanta uma série de questões pertinentes e atuais, sendo possível pensar em soluções para a problemática apontada a partir do melhor entendimento de como a alfabetização musical se processa. Assim, as questões que iniciam essa investigação são: • Por que alguns alunos de música aprendem com facilidade a ler partitura enquanto outros passam a vida toda com dificuldades para cumprir essa tarefa ‘à primeira vista’? • A razão dessa dificuldade está na capacidade de aprendizagem do aluno, na visão que o músico-educador tem acerca do processo de aprendizagem da lecto-escrita musical que se traduz em seu método de ensino, ou em algum outro fator? Na busca de informações que trouxessem maior compreensão desse processo de aprendizagem, reviu-se a bibliografia da área. Além disso, foi encontrada a possibilidade de fazer um entrelaçamento entre a alfabetização musical e a verbal. Essa hipótese pode ser viável ao se considerarem as relações entre linguagem verbal e linguagem musical. MARISA FONTERRADA faz esta aproximação em Educação Musical: investigação em quatro movimentos: prelúdio, coral, fuga e final (1991), mostrando que estudos fenomenológicos da linguagem desenvolvidos pelos teóricos Maurice Merleau-Ponty e Hans Georg Gadamer poderiam ser aplicados à música. Citando a autora: “[...] do mesmo modo como ocorre com a linguagem verbal, a aquisição e o uso da linguagem musical não podem ser estabelecidos ou controlados com clareza, [...] pode-se apenas observar que, de algum modo, ocorrem” (1991, p.150). Do mesmo modo que ocorre com a linguagem verbal, a aprendizagem da linguagem musical passa, também, por experiências pré-reflexivas e reflexivas. As pré-reflexivas são espontâneas, sem modelos definitivos e nem uniformidade de uso, podendo ser agrupadas na categoria de experiências cotidianas. As reflexivas, por sua vez, conferem ao sujeito uma maior disponibilidade de uso, ampliando seus modos de ação, reação e expressão. Segundo a estudiosa, “a música, do mesmo modo que a fala, constitui-se em campo de experiências que transcendem a questão técnica, e se configura como o próprio meio em que o sujeito vive” (FONTERRADA, 1991, p.157). A aprendizagem de ambas as linguagens é fruto da vivência: o aprendiz deve estar inserto em meio à linguagem a ser aprendida, de forma natural. Desse modo, devido à similaridade constatada, acredita-se que o que foi descoberto em relação ao aprendizado da linguagem verbal, em certa medida, pode ser transposto para a musical, guardadas as especificidades inerentes a cada uma delas, uma vez que a linguagem verbal e a linguagem musical pertencem a campos de conhecimento distintos. Tendo em vista a semelhança entre as duas linguagens, buscou-se conhecer o processo de ‘alfabetização’ pela leitura de seus teóricos, tanto no que se refere à linguagem verbal, quanto à musical. Nesse último campo, foram analisados métodos de iniciação ao piano, livros sobre pedagogia pianística, propostas de educadores musicais do século XX e sua relação com o ensino do piano, trabalhos da área de psicologia da aprendizagem aplicada à música e estudos acerca da psicogênese da lecto-escrita musical, a fim de averiguar qual a visão dos músico-educadores acerca deste importante processo. No campo da linguagem verbal, foram pesquisados vários trabalhos, e se decidiu que toda a obra de EMILIA FERREIRO poderia dar suporte à presente investigação, pela proposta da pesquisadora ao encarar o processo de alfabetização, não como uma habilidade a ser transmitida à criança, mas como resultado da elaboração de seu pensamento, a partir de hipóteses por elas levantadas, mesmo em períodos anteriores ao da alfabetização. Essa abordagem, além de instigante, pareceu ser o caminho adequado para que se tentasse compreender o processo da aquisição e domínio da lecto-escrita em música, e a razão de se encontrarem tantos músicos com reais dificuldades no domínio dessa habilidade, como foi relatado no início deste trabalho. EMILIA FERREIRO, psicóloga argentina, fez sua tese de doutorado em psicologia pela Universidade de Genebra, sob a orientação do renomado pesquisador suíço, Jean Piaget. No período corrente desta pesquisa, de 2005 a 2007, Ferreiro esteve atuante como pesquisadora no Departamento de Investigações Educativas do Centro de Investigações e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, no México (V. M. C, n.5, 2005, p.5). A partir da década de 1980, Ferreiro passou a apresentar resultados de pesquisa que confirmam a hipótese de que a criança em fase pré-escolar, mesmo não estando alfabetizada, constrói seus próprios conceitos a respeito de como se organiza a linguagem escrita (FERREIRO e PALACIO, 2003, p.102-123; FERREIRO, 2004a, p.77-101). Segundo FERREIRO: [...] agora sabemos que há uma série de modos de representação que precedem a representação alfabética da linguagem; sabemos que esses modos de representação pré-alfabéticos se sucedem em certa ordem: primeiro, vários modos de representação alheios a qualquer busca de correspondência entre a pauta sonora de uma emissão e a escrita; depois, modos de representação silábicos (com ou sem valor sonoro convencional) e modos de representação silábico-alfabéticos que precedem regularmente a aparição da escrita regida pelos princípios alfabéticos. (2001a, p.10) De acordo com a autora, tais conceituações devem ser levadas em consideração durante a fase pré-escolar, para que seja evitada uma avaliação fragmentária e indulgente por parte do professor, que venha a considerar o aluno um fracassado, por não saber ler e escrever (FERREIRO, 1989, p.60-63). Nas palavras de FERREIRO: ‘Atenção com este tempo inicial que damos às crianças’, porque se as rotulamos muito rapidamente, depois não poderemos lhes tirar esse rótulo. Pode acontecer que dê mais trabalho ‘destravar’ uma criança, recuperar sua capacidade de aprendizagem, que dar-lhe um pouco mais de tempo no início. Por isso digo que sejamos tolerantes com esse tempo inicial, por favor, não coloquemos ‘rótulos de burro’ antecipadamente, porque depois é muito difícil tirá-los. (2001c, p.150) Como resultado de suas pesquisas, a partir de observações, experiências práticas e estudos de caso, com crianças da faixa etária de 4, 5 e 6 anos, de diferentes classes sociais, FERREIRO demonstrou que há fases no pensamento de crianças em idade pré-escolar, tendo concluído que o fato de a criança estar inserida em uma das diferentes fases conceituais detectadas por ela em seu estudo incidia diretamente no resultado do processo de aquisição da leitura (2001b, p.15-18). Segundo FERREIRO, procurando investigar que classe de objeto do conhecimento pode ser a escrita para o sujeito em desenvolvimento, constatou-se que operações cognitivas que se aplicam ao domínio de sistema de escrita, também, se aplicam em domínios numéricos (2001a, p.16). Há alguns problemas cognitivos que parecem evidentes, como a classificação do material gráfico, por exemplo. Nas palavras da pesquisadora argentina, “todos os nossos símbolos não-icônicos estão constituídos por combinações de dois tipos de linhas: pauzinhos e bolinhas. Mas alguns são chamados de letras e, outros, de números” (2001a, p.10); e podemos acrescentar, agora, tendo em mente a escrita musical, que outros são chamados de ‘notas musicais’. Ao eleger como caminho de pesquisa a possibilidade de se entrelaçar o ensino de música aos resultados apresentados nas pesquisas de FERREIRO, é possível levantar a hipótese de que a criança pré-alfabetizada, exposta à música, é capaz de construir, também, suas próprias idéias acerca da escrita musical. A questão que se coloca, então, é: será que a criança em fase pré-escolar ‘pensa’ a escrita musical? E, em caso dessa resposta ser afirmativa, de que modo ela ‘pensa’? Como esse pensamento se traduz na escrita que ela própria elabora durante o processo de educação musical? E ainda: como a escrita musical se relaciona com a escuta? Buscando respostas a essas questões, o objetivo geral do presente trabalho é conhecer e compreender o pensamento da criança acerca da notação musical, durante o processo inicial de aprendizagem da lecto-escrita em música, sendo o piano, o instrumento usado para a averiguação do foco da pesquisa. Os objetivos específicos são: revisar a literatura musical no que concerne à iniciação à lecto-escrita, de modo a constatar qual a visão que os músico- educadores têm acerca deste processo e como esta visão se traduz em seus métodos; constatar, assim, se, como os resultados observados nas pesquisas de FERREIRO, há diferentes comportamentos psicológicos nas crianças observadas, durante o processo de aprendizagem da lecto-escrita musical. Para que se alcançassem esses objetivos, o procedimento metodológico da presente pesquisa constou da investigação acerca de como se dá o processo de aprendizagem da lecto- escrita musical, em um grupo de crianças inseridas em um ambiente musicalizador, em que o piano passou a ser o próprio meio utilizado para encontrar tais respostas. O trabalhou se fez em encontros semanais com um grupo de seis crianças de uma Escola Municipal de Educação Infantil –EMEI- da Cidade de São Paulo. Em cada encontro, proporcionou-se a elas um ambiente propício ao contato com a música e à expressão de suas hipóteses referentes à lecto- escrita musical. Como fundamentação teórica para a presente pesquisa, buscou-se adaptar o modelo de pesquisa de FERREIRO e TEBEROSKY (1986); para isto, foi necessário, além do estudo dessa obra, criar condições favoráveis a que tal modelo fosse usado na aprendizagem musical. Várias foram as adaptações para que se averiguasse a existência de fases conceituais antecedentes à lecto-escrita da notação tradicional de música, especificamente no que concerne à aprendizagem pianística. A pesquisa relatada em Psicogênese da Língua Escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986) resultou de dois estudos: um longitudinal e um transversal. Aqui, no entanto, optou-se somente pelo estudo transversal, pois para o foco desta pesquisa independe a classe social das crianças estudadas. A investigação realizada pelas autoras argentinas incluiu crianças inseridas no contexto escolar e marginalizadas, sendo que, segundo as autoras, o resultado de ambas foi semelhante, talvez porque, mesmo marginalizadas, as crianças estavam continuamente expostas a objetos da sociedade letrada. Aqui, para que as crianças fossem expostas à lecto-escrita musical, houve a necessidade de se criar um ambiente