1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” - UNESP FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARIA ISABELA DA SILVA GOMES O PROBLEMA DA CIDADANIA NOS PRELOS: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX FRANCA 2024 2 MARIA ISABELA DA SILVA GOMES O PROBLEMA DA CIDADANIA NOS PRELOS: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré- requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Linha de Pesquisa: História Social Orientador: Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira. Instituição de Fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). FRANCA 2024 3 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a) G633p Gomes, Maria Isabela da Silva O problema da cidadania nos prelos : escravidão e liberdade no Brasil da primeira metade do século XIX / Maria Isabela da Silva Gomes. -- Franca, 2024 192 f. : il. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Ricardo Alexandre Ferreira 1. Escravidão. 2. Cidadania. 3. Liberdade. 4. Imprensa. I. Título. 4 MARIA ISABELA DA SILVA GOMES O PROBLEMA DA CIDADANIA NOS PRELOS: Escravidão e liberdade no Brasil da primeira metade do século XIX Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP-Franca, para obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História Social Data da defesa: 14 / 11 / 2024 Banca Examinadora: Ricardo Alexandre Ferreira Prof. Dr. Orientador UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Campus de Franca Lucia Helena Oliveira Profa. Dra. e membra da banca 1 UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Assis Wellington Barbosa Da Silva Prof. Dr. e membro da banca 2 Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) 5 Para Joseane e Luiz Carlos, minha mãe e meu pai. Pela força, coragem, proteção e amor. 6 AGRADECIMENTOS Meus passos vêm de longe e a construção desse trabalho tem a contribuição de muitas mãos e pés que abriram meus caminhos. Saúdo a toda a minha ancestralidade, pela resistência para que eu estivesse aqui, ocupando esse espaço de prestígio acadêmico e contrariando as estatísticas. Saí da periferia de Guarulhos para representar cada um de vocês. Aos meus pais, Joseane, uma força da natureza, e Luiz Carlos, mar manso e tranquilizador, agradeço por tornarem tudo isso possível, com afeto, amor e proteção depositados em mim, além do incentivo aos estudos e aos meus sonhos artísticos. Agradeço a cada membro da minha família que me acompanha de perto e torce por mim. Em especial à memória de Maria Antônia, Maria José e José Alexandre, meus avós amados. Aos meus amigos de perto e de longe, aqueles da infância/juventude e aqueles que a UNESP me presenteou, sou grata pelo acolhimento nos momentos de alegria e também nos momentos de frustração. Obrigada por cada ligação, beijo, abraço, ombro para chorar, leituras da minha escrita e passeios que me tranquilizaram e aliviaram meu corpo e alma. Ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira, que me acolheu desde o segundo ano de graduação e continua acreditando em mim até hoje. Acolheu uma menina sonhadora e confusa sobre o que pesquisar no início, mas que queria ser orientada por você, desde o primeiro dia da disciplina de História Moderna. Obrigada por iluminar minha jornada acadêmica e apontar possíveis direções, além do respeito, paciência e generosidade ao compartilhar a sua imensa inteligência e bagagem acadêmica comigo e com cada membro do nosso grupo de pesquisa, Leviatã e o Cativeiro. Às minhas companheiras do grupo Leviatã e o Cativeiro, em especial à minha amiga do peito, Marília, pela intimidade, afeto e amizade de anos, e à Larissa, pela generosidade e carinho em cada leitura. À UNESP Franca, agradeço por ser minha segunda casa, por todos os benefícios do ensino superior público e de qualidade e por ter me agraciado com pessoas que carrego no peito para a vida. Aos funcionários pelos sorrisos, delicadezas e atenções que fazem diferença na rotina. Ao PET-História pelos ensinamentos do tripé acadêmico: pesquisa, ensino e extensão. Ao NUPE pelo afeto e conhecimento dos nossos. À Franca, cidade de Abdias do Nascimento, agradeço pela morada e acolhimento, principalmente advindo das minhas irmãs e irmãos do Movimento Negro. 7 Agradeço à Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional, dispositivo indispensável para acesso às minhas fontes de pesquisa e local de preservação digital da memória social brasileira, por meio dos impressos. Agradeço ainda à CAPES pelo financiamento desta pesquisa e às pessoas de cada encontro profissional durante essa jornada, entre a História e as Artes. Para todos aqueles que me ouviram falar sobre a pesquisa, por vezes com entusiasmo, por vezes mais cansada, aqui fica o meu muito obrigada! 8 Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão do mar de Aracati (“História para ninar gente grande”, Samba- Enredo Estação Primeira de Mangueira, 2019) 9 GOMES, Maria Isabela da Silva. O problema da cidadania nos prelos: escravidão e liberdade no Brasil da primeira metade do século XIX. 2024. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, UNESP, Franca, 2024. RESUMO O presente trabalho tem como foco o início do processo de construção da cidadania no Brasil Imperial, especificamente o estudo concentra-se no problema dos “homens de cor” livres, os quais, em teoria, conforme a Constituição de 1824, não deveriam sofrer quaisquer restrições de direitos. Descortina-se como imposições sociais determinadas pela tonalidade de pele estavam embutidas na sociedade do jovem país independente e foram alvo de uma opinião pública, em formação, germinada por um empreendimento jornalístico negro que representava diferentes terminologias políticas vigentes à época, entre elas, as facções exaltada, moderada e restauradora. Nessas folhas públicas, de periodicidade, por vezes, inconstante, escritores autointitulados “intelectuais livres” se empenharam em fazer estampar debates políticos sobre o espaço e as ocupações destinadas aos negros e mestiços livres no espaço oitocentista fluminense. Com o objetivo de entender o debate político e a formação de uma opinião pública em torno do problema da cidadania para os “homens de cor” a pesquisa toma como seu principal corpus documental um conjunto de cinco periódicos publicados no Rio de Janeiro em 1833: O Homem de Côr ou O Mulato ou o Homem de Côr, O Lafuente, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Meia Cara. As primeiras décadas do século XIX foram um momento de tessitura da imprensa negra no Brasil, revelando, ainda, o panorama dos jornais que compuseram a formação da opinião pública como elemento articulador do Estado. A partir da análise dessas fontes foi possível observar artigos que colocaram em questão a cor como um quesito determinante no alcance da plena cidadania no Rio de Janeiro do Oitocentos. Os periódicos em questão assinalaram por meio de seus editores e articulistas, a desaprovação quanto às acomodações sociais determinadas pela tonalidade da pele, particularmente no que concernia à ocupação de cargos públicos. Ademais, ponderava-se nos jornais os desdobramentos do debate político sobre a extensão plena dos direitos do homem livre aos homens livres “de cor” a partir do aparato constitucional. Palavras-chave: Escravidão, Cidadania, Liberdade, Imprensa. 10 GOMES, Maria Isabela da Silva. O problema da cidadania nos prelos: escravidão e liberdade no Brasil da primeira metade do século XIX. 2024. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, UNESP, Franca, 2024. ABSTRACT The present work focuses on the beginning of the process of construction of citizenship in Imperial Brazil, specifically the study focuses on the problem of free “men of color”, who, in theory, according to the Constitution of 1824, should not suffer any restrictions of rights. It is revealed how social impositions determined by skin tone were embedded in the society of the young independent country and were the target of a public opinion, in formation, germinated by a black journalistic enterprise that represented different political terminologies in force at the time, among them, the exalted, moderate and restorative factions. In these public sheets, of sometimes inconstant periodicity, writers calling themselves “free intellectuals” endeavored to stamp political debates about space and occupations destined for free blacks and mestizos in the nineteenth-century space of Rio de Janeiro. With the objective of understanding the political debate and the formation of a public opinion around the problem of citizenship for "men of color", the research takes as its main documentary corpus a set of five periodicals published in Rio de Janeiro in 1833: O Homem de Côr or O Mulato or O Homem de Côr, O Lafuente, Brasileiro Pardo, O Cabrito and O Meia Cara. The first decades of the nineteenth century were a moment of weaving of the black press in Brazil, also revealing the panorama of the newspapers that made up the formation of public opinion as an articulating element of the State. From the analysis of these sources, it was possible to observe articles that questioned color as a determining issue in the achievement of full citizenship in Rio de Janeiro in the nineteenth century. The periodicals in question, through their editors and writers, signaled their disapproval of the social accommodations determined by skin tone, particularly with regard to the occupation of public office. In addition, the newspapers pondered the developments of the political debate on the full extension of the rights of the free man to free men “of color” from the constitutional apparatus. Keywords: Slavery, Citizenship, Freedom, Press. 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12 PARTE I O problema da cidadania nos prelos................................................................. 28 1.1 Cidadania segundo os “quilates da cor” ......................................................................... 29 1.2 Quando a cor virou assunto público ................................................................................ 41 1.3 O Homem de Côr e a implementação dos direitos constitucionais ................................... 54 1.4 Brasileiro Pardo e O Lafuente: pasquins de críticas “virulentas” ................................... 74 PARTE II Entrelaçamento entre cor, prestígio, política e cidadania .............................. 91 2.1 O ruído das prensas: as condições jurídicas e as redes de sociabilidade negra ................ 91 2.2 “Um cabra vosso patrício” ......................................................................................... 119 2.3 O Meia Cara: conjugação entre política e questão racial? ............................................ 138 2.4 A liberdade a custo de suor e sangue ........................................................................... 