THIAGO LEANDRO VIEIRA CAVALCANTE COLONIALISMO, TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul ASSIS 2013 THIAGO LEANDRO VIEIRA CAVALCANTE COLONIALISMO, TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientadora: Profª. Drª. Lúcia Helena Oliveira Silva. ASSIS 2013 Ficha catalográfica elaborada por Ivanir Martins de Souza – CRB1 – 2558 980.4171 C376c Cavalcante, Thiago Leandro Vieira. Colonialismo, território e territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul / Thiago Leandro Vieira Cavalcante. - - Assis, SP: UNESP, 2013. 470 f. Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis. 1. Índios Guarani/Kaiowa – história. 2. Terras Indígenas –Mato Grosso do Sul – demarcação. 3. Terra Indígena Panambi/Lagoa Rica–MS. 4. Terra Indígena Panambizinho-MS. 5. Fundação Nacional do Índio. I. Título. THIAGO LEANDRO VIEIRA CAVALCANTE COLONIALISMO, TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul Esta tese foi julgada e aprovada para obtenção do grau de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) no Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista. Assis, 16 de agosto de 2013. Banca examinadora: ______________________________________________________ Orientadora e presidente: Profª. Drª. Lúcia Helena Oliveira Silva (UNESP/Assis). ______________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira (UFPel/Pelotas). ______________________________________________________ Prof. Dr. Levi Marques Pereira (UFGD/Dourados). ______________________________________________________ Prof. Dr. Paulo José Brando Santilli (UNESP/Araraquara). ______________________________________________________ Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva (UNESP/Assis) Suplentes: ______________________________________________________ Prof. Dr. André Figueiredo Rodrigues (UNESP/Assis). ______________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Dari Ramos (UFGD/Dourados). ______________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Hilário Aguilera Urquiza (UFMS/Campo Grande) Dedico esta tese... Aos Guarani e Kaiowa, especialmente a Adélio Rodrigues, Amilton Lopes, José Barbosa de Almeida “Zezinho” e Nísio Gomes, lideranças que nos deixaram antes da regularização das terras indígenas guarani e kaiowa; Ao meu filho Pedro Antônio; A minha esposa Aline; Aos meus pais Gideão e Valdineide, a “Dona Leila” , e; A minha tia Valdinete, a “Tia Neta”. AGRADECIMENTOS Esta tese não poderia ser escrita se eu não tivesse contado com o apoio de muitas pessoas e instituições, por isso presto aqui os meus agradecimentos. Ao Programa de Pós-graduação em História da UNESP de Assis, por ter acolhido minha proposta de pesquisa e propiciado-me esta etapa formativa. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ, por ter me concedido a bolsa de estudos que garantiu o financiamento da pesquisa. À Diretoria da Proteção Territorial da Fundação Nacional do Índio, pelo acesso ao seu arquivo. À Procuradoria da República no Município de Dourados, do Ministério Público Federal, por ter me permitido o acesso aos seus arquivos e pela privilegiada interlocução. Ao Centro de Documentação Regional da UFGD, por ter me permitido o acesso a seus arquivos e biblioteca. Ao Centro de Documentação e Memória da UNESP, por ter me permitido o acesso ao seu acervo. À Seção de Pós-graduação da UNESP de Assis, que prestou todo o apoio necessário à conclusão deste trabalho. À minha esposa Aline Morales Moreti Cavalcante e ao meu filho Pedro Antônio Moreti Cavalcante, por terem me apoiado em todos os momentos, sem vocês eu não conseguiria. Aos meus pais Gideão Tavares Cavalcante e Valdineide Maria Vieira Cavalcante, minha irmã Isabelice Cavalcante e meus demais familiares, pelo apoio, confiança e por compreenderem minhas ausências. Ao Professor Dr. Paulo José Brando Santilli, por ter acolhido minha proposta de pesquisa, pela fundamental orientação durante os três primeiros anos desta jornada e pelas valiosas contribuições no Exame de Qualificação. À Professora Drª. Lúcia Helena Oliveira Silva, pela valiosa orientação e apoio na última etapa desta pesquisa. Aos Professores Dr. Jorge Eremites de Oliveira e Dr. Levi Marques Pereira pelas valiosas contribuições no Exame de Qualificação e pelo incentivo que me dão desde o mestrado. Aos mestres que contribuíram com minha formação por meio de suas disciplinas nesta etapa da pós-graduação: Prof. Dr. Milton Carlos Costa, Prof. Dr. Eduardo Romero Oliveira, Prof. Dr. Antonio Dari Ramos (UFGD) e Profª. Drª. Graciela Chamorro (UFGD). Ao Professor e Historiador kaiowa Me. Izaque João pela inestimável ajuda que me deu na primeira fase desta pesquisa e pela amizade. Aos demais amigos de dentro e de fora do mundo acadêmico que de alguma forma contribuíram com meu trabalho, dentre tantos: Leia Aquino Pedro, Anastácio Peralta, Teodora Souza, Ricardo Jorge, Júlio Aquino, Odilça Aquino, Jairo Barbosa, Tonico Benites, Otoniel Ricardo, Rosalino Ortiz, Líder Solano Lopes, Genito Gomes, Valmir Cabreira, Voninho Benites, Loretito Vilhalva, Oriel Benites, Adélio Rodrigues (in memoriam), Nísio Gomes (in memoriam), José Barbosa de Almeida (in memoriam), Amilton Lopes (in memoriam), Gláucio Knapp, Joseana Knapp, Cássio Knapp, Eudes Fernando Leite, Nauk Maria de Jesus, Protásio Paulo Langer, Aline Castilho Crespe, Célia Silvestre, Suzana Arakaki, Viviane Fachin, Neimar Machado de Souza, Nely Maciel, Renata Lourenço, Rosa Colman, Mathiel da Silva, Roseline Mezacasa, Juliana Mota, Lauriene Saraguza, Spensy Pimentel, Diógenes Cariaga, Rubem Thomas de Almeida, Bartomeu Melià, Adelina Pusineri, Fábio Mura, Alexandra Barbosa da Silva, Celso Aoki, Kátya Vietta, Antonio Brand (in memoriam), Marcio Augusto Freitas de Meira, Aluísio Ladeira Azanha, Giovana Acácia Tempesta, Leila Silvia Sotto-Maior, Cláudia Pereira Borges, Cláudia Marques Roldão, Juliana Vieira, Silvio Raimundo da Silva, Flávio Augusto Santana, Jackson Petinari dos Reis, Ruth Alves Gomes, Paulo Edson Furtado, Érika Yamada, Carolina Comandulli, Adriana Oliveira Rocha, Arthur Gonçalves Dias, Maria Aparecida Mendes de Oliveira, Diógenes Cariaga, Nádia Heusi, Odemar Leotti, Fabiano Coelho, Matias Belido, Zenaide Morales Moreti, Wilson José Moreti, Alexandre Motta, Lara Borgato Mota, Beatriz dos Santos Landa, Luiz Flávio Couto, Carlos Alberto Sampaio Barbosa, Áureo Busetto, Marco Antonio Delfino de Almeida, Marcos Homero Ferreira Lima, Carlos Barros Gonçalves, Ivanir Martins de Souza, Paulo Roberto Cimó de Queiroz, Zélia Maria de Souza Barros e Daiane Amaral. CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. COLONIALISMO, TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul. 2013. 470 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciência e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013. RESUMO Os Guarani e os Kaiowa são grupos indígenas que tradicionalmente habitam a região sul do estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Sua presença na região é anterior à chegada da colonização ibérica no continente (século XVI). Embora tenham tido contato com missionários jesuítas no século XVII, a pressão colonialista se intensificou sobre eles a partir do final do século XIX. Esta tese analisa, sob uma ótica histórica de longa duração, as continuidades e as rupturas observadas em sua territorialidade desde o século XVI até os dias atuais. Além disso, o foco da pesquisa se direciona para o histórico de esbulho territorial enfrentado pelos Guarani e Kaiowa após o término da guerra entre a Tríplice Aliança e Paraguai (1864-1870), bem como à luta destes indígenas para reaver parte de seu território tradicional. A atitude conservadora do Estado brasileiro permite defender a tese de que este é um Estado colonialista, articulado em torno de ideais de discriminação racial, para a negação dos direitos dos grupos indígenas. Nesse contexto, os Guarani e Kaiowa também são prejudicados pelas dificuldades encontradas no acesso à cidadania e pelos altos índices de violência. A análise contempla as histórias singulares de luta pela terra das comunidades das terras indígenas Panambi - Lagoa Rica e Panambizinho. O texto aborda os limites da metodologia adotada pelo governo brasileiro nas demarcações de terras indígenas realizadas entre 1983 e 2007. Por fim, discute-se a assinatura pela Fundação Nacional do Índio de um Compromisso de Ajustamento de Conduta junto ao Ministério Público Federal, no final de 2007, por meio do qual o órgão indigenista se comprometeu a identificar e delimitar as terras indígenas guarani e kaiowa que se encontravam sem nenhuma providência nesse sentido. Analisam-se as inovações metodológicas, assim como as dificuldades para a concretização destas, decorrentes não só da forte resistência apresentada pelo setor ruralista, mas também dos problemas estruturais do próprio órgão federal. Conclui-se que – embora o Brasil possua uma legislação indigenista bastante avançada, legislação essa que foi fortalecida com a Constituição Federal de 1988 e, desde então, pela atuação do Ministério Público Federal – há sérias dificuldades para que os indígenas vejam a efetivação de seus direitos territoriais. As fontes analisadas demonstram que os poderes constituídos no país estão dominados pela ideologia ruralista, o que impede de maneira contumaz que os Guarani e Kaiowa tenham seus direitos territoriais respeitados. Palavras-chave: Guarani; Kaiowa; Território; Territorialidade; Terra Indígena; Movimento Indígena; Colonialismo; Ministério Público Federal; Fundação Nacional do Índio; Indigenismo; Ruralismo. CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. COLONIALISM, TERRITORY AND TERRITORIALITY: the struggle for the Kaiowa and Guarani lands in Mato Grosso do Sul. 2013. 470 f. Thesis (Ph.D. in History) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013. ABSTRACT The Guarani and Kaiowa are indigenous groups who traditionally inhabit the southern state of Mato Grosso do Sul, Brazil. Their presence in the region predates the Iberian colonization on the continent (sixteenth century). Although they had contact with Jesuit missionaries in the seventeenth century the colonialist pressure intensified on the late nineteenth century. This thesis examines, from a long-term historical perspective, the continuities and ruptures observed in their territoriality from the sixteenth century to the present. Furthermore, the research focus is directed to the historical territorial dispossession faced by the Guarani and Kaiowa after the war between Paraguay and the Triple Alliance (1864-1870), as well as the struggle of this Indigenous to recover part of their traditional territory. The conservative attitude of the Brazilian state allows defending the thesis that this is a colonialist state, organized around racial discrimination ideals due the denial of their rights. In this context, the Guarani and Kaiowa are also hampered due to the high rates of violence and the difficulties in accessing the citizenship. The aim of the analysis was struggle for the indigenous lands Panambi - Lagoa Rica and Panambizinho. The paper discusses the limits of the methodology adopted by the Brazilian government in the demarcation of indigenous lands held between 1983 and 2007. Finally, we discuss the signing by the National Indian Foundation a Commitment Adjustment of Conduct by the Federal Public Ministry, in the late 2007, by which the Indian Agency committed to identify and demarcate the indigenous lands of Guarani and Kaiowa which yet were not taken any measure. We analyze the methodological innovation, as well as the difficulties in achieving these, arising not only from the strong resistance presented by the ruralists, but also the structural problems of the federal agency itself. We conclude that - although Brazil has a high advanced indigenous legislation strengthened by the Federal Constitution of 1988 and since then, the job of Federal Public Ministry - there are serious difficulties for the indigenous people to see the realization of their territorial rights. The sources analyzed show that the powers constituted in the country are dominated by the ruralists’ ideology, which, stubbornly prevents that the Guarani and Kaiowa have their land rights respected. Keywords: Guarani; Kaiowa; Territory, Territoriality, Indigenous, Indigenous Movement; Colonialism; Federal Public Ministry, the National Indian Foundation; Ruralism. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul...............................................................103 FIGURA 2 - Lotes da Colônia Nacional Agrícola de Dourados – CAND...................................161 FIGURA 3 - Terras Indígenas reconhecidas na região de Ka’aguirusu.......................................162 FIGURA 4 - CAND em sobreposição aos à atual divisão política da região...............................165 FIGURA 5 - CAND – no destaque lotes 08 e 10 da quadra 21 – Panambizinho.........................194 FIGURA 6 - Planta de demarcação de Terra Indígena Panambizinho.........................................210 FIGURA 7 - Planta de delimitação da Terra Indígena Panambi - Lagoa Rica.............................265 FIGURA 8 - Ka’aguirusu.............................................................................................................275 FIGURA 9 - Planta de demarcação da Terra Indígena Sucuriy...................................................280 FIGURA 10 - Tekoha Guasu de Mato Grosso do Sul, segundo MURA (2006)..........................295 FIGURA 11 - Mapa das demarcações publicado no “Correio do Estado” em 28/07/2008.........356 FIGURA 12 - Mapa das demarcações publicado na revista “Veja” em 04/11/2012....................357 FIGURA 13 - Charge publicada em “Diário MS” de 21/08/2008, p. 2.......................................361 FIGURA 14 - Charge publicada em “Diário MS” de 22/04/2013, p. 2.......................................361 FIGURA 15 - Revista “Veja” de 13/6/2012, p. 116-117..............................................................364 LISTA DE TABELAS TABELA 1 - Estimativa da população guarani e kaiowa em Mato Grosso do Sul por tipo de assentamento em que vive..............................................................................................................88 TABELA 2 - Reservas Indígenas demarcadas criadas entre 1915 e 1928.....................................89 TABELA 3 - Projeção da população guarani e kaiowa em reservas entre 1991 e 2031................92 TABELA 4 - Projeção da quantidade de hectares por família em reservas entre 1991 e 2031................................................................................................................................................92 TABELA 5 - Situação fundiárias das terras indígenas guarani e kaiowa em Mato Grosso do Sul...................................................................................................................................................95 TABELA 6 - Terras Indígenas reconhecidas após 1980..............................................................100 TABELA 7 - Acampamentos guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul – inclusive áreas em estudo......................................................................................................................................109 TABELA 8 - População autodeclarada indígena vivendo na área urbana...................................112 TABELA 9 - Declarações de imóveis rurais e outros bens relacionados ao agronegócio apresentados à Justiça Eleitoral por detentores de cargo eletivo no momento da candidatura....313 TABELA 10 - Declarações de imóveis rurais, outros bens rurais e relacionados ao agronegócio apresentados no momento da candidatura à Justiça Eleitoral por prefeitos de municípios indicados nas portarias (788, 789, 790, 791, 792 e 793 de 2008) de constituição de Grupos Técnicos de identificação e delimitação das terras indígenas guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul................................................................................................................................319 TABELA 11 - Manchetes sobre demarcação de terras em MS....................................................359 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AGU – Advocacia Geral da União ASSOMASUL – Associação dos Municípios de Mato Grosso do Sul BSB – Brasília CAC – Compromisso de Ajustamento de Conduta CAI/ABA – Comissão de Assuntos Indígenas / Associação Brasileira de Antropologia CAND – Colônia Agrícola Nacional de Dourados CF – Constituição Federal CGID – Coordenação Geral de Identificação e Delimitação / Fundação Nacional do Índio CIMI – Conselho Indigenista Missionário CIR – Conselho Indígena de Roraima CNA – Confederação Nacional da Agricultura CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNJ – Conselho Nacional de Justiça CONJUR-MJ – Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça CP – Código Penal CPC – Código de Processo Civil CTL – Coordenação Técnica Local / Fundação Nacional do Índio DAF – Diretoria de Assuntos Fundiários / Fundação Nacional do Índio DAS – Cargo de Direção e Assessoramento Superior DEID – Departamento de Identificação e Delimitação / Fundação Nacional do Índio DEM – Democratas DGO – Departamento Geral de Operações / Fundação Nacional do Índio DGPC – Departamento Geral de Planejamento Comunitário / Fundação Nacional do Índio EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária FAMASUL – Federação da Agricultura e Pecuário de Mato Grosso do Sul FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde GT – Grupo Técnico Ha - Hectare IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade IDATERRA – Instituto de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPL – Inquérito Policial I. R. 5 – 5ª Inspetoria Regional / Serviço de Proteção ao Índio ISA – Instituto Socioambiental MEMO – Memorando MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MJ – Ministério da Justiça MPF – Ministério Público Federal MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra NEPO – Núcleo de Estudos de População / Universidade Estadual de Campinas NEPPI – Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas / Universidade Católica Dom Bosco OIT – Organização Internacional do Trabalho ONG – Organização Não Governamental PDT – Partido Democrático Trabalhista PF – Polícia Federal PFL – Partido da Frente Liberal PI – Posto Indígena PIB – Produto Interno Bruto PKN – Projeto Kaiowa-Ñandeva PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil PP – Partido Progressista PPB – Partido Pacifista Brasileiro PPS – Partido Popular Socialista PPTAL – Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal PSB – Partido Socialista Brasileiro PSBD – Partido da Social Democracia Brasileira PSD – Partido Social Democrático PSL – Partido Social Liberal PSOL – Partido Socialismo e Liberdade PR – Partido da República PRES – Presidência / Fundação Nacional do Índio PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PT do B – Partido Trabalhista do Brasil PV – Partido Verde RCID – Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena SIASI – Sistema de Informações sobre Atenção à Saúde Indígena SPI – Serviço de Proteção ao Índio SPU – Serviço de Patrimônio da União SPU – Secretaria do Patrimônio da União SRI – Secretaria de Relações Institucionais STF – Supremo Tribunal Federal TAC – Termo de Ajustamento de Conduta TI – Terra Indígena UNIGRAN – Centro Universitário da Grande Dourados LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 - população guarani e kaiowa por Reserva Indígena................................................90 GRÁFICO 2 - hectares por famílias em Reservas Indígenas.........................................................91 GRÁFICO 3 - população por TI identificada e delimitada após 1980.........................................102 GRÁFICO 4 - hectares por famílias em terras indígenas identificadas e delimitadas após 1980..............................................................................................................................................102 SUMÁRIO RESUMO..........................................................................................................................................7 ABSTRACT.....................................................................................................................................8 LISTA DE FIGURAS......................................................................................................................9 LISTA DE TABELAS....................................................................................................................10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS....................................................................................11 LISTA DE GRÁFICOS..................................................................................................................15 INTRODUÇÃO..............................................................................................................................18 1. CONCEITOS E VARIANTES HISTÓRICAS NOS MECANISMOS DE RECONHECIMENTO OFICIAL DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS...................31 1.1 Território e territorialidade como objetos de estudo..........................................................31 1.1.1 Território...............................................................................................................................31 1.1.2 Territorialidade.....................................................................................................................34 1.1.3 Da desterritorialização à multiterritorialidade....................................................................35 1.1.4 Territorialização e processos de territorialização................................................................41 1.2 Terras indígenas.....................................................................................................................43 1.2.1 A ocupação tradicional indígena..........................................................................................51 2. A TERRITORIALIDADE GUARANI E KAIOWA FRENTE AO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO NO SUL DE MATO GROSSO DO SUL.........................................................58 2.1 A antiga territorialidade guarani e kaiowa..........................................................................58 2.1.1 A Te’ýi ou família