musicalizador e organizar encontros semanais, de agosto de 2005 a novembro de 2006, nos quais a pesquisadora se duplicava, exercendo os papéis de pesquisadora e mediadora do processo de aprendizagem dos sujeitos pesquisados. Com a adoção desse procedimento, diferiu-se do modelo das argentinas, que não atuaram como professoras e realizaram suas inquirições em três encontros ao longo do ano. Houve também, a redução do número de sujeitos devido ao caráter individual da aprendizagem pianística. Assim, o presente trabalho foi realizado com seis crianças, em fase de alfabetização escolar. No início da pesquisa, em 2005, as crianças eram pré-escolares com seis anos de idade. No decorrer da pesquisa, passaram a ser alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental e completaram sete anos durante o período da pesquisa. Além das mencionadas, outras adaptações fizeram-se necessárias e serão oportunamente apresentadas. Devido ao caráter descritivo do fenômeno estudado, à interação do objeto-sujeito e de sua interpretação por parte da pesquisadora, esta pesquisa é considerada de caráter fenomenológico (DETONI; PAULO, 2000, p.141). Também é considerada participativa, quanto aos fins (VERGARA, 2004, p.49), enquanto, no que se refere aos meios, pode ser chamada de pesquisa-ação (THIOLLENT, 2002, p.14). Embora a diversidade de abordagens traga à mente a possibilidade de considerá-la interdisciplinar, pois diferentes áreas de conhecimento dialogam em mesmo nível de fundamentação, 1 em benefício da compreensão de uma questão tão importante e, ao mesmo tempo, ainda não tão bem compreendida entre músicos, professores e estudantes que é a aquisição da lecto-escrita musical, esta pesquisa não deve ser caracterizada como interdisciplinar, uma vez que o que aqui ocorre é somente uma transposição de um método de pesquisa de uma área a outra. No caso, o método utilizado por Emilia Ferreiro, transposto para a área da Educação Musical. 1Tanto a pesquisa de Ferreiro/Teberosky quanto esta se utilizam de pressupostos do construtivismo de Piaget. Atente-se para o fato de que o que aqui é considerado ‘resultado’, é, na verdade, a ‘descrição do processo’ de aprendizagem da lecto-escrita de música, por meio do instrumento piano. Por esse motivo, a avaliação que permeia esta pesquisa está diretamente ligada à análise das ações e reações dos alunos durante o processo em que tiveram um contato muito próximo com o instrumento. Ela constou de: • Avaliação Diagnóstica: averiguação do interesse, da capacidade de concentração e das habilidades musicais de cada criança no decorrer de atividades de caráter lúdico realizadas no primeiro encontro da pesquisadora com os sujeitos da pesquisa, ocorrido no dia 18 de junho de 2005. • Avaliação Contínua ou Avaliação Formativa: análise dos comportamentos psicológicos observáveis durante a aplicação prática da pesquisa, que ocorreu em encontros semanais de agosto a novembro de 2005 e de fevereiro a novembro de 2006. Os encontros tiveram como objetivo o trabalho ativo com as crianças, por meio de atividades que propiciassem a expressão, individualmente e em grupo, ao fazer música, ao trabalhar com diferentes formas de codificação/ decodificação de partituras, e ao tocar piano. • Avaliação Final: comparação do comportamento psicológico observado durante o último encontro, no dia 11 de novembro de 2006, com os observados ao longo dos demais, a fim de compreender de que modo a lecto-escrita musical, neste momento do processo, se relacionou com o fazer. É importante dizer que, em razão da idade das crianças, o tempo estabelecido, de um ano e meio, não foi suficiente para a instalação plena da capacidade de leitura e escrita musicais. No entanto, pela observação dos comportamentos observados neste período foi possível dizer que essa capacidade de lecto-escrita deu-se de maneira semelhante aos resultados encontrados por FERREIRO (2004a). A pesquisa de FERREIRO foi uma ‘inspiração’ para que se buscassem quais seriam os comportamentos psicológicos revelados durante o processo de aprendizagem da lecto-escrita em música. Assim como os trabalhos da pesquisadora argentina, não se pretende aqui, demonstrar que os comportamentos encontrados são fases estanques e bem definidas, pois não são. Segundo FERREIRO, “O mais importante não é discutir sobre as etiquetas nem discutir se as etapas são três, quatro ou seis; o mais importante, creio, é entender esse desenvolvimento como um processo e não como uma série de etapas que se seguiriam umas às outras quase automaticamente” (2004a, p.86-87). O trabalho com as crianças demonstrou que cada uma delas tinha maneiras próprias de encarar cada situação desafiadora e tecia suas considerações e hipóteses na resolução de cada problema a elas proposto pela pesquisadora. FERREIRO poderia ter patenteado um método e não o fez (2001c, p.166). Também não se pretende aqui propor métodos de ensino, pois o objetivo principal deste trabalho foi a verificação da existência, ou não, de um pensamento hipotético por parte dos sujeitos pesquisados, a respeito da leitura e escrita musicais. Não estavam em jogo, portanto, considerações a respeito do aprendizado da habilidade de tocar piano, mas, sim, a averiguação de como se daria o processo de leitura e escrita de música. O que importou no presente trabalho foi a demonstração de que o pianista aprendiz pensa e cria seus próprios conceitos, enquanto se apodera do sistema de escrita tradicional da música ocidental. A problemática levantada na presente pesquisa está cercada por vários lados, quais sejam: o da educação musical, quando especificamente atrelada às questões da lecto-escrita musical, o da psicogênese da língua escrita e o da contribuição da Psicologia da Aprendizagem ao esclarecimento da questão proposta nesta investigação. A presente dissertação está dividida em duas partes. A primeira Parte, Dos Fundamentos teóricos, trata da revisão bibliográfica da área musical, incluindo os métodos de iniciação ao piano (capítulo 1), e da observação dos procedimentos e resultados de pesquisas da argentina FERREIRO (capítulo 2). A segunda Parte, Da Experiência, apresenta o pensamento da criança traduzido em sua leitura e escrita musical (capítulo 3). Com o levantamento bibliográfico apresentado no capítulo 1, A iniciação à lecto- escrita na visão dos músico-educadores, procurou-se perceber se, entre os educadores musicais estudados, haveria ou não preocupação em relação ao desenvolvimento do pensamento infantil no que concerne à lecto-escrita musical. A questão inicial deste capítulo foi: “como o músico educador vê o processo de aprendizagem da lecto-escrita musical?” Em busca desta resposta, foram investigadas obras da área de educação musical relacionadas com questões de leitura e escrita, especificamente no que se refere ao processo de aprendizagem de leitura de música ao piano. Ver-se-á que foram analisados métodos de iniciação ao piano, livros sobre pedagogia pianística, propostas de educadores musicais do século XX e sua relação com o ensino do piano, trabalhos da área de Psicologia da Aprendizagem aplicada à Música e dissertações brasileiras acerca da psicogênese da lecto-escrita musical. O capítulo 2, A Alfabetização segundo Emilia Ferreiro: a Psicogênese da Língua Escrita, apresenta o trabalho da psicóloga EMILIA FERREIRO, que mostra que a criança constrói diferentes hipóteses acerca do sistema de escrita antes de chegar a compreendê-lo plenamente, esclarecendo de que modo a criança em processo de alfabetização assimila as informações disponíveis e interpreta textos, mesmo sem dominar a relação intrínseca existente entre letras e sons. Serão apresentados os resultados de pesquisa da obra Psicogênese da Língua Escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986), co-autoria com ANA TEBEROSKY, sua conterrânea e companheira de profissão. Entre todas as obras de FERREIRO, esta, a primeira que veio ao grande público, e que deu início a todas as outras, foi escolhida, pelo fato de conter os fundamentos de sua teoria, ampliados nas obras que a sucederam. Utilizando-se da Psicolingüística contemporânea e da Teoria Epistemológica de PIAGET, FERREIRO demonstra que a pesquisa realizada com pré-escolares de 4 a 6 anos comprova a existência de níveis de conceitualização anteriores à alfabetização e à aquisição da escrita, e apresenta suas principais características. Na segunda Parte desta dissertação, Da Experiência, no capítulo 3, O pensamento da criança traduzido em sua leitura e escrita musical, discorre-se a respeito da adaptação do modelo de pesquisa utilizado para a investigação da lecto-escrita em música, relatam-se as atividades realizadas durante o processo de investigação, e apresentam-se os resultados encontrados, lembrando-se que, o que se entende por ‘resultado’, aqui, é a descrição dos comportamentos psicológicos encontrados durante o processo inicial de aprendizagem da lecto-escrita musical na criança iniciante ao estudo do piano. Acredita-se que o presente trabalho poderá contribuir para a reflexão acerca da aquisição da habilidade de leitura-escrita da linguagem musical, da compreensão desse processo e para o desenvolvimento da área da educação musical, especialmente no que se refere a abordagens didáticas efetivas no ensino/aprendizagem do instrumento piano. PRIMEIRA PARTE DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS 1 A INICIAÇÃO À LECTO-ESCRITA EM MÚSICA NA VISÃO DOS MÚSICO-EDUCADORES As questões iniciais deste capítulo são: como o músico educador vê o processo de aprendizagem da lecto-escrita musical? Será que a criança em fase pré-escolar ‘pensa’ a lecto- escrita musical? Em caso positivo, como ela ‘pensa’? Este pensar pode estabelecer fases durante este processo? Se existem fases, os métodos de iniciação à lecto-escrita as levam em consideração? E, finalizando, como a criança iniciante no estudo de piano compreende a escrita musical? A revisão bibliográfica, nesta pesquisa, buscou encontrar respostas a respeito de como a criança iniciante no estudo de piano compreende a escrita musical, segundo a visão dos educadores musicais consultados. Por meio dos resultados apresentados por outros pesquisadores, quis-se perceber se há fases conceituais que antecedem a compreensão do código de escrita musical tradicional. Para tanto, foram analisados métodos de iniciação ao piano, trabalhos direcionados à formação do professor deste instrumento, propostas de educadores musicais do século XX e sua relação com a iniciação pianística, bem como trabalhos da área de Psicologia da Aprendizagem aplicada à Música. Foram analisadas, também, pesquisas acadêmicas que estudam a alfabetização musical, defendidas em universidades brasileiras no período de 1996 a 2006. MÉTODOS DE INICIAÇÃO AO PIANO Há inúmeras obras dedicadas à fase de iniciação ao instrumento. Como o foco aqui é a compreensão do processo inicial da lecto-escrita em música e esta pesquisa se realiza com crianças de seis/sete anos em fase de alfabetização escolar, foram excluídas desta análise as obras que não se colocam na categoria de método2 de iniciação ao piano para crianças dessa faixa etária, com exceção de três livros de atividades de iniciação ao piano. TIPOS DE ABORDAGENS DO ENSINO DA LEITURA PIANÍSTICA Nos métodos analisados, encontraram-se diferentes abordagens para o ensino de leitura musical aplicado ao piano, que podem ser agrupadas como segue, segundo MARIENNE USZLER, STEWART GORDON e SCOTT MC BRIDE SMITH (2000, p.5-7):3 2 Para Jussamara SOUZA, “a palavra ‘método’ significa literalmente seguir um caminho para atingir um objetivo; perseguir alguma coisa já antes imaginada ou pré-determinada (e seguramente ainda não disponível ou apropriada). O caminho a ser percorrido, que o método sugere, depende do assunto, do objetivo pretendido e das possibilidades do educando” (1994, p.48 apud BOZZETTO, 2004, p.60). 