158 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 173 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 176 12 INTRODUÇÃO A história que narraremos aqui abrange as problemáticas da cidadania e da liberdade, entrelaçadas com o nem sempre mencionado requisito da cor de pele para o exercício da cidadania pelos “homens de cor” livres do Brasil do alvorecer do século XIX. A nomenclatura “homem de cor”, cabe observar, diz respeito à autointitulação, exposto no corpus documental, pelos homens negros livres. Remete à composição do grupo que não era reconhecido e que também não se reconhecia como branco e, mais do que isso, um grupo identificado por um marcador comum: a ascendência africana. Tomamos aqui, como principal corpus documental, o conjunto de cinco títulos de pasquins negros, pioneiros documentos da imprensa negra brasileira e todos lançados em 1833 no Rio de Janeiro: O Homem de Côr ou O Mulato ou o Homem de Côr, O Lafuente, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Meia Cara1. Motivados pela questão da cor de pele, esses periódicos discutiam o reconhecimento e o exercício da cidadania pela população livre de descendência africana. O exercício pleno da cidadania no Império do Brasil era uma condição prevista pela Carta Magna de 1824 sem restrição de cor, mas o debate periódico apontava as dificuldades desse exercício para uma parcela da população de um jovem país marcado pela colonização portuguesa, revelando, no período, o empreendimento jornalístico como um elemento articulador e, por vezes, desestabilizador do Estado escravista. A escravidão, como um sistema de suprimento de mão de obra sancionado pelo Estado luso-brasileiro, desde o início da colonização, atravessou séculos e se solidificou no Brasil independente como uma instituição caracterizada por padrões de acomodação, que, não 1 Os jornais intitulados como O Homem de Côr, Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Meia Cara e O Lafuente (RJ, 1833) encontram-se disponibilizados para consulta online na Hemeroteca Nacional Digital. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 06 out. 2024. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ 13 obstante, impuseram problemas para o manejo das noções de cidadania2 e de liberdade3. A investigação das folhas públicas que abordaram os problemas decorrentes da escravidão, com o objetivo de contribuir com o entendimento da formação de uma opinião pública4 questionadora do reconhecimento da cidadania de negros e mestiços – ainda que incipiente – torna-se relevante na compreensão do movimento de luta política protagonizada pelos “homens de cor” livres, ganhando, assim, um novo espaço nos debates historiográficos. Para além da dimensão atlântica que o tráfico negreiro5 tomou, o desenrolar da escravidão moderna na sociedade brasileira, como um empreendimento exploratório de pessoas – enxergadas em posição dúbia: ora como pessoas, ora como mercadorias6 –, contribuiu para o 2 Segundo José Murilo de Carvalho, “[...] a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado. Da cidadania como a conhecemos fazem parte então a lealdade a um Estado e a identificação com uma nação”. Então, o processo complexo de construção da cidadania no início do Brasil Oitocentista esteve envolto de muitas disputas em uma realidade social legitimamente desigual”. No início da construção da cidadania, assim afirma o autor, somente a elite dominante se beneficiara dos direitos proporcionados pela cidadania, diferentemente do que ocorrera com a maior parcela da população. Todavia, Carvalho observa alguns pontos positivos durante o período imperial. Isso se deve, pois, a cidadania brasileira correspondia a uma tipologia denominada de “cima para baixo”. O significado disso é que o Estado tomou iniciativas relevantes para os cidadãos do Império brasileiro, como, por exemplo, o estreitamento da relação com as instituições Estatais e a participação, em certa medida, do desempenho do Estado, com o voto e o serviço na Guarda Nacional. Ver em: CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. p. 324; e CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: tipos e percursos. Revista Brasileira de História. v. 9, n. 18, p. 337-359, 1996. 3 Segundo Maria Lígia G. R. Elias, o conceito de liberdade é “[...] essencialmente contestável [...] conceitos ‘essencialmente contestáveis’ são conceitos envoltos em disputas infindas sobre o seu uso correto; são conceitos alvos de contestação quanto aos seus significados. [...] São sete os critérios para identificar um conceito essencialmente contestado: (i) caráter avaliativo; (ii) complexidade interna, (iii) diversas possibilidades de descrição, (iv) abertura a revisões periódicas, (v) reconhecimento recíproco, (vi) um exemplar original que seja fonte para os significados ou ‘exemplares’ e (vii) competição progressiva, que levará a uma grande coerência no uso do conceito”. ELIAS, Maria Lígia G. R. Liberdade como não interferência, liberdade como não dominação, liberdade construtivista: uma leitura do debate contemporâneo sobre a liberdade. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2014. p. 13. Ver também: BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. 4 FERREIRA, Fernanda Vasques. Raízes históricas do conceito de opinião pública em comunicação. Em Debate: Periódico de Opinião Pública e Conjuntura Política, ano 7, n. 1, p. 50-68, jan. 2015. 5 Sobre o tráfico de escravos e suas complexidades no Brasil, ver: FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história de escravos entre África e o Rio de Janeiro. São Paulo, Companhia da Letras, 1997: RODRIGUES, Jaime. Os traficantes de africanos e seu 'infame comércio'. Revista Brasileira de História, v. 15, n. 29, p. 139- 155, 1995. 6 A pessoa em condição jurídica de escravo era vista como um bem, uma propriedade. A objetificação dos africanos escravizados é observada tanto internamente no tráfico negreiro como na contabilização dessa população como mercadoria importada do outro lado do Atlântico, em território africano. É sabido e, por isso, importante enfatizar, que a escravidão negra foi uma das maiores tragédias humanitárias, marcando, profundamente, as relações sociais brasileiras. Por mais de trezentos anos, foi assistida a objetificação de seres humanos, a retirada da participação da sociedade livre e utilização da força braçal em um trabalho compulsório. Cf. MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão, A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social; introdução de Edison Carneiro. Petrópolis: Vozes, 1976. [1866]. v. 1; ARAÚJO, C. E. M. Fim do tráfico. In: SCHWARCZ, Lilia M.; Gomes, Flávio (org.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018; SILVA, A. R. & RODRIGUES, L. L. Aspetos contabilísticos relacionados ao regime da escravatura brasileira: uma análise na propriedade rural (séc. XIX). In: Anais do 14º Congresso Internacional de Contabilidade e Auditoria, Lisboa, Portugal, 2013. 14 estabelecimento de barreiras que dificultaram o alcance da liberdade e, consequentemente, do exercício da cidadania da população de descendência africana no país. Hebe Maria Mattos, em Das Cores do Silêncio, elucida como as fronteiras entre liberdade e escravidão no período pré e pós-abolição eram fluídas, iluminando em seu trabalho a associação das primeiras definições do cidadão brasileiro com o processo de racialização pelo avesso. Além disso, alerta para o silêncio presente na documentação pública sobre as cores dos brasileiros livres. A autora analisou os conceitos de silenciamento e hierarquização racial a fim de exibir a densidade dos conflitos raciais e sociais do século XIX7. A delimitação temporal deste estudo estende-se da investigação da Constituição Política do Império do Brasil, em 1824, e centra-se no ano de 1833, ano de publicação do primeiro jornal a questionar a cor como elemento determinante no alcance de plena cidadania pela população livre de descendência africana, O Homem de Côr, lançado em 14 de setembro de 1833, e também da publicação do periódico O Meia Cara, em 15 de dezembro de 1833, responsável pela crítica das mazelas da população negra com um evidente posicionamento antilusitano, acusando “[...] a quadrilha chimangal8 [por] praticar toda a sorte de despotismo”9. O cenário deste estudo corresponde ao período regencial carioca, especificamente à Regência Trina Provisória (1831) e a Regência Trina Permanente (1831-1834), período iniciado após a Abdicação, em 7 de abril de 1831. Um dos maiores nomes de expressão literária da condição humana, consagrado contista, poeta, dramaturgo, romancista e crítico literário, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), entre ironias desvelou em sua escrita os desdobramentos políticos, sociais, culturais e econômicos do Brasil a partir do ponto de vista fluminense. No trecho a seguir, extraído da obra machadiana Dom Casmurro, a Regência tornara-se plano de fundo para a composição literária da época: “[...] a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o Padre Feijó governou o império... [...] o clero tem grande papel no Brasil”10. 7 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da Liberdade no Sudeste Escravista – Brasil, séc. XIX. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 8 O termo “chimango” ou “ximango” foi o apelido dado no Período Regencial aos apoiadores do governo que formavam o Partido Moderado. Durante o período, esse partido político moderado liberal não foi simpatizante de regimes absolutistas, além de ser contrários a reformas. Assim, defendiam a continuidade da monarquia e do voto censitário. O partido sofreu, inicialmente, relevante oposição do Partido Exaltado, conhecidos também como jurujubas ou farroupilhas e, mais tarde, tiveram a oposição do Partido Restaurador ou Caramuru. Ver em: LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808- 1842). São Paulo: Símbolo, 1979. 99 O Meia Cara. Rio de Janeiro, Typographia Fluminense de Brito. n. 1, 11 de novembro de 1833, p. 6. 10 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Obras Completas, v. 1). p. 17. 15 À Regência Trina Provisória foi atribuída a tarefa de conter as agitações políticas após a saída do monarca Pedro I de cena. De caráter emergencial, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, José Joaquim Carneiro de Campos e Francisco de Lima e Silva foram os nomes dos regentes. Além de assumirem esse relevante cargo político, integraram o “ministério dos brasileiros”, que havia sido extinto por Pedro I, em 1831. À vista disso, acirraram-se, ainda mais, as disputas de ocupação dos espaços públicos entre portugueses e brasileiros, principalmente os “de cor”. Em relação aos regentes provisórios, eles também foram responsáveis pela anistia dos presos políticos, ampliação do poder da Câmara dos Deputados e, inclusive, abertura para interferências no governo regencial. Ademais, a convocação dos regentes provocou uma maior vigilância acerca dos ajuntamentos noturnos em praças públicas que poderiam se transformar, rapidamente, em motins contra a ordem e o sossego públicos. O cenário era de constante alerta. Dois meses depois, em 17 de junho de 1831, ocorreu a escolha dos nomes da Regência Trina Permanente, que perdurou até o Ato Adicional de 1834. A Regência Trina Permanente foi a organização de um gabinete ministerial de terminologia política mais conservadora. Francisco Lima e Silva, João Braúlio Muniz e José da Costa Carvalho foram os regentes. O Ministério da Justiça foi delegado ao padre Diogo Antônio Feijó. Assim como ocorreu na primeira Regência, o período posterior também foi caracterizado por grandes revoltas incitadas pelos manifestantes civis e militares, de modo que foram determinadas ações regenciais de renovação dos quadros militares. À princípio, o 26º Batalhão de Infantaria e o Batalhão de Polícia, foram locais-sede de revoltas contra a ação regencial. O Período das Regências, de fato, foi um momento de muitas transições e de manobras políticas. Entre elas, destaca-se a transição do comando do país de mãos portuguesas para as mãos brasileiras. Notava-se, segundo os contemporâneos registraram, o estado de ansiedade e de alerta da população, devido à inflamação da opinião pública sobre os acontecimentos, as declarações de apoio e de oposição entre os políticos e o caráter das revoltas, por vezes muito violentas. Célia Maria Marinho de Azevedo identifica um processo de ressignificação do “ser negro”, ao indagar sobre o nascedouro de um pioneirismo negro nos prelos, através da publicação dos pasquins negros que compõem o corpus documental desta pesquisa; documentos de identificação racial, ainda que pouco subsidiados para servir de instrumentos de “luta política contra-hegemônica” à época11. Ao fazer uma associação paradoxal entre raça e 11 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. A recusa da 'raça': anti-racismo e cidadania no Brasil dos anos 1830. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, julho-dezembro de 2005. P. 298-299. 16 racismo e investigar o anti-racismo nestes primeiros jornais negros da Regência, no momento em que “uma primeira geração de brasileiros negros ilustrados dedicou-se a denunciar o ‘preconceito de cor’ em jornais específicos de luta, repudiando o reconhecimento público das ‘raças’ e reivindicando a concretização dos direitos de cidadania [...]”12, a autora assinala como o pertencimento racial fomentou a luta contra o reconhecimento público das “raças”. Todavia, conclui que não foi suficiente para questionar a escravidão e sim apagar a cor daqueles que conseguiram ascender socialmente. Ivana Stolze Lima, em Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil13, analisa os discursos produzidos pela atividade da imprensa carioca regencial e como tais exposições alargavam a prática política de defesa da cidadania. Ao explorar títulos de periódicos, em diferentes tons políticos, demonstra, ainda, como os redatores, além dessa função, atuavam na política em um cenário de tensão das representações identitárias raciais. Com ênfase no pasquim negro Brasileiro Pardo, Lima demonstra como o periódico defendia o fim da sociedade estratificada por cores e os direitos dos libertos como “brasileiros”. Já de acordo com a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, em uma releitura dos jornais produzidos por “homens de cor” durante o século XIX, a imprensa negra pode ser definida como um conjunto de interesse da população negra, feita por e para ela. A estudiosa assevera que “em qualquer outro país da diáspora, os estudiosos têm pensado experiências dessa natureza como imprensa negra não a partir do registro daquela expressão nas páginas dos periódicos, mas como base em suas características”14. Ou seja, quando tratam da imprensa negra, os especialistas têm analisado as características das tensões, e das relações na vasta arena da imprensa, bem como a defesa da inserção dos jornalistas negros em meio à contestação de ideias vinculadas ao preconceito de cor à época. Assinala, ainda, que os jornais foram instrumentos de combate contra os preconceitos raciais e, por vias constitucionais, armas políticas de efetivação das promessas de igualdade moderna e dos projetos de sociedade e de nação.15 Além disso, em De tinta escura: a imprensa 12 Idem, p. 300. 13 LIMA, Ivana Stolze. Com a palavra, a cidade mestiça. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de (org.). Ler e escrever para contar: documentação, historiografia e formação do historiador. Rio de Janeiro: Access, 1998. 14 PINTO, Ana Flávia Magalhães. Revisitando O Exemplo: a imprensa negra e os vários sentidos da liberdade. In: SILVA, Fernanda Oliveira da; PERUSSATTO, Melina K.; WEIMER, Rodrigo de A. & SILVA, Sarah C. A. (org.). Ciclo de debates sobre o jornal O Exemplo: temas, problemas e perspectivas. Porto Alegre: IHGRGS, 2015. p. 19-24; p. 20. 15____________; Ramos, Ana Flávia Cernic. -A Imprensa Negra E Sua Intelectualidade-. Intellèctus (Uerj. Online), V. 17, P. I-Iii, 2018. 17 negra do século XIX (1833-1899)16, Magalhães Pinto elenca os intelectuais e os ativistas negros menos como ausentes nos debates públicos e mais impetuosos nas tensões e nos desdobramentos do pensamento social do século XIX. Tanto que, sob as vias constitucionais, foram enfáticos no estabelecimento de resistências no campo da intelectualidade e protetores da cidadania e das liberdades da população livre “de cor”. Do conjunto de periódicos negros aqui analisados pode-se depreender a imagem que seus redatores construíram a respeito da questão da discriminação racial no Brasil das primeiras décadas do século XIX. A excepcionalidade e a importância desses impressos intensificaram- se logo após a data de publicação do periódico intitulado O Homem de Côr17. Publicado no dia 14 de setembro de 1833, através da Tipografia de Francisco de Paula Brito, a Tipografia Fluminense, esse pasquim foi percursor ao indagar a ocupação de cargos públicos por “homens de cor” e, de tal forma, o reconhecimento da cidadania, afirmando que “todo o Cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”18. Isto é, homens de talento e virtude não deveriam ser definidos por sua tonalidade de pele e sim por seus próprios méritos, como prescrevia a Constituição outorgada em 182419. A partir do lançamento desse título, não tardou muito para que outros jornais, ainda que de curta tiragem e duração, começassem a circular no seio do Império, evidência que, no mínimo, levanta algumas dúvidas a respeito da, muitas vezes, repetida em estudos especializados, ideia de inexistência do letramento e da formação de uma opinião pública de uma parcela da população negra. Anunciava-se, no mesmo ano de 1833, a aparição dos títulos Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Crioulinho, O Crioulo20, O Meia Cara e O Lafuente, além do mencionado O Homem de Côr, cujos editores foram responsáveis por formar um debate específico. Seus jornais tinham o objetivo de debater, interrogar e denunciar os impeditivos que a questão racial impunha aos chamados “homens de cor” da época, ou seja, 16 Cf. PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa negra no século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Brasília, UNB, 2006. 17 O Homem de Côr. Rio de Janeiro: Typographia Fluminense de Brito e C., n. 1, 14 set. 1833. 18 Ibid., p.1. 19 Artigo 179, Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824). BRASIL. Coleção de Leis do Império do Brasil (1808-1889) [Decisões, Decretos e Leis]. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis. Acesso em: 06 out. 2024. 20 Os jornais O Crioulinho e O Crioulo, membros do conjunto de periódicos críticos e questionadores do lugar dos homens livres de cor no Brasil das primeiras décadas do século XIX, não estão disponíveis para consulta na Hemeroteca Nacional Digital e, por esse motivo, não fazem parte dos jornais analisados nesta pesquisa. https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Brasileiro_Pardo&action=edit&redlink=1 https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis 18 problemas diretamente ligados à efetiva inserção da população negra e mestiça no moderno conceito de cidadania adotado no Brasil independente. O surgimento desses pasquins negros, veículos representantes do ensaio de uma incipiente imprensa negra brasileira, esteve relacionado à proliferação da opinião pública entre o processo de Independência do país, a Abdicação de Pedro I e o início do Período Regencial, especialmente no espaço geográfico do Rio de Janeiro. O início da década de 1830, período de maior interesse para este estudo, foi particularmente agitado nos prelos. O jornalista e historiador Marco Morel centrou esforços para a compreensão da contribuição da imprensa Oitocentista como um veículo de informações e debates que se propunha a colaborar com a construção da opinião pública, com o aperfeiçoamento das faculdades humanas e com a classificação dos interesses sociais, políticos, culturais, econômicos e morais. Segundo o estudioso, o Período das Regências21 foi marcado por tentativas sucessivas de construção da nação e da brasilidade, para que fossem garantidas a Independência e, subsequentemente, o ordenamento nacional. Sem embargo, o período também acabou por ficar caracterizado como “[...] desordenado, anárquico, turbulento” e, como efeito, “o momento de explosão da palavra pública em suas múltiplas (e nem sempre tranquilizadoras) possibilidades”22. Tal decurso, inclusive, reporta-nos à configuração do Estado, arranjo que acomodou, sob os conceitos jurídicos de livre, liberto e cativo, as discrepâncias que se via um pouco por todos os lados23. O historiador Flávio dos Santos Gomes reflete que a abordagem de temas que destacam a vida da população negra brasileira a partir dos periódicos possibilita-nos “apreender como um segmento da população negra brasileira percebeu, concebeu, projetou, construiu e, em outros momentos, iniciou a desconstrução de sua própria imagem e presença na sociedade”24. O fato é que, cada vez mais, a palavra impressa servia de ferramenta interlocutora dos “homens de cor” livres, de modo a ser tanto uma estratégia de liberdade de expressão quanto de arguição 21 Sobre a abordagem dos principais eixos temáticos das produções historiográficas acerca do Período Regencial (1831-1840), ver: BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Regência e imprensa: percursos historiográficos. Almanack, n. 20, p. 1-9, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-463320182001. Acesso em: 14 mar. 2022. 22 MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 10. Ver também: LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Editora UNIJUÍ; FAPESP, 2003. 23 Cf. GRINBERG, 2002, op. cit. 24 GOMES, Flávio dos Santos. Negros e Política: (1888-1937). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2005. p. 32. 19 diante dos constantes silenciamentos e subalternizações pela submissão da cor25. Em outras palavras, na opinião de Gomes, era desejoso manter uma hegemonia racial no Brasil da década de 1830 em meio à iminência do fim do tráfico transatlântico de cativos, isto é, conduzir os egressos do cativeiro e os livres seus descendentes a um lugar de inferioridade jurídica e social. No entanto, a conjuntura configurou um pulsante mosaico étnico de africanos, europeus brancos e mestiços. A articulação das noções de “raça” coexistiu entre proposições políticas, culturais e simbólicas de identidade para as “nações de cor”26 que desembarcavam nos portos brasileiros, conforme assinalou a historiadora norte-americana Mary Karasch. Nas ruas sinuosas fluminenses, a imprensa floresceu como veículo emissário de outro desejo: o desejo de igualdade entre os homens, uma desejo, entre outros aspectos legalista, uma vez que estava ancorado à Constituição. Desta maneira, os primeiros pasquins negros foram cruciais na crítica das estruturas discriminatórias raciais então vigentes sob o signo do silêncio legal. A arguição a respeito da cidadania e da construção de identidades negras – como método de ascensão e respeito social – não era quista por uma elite cultural embranquecida e, ao mesmo tempo, o debate era dificultado pela existência de uma população largamente analfabeta. A análise da opinião pública negra e mestiça por intermédio da pesquisa hemerográfica é relevante para o estabelecimento da relação entre escravidão, cidadania e liberdade na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX, nessas décadas iniciais de construção do sentimento nacional e das identidades políticas. Não sendo possível estudar um fenômeno histórico sem considerar o momento presente, já que as perguntas feitas ao passado surgem no tempo em que o historiador vive e, como ofício do historiador27, a demonstração da preocupação de interrogar os documentos e fazê-los responder à pergunta feita, antes de partir para qualquer análise de diferentes fontes, ao conjunto de pasquins negros mencionados – de periodicidade irregular e por vezes, curta – apresentou artigos opostos entre si quanto à ideia de que a tonalidade de pele era um requisito determinante no alcance dos direitos cidadãos. Tal estratégia ou metodologia historiográfica nos faz lembrar, mais uma vez, da literatura brasileira em seus grandes momentos. Ao romper com uma narrativa linear, o 25 Ver também em: PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes laços em linhas rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, 2014. 