GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 135 SOBRE A IDADE DAS CRISES: AS INTER-RELAÇÕES SUJEITO- IDENTIDADE-FEMINISMO NA PÓS-MODERNIDADE Aparecido Donizete Rossi – UNESP 1 Resumo: O presente ensaio pretende refletir crítica e teoricamente sobre as inter- relações entre sujeito, identidade e Feminismo no contexto da Pós-modernidade, contexto esse aqui denominado, para o que se pretende, ―Idade das Crises‖. Esses três aspectos serão abordados sob uma perspectiva histórica e problematizados a partir de um olhar filosófico marcadamente pós-estruturalista, na linha da Desconstrução derridiana. No conjunto, o que se objetiva especificamente é chegar a uma discussão da inter-relação indecidível entre pensamento feminista e Pós-modernidade, uma das configurações das diversas crises da contemporaneidade. Para tanto, não é possível refletir sobre um e outro sem uma prévia discussão sobre o sujeito pós-moderno e sua identidade. É essa discussão que permitirá contextualizar e discutir o Feminismo dentro do objetivo proposto. Tal discussão será estruturada em torno da palavra ―crise‖ que, em composição com a palavra ―idade‖, será tomada como sinônimo de ―pós- modernidade‖ e de ―contemporaneidade‖. ―Idade das Crises‖, ―pós- modernidade‖, ―contemporaneidade‖ e ―Feminismo‖ serão lexemas assombrados pelo fenômeno do phármakon, um dos aspectos-chave do pensamento desconstrucionista derridiano, o qual será a força gravitacional que aproxima e distancia, em uma relação indecidível, os quatro lexemas. Palavras-Chave: Pós-modernidade. Feminismo. Desconstrução. Identidade. Sujeito. INTRODUÇÃO Vivemos em uma época em que filmes como Blade Runner, o caçador de andróides (1982), de Ridley Scott; O exterminador do futuro (1984), de James Cameron, e A.I. – Inteligência artificial (2001), de Steven Spielberg, parecem proféticos, pois a cada instante nos aproximamos mais de seus contextos. Filmes como Matrix (1999), dos irmãos Wachowski; Dogville (2003), de Lars von Trier, e Babel (2006), de Alejandro González Iñárritu, nos colocam diante de nossa própria condição humana hoje, século XXI, e ficamos impressionados, estarrecidos ou horrorizados com a desagradável semelhança dessas obras 1 UNESP – FCL-Ar – Departamento de Letras Modernas. Araraquara/SP, Brasil, CEP: 14800-901. E-mail: adrossi@fclar.unesp.br GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 136 à ―realidade‖ (ou seria a ―realidade‖ que é semelhante a essas obras?). No final do século XIX e início do século XX, um austríaco chamava essa ―desagradável semelhança‖ de estranho (umheimliche) e dizia que ―o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar‖ (FREUD, 1969, p. 238). Atualmente, a literatura dita ―séria‖ permanece no Realismo do século XIX, mesmo depois de James Joyce, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges e Guimarães Rosa; ou se volta para o hiper-realismo e para o simulacro, já que talvez nem haja mais possibilidade de literatura pós Joyce, Woolf, Borges e Rosa. A literatura dita de ―diversão‖, ou literatura de massa, ora se volta para os mitos, para o épico, para o gótico ou para a ficção científica; ora se volta para a autoajuda. E nessa contenda entre literatura ―séria‖ e literatura de ―diversão‖ os dois lados se esquecem do velho Horácio, que no século I d.C. já afirmava que qualquer forma de expressão literária deve servir para docere et delectare. A exceção a esse esquecimento coletivo parece ser a literatura chamada pós-moderna, uma espécie de hymen ou fenda entre a literatura ―séria‖ e a literatura de massa, mas muitos nem mesmo acreditam que algo desse tipo possa existir haja vista a resistência e polêmica que permanecem ainda hoje em torno do próprio termo ―pós-moderno‖. Em uma era em que ―Fonte‖ (1917), de Marcel Duchamp, está em exposição no Louvre; Madonna e Michael Jackson já são clássicos da música pop; Lady Gaga é um fenômeno que impressiona o mundo; os filmes de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez são cult e Paulo Coelho é um imortal da Academia Brasileira de Letras, o presente texto — menos um artigo que um ensaio — tenta desenhar um panorama, fazer uma breve arqueologia, de três aspectos que marcam e contribuem para esse multiverso de contradições, fragmentos, caminhos cruzados e distanciados, conexões desconexas e aproximações improváveis que é chamado pós-modernidade 2 , os tempos atuais (segunda metade do século 2 Costuma-se fazer uma distinção entre Pós-modernidade (histórica/ideológica) e Pós-modernismo (estético). Contudo, tal distinção é reconhecidamente arbitrária e sua discussão em termos teóricos não é objeto deste ensaio. Por essa razão, as palavras ―Pós-modernidade‖ e sua correlata ―pós-moderno(a)‖ serão aqui empregadas com uma sobreposição de sentidos: significarão ao mesmo tempo o tempo histórico atual, marcadamente pós 1950, e o desvio que a teoria, a crítica, a literatura e as artes dessa mesma época apresenta ante as GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 137 XX até o presente), que aqui denominamos Idade das Crises, dado ―crise‖ ser um signo que parece urdir de modo intangível e imaterial esse emaranhado disforme e caótico. Os três aspectos dessas breves considerações — o sujeito, a identidade e o Feminismo — serão abordados sob uma perspectiva histórica e problematizados a partir de um olhar filosófico marcadamente pós-estruturalista, na linha da Desconstrução derridiana. No conjunto, o que se objetiva especificamente é chegar a uma discussão da inter-relação indecidível entre pensamento feminista e pós-modernidade, uma das configurações das diversas crises da contemporaneidade. Para tanto, não é possível refletir sobre um e outro sem uma prévia discussão sobre o sujeito pós-moderno e sua identidade. É essa discussão que permitirá contextualizar e discutir o Feminismo dentro do objetivo proposto. A IDADE das Crises Hoje A História, em sua sina didática de ciência dependente das pseudo-grandezas físicas do Tempo e do Espaço, identifica várias idades, épocas ou eras na cronologia da existência do Mundo e dos seres humanos no Mundo. Há, por exemplo, uma Idade da Pedra, anterior à escrita e, por isso mesmo, anterior a tudo, inclusive à própria História (paradoxo interessante: a História historiciza algo anterior a ela mesma). Há ainda a Idade Antiga, que abarca o surgimento da escrita e das primeiras ideologias humanas (a própria História, sociedade, política, economia, religião etc.). Há também a Idade Média que, ironicamente, tem seu primeiro momento — um breve período de cerca de dez séculos — conhecido como Idade das Trevas, época em que são gestadas e desenvolvidas as culturas e línguas europeias. Posteriormente, tem-se a era das grandes navegações, que resultaram na ―descoberta‖ do Novo Mundo (América e Oceania), e consequentemente na colonização e exploração desses lugares. Houve ainda a Idade das Luzes, o Iluminismo, a era dos grandes desenvolvimentos científicos, do domínio da razão e da lógica, da solidificação dos grandes sistemas filosóficos. Mais recentemente tem-se a Idade Moderna, era das revoluções sócio-político- culturais, do refinamento científico-tecnológico, das várias guerras propostas do Modernismo das duas primeiras décadas do século XX sem, no entanto, deixar de pertencer a esse mesmo Modernismo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 138 mundiais e da conquista espacial. Mas e hoje, século XXI, caberia ainda perguntar em que ―idade‖ histórica se vive? A resposta está longe de ser simples, já que não dispomos do distanciamento (pseudo)temporal que permitiu aos