3 Tradução da pesquisadora o Abordagem pelo Dó Central o Abordagem por Multitons ou Pentacórdios o Abordagem Intervalar ou Espacial o Abordagem Mista A abordagem pelo Dó Central é predominantemente utilizada na maior parte dos livros, desde a década de 1930. A abordagem por Pentacórdios ou Multitons responde ao interesse de alguns professores, de usar o piano funcionalmente, como uma ferramenta de harmonizar e improvisar, além de interpretar. A abordagem Intervalar ou Espacial enfatiza o desenvolvimento da leitura direcional. A abordagem Mista reúne os conceitos das outras, com o intuito de oferecer maiores vantagens para o desenvolvimento da leitura. Cada tipo de abordagem apresenta vantagens e desvantagens em relação ao desenvolvimento da leitura. A seguir, emoldurados, os principais pontos de cada uma (USZLER; GORDON; SMITH, 2000). o Abordagem pelo Dó central (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.5) VANTAGENS DESVANTAGENS • O dó central, na partitura e no teclado do piano, é um guia visual. • A memorização e a prática de um número limitado de notas ao redor do dó central constituem uma tarefa fácil. • Desenvolver o senso da tonalidade de Dó Maior, antes de conhecer outros tons, propicia segurança auditiva e motora. • No início, é de grande ajuda associar o uso de certos dedos a certas teclas e notas. • Tocar a partir do polegar é um movimento requerido na literatura pianística. • Os estudantes aprendem melhor quando absorvem pequenas quantidades de informação. A adição de uma nota de cada vez é uma técnica de aprendizagem lógica e testada. • Usar somente uma nota como guia é limitador. É mais fácil estabelecer associação com duas ou mais. • A prática de um número limitado de notas ao redor do dó central força os estudantes a tocarem com as mãos muito próximas ao corpo no início do estudo. • A variedade de sons estimula a audição e a criatividade mais do que o reconhecimento de um único padrão. • Os estudantes passam a ler o dedilhado e não as notas. • O polegar é um dedo desajeitado. É mais fácil conseguir o movimento correto dos dedos a partir do lado fraco das mãos. • A aprendizagem pela adição de uma nota de cada vez pode ocasionar o atraso no desenvolvimento da leitura de padrões de notas. o Abordagem por Multitons ou Pentacórdios (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.6) VANTAGENS DESVANTAGENS • O pentacórdio na partitura e no teclado é uma idéia simples repetida em diferentes contextos. • As linhas melódicas são lidas direcionalmente e por comparação com diferentes agrupamentos. • Causa satisfação tocar acordes desde o início e propicia base para o a compreensão harmônica. • Tocar em diferentes lugares e escalas propicia liberdade técnica do braço e do ombro. • O piano deveria ser um instrumento no qual explorar e criar são tão importantes quanto tocar peças; instigar a exploração e criatividade desenvolve a audição e a auto-capacidade. • Muito da literatura pianística é homofônica, organizando-se em melodia em uma mão e acompanhamento acordal em outra. Aprender a ler e tocar desta forma, desde o início, prepara o aluno tanto para peças do repertório erudito quanto popular. • Fazer uso somente de pentacórdios dificulta a aprendizagem de passagem de dedos. • Estudantes lêem por meio do dedilhado. • As mãos dos estudantes não estão tecnicamente prontas para tocar acordes desde o início da aprendizagem. • Tocar somente pentacórdios também causa dificuldade, embora os braços possam estar livres do corpo, uma vez que o uso do polegar nas teclas pretas não é pianístico. • O interesse por improvisar pode sobrepujar a atenção necessária para a escrita do compositor. • A melodia acompanhada por acordes em blocos ou quebrados é o único tipo de música tocada nos primeiros estágios. o Abordagem Intervalar ou Espacial (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.6-7) VANTAGENS DESVANTAGENS • A notação direcional fora da pauta permite ao aluno ler por todo o teclado, desde o início. • O precoce reconhecimento intervalar na pauta com menos de cinco linhas desenvolve a leitura direcional, mesmo antes de o aluno memorizar algumas notas fixas. • Uma vez que a leitura não é baseada no reconhecimento de modelos, os alunos buscam na partitura a informação de onde tocar e quais dedos usar. • A leitura fora da pauta ou na pauta limitada das notas das teclas pretas faz uso dos dedos 2, 3 e 4. Tocar com esses dedos é mais espontâneo do que com 1 e 5. • Desde o começo, a música é tocada em muitas teclas e regiões sem o uso de modelos de cinco dedos ou armaduras de claves. Há uma variedade de sons e efeitos. • A leitura harmônica, também, é intervalar. A leitura de intervalos harmônicos de duas notas prepara para a leitura das tríades. • Os estudantes nunca obtêm um seguro senso de localização; muita liberdade causa confusão. • Chegar à leitura no sistema pianístico é um processo demorado. Os estudantes podem se apropriar do conhecimento de leitura de notas sem ter que passar por este processo lento. • Os alunos talentosos saem-se bem ao buscar informações na partitura, mas, na média, sentem- se mais confortáveis aprendendo poucos pontos fixos inicialmente. • A demora em usar os dedos 1 e 5 não se faz necessária. A posição correta das mãos deve ser desenvolvida com a mão inteira desde o início. • Poucos temas folclóricos ou populares estão aptos a ser incluídos no início dos métodos que advogam a leitura intervalar. Os alunos e pais ficam desejosos de ouvir temas conhecidos. • A leitura harmônica é freqüentemente atrasada. Tocar músicas somente com linhas por um longo período de tempo causa insatisfação. o Abordagem Mista (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.8) Há métodos que fazem uso dos tipos de abordagens citados, mesclando vários tipos. A compreensão dos princípios de cada abordagem auxilia o professor na escolha do método que melhor responderá às necessidades dos alunos. OS MÉTODOS ANALISADOS Conforme os dados demonstrados, nenhum dos tipos de abordagem isenta o aluno de sofrer falhas durante a formação inicial. Tendo em vista que a hipótese desta pesquisa é que essas falhas podem ser causadas pelo desconhecimento por parte do professor da importância do pensamento inicial da criança acerca da lecto-escrita e que isso teria como conseqüência a desconsideração da existência de fases conceituais antecedentes, analisando-se os métodos de iniciação pianística alinhados às citadas abordagens e outros não incluídos nestas categorias, buscou-se detectar qual é a preocupação de cada um dos autores em relação à gênesis da grafia musical. De um total de 40 livros para iniciação ao piano, foram examinados e classificados como pertencentes à abordagem pelo dó central, onze métodos estrangeiros e dez brasileiros.4 Dentre estes, figuram: Duas mãozinhas no teclado (MASCARENHAS, 1970); Meu piano é divertido (BOTELHO, 1976); The Leila Fletcher piano course (FLETCHER, 1973) ; e Método infantil para piano (RUSSO, 196-), como os mais vendidos na cidade de São Paulo, pelas Casa Vitale e Casa Manon, as lojas mais procuradas pelos professores de piano da cidade, segundo dados coletados pela pesquisadora Ana Lúcia Moreira (MOREIRA, 2005, p.35.; BOZZETTO, 2004, p.62).5 Foram analisados quatro métodos de autores estrangeiros considerados como de abordagem por multitons ou pentacórdios. Da categoria, abordagem intervalar ou espacial, foram analisados três de autores estrangeiros e um nacional. Quanto à abordagem mista, foram analisados dois norte-americanos. Além destes, foram analisados, ainda, três métodos estrangeiros que não se enquadram em nenhuma das categorias mencionadas, por proporem, 4 Saliento que apesar de classificar o método de RUSSO (196-) e de BEYER (197-) como pertencentes à abordagem pelo dó central, considero-os como uma variação desta, pois neles a iniciação à leitura se dá pela escrita do dó em oitavas, onde somente uma mão tem a sua escrita a partir do dó central, enquanto a outra está a uma oitava acima, ambas em clave de sol. Em levantamento informal de dados, observa-se que estes foram os métodos mais usados para iniciação ao piano, na cidade de São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960. 