26 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 27 BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 20 romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), escrito por Assis, se apresenta como um registro interpretativo da sociedade brasileira oitocentista, um signo de representação histórica. Segundo Sidney Chalhoub, ao “contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil do século XIX”28. Ao longo da obra, mais precisamente no capítulo intitulado Virgília?, em uma conversa com o leitor e, ao mesmo tempo, com Virgília, um de seus amores em vida, o personagem Brás Cubas faz a seguinte reflexão acerca da História e da memória: Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos? Ah! Indiscreta ah, ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a validade dos nossos afetos29. Essa relação entre o “Presente” e o “Passado” e a tentativa de “restaurar o passado” atribui a cada historiador, de acordo com Lucien Febvre, a “reconstituição das sociedades e dos seres humanos de outrora por homens e para homens engajados na trama das sociedades humanas de hoje”30. Por isso, escrever é criar a possibilidade intelectual de não apenas encontrar a veracidade dos fatos, mas, sim, de questionar e interpretar as fontes históricas a partir de uma perspectiva. Seguindo os preceitos dos estudos que abarcaram a tradição da história social, vinculada aos estudos de uma história-problema31, buscamos aqui investigar o pensamento social brasileiro sobre as estratégias de manifestação da opinião pública de homens letrados “de cor”, com base nas suas reivindicações de cidadania e liberdade. Nos últimos anos de pesquisa da área que investiga os integrantes da população afro-brasileira como agentes ativos da história, 28 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 17. 29 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: ÁTICA, 1984. p. 103. 30 FEBVRE, Lucien. Trois essais sur Histoire et Culture, de Charles Morazé. Cahiers des Annales, 1948. p. 8. 31 O conceito de “história-problema” apresenta-se com ênfase nas reflexões da Escola do Annales, movimento historiográfico do século XX e que se constituiu a partir da publicação do periódico acadêmico francês Annales d’histoire économique et sociale. Questionar e refletir sobre a história como problema significa superar a escrita historiográfica apenas como um relato de acontecimentos externos ao pesquisador-historiador. Ao contrário da pesquisa metodológica positivista, que considera, com ênfase, a reflexão de apresentar a “realidade” e a “verdade” desvinculadas do historiador, a história como problema possibilita a análise da documentação em interligação com as escolhas de quem realiza a pesquisa histórica. Para citar alguns autores: BURGUIÈRE, A. Annales. In: Dicionário das ciências históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993; LE GOFF, J. A história nova. In: NOVAIS, F.; SILVA, R. F. da (org.). Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosac & Naify, 2009; NORA, P. O retorno do acontecimento. In: NORA, P.; LE GOFF, J. (org.). História: novos problemas, novas abordagens, novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998; NORA, P. (org.) História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 21 a atenção à cidadania negra como um problema histórico, em meio a uma sociedade estruturada pelo sistema escravista, cresceu expressivamente32. Apesar de haver no Brasil imperial uma estrutura social hierarquizada, característica herdada do período colonial e marcante devido à continuidade do regime escravista e de todos os seus instrumentos, os “homens de cor” letrados puderam formular argumentos que tornaram as suas demandas em demandas públicas, mesmo com todas as dificuldades estabelecidas pelas normas de dominação. Com o objetivo de esquadrinhar o debate político em torno da cidadania dos “homens de cor” no Brasil do século XIX a partir da imprensa negra fluminense, localizar os agentes destes debates, assinalar as inquietações voltadas ao entrelaçamento entre cor, prestígio e cidadania, as restrições políticas e de acesso a determinados cargos públicos no Império, a Parte I da dissertação, denominada “O problema da cidadania nos prelos”, foi estruturada em quatro tópicos articulados entre si. A despeito da enorme diversidade de abordagens possíveis para o estudo do problema que aqui se quer compreender, o ponto balizador da organização da Parte I deste trabalho foi o de investigar os primeiros pasquins negros brasileiros que se dedicaram a abordar a questão racial como assunto relevante na agenda pública do Império brasileiro durante a década de 1830. Assim, na primeira parte desta dissertação, examinaremos como o problema da cidadania dos “homens de cor” livres foi abordado nos prelos, contribuindo para o desenvolvimento pioneiro de uma opinião pública33 pelos e para os homens “de cor” livres. 32 Alguns estudos de fôlego para a área podem ser citados aqui, como é o caso de GODOI, Rodrigo Camargo de. Um editor no Império: Francisco de Paula Brito (1809-1861). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2014; PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa negra no século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Brasília, UNB, 2006; PINTO, Ana Flávia Magalhães. Imprensa Negra no Brasil do século XIX. São Paulo: Selo Negro, 2010; ROSSI, Gustavo. O intelectual feiticeiro. Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia). – Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, 2011; SANTOS, José Antônio dos. Intelectuais negros e imprensa no Brasil meridional. Ìrohìm, ano XI, n. 16, abril-maio de 2006; SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da História: trajetórias de intelectuais na imprensa negra Meridional. Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: PUC, 2011a.; SANTOS, José Antônio dos. Uma arqueologia dos jornais negros no Brasil. Historiae. v. 2, n. 3, p. 143-160, 2011b; SILVA, Fernanda Oliveira da. Os negros, a constituição de espaços para os seus e o entrelaçamento desses espaços: associações e identidades negras em pelotas (1820- 1943). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: PUCRS, 2011. 33 Ao desenvolver o estudo dos diversos usos do conceito de opinião pública, o sociólogo francês Patrick Champagne inicia a sua abordagem conceitual pela definição de “opinião” no dicionário francês, constatando, dois tipos: a opinião especializada e “válida” e a desqualificada do público em geral. De início, o conceito serviu menos como uma mediação das vontades populares e mais como uma ferramenta política de uma reduzida elite intelectual. À medida que ocorreu a ampliação da publicação de folhas públicas, a imprensa apresenta uma relação de ambivalência: instrumento de informação e geradora de consensos; uma manifestação daqueles que pensam de uma mesma forma. Ou seja, a opinião pública, divulgada nas folhas públicas, é um campo social em que agentes, com interesses diversos, juntamente com às instâncias políticas produzem movimentos de opinião, indispensáveis para o estabelecimento de um jogo político entre políticos, o público geral e as mídias. Ver: CHAMPAGNE, Patrick. Formar a opinião pública: o novo jogo político. Petrópolis: Vozes, 1998. 22 O primeiro tópico, a “Cidadania segundo os ‘quilates da cor’”, destina-se à compreensão do fenômeno histórico da cidadania no Brasil e de como o estabelecimento das demarcações pela cor foi tomado como vexatório por meio de questionamentos advindos de uma elite letrada composta por homens livres de descendência africana, sobretudo no que dizia respeito aos seus direitos cívicos, incluindo a ocupação de cargos públicos, aspecto que, na letra da Constituição de 1824, independia da tonalidade da pele. A primeira Carta Magna do Brasil, apesar de saudada como bastante liberal para os padrões da época, regulou os direitos políticos sem romper com as normas e as práticas enraizadas pelos séculos de escravidão, primeiro do indígena e depois do africano. Ao final desse tópico, introduzimos a atuação dos pasquins negros que, críticos do caráter inócuo, segundo seus editores, da legislação, formaram uma opinião pública contra as diferenças determinadas pela cor de pele no reconhecimento e no exercício de cidadania. As inquietações geradas em três séculos de domínio colonial eclodiram, de maneira mais direta, no limiar do século XIX e uma das manifestações delas decorrentes foi a formação do que chamaríamos de resistência negra no universo letrado, em especial, no jornalismo, meio de debate dos discursos políticos. No segundo tópico, “Quando a cor virou assunto público”, abordamos, primeiramente, como nas tipografias, local onde eram compostos, impressos e, em alguns casos, vendidos, jornais, folhetos, revistas e livros, também se criava redes de sociabilidades entre redatores, escritores e leitores. Logo, a discussão e disseminação política e cultural das pluralidades do saber eram relevantes, criando, assim, significações nos espaços urbanos. Para contemplar esse tema, nos debruçamos em como no Rio de Janeiro – berço do Império e local onde se instalou toda a Corte da Família Real portuguesa em 1808 – as próprias tipografias eram espaços de debate de temas como a liberdade, de reflexão e narração dos “fatos” e das “verdades”, como também um local de coerção, manipulação e reflexo de interesses distintos. Desse modo, em seguida, anunciamos a cidadania e a liberdade nos termos constitucionais tais como figuraram nos periódicos O Homem de Côr, Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Meia Cara e O Lafuente. A imprensa foi apropriada como forma de propagar ideias partidárias, por vezes, avessas entre si, de acordo com as diferentes terminologias políticas34 que compuseram o quadro das disputas políticas regenciais. Contudo, os títulos dos pasquins citados anteriormente possuíam em foco em comum: a questão racial. 