extensa..................................................................................................58 2.1.2 O Tekoha.............................................................................................................................59 2.1.3 O Guára..............................................................................................................................61 2.2 Os antigos assentamentos guarani .......................................................................................62 2.3 O tekoha como categoria socioterritorial guarani e kaiowa...............................................75 2.4 A atual conformação territorial guarani e kaiowa em Mato Grosso do Sul.....................84 2.4.1 As reservas indígenas demarcadas entre 1915 e 1928.......................................................84 2.4.2 As terras indígenas demarcada após 1980.........................................................................94 2.4.3 Os acampamentos indígenas............................................................................................106 2.4.4 Índios urbanos ou desaldeados........................................................................................112 2.4.5 A territorialidade dos Guarani e Kaiowa atuais..............................................................116 2.5 Reflexos político-sociais de uma política indigenista da territorialização precária.......133 2.5.1 Os Guarani transfronteiriços: a realidade de quem existe sem existir...............................133 2.5.2 “Muito cacique para pouca terra”: luta pela terra como expressão da organização política tradicional.......................................................................................................................145 3. PANAMBIZINHO E PANAMBI – LAGOA RICA: DA LUTA PELA PERMANÊNCIA À LUTA PELA DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS...................................................158 3.1 “Lugar de índio é na reserva”.............................................................................................158 3.2 Panambi e Panambizinho: “lugar de índio não é na reserva”.........................................160 3.3 Panambizinho: de dois lotes a uma terra indígena............................................................189 3.4 Panambi – Lagoa Rica: luta que continua.........................................................................239 4. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS GUARANI E KAIOWA EM MATO GROSSO DO SUL: O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA DE 2007 E SEUS DESDOBRAMENTOS.....................................................................................................266 4.1 Precedentes: a demarcação de terras indígenas de 1983 a 2006......................................266 4.2 O Compromisso de Ajustamento de Conduta...................................................................286 4.3 A construção do CAC de 2007.............................................................................................287 4.4 Abordagem em escala territorial da questão das terras indígenas kaiowa e guarani....292 4.5 A composição dos grupos técnicos......................................................................................298 4.6 A oposição contra as portarias da FUNAI e o desenvolvimento dos trabalhos..............303 4.6.1 Ruralismo e a colonialidade do poder................................................................................303 4.6.2 Embates políticos: “Mato Grosso do Sul não será terra de índio”....................................326 4.6.3 A mídia e a construção de uma opinião pública contrária aos direitos indígenas.............349 4.6.4 O discurso da produção: tentativa de monopolização do uso legítimo da terra................362 4.6.5 A judicialização dos estudos................................................................................................365 4.6.6 Intimidação contra os membros de grupos técnicos...........................................................370 4.7 A coordenação dos Grupos Técnicos pela FUNAI............................................................373 4.8 Discussões sobre indenizações pela terra nua....................................................................381 4.9 A atuação política do movimento indígena........................................................................389 CONCLUSÃO..............................................................................................................................400 REFERÊNCIAS...........................................................................................................................405 ANEXOS......................................................................................................................................439 18 INTRODUÇÃO As pesquisas que resultaram neste trabalho foram iniciadas em 2009, mas, a bem da verdade sua história remonta a 2006, ano em que cheguei à cidade de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul. Vindo da região norte do Paraná, onde nasci, cresci e realizei minha formação inicial, dirigi-me para Mato Grosso do Sul no intuito de cursar o mestrado em História na Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. O tema da minha dissertação de mestrado eram as apropriações e ressignificações sobre o mito da presença do apóstolo Tomé entre os índios da América antes do início da colonização europeia (CAVALCANTE, 2008). Tratava-se, portanto, de um tema fundamentalmente ligado à história colonial. Entretanto, naquela instituição tive contato com muitos colegas e professores que pesquisavam a história dos Guarani e Kaiowa, com abordagem essencialmente contemporânea, embora também remonte ao período colonial. Foi também em Dourados que tive os primeiros contatos com estes indígenas, alguns deles meus colegas na UFGD, outros meus alunos, na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS, onde lecionei entre 2009 e 2010. Finalmente, minha relação com eles deixava de ser uma relação com fontes históricas e passava a uma relação de carne, osso e sangue. Isso mudou completamente minha perspectiva de pesquisador, afinal não há como permanecer o mesmo quando aqueles que antes eram seus objetos de estudo se tornam seus interlocutores, manifestando seus anseios, angústias, tristezas, alegrias e belezas. Diante disso, ao pensar em um projeto de pesquisa para o curso de doutorado, resolvi realizar um trabalho interdisciplinar que envolveria principalmente a história, a antropologia e a arqueologia. O objetivo inicial era pesquisar, sob uma perspectiva histórica, os sistemas de assentamento kaiowa. Seria, portanto, uma pesquisa sobre estratégias de ocupação e uso do espaço territorial a partir das fontes históricas e das atuais circunstâncias de territorialização desse grupo, um trabalho limitado a algumas terras indígenas. Foi sob essa perspectiva que iniciei os trabalhos de campo, mas logo percebi que os anseios de meus interlocutores estavam concentrados na discussão sobre a luta pela retomada de parte de seu território tradicional, tema ainda hoje latente. Além disso, em meio ao 19 desenvolvimento desta pesquisa, a partir do ano de 2011, passei a integrar o quadro funcional da Fundação Nacional do Índio, onde permaneci até junho de 2013. Isso não só mudou a minha perspectiva de olhar para o tema, como mudou a relação estabelecida por mim com os indígenas. Sob tais influências, o trabalho que ora apresento não se afasta completamente dos objetivos iniciais, pois permanece a discussão sobre a territorialidade guarani e kaiowa, mas avança para os temas do colonialismo, do esbulho territorial, da luta indígena e da política indigenista do Estado brasileiro. É uma história sobre como o Estado colonialista em associação com particulares subtraiu as terras dos Guarani e Kaiowa, sobre como estes resistiram a esse processo e sobre a forma como as forças colonialistas / ruralistas atuam na política nacional para manter a dominação colonialista. Tudo isso, apesar de o próprio Estado brasileiro já ter reconhecido em vários momentos que os Guarani e Kaiowa foram espoliados ao longo de um processo histórico que remonta ao final do século XIX e segue ativo até os instantes atuais. A principal perspectiva metodológica que adotei neste trabalho foi a da etno-história enquanto método interdisciplinar de pesquisas (CAVALCANTE, 2011), o qual, neste caso, consistiu principalmente no diálogo entre a história e a antropologia. Nesse sentido, as fontes utilizadas para a produção desta análise são de naturezas diversas, com destaque para: a) as oficiais, dentre as quais estão: o arquivo do Serviço de Proteção ao Índio - SPI, processos administrativos da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, procedimentos e inquéritos civis do Ministério Público Federal – MPF e peças de processos judiciais; b) fontes orais; c) fontes jornalísticas; d) pronunciamentos de autoridades; e) relatos de viajantes e missionários; f) fontes etnológicas; e, g) fontes etnográficas. Estas últimas são fundamentais para a pesquisa com populações indígenas. Isso porque as fontes orais, produzidas com a gravação de entrevistas, nem sempre são adequadas para a captação das principais impressões transmitidas pelos interlocutores em seu dia a dia, até porque, num ambiente hostil como o de Mato Grosso do Sul, sempre paira certa desconfiança sobre os reais objetivos de alguém que se propõe a gravar falas. Nesse sentido, dou status de fonte histórica às observações etnográficas por mim mesmo produzidas por meio da chamada observação participante, sintetizada por Roberto Cardoso de Oliveira nos procedimentos de olhar, ouvir e escrever (1998). Utilizo-me também de dados etnográficos registrados e publicados por outros autores, os quais cito ao longo do texto. 