5 Segundo a pesquisadora BOZZETTO, Meu piano é divertido de BOTELHO, Leila Fletcher piano course, vol.1 de FLETCHER e Método Infantil para piano de RUSSO, também figuram entre os mais utilizados pelos professores para a iniciação ao piano. Sua pesquisa foi realizada entre professores de Porto Alegre, RS (2004, p.62). concomitantemente à leitura tradicional, a interpretação de grafias alinhadas à prática da música contemporânea. Para completar, examinaram-se três livros de iniciação ao piano que se fundamentam em dois dos chamados métodos de educação musical ativos,6 a saber, dois livros de iniciação baseados no Método Kodály (1940; 1966) e um no de Suzuki (1978). Finalmente, foram analisados três livros de atividades para iniciação ao piano que, embora não sejam considerados métodos, colocam-se no mercado com o intuito de reforçar a aprendizagem proposta por aqueles. Nem todos os métodos analisados apresentam prefácios ou sugestões ao professor, mas todos têm uma organização clara a respeito do que deve ser ensinado ao aluno por meio de suas partituras. Vários deles propõem que se inicie a leitura pianística diretamente na pauta convencional, sem nenhuma sugestão de atividade preparatória que anteceda e facilite este contato. Percebe-se que, cada um a seu modo, é fruto da experiência de professores que os escreveram com o intuito de facilitar a aprendizagem de seus alunos, porém, ao que parece, o conhecimento advindo de estudos específicos sobre a aprendizagem e desenvolvimento cognitivo não exerceram clara influência em sua elaboração. A seguir, apresenta-se a descrição dos procedimentos encontrados, bem como os resultados das análises realizadas, devendo ser esclarecido que só se levaram em consideração os métodos que apresentavam indícios de preocupação de seus autores em relação ao processo de pensamento anterior à lecto-escrita da música. Ressalte-se que não se pretendeu aqui fazer um levantamento completo de todos os métodos já editados, mas, apenas um apanhado geral que consta de métodos escolhidos aleatoriamente por sugestão informal de profissionais do ensino pianístico, considerado suficiente para o desenvolvimento da presente pesquisa. EDIÇÕES DA DÉCADA DE 1960 ABORDAGEM PELO DÓ CENTRAL • O estudo do piano, de Heitor Alimonda O autor propõe leituras preparatórias à tradicional, chamadas de atividades de pré-leitura. ALIMONDA apresenta a técnica de leitura relativa a partir de uma linha (Figura 1), para que o 6 São chamados de métodos ativos de educação musical aqueles que têm em sua concepção o aprendiz como o centro do processo de ensino-aprendizagem. Diferenciam-se do sistema tradicional de ensino por não considerarem a criança como um ser destituído de qualquer tipo de conhecimento. Maiores explicações em FONTERRADA (2005. Cp. 2). aluno aprenda a associar e reconhecer alturas na pauta tradicional e grafia rítmica não tradicional, utilizando traços para indicar as notas longas, como forma de visualizar diferenças existentes na duração das notas (1967). FIGURA 1 - Exemplo de pré-notação (ALIMONDA, 1967, p.2). • Libro preliminar de piano para niños de Shaylor Turner e John M. Williams Em nota especial sobre ‘aprender a ler música’, os autores afirmam a necessidade de utilizar-se, inicialmente, do recurso da imitação, que será memorizada pelo aluno para, somente depois, mostrar a sua escrita: “Primero la cosa, depués el signo que la denota” (TURNER; WILLIAMS, 1968, p.7). Nenhuma atividade de pré-leitura é sugerida. EDIÇÕES DA DÉCADA DE 1970 ABORDAGEM PELO DÓ CENTRAL • Duas Mãozinhas no Teclado, de Mário Mascarenhas No prefácio deste método, lemos que o autor, “depois de grandes pesquisas e estudos sobre a psicologia infantil”, concluiu que “a didática deve estar aliada a uma motivação” (MASCARENHAS, 1970, p.5). A partir daí, é possível questionar: qual é a motivação que este autor propõe? Levando-se em consideração que a matéria-prima do músico é o som, e que qualquer método de iniciação musical deve tê-lo como elemento motivador, pode-se imaginar que esta obra se encaixa neste parâmetro. No entanto, o autor não sugere qualquer atividade que motive o aluno por meio dos sons. Por outro lado, graficamente falando, o livro é rico em desenhos coloridos e atrativos, que podem motivar o aluno ao seu manuseio. MASCARENHAS associa o nome das notas musicais a desenhos e, por meio destes, introduz a criança à leitura de pequenas linhas melódicas, sem fazer, porém, nenhuma relação dos desenhos com o conceito de altura das notas na pauta (Figura 2). FIGURA 2 – Exemplo de grafia que associa o nome das notas a desenhos (MASCARENHAS, 1970, p.25). • Método de Iniciação ao Piano, de Aricó Jr. O autor, no prefácio, esclarece que o material pedagógico utilizado na educação da criança tem o propósito de despertar seu interesse e refletir seus pensamentos e anseios. No entanto, não apresenta qualquer elucidação a respeito do desenvolvimento do pensamento infantil, o que faz supor seu desconhecimento acerca dos fundamentos psicológicos desse fenômeno (ARICÓ JÚNIOR, 1977). Este método apresenta a notação tradicional desde o início, sem nenhum tipo de preparação, mas, suas peças têm títulos que fazem lembrar os brinquedos infantis da época, como, por exemplo, O Tambor, Os Soldadinhos, além de canções tradicionais (Dorme Nenê, Capelinha de Melão, Parabéns a você etc.). Pode-se deduzir, então, que o que o autor considera como material capaz de despertar o interesse da criança é o repertório por ele apresentado no livro, que traz os títulos dos brinquedos infantis e as canções do folclore. • Sons da Infância, de Marisa Fonterrada e Maria Lúcia Pascoal Nas páginas iniciais, as autoras propõem atividades para desenvolvimento da musicalidade, que incluem o canto e movimentos corporais, e incentivam que a criatividade do aluno seja desenvolvida, sugerindo que ele crie propostas alinhadas ao que estiver aprendendo. Como pré-leitura, apresentam mão direita acima da mão esquerda e os exercícios de leitura rítmica, chamados Música para piano fechado (Figura 3) e de desenvolvimento do uso dos dedos em Toque escolhendo as notas (Figura 4) (FONTERRADA; PASCOAL, 1979). FIGURA 3 - Exemplo do exercício Música para piano fechado (FONTERRADA; PASCOAL, 1979, p.11). FIGURA 4–Exemplo de Toque escolhendo as notas (FONTERRADA; PASCOAL, 1979, p.11). • The Leila Fletcher piano Course, de Leila Fletcher Este método, que figura entre os mais vendidos de São Paulo, apresenta em sua introdução as atividades a serem trabalhadas na primeira aula, que constam de reconhecimento do teclado por meio de melodias ensinadas por imitação e memorização. A leitura, quando iniciada, é introduzida nos moldes da grafia tradicional (FLETCHER, 1973). MULTITONS OU PENTACÓRDIOS • Música para Piano, de Robert Pace O autor aconselha o professor a introduzir a notação somente após o aluno ter algum controle dos dedos sobre o teclado e inicia este trabalho com desenhos melódicos grafados com o dedilhado em diferentes alturas, como um preparo à leitura de alturas na pauta (Figura 5). FIGURA 5 - Exemplo de pré-notação de alturas (PACE, 1973, p.2). É importante acrescentar que quando o pentagrama é introduzido, pequenas melodias em posição de cinco dedos são escritas, desde o inicio, em vários tons e é sugerido que os alunos habituem-se a tocar sem olhar as mãos. Com relação à escrita rítmica, todas as peças do livro utilizam a semínima como unidade de tempo, o que permitiu a PACE apresentar as figuras da seguinte forma: semínima=1 tempo, semibreve=4 tempos (1973). Este procedimento pode confundir o aluno ao se defrontar com compassos que não usam a semínima como unidade de tempo em outras obras musicais. • Método para piano: introducción a la música, v. 1, de Violeta H. de Gainza Nas cinco páginas da introdução, a autora sugere várias atividades que deverão preceder e/ou acompanhar o desenvolvimento da compreensão da leitura musical e sua escrita por parte do aluno, porém, graficamente falando, a leitura é apresentada ao aluno, nesta edição, de forma tradicional, sem nenhuma pré-notação (GAINZA, 1974). MÉTODOS DE INICIAÇÃO AO PIANO QUE APRESENTAM GRAFIA NÃO TRADICIONAL • Two hands twelve notes book I: a picture-book for young pianists, de Klaus Runze Este método não apresenta notação tradicional de Música. Em vez disto, apresenta desenhos do teclado e grafismos associados ao dedilhado pianístico em linguagem analógica, propondo que o aluno crie a partitura de seus próprios experimentos, da mesma maneira. O objetivo deste método é despertar no aluno o interesse pelas possíveis grafias musicais, ao mesmo tempo em que o inicia ao condicionamento do olhar necessário à leitura (RUNZE, 1977) (Figura 6). FIGURA 6 – Exemplo de notação em linguagem analógica (RUNZE, 1977, p.6). • Játékok Spiele Games, de György Kurtág Este método apresenta, além da notação convencional, notações usuais na música contemporânea, que têm como característica a aproximação com formas de expressão gráfica infantil, preparando as crianças para a compreensão e interpretação de algumas propostas composicionais do século XX, que utilizam a escrita não tradicional por representarem sons que dificilmente poderiam ser representados por aquela, como os clusters, por exemplo. A seguir, a notação tradicional aparece ‘disfarçada’, pois há linhas acima e abaixo dos dois pentagramas (KURTÁG, 1979) (Figura 7). FIGURA 7 - Notação contemporânea junto à tradicional (KURTÁG, 1979, p.I). EDIÇÕES DA DÉCADA DE 1980 ABORDAGEM PELO DÓ CENTRAL • Iniciação ao piano, de Carmen Maria Metting Rocha A autora faz várias sugestões ao professor a respeito de como desenvolver a musicalidade do aluno e enriquecer a aula, de modo a estimular seu interesse, mas nada que inclua grafia musical. Quando a questão é apresentada, é introduzida diretamente, por meio da pauta tradicional (ROCHA, 1985). • Sing and play, de Linda Clary e Ann Collins Este é um livro de atividades para pais e filhos pré-escolares, com cantigas e exploração sonora do piano. Nas três últimas páginas, são apresentadas a clave de sol e o dó central na pauta tradicional, sem nenhuma sugestão de atividade de leitura que a preceda (CLARY; COLLINS, 1987). • Learning to play piano, de Denes Agay O autor prepara o aluno para a leitura tradicional de alturas, por meio da apresentação de dedilhados de melodias folclóricas tocadas em uma determinada posição, em que cada dedo corresponde a uma nota e, para incentivar isto, cada número é grafado nas alturas correspondentes às da pauta. A preparação para a leitura de diferentes valores rítmicos dá-se sublinhando as sílabas e palavras que correspondem aos sons longos (AGAY, 1987) (Figura 8). FIGURA 8 – Exemplo de leitura de dedilhados (AGAY, 1987, p.7). ABORDAGEM INTERVALAR OU ESPACIAL • Educação Musical através do teclado-Etapa de Musicalização, de Maria de Lourdes Junqueira Gonçalves e Cacilda Borges Barbosa O método (GONÇALVES; BARBOSA, 1986) é destinado a aulas com grupos de 4 a 8 alunos, entre 6 e 11 anos de idade, e é acompanhado do Manual do Professor (GONÇALVES, 1986) em que se lê: “a leitura é o resultado da experiência musical e não uma condição para tal experiência”(GONÇALVES, 1986, p.15) e “a criança não deve ser estimulada a escrever suas composições, o que tolheria a própria criatividade, uma vez que no mais das vezes, não tem domínio da notação, para grafar as suas idéias.”