historiadores nomear as idades do Mundo. Paralelamente a essa consideração, não é nosso objetivo aqui traçar todo um panorama exclusivamente historicista que, por ventura, resulte em uma possibilidade de resposta à pergunta, pois questões de ordem metodológica se instaurariam, a começar pelo próprio conceito de cronologia relacionado à História: a História não é cronológica, mas sim helicoidal. Logo, há momentos de progresso, estabilidade, retrocesso e repetição situacional em todas as idades do Mundo, o que deita por terra a noção positivista e maniqueísta de progresso implícita a toda concepção teórica de ordem cronológico-linear e, consequentemente, coloca em cheque o próprio conceito de ―idade‖ ou ―época‖ histórica. Tampouco é nosso objetivo atermo-nos exclusivamente a quaisquer possibilidades dialéticas de resposta à pergunta formulada, pois desde finais da década de 1960, com os assim denominados pós-estruturalismos, não é mais possível falar ou utilizar como método exegético qualquer sistema dialético sem questionamentos prévios. Antes, porém, para refletir sobre a questão parece-nos necessário cercá-la em sua pluralidade de respostas possíveis, visto que estamos vivenciando o turbilhão da contemporaneidade e, como tal, não é possível identificar uma linha argumentativa que permita um vislumbre do que Hegel chamaria ―espírito absoluto‖ dessa era, mesmo porque essa era parece não ter um ―espírito absoluto‖. Ainda que tenhamos nos valido da História para propor a pergunta, a resposta é uma colcha de retalhos, uma miríade de fragmentos que não compõe um todo, mas sim um emaranhado de linhas de pensamento que apontam para diversas direções, as quais levam a todos os lugares e a nenhum lugar ao mesmo tempo. Dentro desse escopo, a reflexão sobre ―em que idade histórica se vive?‖ só poderia se iniciar, como ensina Hans Ulrich Gumbrecht (1988, p. 107), de maneira indutiva, já que não é possível deduzir algo de um caos de fragmentos que se entrecruzam, mas não necessariamente se relacionam: vivemos na Idade das Crises. A palavra ―crises‖ é aqui usada no plural como uma espécie de metáfora para uma infinidade de nomenclaturas que tentam abarcar conceitualmente, e por isso mesmo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 139 falham, os diversos fenômenos e pensamentos sócio-histórico-artísticos- culturais de um período da História do Mundo e da humanidade que se inicia por volta de 1950 e estende-se até o presente momento. A título de ilustração, eis algumas dessas nomenclaturas: sociedade de consumo; sociedade do espetáculo; capitalismo tardio; simulacro; sociedade transparente; pensamento fraco; anti-humanismo; cultura de massa; hiper- realismo; Desconstrução; microfísica do poder; razão cínica; pós- estruturalismo; pastiche; esquizofrenia; contemporaneidade; modernidade líquida; modernidade tardia; pós-modernidade. É claro que ao denominarmos, ainda que metaforicamente, ―Idade das Crises‖ o momento histórico atual estamos tentando tornar logos algo que desarticula o logos — entendido logos como método de instauração da Metafísica ocidental —, pois indutiva ou dedutivamente as diversas nomenclaturas elencadas acima, que de uma forma ou de outra também tentam racionalizar o que desarticula o próprio conceito de Razão, apresentam um ponto em comum, qual seja a crise de algo, e aqui reside a impossibilidade de identificar o ―espírito absoluto‖ do nosso tempo, visto que esse ―espírito‖ está em crise. Ele é ―só-crise‖. Tornar logos algo que desarticula o logos é uma aporia, uma antítese que permanece insolúvel, já que o pensamento desconstrucionista bem ensina que não é possível destruir e nem sair do logos. Isso pode ser bastante produtivo e resultar em reflexões interessantes sobre a questão ora proposta se acolhermos a aporia como uma marca do nosso tempo, ou seja, se partirmos do princípio teórico de que a crise é uma característica do agora, podendo ser historicamente passageira ou perene, como a própria hélice da História. Sendo assim, teremos ―uma consciência intensa da historicidade, contingência, limitação, de todos estes sistemas [as nomenclaturas anteriormente listadas], a começar pelo [nosso, por quem somos ‖ (VATTIMO, 1992, p. 15). ―Mapeando‖ as principais crises da Idade das Crises Ao acolhermos a aporia como marca do nosso tempo e, consequentemente, termos uma ―consciência intensa‖ da época em que vivemos instaura-se um problema filosófico de ordem existencial que levará à emergência do phármakon como fenômeno epocal, visto estar ele ―compreendido na estrutura do lógos‖ (DERRIDA, 2005, p. 62, grifo do autor) à medida que ―suplemento perigoso que entra por arrombamento exatamente naquilo que gostaria de não precisar dele e que, ao mesmo GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 140 tempo, se deixa romper, violentar, preencher e substituir, completar pelo próprio rastro que no presente aumenta a si próprio e nisso desaparece‖ (id., p. 57, grifo do autor). Assim, ter consciência, especialmente intensa como quer Vattimo, da época em que se vive, além de pressupor um distanciamento crítico em relação ao próprio momento histórico, implica, necessariamente e na mesma medida, ser responsável por essa época. Sendo conscientes e, portanto, responsáveis por nossa época; e sendo tal época caracterizada por ―conceituações‖ como ―colcha de retalhos‖, ―miríade de fragmentos‖ e ―emaranhado de direções que levam a todos os lugares e a lugar nenhum‖; somos então conscientes e responsáveis pelo nosso próprio sentimento de deslocamento e de descentramento que resultam dessa consciência/responsabilidade. A questão que se impõe é: nós, seres humanos do século XXI, queremos ter essa consciência e essa consequente responsabilidade? Pode-se argumentar se se trata de uma questão de escolha querer ou não ter tal consciência/responsabilidade, ou se se trata de uma questão de ser lançados inelutavelmente na contingência do momento. É sabido, contudo, que em termos existencialistas a escolha é sempre uma contingência, logo escolher é querer, e ―querer‖ ou ―não querer‖ são prerrogativas do sujeito histórico, que só pode ser no optar por uma coisa ou outra na contingência do existir. Esses pontos desembocam na questão do phármakon, ou seja, ao que tange às consequências da escolha, já que ―não querer‖ é também uma escolha. Assim, escolher ter consciência/responsabilidade em relação ao momento histórico presente equivale a ter essa mesma consciência/responsabilidade frente os próprios sentimentos de deslocamento e descentramento que ―definem‖, por assim dizer, o sujeito atual. Deter a consciência/responsabilidade desses sentimentos implica um eterno viver na angústia e no desespero de perceber-se e saber-se preso a um presente que é pastiche ou simulacro do passado, em um presente que é um eterno recontextualizar e reconfigurar do passado, estático e perpétuo, sem possibilidade de futuro, incorrendo no que Jameson (1985, p. 18), resgatando Lacan, justapôs ao pastiche como uma das principais características da Idade das Crises: a esquizofrenia. Sob essa perspectiva, o sujeito histórico torna-se então um esquizofrênico, um psicótico que tem a terrível consciência de ter, nas palavras do mesmo Jameson, ―uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma experiência que não é de modo algum agradável‖ (id., p. 23). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 141 Há, no entanto, outra possibilidade de ler essa escolha, uma possibilidade talvez mais positiva. Se re-inscrevermos as palavras de Gianni Vattimo anteriormente citadas — ―uma consciência intensa da historicidade, contingência, limitação, de todos estes sistemas [as nomenclaturas anteriormente listadas], a começar pelo [nosso, por quem somos]‖ (1992, p. 15) — em seu próprio texto, podemos acolher essa ―consciência intensa da historicidade‖ como um sentimento de igualdade na diferença. Assim, justamente por serem características de toda a nossa época a contingência, a limitação e a fragmentação, não estamos sós em nosso sentimento de deslocamento e descentramento, o que acarretaria, em um primeiro momento, num falso sentimento de pertença (pertença ao grupo dos que fizeram essa escolha, ao grupo dos diferentes). Isso, evidentemente, constitui uma ―nostalgia dos horizontes fechados, ameaçadores e tranquilizadores ao mesmo tempo‖ que ―continua ainda radicada em nós, como indivíduos e como sociedade‖ (id., p. 16 – 17). Todavia se, a partir de uma mudança de paradigma da compreensão do mundo como algo fechado e acabado para algo aberto e em permanente mutação, o ser humana aceitar que ―viver neste mundo múltiplo significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento‖, então será possível nos tornarmos ―capazes de alcançar esta experiência de oscilação do mundo pós- moderno como chance de um novo modo de ser (talvez: finalmente) humanos‖ (id., ibid.). A proposta positiva de Vattimo constitui-se, dessa forma, em acolher a ―experiência de oscilação do mundo pós-moderno‖ como um constituinte desse Mundo, e não lutar contra tal experiência — luta essa que parece ser pressuposta na pessimista visão existencialista acima apontada, da qual também participa Fredric Jameson. Trata-se de acolher a crise, a aporia, marca do momento histórico atual, em uma atitude anti-humanista, anti-metafísica e, portanto, anti- logocêntrica: uma atitude fraca, em concordância com a teoria do pensamento fraco cunhada pelo próprio Vattimo. O pensamento fraco assim o é, na acepção pejorativa da palavra ―fraco‖, se colocado em relação de oposição hierárquica frente à Metafísica ocidental, linha de força e sustentação da existência do Ocidente. Contudo, o alento desse pensamento reside em sua própria fraqueza: ele corrói aos poucos e sub- repticiamente as bases de sustentação da metafísica e expõe a arbitrariedade dessas bases, disseminando contaminações no sistema e GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 142 desarticulando centro e margem como um vírus incontrolável, incontrolável porque produto do próprio sistema. O outro lado da questão sobre a consciência/responsabilidade ante o momento histórico atual é escolher não querer ter essa consciência/responsabilidade, o que, por si só, resultam em alienação. Em termos existencialistas, mesmo a alienação é uma escolha, logo o sujeito não pode ser julgado ou criticado por isso. No entanto, os sentimentos de deslocamento e descentramento permanecem presentes, mas com um agravante: são sentidos pelo sujeito, porém estrangeiros a ele próprio e, ―estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia‖ (KRISTEVA, 1994, p. 9). Escolher não querer, portanto, resulta no sujeito tornar-se, para glosarmos o texto de Kristeva, estrangeiro para si mesmo, o que o levará à mesma esquizofrenia apontada anteriormente por Jameson, mas uma esquizofrenia de ordem estranha, quiçá aberrante, pois lhe falta a consciência espaço-temporal: ele sabe-se psicótico, mas não sabe por que ou, de modo mais adverso, não quer saber por quê. Veja-se que a visão positiva de Vattimo não se aplica a essa possibilidade de escolha, já que há um negar em se ter ―uma consciência intensa da historicidade‖, mesmo estando o sujeito na contingência da existência histórica. Nos termos da manifestação do phármakon, escolher querer ter consciência/responsabilidade ante o momento histórico ou não são posturas indiferentes, pois a crise — os sentimentos de deslocamento e de descentramento — permanece fato angustiante, sempre no limiar da psicose, havendo apenas uma possibilidade de salvação e perdição e apenas para um dos aspectos da escolha: o acolhimento da aporia, a ―experiência de oscilação do mundo pós-moderno‖. Configura-se assim a crise do sujeito pós-moderno, talvez o fulcro da Idade das Crises. Mas a crise do sujeito frente ao seu tempo histórico tem um reflexo em e é refletida por outra crise: a crise da identidade. A questão ―nós, seres humanos do século XXI, queremos ter essa consciência e essa consequente responsabilidade?‖ suscita outra questão: quem somos nós agora? A agregação do advérbio de tempo ―agora‖ à pergunta é propositalmente sintomática: pressupõe que há uma diferença epistemológica entre quem somos hoje, quem fomos ontem e quem seremos amanhã, o que implica reconhecer que não há uma resposta unívoca e nem mesmo dialética para ―quem somos nós?‖. Só há, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 143 então, possibilidades múltiplas de resposta à questão, e essa multiplicidade de respostas está, de alguma forma, vinculada às grandezas físicas relativas do Tempo e do Espaço, condições sine qua non da História, o que leva a uma (in)conclusão primeira de que a cada época histórica o sujeito assume ou tem uma identidade diferente, logo a identidade é infixa, móvel, impossibilitando tratá-la em termos de unidade ou de todo. Essa constatação compõe propriamente o cerne da crise da identidade, pois desarticula a primeira concepção pós-Idade Média de sujeito, qual seja a do sujeito Iluminista: ―um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‗centro‘ consistia num n cleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia‖ (HALL, 2006, p. 10 – 11). Sob essa perspectiva — que permaneceu corrente durante todo o século XVIII e pelo menos durante a primeira metade do século XIX —, a identidade do sujeito é una e imutável. Em termos históricos, tal concepção explica-se principalmente pela ascensão da burguesia, que privilegiou a individualidade frente à visão feudal de coletividade até então dominante. Observe-se que, nesse período, o Mundo e a sociedade também eram entendidos como unos e imutáveis. Note-se também que essa concepção só começará a se esfacelar com a ascensão e desenvolvimento do romance enquanto gênero literário. A partir da segunda metade do século XIX, especialmente após a publicação das teorias sócio-políticas de Karl Marx e Friedrich Engels, outra concepção de sujeito, e consequentemente outra concepção de identidade, entrou em cena: a de que o sujeito e sua identidade são formados na interatividade com o meio sócio-histórico-político- econômico. Assim, ―de acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‗interação‘ entre o eu e a sociedade‖ (HALL, 2006, p. 11). Essa perspectiva dialética do sujeito-identidade está inserida no contexto histórico das grandes descobertas científicas e transformações tecnológicas ocorridas no século XIX, que tornaram a vida cotidiana mais dinâmica e, por conseguinte, mais instável e imprevisível, a ponto de influenciar o próprio universo psíquico do ser humano. Descobertas como a teoria darwiniana da seleção natural, o telégrafo, o telefone, o raio-X e, no início do século XX, o inconsciente revelaram aspectos e possibilidades da existência até então ignorados pelo sujeito, que passou a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 144 vislumbrar seu mundo como algo eivado de coisas desconhecidas, e não mais como algo pronto e acabado. A percepção de mundo passa então a ser infixa, logo as interações do sujeito com esse mundo também o são, bem como a relação do sujeito para consigo mesmo e com o outro. Entretanto, essa relação sujeito/mundo ainda é concebida por pares conceituais: eu/outro, dentro/fora, individual/social etc. Não se pode negar que é mérito dessa visão dialética ter lançado a semente da infixidez da identidade do sujeito, algo que esteve em voga pelo menos até o início da década de 1960. Todavia, no final dessa mesma década tem-se o marco inicial da crise da dialética, que passou a ser duramente contestada pela essência maniqueísta de oposição e hierarquia que é inerente a todo par conceitual. É nesse momento crítico que desponta uma terceira concepção de identidade, decorrente justamente da crise da dialética e da crise de uma miríade de aspectos sócio-político-econômicos, históricos, científicos e ideológicos: a concepção de que a identidade é provisória e variável. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado [sic] como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ―celebração móvel‖: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ―eu‖ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] À medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13). Explica-se dessa forma a condição de deslocamento e de descentramento do sujeito pós-moderno, dois aspectos que são, na verdade, as crises de identidade propriamente ditas: identidade deslocada porque a cada instante e a cada situação o sujeito precisa recorrer a uma máscara de si que se ajuste ao dado instante e à dada situação. Essa infinita troca de máscaras mina, descentra a própria concepção de eu, eu GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 145 esse que, em seu perpétuo deslocamento identitário e entrecruzar com outras identidades, perde-se em si mesmo e desdobra-se em múltiplos ―eus‖, em fragmentos que, assustadoramente, não são partes de um todo originário: são fragmentos que são origem e fim em si mesmos. A identidade do sujeito pós-moderno é, dessa forma, só-máscaras, não existindo um rosto original encoberto ou disfarçado: o rosto/identidade original do sujeito é a própria máscara por ele usada no dado instante e situação em que vive. A identidade pós-moderna, a resposta para ―quem somos nós hoje?‖, é, talvez, simulacro, ―efeito de imaginário escondendo que não há mais realidade além como aquém dos limites do perímetro artificial‖ (BAUDRILLARD, 1991, p. 23). A implicação mais imediata desse simulacro que é a identidade pós-moderna resvala no fato de que ―a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada [sic ou perdida‖ (HALL, 2006, p. 21). Isso ocorre porque a infixidez identitária do sujeito pós-moderno se dá em uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que há uma fragmentação do eu em razão do deslocamento e do descentramento, há também uma fragmentação, em várias possibilidades de identificação, do universo social habitado por esse eu: sexual, racial, cultural, de classe, de ideologias etc. Mais do que simulacro per se, a identidade do sujeito pós- moderno é um jogo de simulacros, um jogo de identidades e de identificações pautado pela política da diferença. Essas constatações nos levam a questionar quais fatores teriam contribuído para o surgimento dessa identidade pós-moderna, uma identidade só e em crise. A crise da dialética, conforme evocada, é talvez a síntese desses fatores, e por isso mesmo muito genérica para os desdobramentos da questão. É necessário então investigar alguns desses aspectos específicos que resultaram nessa identidade-crise pós-moderna. As bases da Idade das Crises Stuart Hall, em seu estudo bastante programático e lúcido sobre a identidade cultural na pós-modernidade, aponta cinco fatores que resultaram na identidade do sujeito pós-moderno, fatores esses que, segundo o autor, descrevem o deslocamento e o consequente descentramento desse sujeito ―através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno‖ (2006, p. 34): o Marxismo, a Psicanálise freudiana, a Linguística saussureana, o pensamento de Michel GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 146 Foucault e, finalmente, o Feminismo. As atenções do presente ensaio recairão sobre o Feminismo. Contudo, não é possível abordar esse movimento social e pensamento ideológico como (re)agente no contexto da Idade das Crises sem problematizar os outros quatro fatores apontados por Hall, visto que parece haver uma confluência desses na própria emergência do Feminismo. Dessa forma, faz-se antes premente um breve panorama de tais elementos de confluência. No que tange ao Marxismo, conforme anteriormente dito, sua contribuição mais premente para a composição das multifaces fragmentadas do sujeito pós-moderno foi o pensamento dialético aplicado à relação sujeito-sociedade. Esse pensamento rejeita a unicidade do sujeito cartesiano — o ―cogito, ergo sum‖ —, ou seja, rejeita tomar o ser humano como centro e essência da existência. No pensamento marxista, o sujeito está em permanente interação com o seu meio sócio-político- econômico, portanto esse sujeito é resultante e determinado por tal meio, e aqui jaz o calcanhar de Aquiles do pensamento dialético: privilegiar apenas um dos lados dos pares conceituais. Por outro lado, o pensamento marxista também rejeita a ―coletividade‖ do sujeito medieval — coletividade essa que se fazia unívoca em torno do senhor feudal — em prol da emergência da burguesia e da consequente socialização da economia e da política. Dessa forma o Marxismo, segundo Hall, desloca ―qualquer noção de agência individual‖ (2006, p. 35), desmanchando no ar a solidez de uma essência humana. Na mesma linha do pensamento dialético marxista encontra-se, de maneira geral, a Psicanálise, que atribui a formação da personalidade do sujeito à inter-relação eu-outro, ou ego-superego. Entretanto, os estudos psicanalíticos de Sigmund Freud acrescentaram um terceiro item a esse par conceitual, uma terceira e incômoda margem ao rio do logos: o inconsciente. O inconsciente é e está no sujeito enquanto face desconhecida do eu, o que em si contribui ainda mais para o deslocamento da unicidade essencial do sujeito cartesiano. Ao mesmo tempo, pelo seu funcionamento irracional e ilógico, o inconsciente coloca em xeque os parâmetros logocêntricos da sociedade em que o sujeito está inserido, o superego. Jacques Lacan, discípulo de Freud, é quem desdobra as implicações conceituais do inconsciente em sua teorização sobre o estádio do espelho. Lacan demonstra que a identidade é um processo aberto de formação ao longo do tempo, processo esse que é paradoxalmente vivenciado pelo sujeito como algo uno. Portanto, a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 147 unidade identitária do sujeito é uma (auto)ilusão de ordem inconsciente vivenciada por esse sujeito a partir de sua formação pelo outro, ou seja, a imago da identidade una é apenas um dos sistemas de representação simbólica que compõem a existência humana. Como tal, a identidade surge sempre de ―uma falta de inteireza que é ‗preenchida‘ a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros‖ (HALL, 2006, p. 39, grifos do autor). Dessa forma, o inconsciente desarticula a noção unitária e também a noção dual de sujeito, cindindo assim o par conceitual eu-outro, ou indivíduo-sociedade, e abrindo talvez o primeiro precedente do que mais tarde seria a multiplicidade de fragmentos hoje chamada de sujeito/identidade pós- moderno. Na mesma corrente lacaniana dos sistemas de representação simbólica que compõem a existência humana está a língua. A língua, na visão da Linguística saussureana, é um sistema vivo e de cunho social no qual o sujeito é e está lançado. Portanto, falar uma língua não é apenas a expressão de um sujeito uno, mas também a ativação da ―imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais‖ (id., p. 40). Falar uma língua significa, nesses termos, colocar em jogo as inter-relações individuais e sociais do sentido, visto que os significados das palavras são infixos e se dão por uma relação de similaridade/diferença. Assim, o sentido é sempre instável e mutante, permanentemente aberto e impossível de ser determinado ou controlado pelos usuários da língua. Como a existência, tanto individual (personalidade) quanto social (cultura), é feita de signos linguísticos, a identidade do sujeito é igualmente instável e em perpétua mutação, incontrolável e imprevisível. Da mesma forma que não há unicidade semântica do signo, pois ele sempre comporta ecos das infinitas relações de similaridade/diferença com outros signos, não há unicidade essencial do sujeito falante da língua. Justamente pelo caráter permanentemente mutável de sua identidade, ou seja, pela multiplicidade dessa identidade, que a torna infinitamente aberta e inacabada e, como tal, incontrolável e imprevisível — indecidível, para resumir a problemática em um termo chave da Desconstrução derridiana —, o sujeito é manipulável por relações de poder político-sociais que objetivam controlar, disciplinar a sua indecidibilidade identitária a fim de colher benefícios para as instituições que formam e/ou integram a sociedade, residindo aqui o caráter político, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 148 por exemplo, da propaganda, da moda e da cultura de massa como um todo. Como se sabe, o formulador desse pensamento sobre o sujeito/identidade pós-moderno é Michel Foucault, que o denominou ―poder disciplinar‖. O objetivo do ―poder disciplinar‖ consiste em manter ―as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo‖, assim como sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas ―disciplinas‖ das Ciências Sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir ―um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil‖ (HALL, 2006, p. 42). Sob essa perspectiva Hall acrescenta que, paradoxalmente, ―quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual‖ (2006, p. 43). Em suma, quanto maior a organização social, quanto maior a institucionalização da sociedade, maior o autoisolamento do sujeito pós-moderno, consequentemente maior o seu drama existencial e maior o seu deslocamento e descentramento de si mesmo, de sua própria sociedade e de seu tempo histórico. Frente a essas implicações da concepção foucaultiana de poder disciplinar desponta, tangencial ou marginalmente, outro aspecto da questão: é esse mesmo poder que sustenta a existência das instituições ocidentais, ou seja, da própria sociedade ocidental e mesmo das inter- relações pessoais, que são também institucionalizadas. Dentro desse escopo, o poder disciplinar, bem como todas as formas de poder, é patriarcal, já que na tradição do Ocidente, inteiramente calcada e resultante das religiões judaico-cristãs, é o pai quem — à maneira do seu arquétipo, o Deus-Pai — impõe a disciplina no exercício de seu ―pátrio poder‖. O poder, portanto, esteve (e, no geral, ainda está) sempre nica e exclusivamente na mão do homem. A reação a essa ditadura falocêntrica só se deu abertamente e em escala mundial a partir de finais da década de 1960, com o último dos cinco fatores apontados por Stuart Hall como determinantes do aparecimento do sujeito/identidade pós-moderno: o Feminismo. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 149 RELAÇÕES e tensões entre a Idade das Crises e o Feminismo De certa maneira, tudo que foi dito até o momento conflui ou reflui para o Feminismo, pois, na sua condição de movimento social de reação ao status quo Falogocêntrico e, ao mesmo tempo, enquanto pensamento crítico e teórico, esse movimento contribuiu sobremaneira para o deslocamento e descentramento característicos do sujeito pós- moderno em razão do grande impacto causado pela contestação das categorias de gênero e sexo, fundamentais na manutenção do poder disciplinar e ao mesmo tempo índices linguísticos, aspectos sócio- histórico-biológicos, fatores psicológicos e pares conceituais. Em termos sócio-históricos, o Feminismo passou por três momentos distintos e complementares. O primeiro desses momentos — segunda metade do século XIX até a década de 1930 — foi o das lutas pelo direito ao voto e por melhores condições de trabalho. Alguns acontecimentos importantes marcaram esse primeiro período. Um deles é a convenção de Seneca Falls, nos Estados Unidos, ocorrida em 1848. Organizada por Elizabeth Cady Stanton e contando com a presença de mulheres e homens de várias cidades do estado de New York e de outros estados, essa convenção chamou a atenção mundial à época por ter sido a primeira a discutir abertamente os direitos da mulher tomando por base as garantias igualitárias previstas a todo cidadão norte-americano na Declaração de Independência dos Estados Unidos. A proposta de Stanton e dos demais participantes era relembrar a toda sociedade estadunidense que as mulheres tinham os mesmos direitos civis, jurídicos, éticos e morais dos homens. O resultado da convenção foi um documento, The Declaration of Rights and Sentiments (1848), talvez o primeiro manifesto formal pelos direitos da mulheres no Ocidente. As lutas pelo direito ao voto ocorreram em vários locais e países no decorrer de todo esse primeiro momento, ora conjuntamente às lutas por melhores condições de trabalho, ora isoladamente. As lutas por melhores condições de trabalho, no entanto, foram mais marcantes por duas razões: primeiramente por serem manifestações públicas que, em várias ocasiões, resultaram em revezes violentos por parte das instituições da sociedade patriarcal, como o que ocorreu em 8 de março de 1857, na cidade de New York, em que a polícia prendeu 140 mulheres manifestantes em uma fábrica e ateou fogo ao lugar em seguida, GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 150 resultando na morte de todas 3 . Uma segunda razão seria o vínculo dessas lutas feministas com o ascendente Comunismo (de linhagem marxista), que eivou o Ocidente com as lutas de classe. Duas das principais militantes feministas pelo direito ao voto e, principalmente, por melhores condições de trabalho foram a alemã Clara Zetkin (1857 – 1933) e a russa Alexandra Kollontai (1872 – 1952), ambas membros da intelligenzia do então nascente Partido Comunista nos seus respectivos países. Por razões políticas, o vínculo com o pensamento e a práxis marxista se tornou de ordem fantasmática a todo o Feminismo enquanto movimento social até os dias atuais, ainda que os escritos de Marx excluam abertamente a mulher das inter-relações sócio-político-econômicas. O segundo momento sócio-histórico do Feminismo é também o momento mais marcante do movimento. Gestado no período pós Segunda Guerra Mundial, o atualmente chamado Movimento Feminista veio à tona em finais da década de 1960, juntamente com todas as demais revoluções sócio-culturais preconizadas em maio de 1968 e com a eclosão do pós-estruturalismo e da consequente crise da dialética. Trata- se de uma intrigante coincidência histórica (ou não) que o Movimento Feminista tenha surgido em momento tão peculiar: o momento da emergência da Desconstrução derridiana, da Psicanálise lacaniana, do ―segundo‖ Roland Barthes, do pensamento de Michel Foucault e das demais teorias que passaram em revista o Estruturalismo então corrente em todas as áreas do saber; o momento das revoltas sociais, da consolidação das ditaduras na América Latina, do movimento hippie, de Woodstock, da esotérica ―Era de Aquário‖, do mundo bi-polarizado, da Guerra Fria e da Guerra do Vietnã. Catapultadas por interpretações diversas das ideias plantadas por Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949); tendo à frente militantes elevadas ao posto de ícones, como a norte-americana Betty Friedan — autora de A mística feminina (1963), o polêmico livro considerado o marco inicial do segundo momento feminista, e dona de uma das afirmações mais contundentes da época: ―Que espécie de criatura seria 3 Em uma convenção mundial de mulheres militantes socialistas ocorrida na Dinamarca em 1910, a ativista alemã Clara Zetkin propôs a criação de uma data internacional de comemoração dedicada à mulher (8 de março, em homenagem às operárias mortas em New York), que se tornaria então o Dia Internacional da Mulher. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 151 ela que não sentia essa misteriosa realização [o orgasmo] ao encerar o chão da cozinha?‖ (FRIEDAN, 1971, p. 20) —; brandindo slogans como ―O pessoal era o político, o literário era o pessoal, o sexual era o textual, a feminista era a redentora‖ (GILBERT; GUBAR, 2000, p. XX), esse segundo momento do Feminismo enquanto movimento social é caracterizado pelo extremo radicalismo de posições: fogueiras públicas de sutiã, reivindicações exacerbadas de ocupação do lugar do homem em todas as esferas sociais, igualdade absoluta e inconteste. Nos termos de tamanha radicalização, com o tempo o Feminismo assumiu contornos da própria ditadura falocêntrica por ele contestada e logo se revelou díspar: ocupar o lugar do homem em todas as esferas sociais, por exemplo, equivaleria unicamente a mudar o foco hierárquico do par conceitual homem/mulher, desta vez privilegiando a mulher. A oposição entre ambos permaneceria inalterada e, mais cedo ou mais tarde, resultaria em um novo arroubou radical: um possível ―Movimento Machista‖ que reivindicaria os direitos do homem, nos mesmos termos das reivindicações feministas. Ficou claro então, mesmo para as feministas mais aguerridas, que o Movimento Feminista tinha uma falha conceitual que o mantinha inevitavelmente ligado aos preceitos da dialética patriarcal, contradizendo assim suas intenções políticas. A percepção de tal lapso levou ao surgimento do terceiro momento do Feminismo, que começou em finais da década de 1970 e desenvolve-se até o momento: o Feminismo acadêmico, ou teoria feminista. Durante a década de 1970 o Feminismo, seguindo os passos do pós-estruturalismo, invadiu o universo acadêmico e tornou-se um novo paradigma de análise ao problematizar as relações de gênero: ―como as relações de gênero são construídas e experimentadas e como nós pensamos ou, igualmente importante, não pensamos sobre elas‖ (FLAX, 1992, p. 218 – 219). Nessa perspectiva, a primeira conceituação proposta pelo Feminismo acadêmico é a diferença entre gênero e sexo. O gênero é uma categoria cultural, portanto ideologicamente construída, que pressupõe uma sociedade dividida entre homens e mulheres, entre gênero masculino e gênero feminino; diferentemente do sexo, uma categoria natural, imposta pelas leis biológicas e que separa a raça humana em sexo masculino e sexo feminino. O maniqueísmo patriarcal fez com que, na sociedade ocidental, o sexo também determinasse o gênero, criando assim o par conceitual arquetípico homem oposto e superior à mulher que resultaria também em outros pares conceituais da mesma ordem, como GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 152 homem/homossexual e homem/transexual. No pensamento feminista, a sociedade patriarcal é organizada em torno das questões de gênero/sexo, que constituem então relações de poder. Portanto, a identidade do sujeito está também condicionada por essas questões. O sistema gênero-sexo, enquanto constituição simbólica sócio- histórica, [é um] modo essencial, através do qual uma realidade social se organiza, divide-se e é vivenciada simbolicamente, a partir da interpretação das diferenças entre os sexos, prisma através do qual se lê uma identidade incorporada, modo de ser no e de vivenciar o corpo (CAMPOS, 1992, p. 111, grifos da autora). O sistema gênero/sexo, enquanto construto ideológico sobreposto ao biológico e enquanto sistema de relações de poder, é a base sobre a qual se assenta a submissão e o silenciamento da mulher pelo universo patriarcal que, tendo a dialética como premissa fundamental, opôs a mulher ao homem e, ao mesmo tempo, hierarquizou essa relação a partir de essencializações: é da essência da mulher ser mãe, portanto esposa e, por extensão, dona-de-casa; também é da essência da mulher ser fisicamente mais fraca que o homem. Dentro desse escopo, a mulher deve ocupar o espaço privado, longe das batalhas do espaço público, longe das decisões que guiam a sociedade. As críticas e contestações desse terceiro momento do Feminismo residem justamente sobre tais essencializações impostas à mulher pelo patriarcado. As essencializações são, como se sabe desde Platão, ideológicas, logo devem ser discutidas no campo das ideias. É por essa razão que o terceiro momento do Feminismo, além de continuar com as características fundamentais de movimento social, ativista e revolucionário, passa a contar também com um pensamento teórico impactante e inovador, resultando então em duas linhas de frente que atuam sob uma mesma perspectiva política: a contestação do patriarcado. Isso, como se verá, constitui o phármakon atuando no Feminismo. Da mesma forma que a identidade do sujeito pós-moderno, e sendo também um componente dessa identidade, o sistema gênero/sexo é infixo, contribuindo, dessa forma e como ponto-chave, para o deslocamento e descentramento característicos desse sujeito, uma vez que coloca em xeque as noções iluministas de unidade do eu, universalidade da identidade e essência dos seres e das coisas. Como tal, o Feminismo insere-se como um dos elementos fundamentais que compõem a GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 153 (des)estrutura da Idade das Crises, sendo então uma perspectiva sociopolítica e teórico-crítica da pós-modernidade. ―Como um tipo de filosofia pós-moderna, a teoria feminista revela e contribui para a crescente incerteza nos círculos intelectuais ocidentais sobre fundamentação e métodos apropriados para explicar e/ou interpretar a experiência humana‖ (FLAX, 1992, p. 221). A afirmação de que o Feminismo é uma filosofia pós-moderna traz em si o delinear de uma problemática de ordem epistemológica, uma arqui-tensão que permanece indecidível: apesar de pertencer a tal filosofia, o Feminismo está em permanente tensão com essa mesma filosofia. Como demonstramos no capítulo anterior, a identidade do sujeito pós-moderno é fragmentária, infixa, deslocada e descentrada em razão de todas as crises do atual momento histórico da humanidade, sendo esse próprio sujeito em crise o que define e caracteriza o tempo presente. Sendo assim, é possível falar em gênero/sexo quando tanto o gênero quanto o sexo foram implodidos na identidade pós-moderna? É possível falar em um lugar da mulher na sociedade, visto que as posições sociais de homens e mulheres desmancharam-se no ar? É possível pensar em um sujeito feminino quando a própria noção de sujeito se desmantelou? É possível uma ―contestação do patriarcado‖, uma contestação do Falogocentrismo, quando o próprio Falogocentrismo está abalado? Contestar a Metafísica ocidental, como fez o pós-estruturalismo, já não seria necessariamente contestas as relações de gênero/sexo? É fato que o cerne da teoria feminista parte de pares conceituais, ou seja, da dialética, para propor seus questionamentos. A