34 MOREL, 2003, op. cit. 23 Nos próximos tópicos da Parte I, a natureza e as principais discussões de cada periódico são abordadas. No terceiro tópico, “O Homem de Côr e a implementação dos direitos constitucionais”, visamos discorrer a respeito da discussão política presente no pasquim negro, de terminologia exaltada, O Homem de Côr35 (ou também O Mulato ou O Homem de Côr, como foi chamado o periódico a partir do terceiro número), com a primeira edição lançada no dia 14 de setembro de 1833 e a última, a quinta edição, no dia 4 de novembro do mesmo ano. O periódico foi impresso e veiculado pela Typographia Fluminense de Brito & Cia., loja localizada no Largo do Rocio, atual Praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Além de ser um local bem situado, no seio do Império brasileiro, ainda se destacou à época como espaço de relevante presença negra. Assim, no quarto e último tópico da Parte I, denominado “Brasileiro Pardo e O Lafuente: pasquins de críticas ‘virulentas’”, tratamos do debate político exposto nas primeiras e únicas edições de Brasileiro Pardo e O Lafuente, lançados na mesma Typographia Paraguassu – de propriedade de Davi da Fonseca Pinto e localizada na Rua Senhor dos Passos, Rio de Janeiro – em 21 de outubro e 16 de novembro de 1833, respectivamente. Nas folhas de Brasileiro Pardo, assim como abordado em O Homem de Côr, o discurso de identificação pela cor recaiu sobre o argumento de que a arguição dos brasileiros pardos contra as injustiças cometidas pela Regência moderada lhes garantiria o reconhecimento da cidadania. Além da defesa de um posicionamento antidiscriminatório em relação à população negra e mestiça, o pasquim demonstrou apoio político aos simpatizantes da restauração do poder monárquico de Pedro I. O Lafuente, com atribuição de sua redação e edição ora ao escritor Maurício José de Lafuente ora à Davi da Fonseca Pinto (ambos de tendência restauradora), teve papel denunciativo da perseguição e da prisão política do próprio Maurício José de Lafuente por parte da Regência, devido à sua atuação política. Dessa forma, neste tópico, buscamos entender o discurso político restaurador atrelado à égide do reconhecimento cidadão dos “homens de cor”. Assim sendo, a proliferação dessas folhas públicas foi capaz de disseminar o conhecimento a respeito dos direitos dos cidadãos. Como a luta contra as tentativas de apagamento dos “homens de cor” livres nos cargos públicos foi impulsionada pela crítica da ineficácia dos direitos constitucionais, com ênfase no direito à cidadania numa sociedade marcada hierarquicamente pela cor? Tal questionamento norteou a análise da documentação que integra esta parte da dissertação. 35 O Homem de Côr, n. 1, 14 set. 1833. 24 A Parte II da dissertação, denominada “Entrelaçamento entre cor, prestígio, política e cidadania”, também foi dividida em quatro tópicos. O primeiro tópico da segunda parte, “O ruído das prensas: as condições jurídicas e as redes de sociabilidade negra”, é dedicado à compreensão da importância da palavra escrita entre os homens letrados negros e mestiços e de como a apropriação da palavra imprensa foi uma ferramenta capaz de contribuir para a ascensão social e permitir a criação de uma rede de sociabilidades e solidariedade negra. Uma leitura preliminar da documentação indica que é viável notar o afloramento do discurso de autoidentificação pela cor, além do questionamento das dificuldades impostas pelo Estado na ocupação posições estratégicas em cargos públicos por negros e mestiços livres. Décadas antes da intensificação do período abolicionista, “homens de cor” já se empenhavam na atuação política e social de defesa da integração de afrodescendentes à cidadania brasileira. À exemplo disso, figuras como Francisco de Paula Brito, o jurista Antônio Pereira Rebouças e o político Francisco Gê de Acaiaba de Montezuma, mais conhecido como Visconde de Jequitinhonha, são notórias na contribuição do debate na arena política que se estendem desde o campo dos estudos do Direito até às prensas jornalísticas36. No segundo tópico da Parte 2, “Um cabra vosso patrício”, suscitamos o debate referente ao título O Cabrito, produzido em 2 edições, em 7 e 29 de novembro de 1833, pela Typographia de Miranda & Carneiro, localizada na Rua do Espírito Santo. O intuito de seu surgimento esteve circunscrito ao embalo dos discursos antilusitanos, isto é, o periódico posicionou-se contra as ameaças de restauração após o 7 de abril de 1831, data da Abdicação de Pedro I. Os embates entre “brasileiros cabritos” e portugueses, os “pés-de-chumbo”, tomaram conta das ruas e viraram assunto do dia nos prelos. De sugestiva demarcação racial, o exemplar ao custo de 80 réis e estruturado em 8 páginas, apresentou-se como um periódico de inclinação partidária exaltada e, inicialmente, apoiou a subida dos moderados ao poder na Regência Provisória, na esperança de que os interesses de cunho mais liberal fossem atendidos. Abominou, em cada palavra, a sujeição dos brasileiros “de cor”, os “filhos da pátria”, ao domínio português. Seu título é passível de interpretações a respeito dos apelidos pejorativos dados aos negros e mestiços pelos colonizadores lusos, divulgando, destarte, os desconfortos dessa relação. Segundo o historiador João José Reis, a denominação “cabra” refere-se às pessoas de pele mais clara que o negro e 36 Sobre a intelectualidade negra e a sua formação no início do Império brasileiro, ver: AARÃO REIS, Daniel; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais e Modernidades. Rio de Janeiro: FGV, 2010; ARAÚJO, Ubiratan de Castro. A política dos homens de cor no tempo da Independência. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 253-269, 2004. 25 mais escuro que um mulato37. Já Marcus Vinícius Fonseca assinala que “a condição de cabra pode ser uma denominação que registrava um certo nível de proximidade do indivíduo com a escravidão, pois a maioria dos cabras livres era crianças e jovens”38. O terceiro tópico, “O Meia Cara: conjugação entre política e questão racial”, é dedicado à compreensão da faceta do pasquim O Meia Cara. Foi um jornal propriamente dedicado mais à denúncia antilusitana do que às mazelas negras. Em suas duas edições dadas ao prelo na Typographia Fluminense de Brito & Cia., Rio de Janeiro, em 11 de novembro e de 15 de dezembro de 1833, e com assinatura ao preço de 80 réis o exemplar, exibiu uma linguagem irônica, crítica e, como seus congêneres, redigidas em anonimato. Todavia, diferenciou-se em relação à estrutura, com 8 páginas a primeira edição e 12 a segunda. Assim como em O Cabrito, O Meia Cara emergiu como opositor dos restauradores ou “papeletas”, apelido referenciado no pasquim aos apoiadores do monarca Pedro I. O antilusitanismo foi o principal abalizador da redação na busca pelo ideal da identidade nacional, seguindo a nova ordem legal de 1824. O título O Meia Cara, também abre margem para uma importante discussão sobre as classificações raciais. O termo era designado ao africano contrabandeado após a proibição do tráfico em 7 de novembro de 1831. À vista disso, os africanos ilegalmente escravizados no Brasil encontravam-se no entremeio, nem livres, nem escravos, logo, meias caras. As distinções jurídicas acerca dos livres e dos escravos foram pilares estruturais do sistema escravista brasileiro. O quarto e último tópico da segunda parte da dissertação, “A liberdade a custo de suor e sangue”, consiste na reflexão acerca da participação ativa de negros e mestiços nas sedições compreendidas no período posterior à Independência e entre a Abdicação e a Regência Provisória. Busca-se entender como tal manifestação aqueceu a luta pela defesa da liberdade e da sobrevivência cidadã, uma vez que a conquista de cidadania por “homens de cor” ainda era demasiadamente frágil. Dessa maneira, o último tópico da dissertação é responsável pela consideração dos conflitos internos concernentes à cor e à classe mascarados pelo antilusitanismo, a despeito de negros e mestiços dispostos em lados partidários antagônicos. A condição do “homem de cor” livre era instável, mesmo com a regularização jurídica. O imaginário social referente à cor de pele colocava-o em lugares de subalternidade e descrédito. Assim, o reconhecimento de uma nacionalidade brasileira e, consequentemente, do 37 REIS, João José. Negociação e Conflito – a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 85. 38 FONSECA, Marcus Vinícius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. In: ROMÃO, Jeruse (org.). História da Educação do Negro e outras histórias. Brasília: SEDAC/MEC, 2005. p. 103. 26 favorecimento dos discursos antilusitanos, elevou o movimento de identificação pela cor. Os conflitos regenciais foram palcos categóricos para a reflexão da realidade brasileira de descontentamento popular acerca dos rumos políticos do país, em meio à crise política iniciada na Abdicação. No Brasil Imperial, havia possibilidades de se alcançar a liberdade e ocupar um status de maior prestígio social. Seja na forma de letramento, matrimônio ou pela compra e/ou concessão das cartas de alforria. Todavia, as marcas assombrosas da escravidão continuaram rondando a vida dos indivíduos libertos e livres. Os lugares dos sujeitos eram diferentes e bem- marcados nas relações sociais e jurídicas. A temática do negro e mestiço livres ocupou um espaço privilegiado nas preocupações reformistas, já que seus traços físicos, como a cor da pele, decorrentes do processo de miscigenação, traziam a marca de seus antepassados que foram escravos e, assim, submetidos a condições de inferiorização jurídico-social. Em relação aos libertos, àqueles que ganharam ou compraram suas cartas de alforria, as violências poderiam ser mais explícitas, como, por exemplo, os riscos de reescravização e a vigilância constante. Violências essas contrárias, muitas vezes, às disposições da Constituição de 1824 em aceitá-los como cidadãos, mas que, na prática, ocorriam39. Podemos, também, observar a reflexão sobre a incorporação de uma nova perspectiva de sociedade, solidificada na história oficial do país: a tentativa de diluição de identidades étnicas e, ao mesmo tempo, a divisão da população em diferentes “quilates de cor”. Este era o cenário. Vivenciamos um momento de renovação historiográfica, possibilitada pela análise de novas ou já conhecidas fontes de época. Esse foi o caso dos estudiosos que optaram pela pesquisa hemerográfica. A pesquisa hemerográfica requer a identificação dos atores sociais envolvidos na temática abordada nos periódicos, assim como a atenção à problematização exposta no material investigado. Além disso, constatar a dimensão espacial, temporal e os encaminhamentos propostos pelos atores sociais ampliar o entendimento sobre a metodologia de pesquisa40. 39 GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. 40 Acerca do debate sobre metodologia e teoria da imprensa como fonte e objeto de pesquisa histórica, ver: CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988; LEITE, Carlos Henrique Ferreira. Teoria, metodologia e possibilidades: os jornais como fonte e objeto de pesquisa histórica. Revista Escritas, v. 7, n. 1, p. 03–17, 2015; LUCA, Tânia Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005; LUCA, Tânia Regina de; MARTINS, Ana Luiza (org.). Imprensa e cidade. São Paulo: Editora UNESP, 2006.; SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. A noção de formação discursiva: uma relação estreita com o corpus na análise do discurso. São Carlos: UFSCar, 2006; SEIBEL, J. E. Pesquisa hemerográfica. Florianópolis: UFSC, 2007. 27 Tal esforço historiográfico, implicou, diretamente, no alargamento da compreensão do conceito de cidadania à época, ou do que se pretendeu estabelecer como tal, no alvorecer do século XIX no Brasil. Com efeito, em meio a uma sociedade marcada por restrições em relação ao domínio da leitura e da escrita, com limitações de participação no sistema eleitoral e pouco esclarecida sobre quem eram os cidadãos brasileiros, não faltaram indagações sobre as ambiguidades e os conflitos inerentes a esse momento de construção de identidade e nacionalidade. Isto posto, as interrogações sobre o exercício da cidadania dos “homens de cor” foram manifestadas de muitas maneiras. Dentre as mais formais, encontram-se aquelas presentes nos primeiros pasquins negros. 