(GONÇALVES, 1986, p.50). O método apresenta atividades para desenvolver o hábito de olhar para a partitura e não para os dedos, desde o início seguindo-se atividades preparatórias à introdução de técnicas de leitura tradicional, que não se faz, no entanto, no primeiro volume. MULTITONS OU PENTACÓRDIOS • Piano Básico de Bastien: Pré-iniciante, de James Bastien O autor introduz a escrita musical tradicional por meio do que ele chama de ‘pré- notação’ (BASTIEN, 1997) (Figuras 9 e 10). É importante notar que o exemplo da Figura 9 não é um bom exemplo do ponto de vista da prosódia, uma vez que os acentos das palavras contrariam os acentos do compasso: ‘su-a’ será cantado como ‘su-á’ porque o ‘a’ se localiza sobre o terceiro tempo, que é mais forte que o segundo onde está a silaba ‘su’. Como o livro original é em língua inglesa, percebe-se que este erro de prosódia é resultado de uma tradução inadequada para o português. Desta ótica, o autor está isento de responsabilidade. Porém, ao se aplicar o livro no Brasil, corre-se o risco de se desvirtuar a noção de ritmo e compasso, tão importantes para a formação musical. . FIGURA 9 – Exemplo de pré-notação de alturas com dedilhado (BASTIEN, 1997, p.9). FIGURA 10 - Exemplo de pré-notação com nomes de notas (BASTIEN, 1997, p.19). • Explorando música através do teclado, de Marion Verhaalen O livro é destinado a aulas em grupos de crianças no início da fase escolar. A autora propõe que a criança explore os sons do teclado antes de ser introduzida à leitura ou escrita, “pois a experiência sempre deve preceder os símbolos musicais” (VERHAALEN, 1989a, p.4). Na primeira unidade do livro, a autora propõe que o aluno toque melodias nas três teclas pretas do piano e apresenta a escrita destas como uma forma de preparar o aluno à escrita convencional em música (VERHAALEN, 1989b) (Figuras 11 e 12). FIGURA 11 – Exemplo de pré-notação de alturas (VERHAALEN, 1989b, p.9). FIGURA 12 - Exemplo de pré-notação de alturas (VERHAALEN, 1989b, p.10). EDIÇÕES DA DÉCADA DE 1990 ABORDAGEM PELO DÓ CENTRAL • Iniciação ao piano e teclado, de Antonio Adolfo Apesar de este método apresentar a leitura tradicional em pauta musical por meio do dó central, desde o início do livro, o autor propõe atividades escritas que permitem ao aluno grafar os sons, mesmo antes de conhecerem e dominarem as regras dessa notação. Inicialmente, é permitido ao aluno desenhar os sons do piano. Ao mesmo tempo, o autor vai introduzindo um tipo de escrita em gráficos, usando bolinhas, linhas e ligaduras, como escrita alternativa preparatória à compreensão dos signos usuais. Esse procedimento abre caminho para que o aluno escreva à sua maneira, respeitando-o como um ser que pensa a própria escrita (ADOLFO, 1994) (Figura 13). FIGURA 13 – Exemplo de pré-notação usada por ADOLFO (1994, p.38). ABORDAGEM MISTA • Hal Leonard Student Piano Library: Piano Lessons, de Bárbara Kreader et al. Neste método, a iniciação à leitura é apresentada de forma Espacial e Intervalar, inicialmente, fora da pauta (Figura 14). Quando a pauta é introduzida, traz com ela o ‘dó central’, mas, embora as primeiras melodias escritas estejam localizadas ao seu redor, os dedilhados são modificados, de modo a evitar a associação, pelo aluno, de determinados dedos a notas específicas. FIGURA 14 – Pré-notação em abordagem espacial ou intervalar (KREADER et al, 1996, p.17). ABORDAGEM INTERVALAR OU ESPACIAL • The Music Tree: a plan for musical growth at the piano – Time to Begin, de Frances Clark, Louise Goss e Sam Holland Time to begin é o primeiro livro da coleção americana de Frances Clark e seus assistentes, conhecida como The Music Tree, a qual, por sua vez, faz parte de uma coleção de métodos intitulada The Frances Clark Library for Piano Students, cuja primeira edição remonta à década de 1950, tendo sido revisada e complementada ao longo dos anos. The Music Tree é a seção destinada aos alunos do nível elementar, ou seja, aqueles que estão sendo iniciados ao estudo do piano. A edição de Time to begin (CLARK; GOSS; HOLLAND, 2000), analisada neste trabalho é acompanhada por um livro de atividades, Time to begin activities (BETTS; GOSS, HOLLAND, 2000), organizado pelos assistentes de Frances Clark, o qual terá sua análise descrita no próximo item. Time to begin introduz a leitura espacial ou intervalar, inicialmente, fora da pauta, leitura esta que, segundo o ‘manual do professor’, está planejada para ocorrer somente após o aluno tomar conhecimento da obra musical, primeiramente, por audição e, depois, tocando-a por imitação (CLARK; GOSS; GROVE, 1973) (Figura 15). FIGURA 15 – Pré-notação em abordagem espacial ou intervalar (CLARK; GOSS; HOLLAND, 2000, p.4). LIVROS DE ATIVIDADES Estes livros apresentam atividades lúdicas que se destinam a facilitar a aprendizagem da lecto-escrita musical. O primeiro, aqui comentado, é parte integrante da coleção de Frances Clark, The Music Tree (Figura 16). Nada é falado a respeito de o segundo fazer parte de coleção (Figura 17). • The music tree: time to begin activities de Steve Betts, Louise Goss e Sam Holland FIGURA 16 – The music tree: time to begin activities (BETTS; GOSS, HOLLAND, 2000, p.28). • Piano-brincando: atividades de apoio ao professor de M. Betânia P. Fonseca e Patrícia Furst FIGURA 17 – Piano-brincando: atividades de apoio ao professor (FONSECA; SANTIAGO, 1993, p.83). EDIÇÕES DA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI MÉTODO DE INICIAÇÃO AO PIANO QUE APRESENTA GRAFIA NÃO TRADICIONAL • Pianolude, de Martine Joste et al. Além da notação convencional, este método apresenta frases que indicam como deve ser a interpretação, fato incomum nos métodos de iniciação, que parecem desconsiderar a capacidade expressiva do aprendiz, e notações usuais na música contemporânea, aproximando-se das formas de expressão gráfica infantil preparando as crianças para a compreensão e interpretação de algumas propostas composicionais do século XX, que utilizam a escrita não tradicional (JOSTE, 2002) (Figura 18). FIGURA 18 – Notação tradicional e contemporânea na mesma peça (JOSTE et al. 2002, p.17). LIVRO DE ATIVIDADES • Divertimentos, de Laura Longo A autora, no prefácio, diz que seu livro pretende propiciar o desenvolvimento da musicalidade, da criatividade e do prazer de tocar, mesmo antes que o aluno saiba ler a notação tradicional. Entre seus objetivos, apresenta a possibilidade de desenvolver a habilidade de leitura do aluno, “partindo do todo para as partes, do som para a escrita” (LONGO, 2003, p.12). Como sugestão de estratégias de ensino, apresenta várias possibilidades, como, por exemplo, a imitação pelo ouvido ou pelo olhar. Porém, ressalta que mesmo neste caso o aluno deverá ter a partitura à sua frente e ser orientado a ler o que é capaz de compreender, de acordo com a fase do processo em que se encontra, sugerindo que sejam criados gráficos que facilitem a aprendizagem (Figuras 19 e 20), quando necessário. Se, por exemplo, o aluno ainda não dominar a leitura de notas individualmente, enquanto aprende a peça por imitação, deve fazer a leitura do caminho sonoro (para o alto na partitura = som agudo = mãos indo à direita do teclado). A autora estimula o aluno a improvisar, “criar as suas próprias composições e grafá-las conforme sua compreensão, até que a aquisição da escrita tradicional lhe seja natural” (2003, p.13). FIGURA 19 - Exemplo de escrita em gráfico de Excursão (LONGO, 2003, p.75). FIGURA 20 - Exemplo de escrita tradicional de Excursão (LONGO, 2003, p.29). A RESPEITO DA LITERATURA PARA A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE PIANO Após a análise dos métodos, anteriormente apresentada, passa-se ao exame da literatura dirigida, especificamente, ao professor de piano. É interessante notar, que, de modo geral, o tema lecto-escrita musical é abordado, nos trabalhos direcionados especificamente ao professor de piano, não como algo a ser compreendido, mas, sim, como uma habilidade a ser ‘treinada’ pelo aluno, mediante as técnicas propostas pelo profissional do ensino. É possível concluir, por meio do exame do material selecionado, que os resultados dos estudos específicos a respeito da aprendizagem e do desenvolvimento cognitivo advindos da Psicologia da Educação, desde o início do século XX, não chegaram a fazer parte da formação da maior parte dos autores da área de ensino pianístico. Como exemplo, pode-se citar o trecho do artigo do pianista e professor norte- americano Robert PACE que, na contramão das propostas pedagógicas que buscam levar em consideração o pensamento inicial do estudante acerca do objeto de ensino, ao discorrer a respeito de como iniciar a criança à leitura, aconselha os professores a considerarem a mente de cada estudante como uma “tabula rasa”, por ele considerada como: a mente antes de receber as impressões da experiência. Não há hábitos nem bons, nem maus, nem antecipação do que vem à frente. A partir deste começo na ‘estaca zero’, os estudantes começam a desenvolver a alfabetização musical e suas habilidades de leitura à primeira vista [...] (PACE, 1999, p.3-4) 7 Embora PACE tenha se destacado pela sua proposta de ensino calcada na abordagem por multitons notadamente inovadora na década de 1960, pensando e capacitando professores, dessa forma, contribui para a permanência da situação de conflito estudada nesta pesquisa. Colocar ineficiência dos resultados como conseqüência de um ‘treinamento’ ineficaz, e não da má compreensão que os professores e alunos, porventura, tenham do processo de aprendizagem, consolida a idéia de que tocar um instrumento musical é resultado do um ato físico-mecânico treinável, e não da habilidade de se expressar artisticamente. De fato, o ‘treinamento’ da mecânica físico-muscular deve existir na formação do pianista, mas isto não significa, ou indica que o ensino musical deva caminhar somente por esta estrada. Uma vez que a expressão artística é inerente ao ser humano, torna-se necessário ao professor de piano considerar todas as capacidades deste e não somente o movimento físico. 