dialética, no entanto, foi desarticulada pelo pós-estruturalismo a ponto de, atualmente, não ser mais possível desenvolver uma linha de pensamento em termos unicamente dialéticos sob pena de se incorrer em simplismos, falhas conceituais e anacronismos. Ante esse panorama, cabe colocar em discussão as contestações/reivindicações feministas. Pensadoras como Jane Flax e Patricia Waugh refletem sobre essa relação regida pelo phármakon entre Feminismo e pós-modernismo, cada uma abordando a questão de maneira ligeiramente diferente, já que é impossível resolvê-la dada a indecidibilidade de seus termos e pressupostos. Para Jane Flax, ―a relação da teorização feminista com o projeto pós-moderno de desconstrução é necessariamente ambivalente‖, pois não deixa de ser razoável para pessoas que foram definidas como incapazes de auto-emancipação [as mulheres] insistir que conceitos GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 154 tais como autonomia da razão, verdade objetiva e progresso benéfico através da descoberta científica devam incluir e ser aplicados a capacidades e experiências tanto de mulheres quanto de homens. É também atraente, para os excluídos, acreditar que a razão triunfará — que aqueles que proclamam idéias com objetividade responderão a argumentos racionais. Se não há base objetiva para se distinguir entre verdadeiras e falsas crenças, então parece que só o poder determinará o resultado da competição entre diferentes afirmações das verdades. Essa é uma perspectiva apavorante para aqueles que não têm poder sobre outros ou são oprimidos pelos dos outros (1992, p. 223). Fica premente, no pensamento de Flax, que frente à pós- modernidade o pensamento feminista ainda está atrelado a categorias iluministas universalisantes como razão, verdade e progresso, o que em si caracteriza um anacronismo e uma espécie de retorno ao cerne do que foi implodido pela pós-modernidade (o Iluminismo). No entanto, para que uma teoria se sedimente é necessária uma fase de estruturação, um momento em que os pressupostos sejam ―racionalizados‖ para que possam se tornar categorias de análise (logos). Talvez seja isso que a autora queira dizer com ―base objetiva‖. Todavia, sendo o Feminismo uma teoria pós-moderna, é contraditório que ele precise de uma sedimentação teórica desse tipo, pois tal estruturação é fatalmente Falogocêntrica. É por isso que Jane Flax faz uma advertência de grande importância: ―O caminho para o futuro feminista não pode se basear em reviver ou se apropriar de conceitos do Iluminismo sobre a pessoa ou o conhecimento‖ (1992, p. 223), haja vista que ―O discurso feminista está cheio de concepções contraditórias e irreconciliáveis sobre a natureza de nossas relações sociais, sobre homens e mulheres e sobre a validade e a caracterização de atividades estereotipadamente masculinas e femininas‖ (id., p. 242). Assim, as próprias ―concepções contraditórias e irreconciliáveis‖ da teoria feminista autocontradizem sua ligação com o Iluminismo. O Feminismo passa então, em si próprio, por um deslocamento e descentramento de seus valores e perspectivas teóricas e práticas. O Feminismo vive nesse momento, enquanto pensamento e práxis política, um momento pós-moderno de incertezas, um momento de crises — como tudo no mundo atual. Já Patricia Waugh, apesar de se aproximar da opinião de Jane Flax sobre a relação do Feminismo com os ideais iluministas no contexto GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 155 atual da pós-modernidade, tem uma posição mais conservadora no que diz respeito à permanência e necessidade dessa inter-relação, ―For, to accept the arguments of strong postmodernism is to raise uncertainty even about the existence of a specifically female subject and inevitably, therefore, about the very possibility of political agency for women‖ (2001, p. 347). Para Waugh, portanto, aceitar as premissas fundamentais do pensamento pós-moderno — que se resumem à crise generalizada do sujeito e da sociedade, à aporia como marca histórica do tempo presente — é colocar em xeque a própria existência da teoria feminista, o que é algo temeroso, já que pode invalidar a essência do Feminismo (herança direta e contraditória do Marxismo): a necessidade e a validade de uma práxis política feminina. The crucial question in the relations between feminism and postmodernism would seem to be whether it is possible to preserve the emancipatory ideals of modernity which seem necessary to the very endeavour of feminism, whilst dispensing with those absolute epistemological foundations which have been so thoroughly and variously challenged. Alternatively, how far is it possible to modify those foundations rather than urging their total abandonment? As a political practice, surely feminism must continue to posit some belief in the notion of effective human agency, the necessity for historical continuity in formulating identity and a belief in some kind of historical progress. All along it would seem that feminism has been engaged in an effort to reconcile context-specific difference or situatedness with universal political aims: to modify the Enlightenment in the context of late modernity and according to the specific needs and perspectives of women, but not to capitulate to the nihilistic and ultra-relativist positions of postmodernism as a celebration of the disembodied ‗view from everywhere‘ (WAUGH, 2001, p. 347 – 348). Todavia, tanto para Flax quanto para Waugh o Feminismo e os pensadores feministas permanecem profundamente divididos no que tange à relação do movimento com o pensamento pós-moderno, em razão justamente das implicações do phármakon na contestação do patriarcado, uma vez que aquele está compreendido na estrutura deste: ao mesmo tempo em que o Feminismo contesta o patriarcado, esse mesmo Feminismo também se utiliza e precisa do patriarcado para existir. Em meio a essa problemática surge, no final do século XX e início do século GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 156 XXI, um terceiro fator, uma terceira implicação que lança o programa pós-moderno diretamente no âmago do programa feminista: o fato de que o Feminismo já não é a voz unânime representativa de todas as mulheres. Atualmente, há mulheres que rejeitam a teoria e a práxis feminista simplesmente para vivenciarem sua diferença ou para aceitarem o patriarcado. Em outras palavras, dada a fragmentação da identidade do sujeito pós-moderno — inevitável e irreversível —, que necessita ser admitida para se compreender o hoje, tornou-se ―crucial admitir a diferença irredutível entre o sujeito (mulher) [... e o sujeito (feminista)‖ (SPIVAK, 1997, p. 282). É certo que essa diferença crucial entre ser mulher e ser feminista sempre existiu, visto que nem todas as mulheres aceitaram ou aceitam os questionamentos feministas. Contudo, o Feminismo não partiu desse pressuposto, nem o levou em consideração, esquecendo-se das implicações mais profundas e complexas das afirmações de duas matriarcas do movimento: ―a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu‖ (1985, p. 8), disse Virginia Woolf em 1928, o que não implica necessariamente excluir o homem desse ―teto todo seu‖, mas sim ter consciência das diferenças homem-mulher, que não estão no espaço físico, mas sim no ideológico, logo as palavras de Woolf, sendo ela uma artista da palavra, são eminentemente metafóricas: independência não significa exclusão. ―Ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖ (1975, p. 9), escreveu Simone de Beauvoir em 1949. Tornar-se mulher não implica, necessariamente, tornar-se feminista; da