28 PARTE I O PROBLEMA DA CIDADANIA NOS PRELOS 29 1.1 Cidadania e liberdade segundo os “quilates da cor”1 A liberdade é o próprio homem, porque é a sua vida moral, é a sua propriedade pessoal a mais preciosa, o domínio de si próprio, a base de todo o seu desenvolvimento e perfeição, a condição essencial de gozo de sua inteligência e vontade, o meio de perfazer seus destinos2. Mesmo sendo considerada por alguns contemporâneos como insuficientemente justificada nos séculos em que existiu legalmente no Ocidente, segundo princípios teológicos e filosóficos, a escravidão africana, significativamente vincada pela questão racial3, e como seu corolário, a manutenção das hierarquias sociais mesmo em países que se tornaram independentes professando valores liberais em suas constituições, deixaram marcas profundas na população brasileira. O documento que, em tese, definiria as fronteiras entre cidadania, liberdade e escravidão, a Constituição Política do Império do Brasil de 1824, sequer abordou o sistema escravista. De maneira similar, limitou-se a regular os direitos dos libertos, sem mencionar a população negra africana e seus descendentes, fossem eles livres ou libertos ou, em outros termos, sem adentrar a questão da cor de pele de forma literal. O historiador Rafael de Bivar Marquese, ao analisar os moldes do sistema escravista no Brasil independente a partir da definição de cidadania defendida por Custódio Gonçalves Ledo4, em Portugal, e cristalizada na Constituição de 1824, no Brasil, afirma que: Conforme o artigo 6, parágrafo 1 da Constituição de 1824, os libertos, desde que nascidos no Brasil, eram considerados cidadãos brasileiros. Portanto, apenas os libertos africanos eram excluídos do corpo social da nação. Essa norma constitucional, por sua vez, franqueava aos libertos brasileiros a participação no processo eleitoral: de acordo com os artigos 90 a 95, desde que possuíssem renda líquida anual de cem mil-réis, esses ex-escravos poderiam votar nas eleições primárias, que escolhiam os membros dos colégios eleitorais provinciais, mas não poderiam participar destes últimos; já os ingênuos, isto é, os filhos dos libertos (tanto dos africanos como dos brasileiros), poderiam igualmente votar e ser votados nos colégios eleitorais 1 O Homem de Côr, n. 1, p. 1. Hemeroteca Nacional Digital. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca- digital/. Acesso em: 06 out. 2024. 2 BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de Documentação, 1958. p. 382. 3 Para aprofundamento do conceito de “questão racial”, ver: BOXER, Charles. Relações raciais no império colonial português. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. 4 Custódio Gonçalves Ledo, nascido em 1744 era natural do Rio de Janeiro, formou-se em Medicina na Universidade de Coimbra, atuando, também, como político. Nos debates das Cortes de Lisboa a respeito dos caminhos da independência do Brasil, Ledo discutiu com parlamentares portugueses os critérios de participação política e de cidadania brasileira, deixando claro que não haveria razão para privar os libertos do direito ao voto. Portanto, sua definição de cidadania demonstrou ser bastante inclusiva. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ 30 provinciais, desde que cumprissem os critérios censitários. Tratava-se, enfim, de uma definição de cidadania bastante inclusiva. O parágrafo constitucional acabou virando peça da propaganda de defesa do tráfico negreiro transatlântico para o Brasil, no contexto do acirramento das pressões inglesas5. Marquese aponta, ainda, que a institucionalização da escravidão pelo Estado, expressa na legislação foi, inicialmente, omissa em prever qualquer tentativa de limitação ao sistema escravista. Além disso, contribuiu para a organização do caráter birracial da sociedade colonial em transição para a imperial. Assim, o Brasil, como nação constitucional, despontou em meio à escravidão legitimada, a partir da outorga de sua primeira Constituição. Assevera Hebe Mattos de Castro que a Carta Magna reconheceu, de maneira formal, os direitos civis e políticos daqueles considerados cidadãos, ao mesmo tempo que mantinha cerca de 30% dos habitantes no regime de escravidão. A autora confirma também que o país foi o destino de cerca de 1 milhão de pessoas escravizadas no continente africano e trazidas ao Brasil de forma ilegal a partir de 1831, mesmo com a vigência da Lei6 proibitória do tráfico de escravos no país7. Pessoas estas que, é preciso lembrar, não figuravam entre escravos, libertos ou livres, permanecendo num limbo jurídico de tutela estatal e nomeados genericamente como africanos livres8. Diante disso, o país tornou-se o maior receptor ilegal de homens e mulheres escravizados no continente africano9 e o último país do “Novo Mundo”10 a abolir o sistema escravista, evento que ocorreu apenas no dia 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea11. Dada a longa permanência da escravidão no Brasil, por mais de trezentos anos, podemos observar como a formação da monarquia constitucional confundiu-se com a história do cativeiro, devido ao estreitamento das relações entre ambas as instituições. Mattos enfatiza 5 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos estudos CEBRAP, n. 74, p. 107-123, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007. Acesso em: 28 fev. 2022. p. 122-123. 6 Lei de 7 de novembro de 1831 – Declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos importadores dos escravos. BRASIL. Coleção de Leis do Império do Brasil (1808-1889) [Decisões, Decretos e Leis]. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis. Acesso em: 06 out. 2024. 1831, parte I. 7 MATTOS, Hebe Maria. Prefácio. In: FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: escravidão e liberdade sob a pena do Estado imperial brasileiro (1830-1888). São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 15. 8 Para aprofundar a relação entre a história dos africanos livres, a legislação e a política imperial sobre a escravidão e o trabalho livre, ver: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 9 MATTOS, op. cit. 10 Sobre o conceito de Novo Mundo sob a perspectiva europeia, cf. DELUMEAU, Jean. Uma História do Paraíso. Lisboa: Terramar, 1992. 11 Lei Áurea, ou Lei Diamantina, Lei n. 3.353, de 13 de Maio de 1888 – Declara extinta a escravidão no Brazil BRASIL. Coleção de Leis do Império..., 1888. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis 31 os problemas que o silenciamento constitucional sobre a relação ente escravidão e cor da pele acarretaram para o país: [...] para um país que se formava baseado em uma Constituição liberal e que não assumia formalmente questões raciais como justificativa para a manutenção da escravidão, ancorando a legalidade dessa prática no simples direito de propriedade. Com milhões de novos escravizados chegando ao país e, ao mesmo tempo, na fronteira tênue entre escravidão e liberdade, a administração da justiça e as sociabilidades cotidianas no Brasil nem sempre separavam com clareza escravos, livres e libertos, apesar de essas categorias serem estruturantes das hierarquias sociais e dos ordenamentos jurídicos do país12. Efetivamente, podemos esquadrinhar o papel dominante dos padrões de acomodação trazidos do período colonial e replicados na sociedade imperial brasileira Oitocentista. Essa característica foi, evidentemente, percebida nas décadas iniciais do século XIX, período de acirramento dos debates sobre as estruturas sociais escravistas, o conceito de nação, de liberdade, de cidadania, de raça13 e quais eram as identidades étnicas que atravessaram a construção do Estado que se pretendia firmar. As práticas sociais rotineiras eram enviesadas pelo processo de racialização dos indivíduos lidos como mestiços e negros. Por essa razão e a despeito do vigor conferido pela historiografia da escravidão à interpretação dos processos no entremeio da Abolição, envolvendo a análise do reconhecimento da cidadania e da liberdade da população “de cor”, podemos remontar esse passado a partir de atores políticos e perspectivas diferentes. Entre elas, aquela aprofundada na interpretação dos discursos literários, cientificistas e jornalísticos produzidos à época. Em relação às fontes jornalísticas, segundo Maria Helena Capelato, A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social. Partindo desse pressuposto, o historiador procura estudá-lo como agente da história e captar o movimento vivo das ideias e personagens que circulam pelas páginas dos jornais. A categoria abstrata da imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura de seus produtores como sujeitos dotados de consciência determinada na pratica social. A análise desse documento exige que o historiador estabeleça um diálogo com as múltiplas personagens que atuam na imprensa de uma época14. Dessa forma, torna-se viável investigar nas folhas públicas a maneira pela qual os redatores compreendiam as noções de cidadania, de mobilidade social e de liberdade, acionando 12 MATTOS, op. cit., p. 16. 13 Para uma investigação sobre os conceitos de raça, ver: GOULD, Stephan J. The mismeasure of man. 2nd. ed. New York: W. W. Norton & Company, 1996; POLIAKOV, Leon. O mito ariano. São Paulo: Perspectiva; Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 2v. 14 CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. p. 21. 32 estratégias que contribuíram para retirar do limbo os que padeciam da “quase cidadania”15. Implicaram, de tal forma, na elaboração de políticas questionadoras da ausência de um dispositivo racial na definição da cidadania. A quarta edição do jornal O Mulato ou O Homem de Côr, já nos chama atenção para isso, ao exprimir que “não há um representante das nossas cores, dos Empregos Públicos, e de toda parte nos excluíram”16. Os meios de mobilidade e integração do negro e mestiço livres como cidadãos e membros ativos (por meio da participação eleitoral e pelo pleito de cargos públicos) do Estado monárquico brasileiro foram constructos sociais formados a partir do entendimento das noções de igualdade e de diferença. Tal faceta, por sua vez, deu cabo às definições das diversas identificações culturais e étnico-raciais17. Por vias legais, a referência de liberdade não era destinada à cor branca e, no mesmo sentido, também não se dirigia à cor negra, sempre identificada com o cativeiro18. Contudo, em uma sociedade escravocrata, esse entendimento pode ser conflitante, na medida em que seu enraizamento esteve circunscrito ao universo social da escravidão, apesar do contexto apontar, cada vez mais, a perda gradual da legitimidade social desse sistema. Por um lado, percebe-se a formação de um contingente importante de negros e mestiços livres na população brasileira do século XIX. Por outro lado, observa-se um expressivo endurecimento da mobilidade social, devido à hierarquia racial19. A complexidade da dinâmica escravista no campo jurídico, as possibilidades de afastamento do cativeiro para africanos e seus descendentes, além do reconhecimento do liberto como integrante da sociedade brasileira – apesar das inúmeras restrições de tutela desses indivíduos pelo Estado20 – tornam a indistinção da cor de pele um abstruso componente da definição formal de cidadania, à vista das condições de realização de igualdade prometidas na Constituição de 1824. O ideal liberal legislado, o qual atribuiu como afirmação a igualdade entre todos os cidadãos brasileiros, foi base de sustentação dos argumentos expressos na maior parcela dos 15 CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Quase cidadãos: histórias e antropologias. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007. 16 O Mulato ou O Homem de Côr, n. 4, p. 4. Grifo meu. 17 As relações étnico-raciais referem-se aquelas estabelecidas tanto entre os diversos grupos sociais como entre os membros do próprio grupo. Portanto, ideias e conceitos a respeito das diferenças e semelhanças concernentes ao pertencimento racial desses indivíduos, assim como a dinâmica dos grupos, fazem parte do entendimento de relações étnico-raciais no Brasil. Para aprofundamento, cf. STEPAN, N. L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. 18 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 19 Ibid. 20 DANTAS, Monica Duarte (org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011. 33 periódicos circunscritos na agenda pública fluminense. O cotidiano dos leitores e produtores dos impressos foi influenciado pela abordagem política de construção da Nação brasileira e, como era de se esperar, pela discussão da questão da cor de pele como determinante no exercício da cidadania plena pelos “homens de cor” livres. Tais demandas corporificadas nos jornais de imprensa negra – assim cunhada no início do século XX21 – aponta a tessitura de uma opinião pública defensora do reconhecimento da cidadania dos “homens de cor” brasileiros. Sob esse aspecto, então, quem eram os cidadãos brasileiros? Cabe aqui entendermos, em maior detalhe, a concepção à época alusiva ao cidadão, integrante da sociedade brasileira e empossado de direitos e deveres. De maneira similar, devemos apreender a maneira pela qual a cor de pele, marcador social, foi encarada como um entrave ao exercício da cidadania plena. A Constituição de 1824 preconizou que todos os homens livres e naturalizados brasileiros eram cidadãos, com direitos parciais aos ingênuos e aos libertos22. Outrossim, estabeleceu-se, com tal característica, a prerrogativa de que todos considerados cidadãos teriam o direito ao voto, caso estivessem de acordo com o critério censitário estabelecido no valor de cem mil réis anuais para as eleições primárias23. Segundo José Murilo de Carvalho, em um país onde a escravidão, a monocultura e os grandes latifúndios eram realidades, seria muito difícil a constituição de um ambiente favorável para a formação de uma cidadania plena, em razão da naturalização de uma sociedade desigual24. A formulação do ideário a respeito de quem seriam os participantes ativos e passivos das decisões governamentais permeou as discussões da Assembleia Constituinte de 1823 na Corte fluminense. A definição do cidadão era bastante complexa no Brasil, legalmente desigual 21 A imprensa negra surge como movimento jornalístico – organizado por e para pessoas negras –, desde o período da escravidão, com marco inaugural a partir da publicação o título O Homem de Côr, no dia 14 de setembro de 1824. Após o período abolicionista, as associações culturais de apoio às lutas e causas da população negra ganham maior forma, devido à nova realidade que o trabalho livre proporcionou. Ver: CARVALHO, Gilmar Luiz de. A imprensa negra paulista entre 1915 e 1937: características, mudanças e permanências. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2009. 22 CAMPOS, Adriana Pereira; MOTTA, Kátia Sausen da. Imperfecta libertate: petição ao Congresso Brasileiro do Liberto Delfino - 1826. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 467, p. 289-304, 2015. Ver também: Art. 6, Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824). BRASIL. Coleção de Leis do Império..., 1824. 23 Sobre as eleições primárias e secundárias no Brasil e os processos de concretização da dinâmica do voto, o artigo 94 da Constituição dispunha: “Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos, os que podem votar na Assembleia Paroquial. Excetuam-se: I. Os que não tiverem de renda líquida anual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego. II. Os Libertos. III. Os criminosos pronunciados em querela, ou devassa”. Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824), op. cit. 24 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª ed., 2002. p. 27. 34 e vincado por questões raciais profundas. Ademais, de muitas formas, a gestão do país foi conivente com a objetificação e desumanização da população juridicamente mantida sob o conceito de escravo25. Vejamos como o texto da Constituição Imperial de 1824 define o cidadão brasileiro: Tit. 2°, Dos Cidadãos Brasileiros Art. 6 [...] I. Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brasileiro, e os ilegítimos de mãe Brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no Império. III. Os filhos de pai Brasileiro, que estivesse em país estrangeiro em serviço do Império, embora eles não venham estabelecer domicílio no Brasil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brasil na época, em que se proclamou a Independência nas Províncias, onde habitavam, aderiram a esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residência. V. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de Naturalização. [...] Tit. 8° Das disposições gerais, e garantias dos direitos civis, e políticos dos Cidadãos Brasileiros. [...] Art. 179 Todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, Políticos, e Militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos, e virtudes; A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. I. Nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da Lei26. Os artigos acima elencados referiram-se tanto aos preceitos de quem deveria ser considerado cidadão quanto aos direitos e deveres para com o Estado e a sociedade como um todo. Entre eles, nota-se os critérios para ocupação de cargos públicos – ao menos o que se 25 Cf. HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 26 Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824), op. cit. Grifo meu. Em relação à ocupação de cargos públicos, a Lei de 18 de agosto de 1831, que criou a Guarda Nacional, especificava que: “Art.10. Serão alistados para o serviço das Guardas Nacionais nas Cidades do Rio de Janeiro, Bahia, Recife e Maranhão, e seus respectivos termos: 1.º Todos os cidadãos brasileiros, que podem ser eleitores, com tanto que tenham menos de 60 anos de idade, e mais de 21. 2.º Os cidadãos filhos famílias de pessoas, que têm a renda necessária para serem Eleitores, com tanto que tenham 21 anos de idade para cima. Em todos os outros Municípios do Império serão alistados: 1.º Os cidadãos que têm voto nas eleições primárias, uma vez que tenham 21 anos de idade até 60. 2.º Os cidadãos filhos família de pessoas, que têm a renda necessária para poderem votar nas eleições primárias, com tanto que tenham de 21 anos de idade para cima. [...] O serviço das Guardas Nacionais é obrigatório, e pessoal, salvo as excepções adiante declaradas”. Lei de 18 de Agosto de 1831 - Título II, Capítulo I: Da obrigação do serviço, Artigo 10º. BRASIL. Coleção de Leis do Império..., 1831. 35 pretendia determinar como tal. Estes artigos chamam-nos a atenção para a demarcação de inviolabilidade dos direitos dos indivíduos definidos como cidadãos. Percebe-se como as categorias Brasileiros e Cidadãos figuraram como fronteiras definidoras dos membros formais da sociedade durante o início do Oitocentos. O longo caminho da cidadania brasileira cruzou o fenômeno de construção do Estado-nação no período de lutas por direitos civis no século XIX, tanto pela necessidade de afastamento do domínio português como pela indeclinável construção da identidade nacional que se cristalizou sob o signo escravista27. [...] quando pela primeira vez se definiu uma ‘cidadania brasileira’ – na ocasião de emancipação política do país, em 1822 –, o Brasil comportava não apenas uma das maiores populações escravas das Américas, mas também a maior população de descendentes livres de africanos do continente28. Como vimos no conjunto de artigos constitucionais, a igualdade entre os homens era legal, independentemente da cor de pele, pelo menos o era em tese. A discussão dos princípios constitucionais em voga possibilitou o discurso de “homens de cor” letrados no debate concentrado no problema da discriminação racial. O ativismo político presente nesse tipo de discurso nos prelos evocou aborrecimentos para a elite econômica e intelectual que se queria embranquecida e estava acomodada à naturalização das relações desiguais sociais, em razão de que, segundo Beatriz Galloti Mamigonian, “essa camada de pessoas livres de cor ou libertas” tinham políticas reivindicativas incômodas e requeriam, como objetivo, o “tratamento sem distinção de cor ou ascendência”. Todavia, essas pessoas recebiam “por parte das autoridades imperiais [...] tratamento cada vez mais (veladamente) racializado”29. Dessa forma, com o propósito de compreender as inquietações dos “homens de cor” livres no universo do letramento, é necessário estar ciente dos pressupostos definidores dos direitos e deveres do cidadão. Como visto acima, o artigo 179º da Constituição de 1824 fixou a garantia da inviolabilidade dos direitos civis, políticos e individuais dos cidadãos, baseado na liberdade, na segurança individual, e na propriedade30. A questão indispensável, contudo, dizia respeito à própria definição de quem eram os cidadãos brasileiros e o estabelecimento dos direitos políticos. A escravidão vigente e as inúmeras tentativas de compatibilização do modelo liberal 27 Cf. CARVALHO. José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das Sombras: a política imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 28 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 13. 29 MAMIGONIAN, op. cit., p. 212. 30 Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824), op. cit. 36 das constituições dos Estados modernos, orientado pelos princípios de direito à propriedade e liberdade, com a realidade brasileira, instituiu um cenário relevantemente dificultoso para os deputados constituintes. Devido à divisão jurídico-social da população em escravos, libertos e livres, algumas discussões foram travadas até a outorga do texto constitucional. Critérios de nacionalidade, nascimento e condições de liberdade foram tópicos debatidos para que se fizesse valer a adoção do termo cidadão. A outorga da Constituição Política do Império do Brasil ocorreu no dia 25 de março de 1824, por Pedro I, em cerimônia solene no Rio de Janeiro. A Carta Magna estabeleceu o governo com bases monárquicas, constitucionais, hereditárias e representativas. Segundo prescrito no Art. 1, “O Império do Brasil é a Associação Política de todos os Cidadãos Brasileiros”31. Para essa categoria, foram destinados indivíduos nascidos no Brasil, entre eles os “ingênuos” – filhos de cativas, nascidos livres – e os libertos, além daqueles nascidos em Portugal ou em suas possessões e que residissem no Brasil no momento de proclamação da Independência, de tal maneira, aderindo a ela. Em relação às discussões parlamentares a respeito das restrições de direitos atribuídas aos libertos na década de 1830, a historiadora Keila Grinberg observou a ausência de consenso sobre os conceitos de cidadão e de brasileiro. Todavia, em relação aos libertos, sucedeu um outro caminho. Por um ângulo, os governantes concordaram com a ideia de assegurar direitos civis aos libertos. Sob outro enfoque, as restrições aos direitos políticos prevaleciam, já que não seria interessante garantir direitos a essa população de intervir nas decisões do Império, como é o caso do direito ao voto32. No que se refere ao sistema eleitoral e sua dinâmica de funcionalidade, o exercício do voto foi determinado a partir de algumas diferenciações de tratamento àqueles que detinham os direitos civis em relação àqueles que desfrutavam da plenitude de direitos políticos – direitos concedidos em sua integralidade apenas aos homens livres e proprietários. Ou seja, havia uma acepção de cidadania entre os cidadãos “ativos” ou diretos, representados pela grande maioria de senhores de terras e trabalhadores liberais da camada média, e os cidadãos “passivos” ou indiretos, desprovidos de propriedade. Ademais, os eleitores participantes das eleições indiretas poderiam ser votados seguindo os critérios censitários. Os votantes eram definidos entre os moradores das províncias e das paróquias33. 