20 Temporalmente, no primeiro capítulo, o trabalho abarca desde o século XVI até os dias atuais. Este tão longo período, atualmente pouco comum nos estudos históricos, deve-se ao fato de que no referido capítulo apresento um estudo de longa duração que procura caracterizar as mudanças e as continuidades no que diz respeito à territorialidade guarani e kaiowa. Nesse sentido, a diversidade temporal das fontes analisadas foi fundamental para a concretização dos objetivos da análise. No mais, a pesquisa se circunscreve entre o final da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1870) até 2010 (final do mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva), no que se refere à análise mais densa sobre a política indigenista brasileira, avançando, no entanto, em alguns momentos até o período atual. De fato, o final da guerra marca o início do processo mais intenso de colonização da fronteira do Brasil com o Paraguai, especialmente no que diz respeito ao espaço do atual estado de Mato Grosso do Sul, onde está o território de ocupação tradicional guarani e kaiowa. O trabalho segue até os dias atuais, momento em que as intensas discussões políticas travadas em âmbito local, regional e nacional colocam sob concreta ameaça os direitos territoriais indígenas reafirmados pela Constituição Federal de 1988. Os Guarani e Kaiowa De acordo com a perspectiva do antropólogo Fredrik Barth, sabe-se que os grupos étnicos estão mais ligados por relações sociais do que por uniformidades culturais. Sendo assim, as unidades culturais, apesar de não perderem sua relevância na manutenção das identidades étnicas, são vistas, principalmente, como consequência delas e não condição para sua existência. Embora as fronteiras étnicas sejam determinadas pela permanência ou pelo rompimento de específicos valores culturais, são apenas os membros do grupo étnico que, por meio de sua lógica interna, determinam quais são os elementos que circunscrevem a fronteira. Logicamente que tais elementos variam de acordo com inúmeras circunstâncias. A utilização de uma língua comum como a Guarani, bem como a partilha de valores culturais comuns, não são per si suficientes para a determinação de identidades étnicas (BARTH, 2000). O Guarani genérico talvez nunca tenha existido, o jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, no século XVII, já sinalizava nesse sentido. Tratava-se muito mais de uma classificação linguística do que de uma parcialidade ou, como se diria hoje, de um grupo étnico (MONTOYA, 1985, P. 185). Lembro ainda que, segundo Barth, o principal critério de determinação da etnicidade é a 21 autodeterminação individual e o reconhecimento do grupo de tal indivíduo como seu membro. Sendo assim, percebe-se que ainda hoje no Brasil há pelo menos três grupos éticos que foram e continuam genericamente sendo chamados de Guarani, são eles os Kaiowa, os Guarani Ñandeva e os Mbya. Se o que configura uma etnia é sua autodeterminação, nada mais correto do que respeitar a sua autoidentificação ou etnômio, que é, por assim dizer, o verdadeiro nome da etnia. Em Mato Grosso do Sul vivem os Kaiowa e os Guarani Ñandeva. É muito comum ouvir pessoas de vários meios sociais, incluindo a imprensa, acadêmicos e governos, referirem-se a estes grupos como sendo Guarani-Kaiowa, conotando a ideia de que os Guarani Ñandeva e os Kaiowa são um mesmo grupo étnico. No entanto, somente os Ñandeva é que se autodenominam como Guarani. De fato, o que se tem são dois grupos distintos que frequentemente, a contragosto, são tratados como se fossem um. A única exceção para isso está em seu uso político. Quando é politicamente interessante, como expressão de uma luta comum, as lideranças utilizam o designativo Guarani Kaiowa. As generalizações em relação aos Guarani, na prática, acabaram por produzir um verdadeiro Frankenstein, fazendo com que algumas explicações históricas, etnológicas e arqueológicas tenham ficado muito afastadas de uma pretensa realidade. Essa generalização, já superada pela maioria dos círculos acadêmicos, é oriunda da antiga, mas inverídica, correlação entre raças – línguas – culturas. Neste trabalho, os dois grupos étnicos – Guarani Ñandeva e Kaiowa – são tratados e compreendidos como grupos distintos, mas participes de uma mesma história e detentores de padrões culturais e de territorialidades bastante semelhantes a ponto de, aqui, onde o foco não está nos detalhes diferenciadores, ser possível, na maioria das vezes, considerá-los em conjunto. Como os Guarani Ñandeva de Mato Grosso do Sul também, e com mais frequência, se autoidentificam apenas como Guarani, é assim que me refiro a eles ao longo do texto. Contexto histórico do processo colonialista de esbulho territorial dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul Pretendo aqui apresentar de maneira sintética alguns dos principais momentos da colonização da região que abrange o território tradicional guarani e kaiowa no atual Mato Grosso do Sul. O assunto não será tratado à exaustão, pois o objetivo é apenas o de introduzir às discussões que serão apresentadas ao longo dos capítulos da tese. Os trabalhos de Antonio Brand 22 (1993, 1997 e 2004) e de Melià et alli (2008) são bem completos no que diz respeito ao tema. O primeiro autor se dedicou com pioneirismo à história guarani e kaiowa em Mato Grosso do Sul, já o segundo que fez um histórico dos Paĩ Taviterã (como são chamados os Kaiowa no Paraguai) que remonta ao período colonial. O território tradicional guarani e kaiowa no Brasil é bastante amplo, localiza-se pelo menos entre toda a região do Rio Apa, Serra de Maracaju, dos rios Brilhante, Ivinhema, Paraná, Iguatemi e a da fronteira com o Paraguai, mas já há referências de Kaiowa localizados em outras regiões, como na bacia do Rio Miranda, por exemplo. A partir da década de 1880, com o final da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870), surgiu no governo brasileiro o interesse de povoar a região com não índios. A população indígena foi desconsiderada pelo poder público que classificou a região como espaço vazio (BRAND, 2004). Nesse período, instalou-se, para explorar os ervais1 da região, a Companhia Mate Laranjeira. A empresa foi fundada por Tomás Laranjeira que foi o aprovisionador da comissão de limites que atuou na região sul de Mato Grosso do Sul após o término da guerra. Naquele momento, Tomás percebeu o grande potencial dos ervais da região e por meio de diversas associações com políticos locais e com o capital estrangeiro manteve durante vários anos um grande império na região (1882-1943). Em seu ápice, a Mate Laranjeira teve o maior arrendamento de terras públicas do período republicano. Com o decreto nº 520 de 15 de julho de 1895, seus domínios alcançaram mais de 5.000.000 de hectares. Sua hegemonia só começou a diminuir durante o governo do presidente Getúlio Vargas (1930-1945), que munido de ideais nacionalistas quebrou o monopólio da empresa (ARRUDA, 1997, p. 218; COLMAN, 2007, p. 28-32).2 Em Mato Grosso do Sul, esta Companhia concentrou suas atividades sobre o território de ocupação tradicional guarani e kaiowa. Seu monopólio, por um lado afastou outros ocupantes não indígenas, retardando em algumas regiões o processo de esbulho do território guarani e kaiowa, mas por outro, submeteu uma grande quantidade de indígenas a trabalhos extremamente penosos 1 Erva Mate – Ilex paraguariensis – planta arbórea muito apreciada na preparação de chimarrão (feito com água quente), tereré (feito com água fria) ou chá. 2 Ver mais sobre a Mate Laranjeira em: (FERREIRA, 2007; BRAND, 1993; QUEIROZ, 2010; QUEIROZ, 2012). 23 e a intensos deslocamentos em face do trabalho, além de um regime laboral que hoje seria classificado como escravidão por dívidas (BRAND, 1993, p. 47-55). O alcance do papel da Cia Mate Laranjeira nos processos de esbulho territorial dos Guarani e Kaiowa, a meu ver, carece de aprofundamento no que diz respeito aos estudos históricos. Há, todavia, indicativos de que a economia do mate teve papel fundamental na saída compulsória dos Guarani de suas terras tradicionais, principalmente na região do Rio Iguatemi, onde hoje está localizada a Terra Indígena Yvy Katu e outras estão em estudo de identificação e delimitação (BARROS, 2011). Com o advento da Lei de Terras - Lei 601/1850, a província de Mato Grosso, e principalmente o estado de Mato Grosso após a proclamação da República, passaram a ter autonomia para titular terras devolutas. As terras indígenas foram ilegalmente consideradas como devolutas e tituladas a inúmeros terceiros (PACHECO, 2004). Entre o final do século XIX e o início do XX, as frentes agropastoris começaram a dar sinais de avanço na região. Nesse período se instalaram as primeiras fazendas em áreas de campos entre os atuais municípios de Amambai, Ponta Porã e Bela Vista. A titulação das terras possibilitou que os novos proprietários paulatinamente, após utilizarem a mão de obra indígena para o desmatamento e para a limpeza das áreas, realizassem, muitas vezes com o apoio do Estado, a expulsão dos indígenas (BRAND, 2004, p. 139). No início do século XX, entre 1915 e 1928, o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, órgão indigenista oficial, criou oito pequenas reservas indígenas destinadas aos Kaiowa e Guarani. A área máxima prevista para elas era de 3.600 hectares, no entanto, na maioria dos casos a área demarcada foi ainda menor (BRAND, 1993 e 1997). Inserida na política indigenista assimilacionista do Estado brasileiro, a criação das reservas tinha como objetivo declarado o de garantir aos índios um espaço para que vivessem até que o seu processo de assimilação à sociedade nacional fosse concluído – considerava-se que a condição indígena era transitória e que eles rapidamente seriam assimilados pela sociedade envolvente. Na prática, as reservas funcionaram e, em boa medida ainda funcionam, como espaços de depósitos de indígenas e reservas de mão de obra barata. As famílias eram levadas para ali, liberando assim suas terras tradicionais para a colonização. Lá permaneciam sob o julgo tutelar do Estado e à mercê de desvantajosos contratos de trabalho mediados pelos funcionários do SPI com ruralistas da região. 24 Na década de 1940, o governo federal implantou na região do atual município de Dourados, a Colônia Nacional Agrícola de Dourados - CAND. Um projeto de colonização que visava dar pequenos lotes de terra para colonos oriundos de diversas partes do país. O grande problema é que as terras escolhidas já eram habitadas pelos Guarani e Kaiowa, gerando para estes, como se verá no terceiro capítulo, danos irreparáveis. Como o gradual avanço das frentes colonizadoras entre as décadas de 1940 e 1990, paulatinamente, a maioria das famílias extensas guarani e kaiowa foi expulsa de suas terras de ocupação tradicional, sendo obrigadas a viver nas superpopulosas reservas indígenas ou em outros precários assentamentos genericamente denominados acampamentos. Neste mesmo período, a vegetação nativa da região foi paulatinamente destruída, dando lugar a lavouras e a pastagens cultivadas. Antonio Brand, em grande trabalho de levantamento histórico, listou mais de 80 antigas áreas de ocupação tradicional indígena que foram esbulhadas e destruídas por iniciativas colonialistas, durante o século XX, no território tradicional kaiowa e guarani (BRAND, 1997). A partir do final da década de 1970, mas principalmente dos anos 1980 em diante, os Guarani e Kaiowa se mobilizaram para obter do Estado o reconhecimento e a demarcação de parte do seu território tradicional como terras indígenas. Os ruralistas, por sua fez, se mobilizaram para manter o status quo. É nesse contexto de disputas fundiárias que se inserem as discussões aqui apresentadas. Estado colonialista Uma das principais noções que norteiam a análise contida na tese é a de colonialismo interno, especialmente conforme a definição apresentada pelo sociólogo mexicano Pablo González Casanova (2006). Segundo este autor, o colonialismo interno se dá amplamente no terreno da economia, da política e da vida sociocultural de grupos colonizados no interior de Estados-nação (CASANOVA, 2006, p. 395). Em suas próprias palavras: A definição do colonialismo interno está originalmente ligada a fenômenos de conquista, em que populações nativas não são exterminadas e formam parte, primeiro do Estado colonizador e depois do Estado que adquire uma independência formal, ou que inicia um processo de libertação, de transição para o socialismo, ou de recolonização e regresso ao capitalismo neoliberal. Os povos, minorias ou nações colonizadas pelo Estado-nação sofrem condições semelhantes às que os caracterizam no colonialismo e no neocolonialismo