mesma forma que tornar-se feminista não implica necessariamente tornar-se ou ser mulher. Desponta dessa argumentação uma palavra que só muito recentemente o Feminismo começou a levar em consideração: diferença. O Feminismo, como todo e qualquer movimento emancipatório — seja essa emancipação no nível das ideias, seja no contexto da práxis —, precisa pautar-se, antes de mais nada, no respeito às diferenças, que é o que as mulheres e outros grupos sociais hoje desejam. Pautar-se pela diferença, no entanto, implica afrouxar posições rígidas; aceitar o diferente; aceitar que, ―estranhamente, o estrangeiro habita em nós‖ (KRISTEVA, 1994, p. 9) e não apenas fora de nós; descentrar o centro e deslocar a margem; acolher a aporia, o indecidível, como marcas do hoje e do agora. Implica, portanto, fazer concessões a si e aos outros em benefício de uma abertura e acolhimento das múltiplas significações da existência. GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 157 É por essa linha que transita o pensamento de Camille Paglia, a feminista odiada pelas feministas. Acusada de iconoclastia, polêmica desde sempre, incômoda para homens e para mulheres, o pensamento de Paglia pode ser comparado ao de Fredric Jameson em sua variedade de referências e análises e em sua correção epistemológica e teórica: a diferença é que Jameson é um homem, e Camille Paglia é uma mulher, e isso muda tudo na forma como ambos são lidos e no valor atribuído às suas teorias e críticas. Enquanto Jameson é abertamente cultuado por todos, inclusive pelas feministas, Paglia é veladamente cultuada por todos, menos pelas feministas. Capaz de discutir, analisar e criticar John Donne, William Blake, Madonna e Britney Spears com a mesma desenvoltura, Paglia é considerada, juntamente com Tania Modleski e Rita Felski, uma das principais teóricas do pós-feminismo, a nova onda do pensamento feminista que começa a levar em consideração o respeito às diferenças. Em uma visita ao Brasil no ano de 2007, em que concedeu uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo (21/10/2007), Paglia avaliou o Feminismo tradicional da seguinte forma: Eu tenho dito que, por causa do capitalismo, aparece a mulher moderna emancipada. É por causa da Revolução Industrial e do trabalho fora de casa que as mulheres puderam ser livres do controle do marido, do pai, do irmão. Mas temos que ser realistas e reconhecer que isso é um produto da cultura capitalista ocidental, de um momento particular. Feministas têm freqüentemente valorizado ou venerado a ―mulher de carreira‖ e a posto num lugar mais alto que a mãe e a esposa. Isso, porém, vai contra a maneira como a maior parte das mulheres no mundo se sente verdadeiramente. O movimento feminista tende a denegrir ou marginalizar a mulher que quer ficar em casa, amar seu marido e ter filhos, que valoriza dar à luz e criar um filho como missão central na vida. Está mais do que na hora de o feminismo ocidental conseguir lidar com a centralidade da maternidade para a maioria das mulheres no mundo. Não quero as feministas ocidentais destruindo valores e tradições de culturas locais. Feminismo deveria ser sobre mulheres terem a oportunidade de avançar, não serem abusadas, e terem o direito de auto-subsistência econômica para não depender de um parente homem (FOLHA..., 2007, p. A26). GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 158 Apesar da polêmica sempre inerente às suas palavras, a pensadora e teórica traz à tona o cerne da questão do respeito à diferença em relação ao Feminismo, questão essa que, de alguma forma, pode constituir uma terceira via para a indecidível relação entre Feminismo e Pós-modernismo, ou a relação entre duas formas de crise, sem excluir uma ou outra posição. CONCLUSÃO O que foi discutido aqui constitui apenas breves considerações sobre essa Idade das Crises, uma espécie de exercício arqueológico que procura escavar as ruínas do hoje, exercício esse que não intenta uma arqueologia do saber aos moldes de Michel Foucault, mesmo porque o saber se tornou tão difuso e caótico na Pós-modernidade que talvez não seja mais possível pensá-lo, mas apenas escavá-lo. Temos, portanto, plena consciência de que os assuntos ora tratados nessas breves considerações estão ainda em aberto, inconclusos em termos históricos ou artísticos. Nessas considerações sobre aspectos só-crise não era possível abordar o Feminismo sem antes pensar sobre o sujeito e sobre a identidade, pois o Feminismo lida diretamente com esses dois ―conceitos‖ (que são, na verdade, dois lados de uma mesma questão) para tratar do sistema gênero/sexo, o paradigma de análise central da teoria feminista. Lidos em conjunto, sujeito, identidade e Feminismo parecem constituir as principais crises que caracterizam a Idade das Crises, a Pós- modernidade. Possivelmente, um quarto fator, uma quarta crise, se acrescentaria a essa discussão: a sociedade do espetáculo, reino do simulacro. É difícil prever a quais caminhos o acréscimo desse quarto aspecto levariam o jogo sujeito-identidade-Feminismo. No entanto, algo parece certo: a sociedade do espetáculo mercantilizou o simulacro, tornando mercadoria a própria identidade fragmentada do sujeito. Uma vez mercadoria, a identidade do sujeito é objeto de venda: as identidades são compradas. Nessa ótica o Feminismo seria também uma identidade ou um conjunto de identidades à venda, da mesma forma que quaisquer identidades no contexto contemporâneo. Quais seriam as implicações de pensá-lo dessa GUAVIRA LETRAS, n. 15, jan.-jul. 2012 159 forma? Ou ainda, é possível pensá-lo nesses termos? As questões permanecem em aberto. ON THE AGE OF CRISES: THE INTER-RELATIONS AMONG SUBJECT, IDENTITY, AND FEMINISM IN POSTMODERNITY Abstract: This essay intends to think critically and theoretically on the inter- relations among subject, identity, and Feminism in the context of Postmodernity, a context which will be herein denominated ―Age of Crises‖. These three aspects will be approached under a Historical perspective and put into question in a philosophical sight guided by Post-structuralistic theories, especially Derridian Deconstruction. In general, the main objective is to reach into a discussion about the undecidable inter-relation between Feminist thinking and Postmodernity, which is one of the configurations of the many contemporary crises. In order to do so, it will be necessary a previous discussion on the postmodern subject and its identity. This discussion will open up the possibility of contextualizing and discussing Feminism inside the intended objective. This discussion will be structured around the word ―crises‖ which, in a compositional relation to the word ―age‖, will be taken as a synonym for ―Postmodernity‖ and ―contemporary‖. ―Age of Crises‖, ―Postmodernity‖, ―contemporary‖, and ―Feminism‖ will be words haunted by the phármakon phenomenon, a key aspect for Derridian Deconstruction, which will be the gravitational force that approximates and separates, in an undecidable relation, those signs. Key-Words: Postmodernity. Feminism. Deconstruction. Identity. Subject. REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: _____. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D‘Água, 1991. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 3. ed. São Paulo: DIFEL, 1975, v. 2: A experiência vivida. CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Gênero. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992 (Biblioteca Pierre Menard). DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005. FLAX, Jane. 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