31 Ibid. 32 GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 33 NICOLAU, Jairo Marconi. Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 37 Estes últimos eram responsáveis pelo voto designado aos deputados componentes da Assembleia Geral, seguindo à risca o critério censitário que previa, como patamar mínimo, a renda líquida anual de cem mil réis34. Já os eleitores das províncias deveriam apresentar no mínimo uma renda líquida de duzentos mil réis35. Aos eleitores casados de vinte e um anos abriu-se uma exceção, de acordo com o limite de idade. Essa exceção também foi válida para bacharéis e militares36. No caso dos “homens de cor” enquadrados na condição jurídica de libertos, os votos paroquiais eram permitidos, desde que fossem nascidos brasileiros e que comprovassem a renda líquida anual. A exclusão do voto recaiu, desse modo, sobre as mulheres, os indígenas, os criados, os religiosos, os filhos dependentes financeiramente dos pais e, como era de se esperar, seguindo a estrutura hierárquica social enrijecida, a população que permaneceu submetida à condição jurídica de escravo37. Apesar da exposição constitucional de quem era considerado cidadão brasileiro, a discussão do exercício da cidadania seguiu curso. Na prática, os termos de reconhecimento da cidadania dos cidadãos livres eram outros. Aos adeptos do ideário liberal, era entendido que o status de cidadão cabia a todos, seguindo os regulamentos das constituições dos Estados modernos. Diferente foi o posicionamento daqueles que compreendiam a cidadania como um exercício restrito a alguns indivíduos, algo exclusivo e privilegiado. Era concedido, nesse viés, os direitos civis plenos aos membros da nação, não obstante, os direitos políticos seriam exercidos por apenas uma parcela da sociedade38. Andréa Slemian, na discussão sobre os impasses da cidadania na construção constitucional brasileira, afirma que a adoção do termo “membro” deu lugar ao uso do termo “cidadão” sob influência assídua dos padrões seguidos pelas nações constitucionais. Em relação às condições jurídicas existentes no Brasil, o processo de reconhecimento da cidadania dos negros e mestiços nascidos livres e dos cativos que se tornaram libertos era turvo, já que, 34 FACHIN, Zulmar. Direitos fundamentais e cidadania. São Paulo: Método, 2008. 35 Art. 94, Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824), op. cit. 36 Cf. NICOLAU, op. cit. 37 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. 38 Segundo José Murilo de Carvalho, “A situação da cidadania na Colônia pode ser resumida nas palavras atribuídas por Frei Vicente do Salvador a um bispo de Tucumán de passagem pelo Brasil. Segundo Frei Vicente, em sua História do Brasil, 1500-1627, teria dito o bispo: ‘Verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa’. Não havia república no Brasil, isto é, não havia cidadãos. Os direitos civis beneficiam a poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais ainda não se falava, pois a assistência social estava a cargo da Igreja e de particulares”. CARVALHO, 2002, op. cit., p. 29. Ver também: HOLSTON, op. cit., p. 96-97. 38 seguindo os moldes do Antigo Regime, a organização social era sistematizada por diferenciações entre as categorias de liberdade39. Nesse sentido, eram concedidos os direitos civis plenos a todos os membros da sociedade, mas reconhecendo os direitos políticos como exclusividade de alguns. Nas últimas passagens do quadro de artigos da Constituição Imperial de 1824 citado no início deste tópico, têm-se alguns critérios relativos à ocupação de cargos públicos, os quais se relacionam aos quesitos primordiais, definidos em 183140, para a matrícula na Guarda Nacional, a reconhecida milícia cidadã, instituição exigente no exercício do serviço obrigatório aos sujeitos que comprovassem cidadania. De acordo com John Keegan, o princípio da milícia consistiu no dever de todos aqueles considerados cidadãos aptos – homens integrantes de uma comunidade política –, apresentarem-se ao serviço militar nos momentos conflituosos e violentos, por um determinado período41. De acordo com o princípio de obrigatoriedade na prestação desse serviço, a recusa significaria abrir mão, portanto, da cidadania plena. Ou seja, o serviço na Guarda Nacional era um dever cívico, o que o diferenciou do serviço das forças mercenárias e do Exército. Visto que o anseio de abolir a carga das categorias vigentes no passado colonial criou uma sociedade dicotômica no universo dos livres e dos cativos – sobretudo sob o prisma jurídico42 –, os impasses na construção da cidadania ocasionaram uma verdadeira reordenação social no Brasil. A concepção de cidadania refletiu diretamente na organização da Guarda Nacional. Ela propiciou uma oportunidade de “enobrecimento” social para os ingressos. Isso é observado com mais nitidez em relação aos membros militares ocupantes dos cargos mais altos na hierarquia militar. Todavia, a distinção da Guarda Nacional em relação às forças militares coloniais era a impossibilidade de haver distinções aristocráticas na distribuição de seus cargos, uma vez que a instituição estava organizada seguindo o princípio da igualdade jurídica. Então, pelo menos em tese, os critérios exigidos na hierarquia da força eram relativos à comprovação da cidadania43. 39SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, István (org.). Independência: História e Historiografia. São Paulo, Editora Hucitec; FAPESP, 2005. 40 Lei de 18 de Agosto de 1831, op. cit. 41 Cf. KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo Companhia das Letras, 1995. 42 SLEMIAN, op. cit. 43 Cf. BEATTIE, Peter M. Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009; DORATIOTO, Francisco Osório: A espada liberal do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 39 Não podemos perder de vista que o processo de construção da cidadania no prelúdio do Império brasileiro foi marcado por um quadro de disputas políticas pós-Independência resultante de uma cidadania legitimamente desigual, apesar das características inclusivas44. A experiência positiva na construção da cidadania brasileira se destinou apenas às elites políticas e econômicas, ao passo que boa parte da população não se beneficiou dos direitos constitucionais, mesmo que houvesse participações populares em alguma medida nos processos relativos ao Estado, como, por exemplo, o voto e o serviço na Guarda Nacional e no Exército. Carvalho pontua, sobre o peso da instituição Guarda Nacional no desenvolvimento da cidadania, por ser um serviço ativo, que: [...] a Guarda Nacional era um serviço litúrgico que os proprietários prestavam ao governo gratuitamente em troca do reconhecimento de sua supremacia social. [...]. Seu sentido político mais profundo estava sem dúvida na cooptação dos proprietários pelo governo central. [...] Para as praças, restava um serviço incômodo que interferia nos negócios particulares. [...] Mesmo assim, não se pode descartar o possível efeito de quebra do isolamento dos guardas e do início de transição de uma cultura paroquial para uma cultura súdita45. Esse “serviço litúrgico” mantinha estreitas relações com a administração pública, mais especificamente com o sistema judicial, devido à submissão à Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e à atuação como auxiliar no funcionamento do sistema judiciário, principalmente na composição das rondas estabelecidas pelos Juízes de Paz. Assim, essa guarda desempenhou os serviços de manutenção da ordem, como escoltas de recrutas ou de criminosos, auxílio na prisão dos foragidos da justiça e na “destruição de quilombos”46. Com base no que até aqui foi exposto, constata-se que em um país no qual a ordem escravocrata e o latifúndio ditavam as regras, o regimento e a prática de uma cidadania plena seriam dificultados de diversas maneiras. Observa-se, contudo, em 1833, o nascimento de um discurso jornalístico crítico dos estigmas raciais e comprometido com o valor máximo liberal: a igualdade de direitos e deveres. E, mais do que isso, defensor do reconhecimento da cidadania 44 Ver: PRUDENTE, E. A. de J. O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 83, p. 135-149, 1988. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119. Acesso em: 12 set. 2023. 45 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: tipos e percursos. Revista Brasileira de História, v. .9 n. 18, 1996. p. 348-349. 46 Sobre a “destruição” de quilombos e o papel dos Juízes de Paz no período, cf. AZEVEDO, Larissa Biato de. A “destruição” de um quilombo na Serra do Cubatão (1827-1828). Afro-Ásia, n. 64, p. 220–247, 2021. DOI: 10.9771/aa.v0i64.38499. Acesso em: 9 out. 2024, e GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119 40 de todos os homens “de cor” livres, em especial, no exercício de ocupação dos cargos públicos de relevância, como os altos postos da Guarda Nacional. Desde 1833, os pasquins negros começaram a ser veiculados como instrumentos e espaços privilegiados para a emissão de críticas e opiniões referentes aos direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros, como forma de denúncia do grau de exclusão e discriminação que atingia os “homens de cor” livres. Dessa forma, a seguir, nos deteremos na composição do cenário que serviu de base aos primeiros pasquins negros para questionarem, denunciarem e reivindicarem o lugar do “homem de cor” livre como cidadão, assegurado de direitos e com obrigações com a sociedade. 41 1.2 Quando a cor virou assunto público Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar47. A imprensa brasileira, que despontou, principalmente após 1821 – ano de revogação da legislação que até então proibira as atividades dessa natureza48 –, sofreu, inicialmente, censura por parte do governo português. Em 13 de maio de 1808, o monarca Dom João VI oficializou a Imprensa Régia no Rio de Janeiro, mediante o Ato Real49 e com subordinação à Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Em 10 de setembro do mesmo ano, o periódico Gazeta do Rio de Janeiro50 foi lançado, iniciando a circulação de jornais em solo brasileiro. Todavia, a censura já havia começado desde a Imprensa Régia, por intermédio dos nomeados crimes de imprensa, os quais previam punições par