em nível internacional: 1) habitam em um território sem governo próprio; 2) 25 encontram-se em situação de desigualdade frente às elites das etnias dominantes e das classes que as integram; 3) sua administração e responsabilidade jurídico- política concernem às etnias dominantes, às burguesias e oligarquias do governo central ou aos aliados e subordinados do mesmo; 4) seus habitantes não participam dos mais altos cargos políticos e militares do governos central, salvo em condição de ‘assimilados’; 5) os direitos de seus habitantes, sua situação econômica, política social e cultural são regulados e impostos pelo governo central; 6) em geral os colonizados no interior de um Estado-nação pertencem a uma ‘raça’ distinta da que domina o governo nacional e que é considerada ‘inferior’, ou ao fim e ao cabo convertida em um símbolo ‘libertador’ que forma parte da demagogia estatal; 7) a maioria dos colonizados pertence a uma cultura distinta e não fala a língua ‘nacional’. Se, como afirmara Marx, ‘um país se enriquece à custa de outro país’ igual a ‘uma classe se enriquece à custa de outra classe’, em muitos Estados-nação que provêm da conquista de territórios, chamem-se Impérios ou Repúblicas, a essas formas de enriquecimento juntam-se as do colonialismo interno (Marx, 1963: 155, Tomo I) (CASANOVA, 2006, p. 96). A noção de colonialismo interno nasceu entre teóricos do marxismo, mas foi rejeitada por muitas de suas correntes. Os mais ortodoxos preferiram pensar suas ações planejadas exclusivamente a partir do paradigma da luta de classe, sublimando-a em detrimento das lutas étnicas. Há, todavia, teóricos importantes, como Casanova, que defendem a noção de colonialismo interno como chave de análise teórica e também como instrumento de luta política para os grupos étnicos subjugados no interior de Estados nacionais. Para ele, os Estados de origem colonial, como é o caso do Brasil, e suas classes dominantes mantêm e reproduzem as relações coloniais com as minorias e com as etnias colonizadas localizadas no interior de suas fronteiras políticas. Esse processo se repete de maneira contumaz nos Estados-nação independentes, variando apenas em decorrência da correlação de forças dos habitantes originais colonizados e dos colonizadores que conseguiram a independência (CASANOVA, 2006, p. 402). A noção de colonialismo interno, todavia, não pode ser tomada como uma categoria isolada de análise. A luta de grupos étnicos precisa ser pensada também numa escala mais ampla, pois no interior de um Estado-nação estes grupos enfrentam o colonialismo interno que não está dissociado do colonialismo internacional, intranacional e transnacional, já que estes se inter- relacionam todo o tempo (CASANOVA, 2006, p. 413). Partindo dessa noção, a análise precisa pensar nas formas com que as etnias colonizadas reagem a esse processo, como elas se articulam para a resistência e para a construção de autonomias dentro do Estado-nação. Nota-se que as etnias originárias são objeto de exploração e 26 de dominação, mas também importantes sujeitos de resistência e libertação (CASANOVA, 2006, p. 395-402). A adoção dessa noção não tem como objetivo dar ao trabalho uma identidade teórica exclusivamente de raiz marxista, mas sim enfatizar a situação histórica vivenciada pelos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul que se enquadra de maneira muito satisfatória na retro citada definição de Casanova. O fenômeno colonial na América atingiu os povos indígenas de maneira desigual e em momentos históricos diferentes. Os povos do litoral inevitavelmente foram as primeiras vítimas, já os povos das regiões ao centro do continente sentiram os efeitos diretos da colonização mais tardiamente. No caso dos Guarani e Kaiowa, que vivem no atual Mato Grosso do Sul, pode-se dizer que os primeiros contatos com a colonização se deram no século XVII com as tentativas de civilização a partir das reduções jesuíticas implantadas na região do Itatin (atual norte de Mato Grosso do Sul) e no Guairá (atual Paraná). Todavia, foi no final do século XIX e principalmente ao longo do século XX que o processo colonial adquiriu dimensões que inviabilizaram a manutenção da autonomia por parte destes grupos étnicos. Atualmente, os Guarani e Kaiowa são grupos que habitam minúsculas frações de seu território tradicional localizado no sul de Mato Grosso do Sul, sem uma forma própria de governo e sem o uso exclusivo do território, estão em extrema desigualdade em relação às elites dominantes nacionais. Embora a lei vigente seja parcialmente contrária a isso, estão submetidos à administração e à responsabilidade jurídica e política do Estado, seus membros não participam de altos cargos políticos e, no poder local, quando participam, estão sub-representados. Os direitos de seus membros, sua vida econômica, política, social e cultural são regulados e, às vezes, impostos pelo governo central, pertencem a um grupo etnicamente diferenciado em relação aos que estão no poder estatal e têm cultura diferenciada em relação aos dominantes, sendo que a maioria de seus membros não domina a língua colonial. Ou seja, enquadram-se de maneira muito satisfatória nas características dos povos colonizados pelo Estado-nação (CASANOVA, 2006, p. 396). O sociólogo peruano Aníbal Quijano, desenvolveu a noção de colonialidade do poder. Tal noção está relacionada à globalização em curso, que foi iniciada com a constituição da América. Uma das principais características deste, que ele chama de padrão de poder atual, é seu 27 viés racial. A ideia de raça é vista como um padrão mental eurocêntrico que expressa a experiência básica de dominação colonial (QUIJANO, 2005). O autor defende a ideia de que os Estados-nacionais se constituíram com base em alguma democratização do poder, ou na eliminação dos diferentes, pois só há nacionalidade se houver um nível mínimo de homogeneização de interesses. No Brasil, assim como em alguns outros países da América Latina, essa homogeneização nunca foi alcançada. Há, portanto, que se falar em Estados independentes com sociedades coloniais – tema ao qual retornarei no último capítulo (QUIJANO, 2005). Para Quijano (2005), a colonialidade do poder é cunhada no colonialismo – entendido como a autoridade ou domínio de um país sobre o território de outro – mas subsiste, é mais duradoura e estável do que ele. Neste trabalho aproprio-me das noções de colonialismo interno e de colonialidade do poder para categorizar o Estado brasileiro como um Estado colonialista. Aqui pensado como tal em suas relações com os povos indígenas em geral, mas em especial na relação com os Guarani e Kaiowa. A manifestação desse colonialismo não se dá apenas no que diz respeito à questão fundiária, mas ela é sua face mais evidente. Primeiramente o Estado participou ativamente do processo de esbulho do território guarani e kaiowa e hoje se nega de maneira contumaz a agir de modo a efetivar os direitos territoriais indígenas garantidos pela Constituição Federal de 1988. Refiro-me ao Estado-brasileiro como colonialista e não aos governos ou poderes em especial, pois o colonialismo em questão é posto em prática não apenas pelo Poder Executivo Federal, mas perpassa todo o conjunto de aparelhos estatais, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, municipais, estaduais e federais. É claro que há setores do Estado que não mantêm atitudes colonialistas. O Estado não é monolítico, mas a correlação de forças entre colonialistas e não colonialistas é absolutamente desproporcional em favor dos primeiros. Não é, portanto, exagero algum classificar o Estado brasileiro como um Estado colonialista. Organização da tese O texto foi divido em quatro capítulos. O primeiro capítulo intitulado “Conceitos e variantes históricas nos mecanismos de reconhecimento oficial dos direitos territoriais indígenas” foi destinado a discussões mais teóricas sobre os conceitos fundamentais que são empregados nos capítulos seguintes. Discuto aí as 28 noções de território, territorialidade, desterritorialização, territorialização, territorialização precária, multiterritorialidade e de processo de territorialização à luz de autores oriundos da antropologia e da geografia. Há também uma discussão sobre a conceituação e a definição de terras indígenas, assunto este marcado por interpretações equivocadas e conceitualmente viciadas, que, por vezes, contribuem para o aumento do preconceito contra os indígenas. O segundo capítulo intitulado “A territorialidade guarani e kaiowa frente ao processo de colonização no sul de Mato Grosso do Sul” dá lugar a uma discussão histórica de longa duração sobre os sistemas de assentamento e a territorialidade Guarani e Kaiowa desde o século XVI até o período contemporâneo. Neste capítulo, também discuto a ocupação das atuais terras indígenas reconhecidas como guarani e kaiowa, ficando evidente a superpopulação e, na maioria dos casos, a impossibilidade de atendimento aos preceitos previstos no artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Por fim, discuto as implicações político-sociais da política indigenista de territorialização precária, principalmente com relação aos Guarani transfronteiriços que enfrentam diversas dificuldades para acesso à cidadania na região de fronteira entre o Brasil e o Paraguai. No terceiro capítulo, intitulado “Panambizinho e Panambi - Lagoa Rica: da luta pela permanência à luta pela demarcação das terras indígenas”, discuto os casos concretos de duas terras indígenas diretamente afetadas pela implantação da Colônia Nacional Agrícola de Dourados - CAND. A luta dos indígenas, a reação das forças contrárias e a atuação do Ministério Público Federal têm destaque na análise. A minúcia com que descrevi os casos, que pode tornar a leitura cansativa e angustiante, tem o objetivo de demonstrar o tamanho das dificuldades enfrentadas por comunidades indígenas que desejam se manter em seu território de ocupação tradicional e/ou reaver parte deste, quando ele já foi esbulhado. Tal dificuldade, embora concretamente referida aos dois casos analisados, certamente são extensíveis a todos os demais casos que envolvem os Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul. No quarto e último capítulo, intitulado “A demarcação das terras indígenas guarani e kaiowa em Mato Grosso do Sul: o Compromisso de Ajustamento de Conduta de 2007 e seus desdobramentos”, discuto o processo que foi desencadeado a partir da assinatura pela FUNAI de um CAC junto ao Ministério Público Federal, por meio do qual o órgão indigenista se comprometeu a iniciar o processo de reconhecimento e regularização das terras indígenas guarani e kaiowa localizadas na região sul de Mato Grosso do Sul. No capítulo, há espaço para a 29 discussão do modelo demarcatório adotado pela FUNAI entre 1983 e 2006, assim como para os desdobramentos do CAC, propriamente ditos. Há destaque especial para a forte oposição política enfrentada pela FUNAI para a concretização dos trabalhos, bem como para os reflexos disso nas decisões tomadas pelo governo federal, que mais uma vez incorpora a identidade de Estado colonialista ameaçando de forma efetiva a concretização dos direitos territoriais indígenas. Notas Sobre o recorte geográfico do trabalho: o estado de Mato Grosso