7 O trecho citado é uma tradução livre desta autora do original escrito a seguir: “the mind before it receives the impressions gained from experience. There are no habits, either good or bad only anticipation of what is ahead. From this beginning at ‘ground zero’, students start to develop their music literacy, sight-reading skills […]” Diferenciando-se do acima citado e de outros livros analisados, JOSÉ ALBERTO KAPLAN, em Teoria da aprendizagem pianística, demonstra preocupação acerca da usual prática do ensino pianístico no que diz respeito à iniciação à lecto-escrita. Com referência aos programas de ensino, alerta para o fato de que “o critério de dificuldade crescente adotado se refere mais à dificuldade de leitura que pode apresentar uma partitura que para a dificuldade de execução propriamente dita” (1987, p.95). O mesmo autor, ainda, critica “a prática usual nos conservatórios e escolas de música de dedicar somente uma ou duas horas de aula por semana ao ensino de música” enquanto que “para a aprendizagem de escrita [...] o menino de 6-7 anos de idade freqüenta diariamente a escola, durante um lapso de tempo que varia de 3 a 4 horas” (1987, p.102). Embora KAPLAN não aborde minuciosamente o tópico do desenvolvimento da habilidade de lecto-escrita em música, é aqui destacado por apontar para a necessidade de o professor de piano aprofundar seus conhecimentos em Psicologia da Aprendizagem, de modo a compreender cada vez mais o aluno e o modo pelo qual esta se dá. EDUCADORES MUSICAIS DO SÉCULO XX Além do trabalho específico de iniciação pianística já exposto, abordam-se, a seguir, as mudanças que, de um modo geral, ocorreram na maneira de encarar o ensino de música a partir do final do século XIX no mundo ocidental, as quais, entre outras conseqüências, ocasionaram transformações na Educação Musical durante o século XX. Com isso, pretende- se aprofundar a discussão acerca da aproximação da criança à música e, especificamente, às questões ligadas à alfabetização musical. Assim, adiante, estão descritas, sucintamente, as principais idéias dos educadores musicais do século XX e sua relação, ainda que indireta, com o ensino do piano, embora nem todos abordem a questão específica desta pesquisa que é a iniciação à lecto-escrita musical por meio desse instrumento. Essa mostra está dividida em duas partes: educadores da primeira metade do século XX e da segunda metade. PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX • Jean-Jaques Dalcroze Um dos princípios básicos do ensino de música no método do suíço DALCROZE, é que o som pode ser traduzido em movimento e o movimento em som. O estudante de piano iniciado musicalmente por meio do método dalcroziano será encorajado a improvisar, aprendendo a expressar ao teclado o que já foi expresso por meio do movimento corporal (UZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.38). • Carl Orff Assim como DALCROZE, ORFF acreditava no corpo como expressão do ritmo e da melodia. A abordagem ORFF não faz uso do piano, evitando-o totalmente. Em vez disto, concentra-se em dar às crianças a experiência de tocar em instrumentos de percussão com baqueta (xilofones e metalofones).8 Em sua visão, ORFF acreditava que os pequenos deveriam estar expostos a instrumentos de real qualidade sonoro-musical e não só aos de brinquedo, e para este fim, os produziu, sendo o conjunto de seus instrumentos hoje conhecido como instrumental ORFF. Quanto ao desenvolvimento do canto, o plano de ensino de ORFF inicia-se a partir da terça menor descendente, expandindo-se aos outros intervalos gradativamente, por meio de canções folclóricas baseadas na escala pentatônica. Sua filosofia era de que a música é para todos e deve ser parte da educação desde a mais tenra idade. Assim como no método DALCROZE, a criança musicalizada por esta abordagem será incentivada a desenvolver a criatividade e a improvisação e, ainda, terá a capacidade de tocar e cantar em grupo de maneira bem desenvolvida (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.39). • Zoltán Kodály KODÁLY foi um compositor que devotou a maior parte de sua vida ao estudo da música folclórica húngara, estabelecendo um sistema de educação musical dirigido a seu próprio povo, o húngaro, baseado nas canções folclóricas de seu país. A alfabetização musical, ou seja, o desenvolvimento da habilidade de interpretar e escrever partituras é o foco central de seu método, o qual se concentra no canto, por considerar a voz o instrumento musical mais natural, sendo oferecido aos estudantes durante todo o período escolar, que, na Hungria, se inicia aos três anos de idade. O uso de instrumentos faz parte de seu método, mas ele se dá somente após a criança dominar a leitura e escrita da notação musical tradicional, como resultado de sua experiência vocal, fato que ocorre paralelamente ao desenvolvimento da capacidade de ler e escrever a língua falada (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.40). 8 “mallet-playing instruments”. O uso do piano, como ferramenta para ensinar conceitos musicais, tais como intervalos, escalas e acordes, ou como um instrumento de acompanhamento ao canto, é evitado (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.40), mas é ensinado por meio de métodos ricos em canções folclóricas húngaras em notação tradicional (BARTÓK, 1940; FANTÒNÈ, 1966). Diferentemente de Orff, que prioriza a improvisação, a integração com outras linguagens expressivas e a criatividade, o Método Kodály se dedica ao desenvolvimento da voz e à ênfase na leitura e na escrita musicais, somente assemelhando-se ao primeiro na opção por trabalhar sobre a música folclórica.9 • Shinichi Suzuki O método idealizado pelo violinista SUZUKI é destinado ao ensino da performance instrumental, sendo o ensino por imitação a sua base (USZLER; GORDON; SMITH, 2000, p.41). Sua filosofia de ensino está baseada na metodologia de aprendizagem da língua nativa: a criança aprende com a mãe e a família por imitação (SUZUKI, 1994). Assim, as aulas de instrumento envolvem a mãe, que deve estar presente, aprendendo o que deve ser trabalhado ludicamente com a criança em casa (FONTERRADA, 2005, p.156). Em suas origens, o método foi organizado para o ensino do violino, tendo sido, posteriormente adaptado para o ensino do violoncelo, viola, flauta, harpa e piano. Com relação à lecto-escrita, “no método Suzuki, o desenvolvimento da leitura musical é posterior ao aprendizado do instrumento. O aluno deve memorizar o que toca, [...]; assim, não faz exercícios de leitura à primeira vista, pois lê apenas o que já sabe tocar de cor” (FONTERRADA, 2005, p.159). É importante ressaltar que os livros de partitura para piano do método Suzuki não apresentam nenhum tipo de explicação sobre o método (SUZUKI, 1978). As explicações sobre como deve ser o ensino foram escritas por Suzuki em Educação é amor (SUZUKI, 1994). SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX • John Paynter A proposta de ensino do inglês PAYNTER baseia-se em proporcionar aos alunos o 9 É importante lembrar que, embora ambos tenham trabalhado sobre a música folclórica, não é possível falar que, sonoramente, o material musical seja o mesmo, pois o material folclórico de Kodály diferia do de Orff. O folclore, no qual Kodály baseou-se, era proveniente da Europa Oriental, rico em música modal e escala pentatônica diferente do folclore alemão sobre o qual Orff trabalhou. manuseio dos sons com o intuito de organizá-los musicalmente, segundo as correntes estéticas dos séculos passados e também da contemporaneidade. Em seu livro Hear and Now, PAYNTER defende a necessidade de que haja aulas de música que aproximem o aluno dos processos composicionais do século XX, e não somente, voltadas para o ensino da música européia dos séculos XVI ao XIX, por meio de atividades que envolvam os alunos criativamente neste processo (1972). Em outro de seus livros, Sound and Structure, o educador apresenta tarefas que possibilitam ao aluno conhecer as técnicas de composição de forma prática e ativa, escrevendo os resultados composicionais em notação tradicional ou não. Diretamente falando aos que tocam piano, no capítulo 4, Fingers are great inspirers,10 o autor propõe atividades que possibilitam o desenvolvimento musical por meio do tocar experimentalmente e do organizar e escrever os resultados sonoros escolhidos (PAYNTER, 1992), abrindo ao aluno a possibilidade de se relacionar com o instrumento de uma forma diferente da apresentada pelo caminho tradicional. PAYNTER não diz nada de aprendizado de leitura e escrita, especificamente, pois, seu foco é estimular a criação e a invenção. Mas ele incentiva a leitura de grafias não tradicionais. • Murray Schafer Este compositor canadense, que desde a década de 1960 tem apresentado reflexões acerca da educação musical, defende a resistência à leitura musical nos primeiros estágios da educação, “porque ela incita muito facilmente a um desvio da atenção para o papel e para o quadro-negro, que não os sons.” Ele não fala especificamente de alfabetização musical, mas enfatiza que a escrita não deve ser o objetivo primordial da educação musical. Segundo ele, “a notação musical convencional é um código extremamente complicado e, para dominá-lo, são necessários anos de treinamento”. E, continua dizendo que “o ideal, o que precisamos, é de uma notação que pudesse ser aprendida em dez minutos, após os quais, a música voltasse a seu estado original – como som” (SCHAFER, 1991, p.307). SCHAFER defende que o aluno “manuseie” os sons, ampliando sua qualidade de escuta, por meio de tarefas que, ao se tornarem mais elaboradas, necessitarão, inevitavelmente, da escrita. A partir deste ponto, o aluno deve ser estimulado a desenvolver a escrita de suas próprias partituras, utilizando o meio que quiser. O compositor afirma que “as primeiras tentativas podem beirar ao fracasso, 10 “Os dedos são grandes inspiradores”. mas a análise de quais aspectos da música foram omitidos nas mesmas, propicia o interesse necessário para que se introduza a notação convencional” (1991, p.310). • George Self SELF, músico-educador inglês, procurou alinhar a educação musical à música de vanguarda e discorda do ‘adestramento’ interpretativo proposto pelo ensino tradicional, preferindo que os alunos vivenciem experiências musicais de caráter aleatório ou impreciso (1967). Pelo fato de a notação tradicional não possibilitar a escrita de todos os elementos trabalhados em suas propostas musicais, ele faz uso de um tipo alternativo de notação por ele criado, uma grafia simplificada, que dá margem à improvisação sonora, por não ser regular, “como as estruturas mais comumente encontradas na música tradicional” (FONTERRADA, 2005,168) (Figura 21). No entanto, ele não estimula o aluno a criar suas próprias grafias. FIGURA 21 – Exemplo de notação criada por SELF (1967, p.41). • Hans-Joachim Koellreutter Em 