do Sul, em cuja porção sul se localiza a parte brasileira do território de ocupação tradicional Guarani e Kaiowa, foi criado pela da Lei Complementar nº 31 de 11 de outubro de 1977 por desmembramento do estado de Mato Grosso. A instalação do novo estado ocorreu em 1º de janeiro de 1979. Embora grande parte dos fatos analisados nesta tese tenha ocorrido no período do Mato Grosso uno, por questão de estilo, ao longo do texto refiro-me apenas a Mato Grosso do Sul, sem ignorar, no entanto, este importante dado histórico. No que diz respeito às responsabilidades do estado de Mato Grosso perante os danos causados a indígenas ou não, esta foi transferida para o estado de Mato Grosso do Sul, já que os Art. 20 e 21 da lei de criação do estado transferiram domínio, jurisdição, competência, patrimônio – inclusive encargos – sobre este território para Mato Grosso do Sul. Sobre a grafia de nomes indígenas: neste trabalho, a grafia de nomes indígenas segue o padrão estabelecido por convenção assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em 1953, na cidade do Rio de Janeiro. Assim, os nomes não recebem flexão de número ou de gênero e são escritos com iniciais maiúsculas. Nos casos em que os nomes são usados como adjetivos, mantém-se o padrão de não flexão, mas utilizo iniciais minúsculas. Exemplos: “Os Kaiowa e Guarani lutam por suas terras” (substantivo) e “Os indígenas kaiowa e guarani lutam por suas terras” (adjetivo). Sobre a grafia de palavras em Guarani: a maioria das palavras em guarani é oxítona e não são acompanhadas de acento agudo. Somente as paroxítonas e as proparoxítonas são acentuadas. Nas vogais que aglutinam o acento e a nasalização, o “til” tem função de acento. Nas citações, transcrevo-as tais como estão no original. Os nomes de terras indígenas são grafados conforme a nomenclatura oficial, em que algumas oxítonas são acentuadas. 30 Sobre a apresentação do texto: as citações foram mantidas tal qual no seu original. Como a quantidade de falhas no uso da língua formal é elevada, optei por dispensar, na maioria das vezes, o uso da expressão sic. O itálico é utilizado para termos em línguas estrangeiras ou indígenas e para dar destaque ou relativizar certos termos. Uso as “aspas” para citações literais e nomes de obras. Sobre o acompanhamento de processos judiciais: ao longo do texto cito vários processos que tramitam na Justiça Federal de Mato Grosso do Sul. A maioria deles ainda não teve um desfecho. O acompanhamento desses processos pode ser feito no site < http://www.jfms.jus.br/ > ou < http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/ >. Nesses mesmos mecanismos de acompanhamento processual é possível migrar para áreas de acompanhamento em instâncias superiores do judiciário. Processos no Supremo Tribunal Federal podem ser acompanhados no site < www.stf.jus.br >. 31 CAPÍTULO 1 CONCEITOS E VARIANTES HISTÓRICAS NOS MECANISMOS DE RECONHECIMENTO OFICIAL DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS Este capítulo trata dos principais conceitos ligados à territorialidade guarani e kaiowa que serão empregados ao longo do trabalho. No que se refere à análise histórica comparativa, opto por utilizar a oposição antigo/novo, evitando a equiparação entre a noção de tradicional e a ideia de imemorial, pois, como adiante será melhor explicado, a tradicionalidade no sentido jurídico e antropológico não está semanticamente relacionada com a ideia de antiguidade. Nesse caso, tanto as antigas, quanto as atuais formas de organização territorial podem ser consideradas tradicionais, uma vez que a tradicionalidade não está relacionada ao tempo transcorrido, mas sim à forma de ocupação. 1.1 Território e territorialidade como objetos de estudo É necessário esclarecer que as categorias território, territorialidade, territorialização e desterritorialização, assim como as suas demais derivadas são, antes de tudo, categorias analíticas criadas pelas ciências sociais para instrumentalizar o estudo das relações da humanidade com o espaço. Sendo assim, passo a refletir sobre tais categorias. Ressalvo, todavia, que não pretendo que este trabalho seja caracterizado por forte teorização, por isso, este tópico visa fundamentalmente situar sobre quais definições conceituais calçarei as discussões empíricas que o seguirão. 1.1.1 Território Território é uma categoria polissêmica, possuindo, portanto, diversos significados. O geógrafo Rogério Haesbaert (2010, p. 42-98) apresentou várias definições dividindo-as em perspectivas materialistas, idealistas, integradora e relacional. O autor divide ainda a perspectiva 32 materialista em três concepções, quais sejam: a naturalista, a de base econômica e a jurídico política. As concepções naturalistas pensam o território a partir de sua vinculação com o comportamento dos animais. Vinculam o território ao comportamento animal, nesse sentido, pensa-se em um comportamento natural da humanidade, mas também engloba a relação do homem com a natureza, definindo o território humano como uma relação de dinâmica ou dominação com o mundo natural. A persistência deste tipo de concepção conduz à necessária reflexão sobre a (não) dissociação das relações sociais versus natureza, ou, numa perspectiva mais antropológica, da (não) dissociação das noções de natureza e cultura. A concepção territorial de base econômica está relacionada com a ideia de território como fornecedor de recursos e está muito presente em algumas análises antropológicas sobre grupos tradicionais, porém se mostra superada para algumas abordagens que pensam o território como um abrigo e não como uma fonte de recursos. Essa divergência revela a polissemia do termo, pois, se de fato para algumas configurações territoriais o aspecto econômico perde relevância, para outras, nas palavras do autor: “[...] Dependendo das bases tecnológicas do grupo social, sua territorialidade ainda pode carregar marcas profundas de uma ligação com a terra, no sentido físico do termo [...]” (HAESBAERT, 2010, p. 57). Logo, o seu aspecto econômico não pode ser ignorado, isso é válido para a maioria dos grupos indígenas, incluindo os Guarani e Kaiowa. A concepção jurídico política de território é a mais comumente difundida. Está relacionada à associação do território aos fundamentos materiais do Estado nacional, ou seja, o território é visto como a porção do espaço que está submetida à soberania de um determinado Estado. Essa concepção ganha importância neste trabalho na medida em que os territórios dos Estados nacionais Brasil e Paraguai foram definidos em sobreposição ao território tradicional guarani e kaiowa, sendo este dividido sob a administração de dois Estados nacionais, implicando diretamente o agravamento das consequências da situação de subjugação colonial por eles vivenciada (CAVALCANTE, 2012).3 Ao tratar das perspectivas idealistas, Haesbaert (2010, p. 69-74) refere-se fundamentalmente aos aspectos simbólicos contidos na noção de território. Destaca que essa 3 A sobreposição de fronteiras nacionais a territórios indígenas ocorreu em toda a extensão das fronteiras terrestres do Brasil, portanto, os Guarani e Kaiowa não estão sozinhos em relação aos problemas decorrentes desta situação geopolítica. 33 perspectiva é a mais utilizada em estudos antropológicos, os quais tendem a não se limitar aos aspectos materiais. Fundamentalmente, importa destacar que os territórios não são constituídos exclusivamente na relação de humanos com o ambiente, mas que além destes há outros seres que habitam o território e que assim são constituintes das territorialidades. Tal circunstância é bastante presente quando se pensam os territórios indígenas, em especial no caso aqui analisado, já que o território guarani e kaiowa está construído tanto ou mais em bases simbólicas e sociais do que materiais. A perspectiva integradora é aquela segundo a qual o território “[...] não pode ser considerado nem estritamente natural, nem unicamente político, econômico ou cultural. Território só poderia ser concebido através de uma perspectiva integradora entre as diferentes dimensões sociais (e da sociedade com a própria natureza) [...]” (HAESBAERT, 2010, p. 74). Segundo o autor, trata-se de uma abordagem incomum já que predominam as unidimensionais. [...] Fica evidente neste ponto a necessidade de uma visão de território a partir da concepção de espaço como um híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço, como nos induzem a pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos, na indissociação entre movimento e (relativa) estabilidade [...] (HAESBAERT, 2010, p. 79). A perspectiva relacional considera que o território é definido em um conjunto de relações histórico-sociais, incluída aí a relação entre processos sociais e espaço material. Por ser relacional, o território é também movimento e fluidez, opondo-se à rigidez e à estabilidade presentes nas definições que privilegiam a dimensão política. Ou seja, o território é temporalidade, é histórico, [...] uma das características mais importantes do território é sua historicidade [...] (HAESBAERT, 2010, p. 82). Na perspectiva deste trabalho, o território será compreendido tanto na sua forma integradora, quanto relacional. Em primeiro lugar, porque considero que não há fundamento em segmentar a produção do território apenas em uma de suas dimensões. Ainda que seja possível fazer isso para fins de análise, é preciso ter em mente que o território, assim como o humano, é um todo composto de várias dimensões – política, econômica, social e simbólica – que não podem ser dissociadas. A perspectiva relacional inclui a ideia de que as relações sociais é que 34 produzem o território, mas ao mesmo tempo são produtos deste. É, portanto, uma relação dialética e equivale dizer que as relações sociais não se dão no vácuo, precisam de uma base que ao mesmo tempo seja material e simbólica. Além disso, o destaque para a historicidade do território vai ao encontro da análise histórica aqui proposta, bem como dos pressupostos da antropologia histórica (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998; 1999), perspectiva com a qual também dialogarei ao longo desta tese. Ainda que nesta pequena exposição não tenha sido possível detalhar as mais diversas definições da noção de território, pode-se perceber que ela é bastante polissêmica, por isso vejo a necessidade de adotar uma definição norteadora. Em síntese, entendo o território como sendo uma porção do espaço apropriada por um grupo humano que o constrói em seus aspectos sociais, simbólicos, culturais, econômicos e políticos através de modos específicos. Esta relação específica com o espaço que constrói um território é a chamada territorialidade. 1.1.2 Territorialidade Segundo Paul Little (2002, p. 3), a conduta territorial integra todos os grupos humanos. Para ele a territorialidade é [...] o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território” ou homeland (cf. Sack 1986:19). Casimir (1992) mostra como a territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências históricas. O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado (LITTLE, 2002, p. 3-4). Ainda segundo o autor, a territorialidade humana possui múltiplas expressões, produzindo variados tipos de territórios. Por isso, uma análise territorial precisa estar atenta para as peculiaridades socioculturais envolvidas. Diante disso, ele propõe a utilização do conceito de “cosmografia” “[...] definido como os saberes ambientais, ideologias e identidades – coletivamente criados e historicamente situados – que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território [...]” (LITTLE, 2002, p. 4). A cosmografia de um grupo inclui então o seu regime de propriedade, vínculos afetivos estabelecidos com um território específico, a memória 35 coletiva da história de sua ocupação, o uso social que se faz do território e suas formas de defesa (LITTLE, 2002, p. 4). Voltando a Haesbaert (2010, p. 73-74), a noção de territorialidade é utilizada para enfatizar os aspectos simbólico-culturais. Assim, ao se falar em territorialidade a ênfase recai sobre os seus aspectos simbólicos. Significa que o território carrega uma dimensão cultural e outra material. A noção de territorialidade está, então, relacionada à já apresentada perspectiva integradora de território. Se todos os grupos humanos possuem condutas territoriais (LITTLE, 2002, p. 3; HAESBAERT, 2010, p. 339), há que se concluir que as relações colonialistas estabelecidas em Mato Grosso do Sul – mas não só ali – põem em conflito distintas territorialidades, sendo que os grupos ruralistas dominantes tentam como podem impor a sua territorialidade aos colonizados. Nesse contexto é que se deu o processo de criação das Reservas Indígenas em Mato Grosso do Sul no início do século XX e o subsequente processo de esbulho territorial imposto aos indígenas. Também é nesse sentido que surgem diversas afirmações de que os indígenas querem terras, mas não a utilizam para a produção – caso clássico desse discurso é a vinculação de matérias pejorativas sobre a Terra Indígena Panambizinho pela revista “Veja” (ADIVINHE, 2012). A territorialidade humana enfatiza os aspectos culturais de cada grupo, todavia a materialidade e os aspectos naturais do ambiente também precisam ser considerados, pois eles são no mínimo limitadores ou condicionantes das diversas possíveis relações que o grupo pode estabelecer entre si e com o próprio espaço. Há ainda que se dar destaque para a historicidade da territorialidade, que é justamente um dos aspectos centrais deste trabalho. Certamente, o contexto colonialista impôs aos Guarani e Kaiowa configurações territoriais que em princípio eram totalmente alheias à sua forma organizacional. Todavia, como se verá adiante, mesmo nesse contexto eles continuam se organizando especialmente com base em sua territorialidade que, em razão de contingências históricas, não pode em tudo permanecer como era em tempos mais antigos. 1.1.3 Da desterritorialização à multiterritorialidade Em face do largo processo de colonialismo imposto aos Guarani e Kaiowa do sul de Mato Grosso do Sul ao longo do século XX, algumas análises acadêmicas desenvolvidas por historiadores se apropriaram da noção de desterritorialização (Por exemplo: MACIEL, 2005; 36 BRAND & ALMEIDA, 2007). Todavia, tais autores não se preocuparam em apresentar uma definição para ela. Na prática, a noção de desterritorialização foi empregada como um conceito autoexplicativo, como sinônimo para o processo de esbulho territorial; não se refletiu sobre o esbulho e a desterritorialização como processos distintos, ainda que o segundo possa ser decorrente do primeiro. Tal displicência conceitual, foi superada no trabalho da geógrafa Juliana Grasiéli Bueno Mota (2011), que embasada no arcabouço teórico proposto por Rogério Haesbaert (2010) desenvolveu um extenso trabalho sobre territorialização precária e multiterritorialidade na Reserva Indígena de Dourados. Em seu denso trabalho, Rogério Haesbaert (2010) apresenta uma tese segundo a qual a desterritorialização completa é impossível aos grupos humanos, já que todos eles possuem condutas territoriais. Por isso, para ele, os processos de desterritorialização são sempre interligados a processos de reterritorialização. Antes porém de avançar na abordagem de Haesbaert, apresentarei o posicionamento do antropólogo Paul E. Little (1994) que, embora não tenha feito com tanta densidade, formulou alguns anos antes uma teoria bastante assemelhada à do autor supracitado. Para Little (1994, p. 6), o estabelecimento de territórios é inerente aos grupos humanos, pois eles têm profundas necessidades de enraizamento em lugares específicos. As formas de enraizamento são, todavia, múltiplas e históricas. Nesse sentido, a memória coletiva é uma das principais maneiras através das quais os grupos humanos se localizam no espaço, quase sempre a procura de seu lugar de origem. A importância da territorialização humana não exclui, no entanto, a importância do movimento que está presente na vida das pessoas desde os tempos mais remotos, logo se conclui que a territorialização não é estática, pois também se dá no movimento. [...] Por isso, um estado de desterritorialização, embora muitas vezes acompanhado por trauma ou sofrimento, é também uma parte fundamental da condição humana. Embora seja freqüente o desejo por parte dos desterritorializados de encontrar suas raízes, situações de carência de lar, homelessness, podem durar gerações. Os refugiados palestinos deslocados para acampamentos desde 1948, com a criação do Estado de Israel, por exemplo, já estão em sua terceira geração de desterritorialização [...] (LITTLE, 1994, p. 8). 37 Mas, se o estado de desterritorialização é também fundamental na vida humana, de fato ele não se dá na literalidade do termo, pois os grupos humanos desterritorializados buscam modos de adaptação que lhes possibilitem a reterritorialização. [...] Cada povo deslocado procura, de uma ou de outra forma, sua relocalização no espaço. O processo de criar um espaço novo torna-se, assim, primordial, e se dá, em parte, pela manipulação múltipla e complexa da memória coletiva no processo de ajustamento ao novo local (LITTLE, 1994, p. 11). Como se vê, os processos de desterritorialização existem, mas são sempre seguidos por movimentos de reterritorialização. Assim, se embora com alguma ressalva possa-se falar em grupos desterritorializados, o melhor seria falar em movimentos de des-reterritorialização. Evidentemente que esta reterritorialização muitas vezes não se dá nas mesmas condições da territorialização anterior e nem elimina nos grupos o desejo de retorno às origens, por isso, para caracterizá-las, pode-se falar em territorialização precária, conforme proposto por Haesbaert (2010, p. 313), noção à qual voltarei mais adiante. Little (1994, p. 9-10) destaca ainda que o movimento humano se dá pelos mais diversos motivos. O autor deu ênfase a sete deles. O primeiro grupo mencionado é o dos nômades, os migrantes contínuos, os quais “[...] têm um conjunto de orientações espaciais e temporais que incorpora noções de movimento regular e ciclos de concentração e dispersão demográfica [...]” (LITTLE, 1994, p. 9). Neste caso, é preciso deixar claro que mesmo os nômades não podem ser entendidos como desterritorializados na literalidade do termo. Haesbaert (1994, p. 242) destaca que “[...] ele se reterritorializa pela ‘desterritorialização’, ou em outras palavras, sua territorialidade é construída na própria mobilidade espacial. Até porque não se trata de um movimento pelo movimento, completamente sem rumo [...]”. O segundo grupo é formado pelas populações envolvidas em fenômenos de diáspora. Quando ocorre a dispersão demográfica de um grupo de um lugar específico “[...] num momento histórico particular, cria uma identidade única, onde o grupo é ‘unificado’ pela memória desse lugar geográfico que muitos, senão a maioria, nunca viram” (LITTLE, 1994, p. 9). O terceiro grupo é formado por vítimas de deslocamentos diretos e forçados. Como exemplo, além dos escravos negros trazidos da África para a América entre os séculos XVI e XIX, o autor cita o caso dos indígenas Cherokee que foram desterrados em massa de suas terras 38 no estado estadunidense da Geórgia para serem levados contra a vontade para as áridas terras de Oklahoma, processo que resultou na morte de três quartos da população (LITTLE, 1994, p. 9). O quarto grupo é constituído por populações que realizam migrações grupais reativas. Trata-se de grupos que respondem a pressões externas migrando coletivamente para se livrar da pressão em outra localidade. Tais movimentos, em geral, ocorrem em reação à pressão exercida pela expansão imperialista colonialista que gera pressões demográficas, produzindo o reagrupamento de muitos povos, às vezes chegando ao desencadeamento de processos de etnogênese com a constituição de novos grupos étnicos (LITTLE, 1994, p. 10). O quinto grupo se refere às migrações colonizadoras. Incluem-se aqui as migrações nacionais voltadas para a colonização de fronteiras internas, como exemplo, cita-se o caso do oeste dos Estados Unidos no século XIX e princípio do XX (LITTLE, 1994, p. 10). O sexto grupo é formado por pessoas que migram temporariamente por motivos laborais. Há aqui duas escalas de migrantes. Os grupos formados por trabalhadores de baixa qualificação que migram para grandes centros nacionais ou internacionais e ocupam postos de baixa remuneração com pouca ou nenhuma segurança e, em outra escala, os trabalhadores que migram em boas condições de segurança, como intelectuais, tecnocratas, missionários e diplomatas (LITTLE, 1994, p 10). Por fim, estão os grupos que praticam a migração sobreviventista. Aqui se incluem os refugiados e os exilados políticos e econômicos de todo o mundo. Para o autor, este é o grupo cuja desterritorialização é mais trágica e intensa (LITTLE, 1994, p. 10). Dos sete tipos de movimentos des-reterritorializantes citados pelo autor, a diáspora, os deslocamentos diretos forçados, as migrações grupais reativas e as migrações colonizadoras estão relacionadas ao processo colonialista que atinge a região sul de Mato Grosso do Sul desde o início do século XX. Destacando que cada tipo de movimento tem sua história e gera uma forma própria de memória coletiva, o autor passa a analisar a relação destas memórias com a reterritorialização. Para que seja possível subsidiar as discussões mais especificamente relacionadas aos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul, abordarei as análises do autor sobre estes quatro grupos de migrantes em especial. No caso de povos em diáspora, sua relação com o espaço é o inverso dessa conceituação, isto porque em dispersão demográfica o grupo tende a congelar no tempo o lugar originário. A 39 recuperação do lugar original se torna uma necessidade existencial para os membros do grupo afetado (LITTLE, 1994, p. 11-12). No caso dos grupos negros que foram deslocados à força da África para a América, houve oscilação entre o desejo de voltar para sua pátria ou a necessidade de construção de uma identidade afroamericana enraizada no continente americano (LITTLE, 1994, p. 11-12). Segundo o autor, nos casos de migração grupal reativa, com posterior reagrupamento, a memória espacial do grupo tende a mudar em decorrência das mudanças radicais de localização. Cita como exemplo o caso dos Lakota, que migraram do Minnesota para as Grandes Planícies da América do Norte e ali adaptaram seus mitos de origem geográfica