1937 chegou ao Brasil o compositor alemão KOELLREUTTER, um dos nomes mais importantes da Educação Musical brasileira. “[...] KOELLREUTTER trouxe idéias frescas, que refletiam a nova postura diante da arte contemporânea, e abriu um campo voltado à pesquisa e à experimentação” (FONTERRADA, 2005, p.199). Ao examinar o processo de aquisição da escrita musical a partir do pensamento da criança, KOELLREUTTER afirmava que “para as crianças, especialmente na etapa da educação infantil, o espaço sonoro é global (silêncio e som), aberto e também multidirecional (em todas as direções e não apenas da esquerda para a direita)” (apud BRITO, 2003, p.181). Respeitando tal multidirecionalidade, propunha que a criança pudesse manusear os sons e sua escrita até que, por meio da aprendizagem, viesse a assimilar a direcionalidade usual nos sistemas de notação ocidental e, conseqüentemente, na notação tradicional em música. Segundo a músico- educadora TECA ALENCAR DE BRITO, sua discípula e seguidora de seus ensinamentos, é preciso que o educador instigue a criança em idade pré–escolar a desenhar o som e observe os resultados a respeito de “como as crianças registram os sons, como ocupam o espaço do papel, [...] de acordo com o que ouvem” (BRITO, 2003, p.183). Somente a partir daí é possível que se estabeleça uma situação de aprendizagem da lecto-escrita musical. TRABALHOS DE PSICOLOGIA DA APRENDIZAGEM MUSICAL • Jeanne Bamberger Seguindo o pensamento construtivista-piagetiano, BAMBERGER realizou pesquisas na década de 1970 e apresentou resultados a respeito da notação de ritmos simples, realizada por crianças de quatro a doze anos de idade, e por adultos sem conhecimento musical prévio, que demonstram a existência de fases conceituais que antecedem a escrita rítmica convencional em música. A partir de suas observações, BAMBERGER sugeriu que, “no que concerne ao ensino, deveríamos acentuar mais a pesquisa dos métodos que encorajem as crianças a projetar descrições variadas e a passar de um modo de apreensão para outro”, ou seja, de uma fase conceitual a outra (BAMBERGER, 1989, p.97 –124). • Marguerite Frey-Streiff FREY-STREIFF, na década de 1970, apresentou resultados de pesquisa a respeito de notação de melodias,11 realizada com crianças de 7 a 12 anos, sem formação musical escolar, os quais lhe permitiram identificar seis tipos de notação, selecionados a partir do que foi significativo para a criança. Pelas palavras da autora: O resultado mais evidente dessa pesquisa é, sem dúvida, que a criança nem sequer parece conceber a unidade-som como elemento constitutivo da melodia. Na conceitualização espontânea de um todo musical, a unidade-som parece não se impor de imediato, mas constituir o coroamento de uma elaboração completa. O som que, com suas propriedades, geralmente é o ponto de partida do ensino musical, corresponde então a um dado que não tem (ou pouco tem) significação para a criança [...] (FREY-STREIFF, 1989, p.167- 168) 11 As melodias que FREY-STREIFF utilizou em sua pesquisa foram Au clair de la lune e Il était une bergère, ambas do folclore francês. A pesquisa de FREY-STREIFF aponta para a necessidade de a iniciação à lecto-escrita musical dar-se por meio de canções significativas para as crianças e não pela escrita de notas isoladas do contexto musical. • David Hargreaves HARGREAVES, pesquisador inglês da segunda metade do século XX, em seu livro The Developmental Psychology of Music, editado pela primeira vez na Inglaterra em 1986, defende a idéia segundo a qual a Educação Musical deve ser firmemente fundamentada na Psicologia do Desenvolvimento. Para isto, apresenta as Teorias do Desenvolvimento que respondem mais imediatamente às questões da Educação Musical e os resultados de pesquisas realizadas por ele e outros pesquisadores segundo a visão dessas teorias. O desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicomotor que ocorre durante o processo de educação musical, segundo ele, deve ser avaliado segundo os pressupostos das teorias psicológicas, as quais têm papel central na formulação e escolha, por parte do professor, do método a ser utilizado. No que concerne ao desenvolvimento da habilidade de lecto-escrita em Música, são apresentados resultados de pesquisas provenientes de diversos pesquisadores, realizadas com pré-escolares e escolares que demonstram a existência de fases conceituais antecedendo a compreensão da notação convencional (HARGREAVES, 1986), como, por exemplo, BAMBERGER (1989) e FREY- STREIFF (1989), de quem já se falou. • Violeta Hemsy de Gainza Segundo GAINZA, a prática musical deve preceder a habilidade para ler notas. Tem por princípio que todo conceito deve ser precedido pela manipulação ativa dos sons por meio de atividades que envolvam a exploração do ambiente sonoro e dos instrumentos tradicionais, a invenção e construção de instrumentos, a criação e a improvisação, sendo que o momento oportuno para introduzir a lecto-escrita é quando a própria criança pede. Nesse momento, incentivada a criar sua própria forma de grafia, a criança apresenta diferentes formas de notação – desenhos, garatujas, pontos, linhas – que devem ser respeitadas pelo professor como parte do processo de aprendizagem (GAINZA, 2002). É possível perceber que GAINZA reconhece que a criança tem suas próprias idéias a respeito de notação, embora não explicite esse ponto de vista; no entanto, admite o criar da criança e aconselha que tal criação seja respeitada. • Howard Gardner GARDNER, psicólogo norte-americano, em seu livro Estruturas da mente (1994), defende que as capacidades intelectuais não se restringem ao pensamento lógico-matemático estudado por Piaget, sendo ampliadas pela existência de múltiplas inteligências, entre elas a inteligência musical. Em A criança pré-escolar (2001), GARDNER demonstra que, de modo geral, o que tem sido aprendido no âmbito escolar tem pouca aplicabilidade na vida prática. Segundo ele, este equívoco é explicado ao se observar que o aluno em contexto não-escolar busca suas soluções de maneira intuitiva, como uma criança de cinco anos de idade, em razão das falhas do sistema de ensino que em geral, avalia a prontidão em respostas rápidas e não a compreensão que o aluno realmente tem acerca dos temas ensinados. Segundo o autor, a criança de cinco a sete anos de idade já tem suas crenças e sobre elas é capaz de tomar decisões, por isso, a escola deveria partir destas crenças já existentes no pensamento infantil para trazer os conhecimentos escolares de forma significativa. GARDNER apresenta dados de pesquisas pelos quais se demonstra que a não ocorrência de uma aprendizagem significativa faz que alunos de diferentes faixas etárias, inclusive universitários aos vinte anos, façam escolhas baseados em crenças que se equiparam à dos pré-escolares. Diante desta situação, ele diz: Acredito que a chave seja criar ambientes de aprendizagem [...] Os ambientes que podem fundir formas de conhecimento sensório-motor e simbólico às formas de conhecimento notacional, conceitual e epistêmicas, valorizadas na escola, deveriam engendrar a compreensão. (2001, p.157) ACADÊMICOS BRASILEIROS DEDICADOS À ALFABETIZAÇÃO MUSICAL Além do corpo de autores já exposto, foram, também, examinados textos acadêmicos brasileiros dedicados à questão da alfabetização musical. Dentre os trabalhos disponíveis aos quais foi possível o acesso, foram selecionadas duas dissertações de mestrado que se aproximam do estudo desta pesquisa, conforme descritos a seguir. • Gênese da notação musical na criança, de Pedro Paulo Salles A dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo (USP), Gênese da notação musical na criança, de SALLES, apresenta resultados encontrados na análise de partituras produzidas por crianças de 6 a 11 anos, coletadas entre 1978 e 1989, em duas escolas particulares da cidade de São Paulo. Apoiando-se em Piaget, o pesquisador descreve “alguns dos processos quanto às relações que a criança estabelece com os sons” (1996, p.3), apresenta as notações das crianças, cria uma tipologia para elas e analisa tais notações, buscando compreender os processos que explicam essa gênese. Segundo o autor, as notações podem ser classificadas em três tipos: “notações pictográficas”- signos descritivos (desenho da fonte sonora); “notação mista” – signos interpretativos ou simbólicos (desenho de imaginação); e, “notação analógica” – signos sônicos (notação plástica). Destaca-se que, segundo SALLES: Com relação à introdução da notação tradicional, ela não implica em descartar as notações criadas, ao contrário, estas habitam de igual para igual com aquela “universal”. Além disso, as etapas que antecedem o aparecimento da notação tradicional não devem ser consideradas como pré-requisitos ou “facilitadoras” a esta introdução [...] (1996, p. 238) • Pensar com sons: um estudo da notação musical como um sistema de representação, de Dulcimarta Lemos Lino LINO, em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), a partir de revisão bibliográfica, apresenta a seguinte comparação entre alguns trabalhos apresentados por pesquisadores da gênese do pensamento referente à escrita sonoro-musical: [...] estes autores12 deixaram evidentes três aspectos comuns nas suas classificações. Inicialmente seus sujeitos destacaram uma indiferenciação generalizada e totalizante da música, escrevendo símbolos que representam globalmente a ação musical. Em seguida, estes sujeitos selecionaram uma(s) propriedade(s) ou elemento(s) musical para representar graficamente. E, finalmente, esboçaram simbolicamente a organização estrutural da música. (1998, p.30) LINO apresentou, além, da revisão bibliográfica, os dados de sua própria pesquisa de campo, a qual constou da análise de partituras elaboradas por 11 crianças de 6 a 8 anos de idade, alunos da 1ª. série do Primeiro Grau de uma escola municipal da periferia de Porto Alegre, coletadas no início, no meio e ao término do ano letivo e que teve como base trabalhos da psicóloga Emilia Ferreiro, de quem se falará adiante, entre outros (1998, Cp. 3). Por meio de sua análise, LINO classificou as partituras em 12 Os autores a que Lino se referem são: Bamberger, Cestari, Davidson e Scripp, Frey –Streiff, Cauduro, Hair, Hargreaves e Galton e Salles. quatro tipos - sensorial, figurativa, convencionada e sistêmica – e mostrou que todas elas demonstram a existência de fases conceituais durante o processo de aquisição da lecto-escrita musical (1998, Cp. 7). CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Ansiando por responder às questões levantadas no início deste texto, a revisão bibliográfica da presente pesquisa, analisou métodos de iniciação ao piano, trabalhos direcionados à formação do professor deste instrumento, propostas de educadores musicais do século XX e sua relação com a iniciação pianística, trabalhos da área de Psicologia da Aprendizagem aplicada à música, e, duas dissertações de mestrado sobre a psicogênese do processo de aprendizagem da lecto-escrita em música. Percebe-se pela revisão bibliográfica desta pesquisa, que há diferentes abordagens metodológicas para a iniciação da criança à leitura musical, por meio de uma partitura para piano. O Quadro 1, a seguir, apresenta a quantidade de métodos aqui analisados, e mencionados, em cada abordagem. QUADRO 1- Quantidade de métodos analisados, segundo o tipo de abordagem. Tipo de abordagem Dó Central Multitons ou Pentacórdios Intervalar ou Espacial Mista Quantidade de métodos analisados 21 métodos (10 brasileiros; 11 estrangeiros) 4 métodos Estrangeiros 4 métodos (3 estrangeiros; 1 brasileiro) 2 métodos estrangeiros Observou-se que os tipos de abordagem de iniciação pianística não isentam o professor e o aluno de se livrarem de falhas quanto à formação musical do aluno, apesar das várias vantagens oferecidas por cada um. É possível afirmar que, via de regra, existe preocupação por parte dos autores quanto à iniciação da lecto-escrita musical, embora se tenha constatado que a maior parte dos métodos não leva em consideração a criança em situação de aprendizagem, pois propõem um trabalho de leitura musical aliado à memorização, ou à associação olho/movimento e ouvido. De modo geral, demonstram que a preocupação dos autores, ao se iniciar a criança no estudo do instrumento, apresenta um enfoque muito mais tecnicista do que ligado ao desenvolvimento da compreensão necessária para que se desempenhe com habilidade a tarefa de interpretar uma partitura. Pesquisas voltadas à aprendizagem musical apontam para a existência de fases do pensamento conceitual pelas quais a criança passa, ao tentar se apropriar das regras que regem a notação musical tradicional, mas ainda são poucas e insuficientes para responder a todas as questões acerca deste tema. As abordagens de muitos compositores contemporâneos voltados à educação musical dão espaço à criança para criar e pensar, mas os métodos de ensino que utilizam escrita convencional, em grande parte, não, pois têm como objetivo que a criança apenas aplique os sinais musicais convencionais à sua prática, por meio da memorização. Pode-se dizer que o mesmo ocorre com as obras destinadas ao preparo do professor para o ‘como ensinar piano’: do exame desse material, percebe-se que a preocupação a respeito da maneira pela qual o aluno concebe a escrita musical e compreende o processo de leitura é praticamente inexistente. No entanto, é preciso destacar que o século XX trouxe novos rumos para a Educação Musical, por meio de educadores que procuraram alinhar às suas práticas, contribuições advindas de resultados de pesquisa em outras áreas, tais como a Psicologia, as Ciências Naturais e a Filosofia. Na segunda metade do século XX, destacam-se outros que enfatizam a exploração de material sonoro utilizado pela Música Contemporânea. Pode-se dizer que os educadores musicais da primeira metade do século XX inovaram quanto à forma pela qual o conhecimento é adquirido, ao deixarem de lado a concepção do professor como o detentor e transmissor de conhecimentos, e adotarem a de ser, ele mesmo, como que um aluno mais velho, que compartilha sua experiência com todos aqueles que, a seu modo, também vivenciam o fazer musical. É preciso que se diga, porém, que embora tenham sido compositores inovadores do ponto de vista da linguagem musical, como educadores sua preocupação dizia mais respeito à postura pedagógica, do que à exploração sistemática da linguagem contemporânea. Em outras palavras, eles romperam com as práticas pedagógicas usuais até então e propuseram outras, marcadamente inovadoras, mas não deram ênfase especial às práticas sonoras de sua própria época em suas propostas educativas, mantendo-se atrelados ao repertório tradicional de ensino. Somente a partir de 1960 é que compositores voltados para a Educação Musical valorizaram o mundo sonoro ‘descoberto’ no século XX (FONTERRADA, 2005). Para PAYNTER e outros autores contemporâneos que se dedicam ao ensino coletivo, por meio do uso de instrumentos de som indeterminado, voz sem alturas definidas, isto é, que trabalham próximos ao interesse da música contemporânea, cujos princípios são outros que não os da aquisição de domínio técnico dos instrumentos musicais do século XX e mais antigos, a educação musical deve passar pelo caminho da exploração e organização sonora, usando-se, além da grafia tradicional de música, grafias alternativas, que podem ter recursos que melhor traduzam os sons da contemporaneidade e que, em geral, são mais aceitas pelas crianças do que as notações musicais tradicionais. Coincidentemente, apesar de terem sido analisados vários métodos de iniciação ao piano nesta pesquisa, os que aqui foram relacionados, por apresentarem preocupação sobre a iniciação da criança à notação tradicional de música, são edições que datam da década de 1960 em diante, não tendo havido identificação a respeito dessa questão em anos anteriores. Embora a maior parte dos métodos demonstre que os autores consideram a lecto-escrita musical uma habilidade a ser desenvolvida tecnicamente, há os que dão indícios de que a iniciação à leitura musical deve passar por fases preparatórias à introdução da notação convencional. Estes autores, provavelmente, foram influenciados pelas pesquisas na área de Psicologia da Aprendizagem, ainda que esta influência seja pequena e tardia, porém, apesar das suas tímidas inovações acerca de como se deve introduzir a notação tradicional, do ponto de vista da linguagem musical, a quase totalidade dos métodos ainda está distante do interesse da música contemporânea. Apesar de o foco desta pesquisa não ser o tipo de material sonoro proposto pelos métodos de iniciação ao piano, é bom ressaltar que a maior parte dos que foram aqui analisados privilegiam a linguagem tonal a outros tipos de organização sonora. Provavelmente, isto se deva ao fato de o repertório tradicional para piano ser prioritariamente tonal e, provavelmente, este seja, também, o motivo pelo qual a iniciação à leitura proposta por tais métodos, raramente, esteja aberta a grafias alternativas, que poderiam estar mais próximas do pensamento da criança iniciante. Mas, seria um bom campo para novos pesquisadores da área observar o quanto um método aberto a grafias contemporâneas poderia contribuir para a aprendizagem da notação convencional. Concluindo, afirma-se que, por meio das obras analisadas neste capítulo, é possível dizer que o músico-educador do final do século XX vê o processo de aprendizagem da lecto- escrita musical como uma habilidade adquirida por meio de capacitação técnica e também, como um processo que implica, além do desenvolvimento das habilidades físicas, o desenvolvimento psicológico. Parece que ainda são poucos os músico-educadores que compreendem as fases conceituais pelas quais a criança passa durante o processo de aprendizagem da lecto-escrita musical, e isso se deve, provavelmente, à escassez de estudos na área e à pouca divulgação dos existentes, mas, já é possível notar que os educadores mais recentes procuram levar em consideração o pensar da própria criança. Apesar disto, nenhum dos autores analisados respondeu, efetivamente, a questão de como a criança iniciante no estudo de piano compreende a escrita musical. Após este estudo, do que se produziu no último século a respeito do ensino da lecto- escrita musical, restam, pois, ainda, as seguintes questões: como se dá o processo de aprendizagem da lecto-escrita musical ao piano? Há diferentes comportamentos psicológicos caracterizadores de diferentes fases durante este processo de aprendizagem? Essas questões servirão de motivo para o que se segue. 2 A ALFABETIZAÇÃO SEGUNDO EMILIA FERREIRO: A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA Com o intuito de compreender como se dá o processo de aprendizagem da lecto-escrita musical ao piano, e se existem diferentes comportamentos psicológicos ou fases, durante esse processo, além da revisão bibliográfica descrita no primeiro capítulo, encontrou-se a possibilidade de fundamentar esta pesquisa em estudos ligados à alfabetização. Destaca-se, nesta área, a psicóloga argentina Emília Ferreiro, que, desde a década de 1970, apresenta trabalhos esclarecedores acerca deste importante processo mental. EMILIA FERREIRO E SUA OBRA Nascida em 1937, EMILIA FERREIRO, depois de se formar em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires, passou a estudar na Suíça, terminando sua tese de doutorado sobre problemas da aquisição da língua oral em 1970. Após esse período, voltou à Argentina com interesse em continuar suas pesquisas sobre esse tema, ligando-o, porém, a alguma problemática da realidade de seu país. Assim, passou a interessar-se pelo uso da linguagem oral no início do ensino fundamental. Ela explica: “Queria indagar que tipo de pressuposição o professor tinha em relação à competência lingüística das crianças e como isso podia interferir na aprendizagem” (2001c, p.17). Ao iniciar sua sondagem, percebeu que havia uma enorme quantidade de intercâmbios lingüísticos relacionados à aprendizagem da língua escrita, passando, então, a trabalhar esta questão, dedicando-se, em grande parte das vezes, à compreensão do pensamento do aprendiz no período que antecede o aprendizado das escritas convencionais. Segundo ela, este período, além de ter sido o menos estudado dentro da evolução da escrita, é o menos reconhecido pela instituição pré-escolar, e, ao se estudar o aluno desta fase, é possível perceber com maior clareza os processos construtivos que aparecem quando o sujeito tenta apropriar-se do conhecimento de outros. FERREIRO lembra que, no início da década de 1970, os estudos relacionados à aquisição da língua escrita, ou tratavam das habilidades que as crianças deveriam ter para iniciar a leitura, como, por exemplo, as coordenações sensório-motoras, ou da discussão acerca de qual seria o melhor método para o ensino da leitura-escrita. Não havia estudos sobre a criança, do ponto de vista piagetiano, ou seja, estudo