para coincidir com seu novo local de residência (LITTLE, 1994, p. 13). Por fim, a migração colonizadora [...] coloca outro desafio para a construção de uma memória coletiva espacial. As fronteiras, além de serem espaços geográficos com pouca densidade demográfica, são também construções ideológicas, onde as virtudes pioneiras e as práticas agrárias são exaltadas, às custas das memórias espaciais dos habitantes originários da região (nas Américas quase exclusivamente os povos indígenas), que, juntamente com as práticas culturais, são negadas ou denegridas. A mentalidade pioneira é baseada no que Kastenbaum (1977: 205) denomina “memórias do futuro”, onde “o ‘sentido’ de futuro pode ser representado na memória, na sensação de distância, contingência e movimento que separaram as pessoas do lugar onde estão do lugar onde podem estar mais tarde”. As memórias do futuro dos colonos também podem aparecer e desaparecer, como é o caso citado por Kastenbaum do senhor R., que, depois de colocar toda a sua esperança numa única oportunidade, perdeu tudo, e “desde aquele momento não teve mais um futuro ... O futuro é alguma coisa que passou há muito tempo” (p. 197). A história das migrações colonizadoras está cheia de povoados e garimpos que surgiram e decaíram, deixando apenas vestígios das memórias espaciais do futuro dos pioneiros que criaram esses lugares” (LITTLE, 1994, p. 13-14). A relação estabelecida pelo autor entre a memória social dos grupos e seus processos de reterritorialização permite refletir como tem se organizado a territorialidade dos Guarani e Kaiowa no atual contexto colonialista, bem como a territorialidade colonial-ruralista – expondo a necessária discussão de que há em Mato Grosso do Sul um intenso conflito de territorialidades, no qual se polarizam as perspectivas indígenas e as coloniais-ruralistas. Haesbaert (2010) apresenta a noção de desterritorialização como mito, sobretudo em contraposição às diversas ideias, principalmente de matriz pós-moderna, que presumem a 40 desterritorialização como marca característica do sistema advindo da chamada globalização. Para ele, mesmo as pessoas ou grupos de pessoas munidos de grande mobilidade não estão desterritorializados, mas sim vivendo uma multiterritorialidade. Isso não significa que a desterritorialização não exista, mas que os movimentos de desterritorialização são ao mesmo tempo movimentos de reterritorialização. O autor expõe a existência de três tipos ideais de organização socioterritorial, quais sejam: os territórios-zona, os territórios-rede e os aglomerados de exclusão. O territórios-zona são aqueles que se constituem na lógica zonal, com áreas e limites definidos, relativamente bem demarcados e com grupos mais enraizados. Os territórios-rede são configurados principalmente pela lógica de redes, são espacialmente descontínuos, dinâmicos e bem mais suscetíveis a sobreposições. Os aglomerados são quase indefinidos, mesclas confusas de territórios-zona e territórios-rede. Os aglomerados de exclusão estão relacionados à exclusão social, também encarados como forma de exclusão socioespacial. Escolhemos a expressão “aglomerados de exclusão” para traduzir a dimensão geográfica ou espacial dos processos mais extremos de exclusão social porque ela parece expressar bem a condição de “desterritorialização” – ou de “territorialização precária” – a que estamos nos referindo [...] (HAESBAERT, 2010, p. 313). Para o autor, a ideia de exclusão social nunca é total, por isso alguns sociólogos como José de Souza Martins preferem a expressão inclusão precária, assim também há que se falar em territorialização precária em substituição a ideia de desterritorialização. Embora haja grande diversidade de manifestações de aglomerados de exclusão, é possível destacar algumas propriedades básicas da territorialização precária: a) instabilidade e/ou insegurança socioespacial; b) fragilidade dos laços simbólicos e/ou funcionais entre os grupos e destes com o espaço; e c) mobilidade sem direção definida ou imobilidade sem o controle efetivo do território (HAESBAERT, 2010, p. 316; 331). Concordando com as perspectivas dos dois autores que fundamentam esta reflexão sobre a desterritorialização – no sentido de que os grupos humanos não subsistem sem o estabelecimento de condutas territoriais, ainda que estas sejam tão diversas quanto podem ser as definições do conceito de território – considero apropriada a utilização da noção de territorialização precária para a análise das diversas territorialidades vivenciadas na atualidade 41 pelos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul, tal como Mota (2011) já fez em relação à Reserva Indígena de Dourados. Cabe ainda apresentar a noção de multiterritorialidade proposta por Haesbaert (2010). Para ele, Não se trata mais de priorizar o fortalecimento de um “mosaico”- padrão de unidades territoriais em área, vistas muitas vezes de maneira exclusiva entre si, como no caso dos Estados nacionais, mas seu convívio com uma miríade de territórios-rede marcados pela descontinuidade e pela fragmentação que possibilita a passagem de um território a outro, num jogo que denominaremos aqui, muito mais do que desterritorialização ou declínio dos territórios, a sua “explosão” ou, em termos teoricamente mais elaborados, uma “multiterritorialização”, pois, como já afirmávamos em 1997, “na ‘pós’ ou ‘neo’ modernidade, um traço fundamental é a multiterritorialidade humana [...] (Haesbaert, 1997: 42) (HAESBAERT, 2010, p. 338). A multiterritorialidade se dá com características rizomáticas e possibilita o acesso a vários territórios. Tal acesso se dá tanto por meio do deslocamento físico, quanto pelo virtual, quando as territorialidades são acionadas sem o deslocamento físico por meio do chamado ciberespaço (HAESBAERT, 2010, p. 343-344). A multiterritorialidade também pode ser utilizada como categoria explicativa para a análise da territorialidade de vários grupos Kaiowa e Guarani que habitam os mais distintos locais, desde as reservas indígenas até as periferias urbanas em Mato Grosso do Sul, assunto que será abordado no próximo capítulo. 1.1.4 Territorialização e processos de territorialização Outras noções ligadas à antropologia histórica que têm sido empregadas para a análise de situações históricas como as vivenciadas pelos Guarani e Kaiowa são as de territorialização e de processo de territorialização propostas pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira (1998). Segundo tal perspectiva, a presença colonialista como fato histórico impõe aos grupos indígenas uma nova relação com o território resultando em transformações de diversos níveis na esfera sociocultural (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 53-54). Na abordagem de Pacheco de Oliveira, territorialização não é um movimento por meio do qual um grupo humano se apropria de um determinado espaço transformando-o em um território, mas sim a imposição de uma base territorial fixa, normalmente feita pelo Estado nação 42 com o objetivo de incorporar populações etnicamente diferenciadas (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 55-56). A noção de territorialização tem a mesma função heurística que a de situação colonial – trabalhada por Balandier (1951), reelaborada por Cardoso de Oliveira (1964), pelos africanistas franceses e, mais recentemente por Stocking Jr. (1991) – da qual é caudatária em termos teóricos. É uma intervenção de esfera política que associa – de forma prescritiva e insofismável – um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados [...] (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 56). A territorialização, como proposta pelo autor, é um ato político constituidor de objetos étnicos, imposto pelo Estado com base em relações de força desiguais. Assim, pode-se dizer que a atuação estatal em Mato Grosso do Sul com a criação das Reservas Indígenas no início do século XX objetivando a limitação do espaço destinado aos indígenas e a liberação das demais terras para o mercado fundiário foi uma ação territorializadora, o que, de certa forma, continua ocorrendo nas demarcações de terras indígenas realizadas mais recentemente. A territorialização implica uma reorganização social marcada por quatro aspectos: [...] 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação que o grupo mantém com o passado (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 55). Já o processo de territorialização, movimento associado ao fenômeno étnico4, está mais relacionado à resposta que os grupos humanos dão à imposição desta base territorial física, podendo então ser aproximado da ideia de reterritorialização já exposta. O processo de territorialização não é compreendido como linha de mão única, externamente dirigido e homogeneizador, pois os indígenas se apropriam dele e constroem identidades e individualidades diferenciadoras (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 60). O que estou chamando aqui de processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo – nas colônias francesas seria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” – vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de 4 Não se pode esquecer que esta problemática é abordada num momento em que a principal preocupação do autor era discutir a etnogênese ou emergência étnica entre os índios do nordeste brasileiro. 43 tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso). E aí volto a reencontrar Barth, mas sem restringir-me à dimensão identitária, vendo a distinção e a individualização como vetores de organização social. As afinidades culturais ou lingüísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos porventura existentes entre os membros dessa unidade político- administrativa (arbitrária e circunstancial), serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural de amplas proporções (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 56). Como se vê, a principal preocupação de Pacheco de Oliveira era evidenciar que a territorialização e o processo de territorialização têm implicações fundamentais nos fenômenos constitutivos das identidades étnicas e são frutos de um fato histórico, qual seja: a presença colonialista. Na perspectiva da chamada antropologia histórica, o autor adotou a noção de processo de territorialização como forma de se afastar da ideia de qualidade imanente presente na noção de terrirorialização (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998). No caso do trabalho que ora apresento, estou de acordo com pensamento de que a conduta territorial é característica da sociedade humana, da qual a perspectiva de Pacheco de Oliveira se afasta, porém, minha principal preocupação está na historicidade da territorialidade guarani e kaiowa. Nesse sentido, tornam-se muito relevantes as conformações territoriais surgidas a partir da presença colonialista, ponto em que me aproximo da citada perspectiva. Também é certo que os movimentos de reivindicação por demarcações de terras surgidos na região na segunda metade do século XX estão amplamente influenciados pelo sentimento étnico que foi fortalecido como fruto da pressão colonialista e das transformações conjunturais decorrentes da redemocratização política do país e das transformações na legislação nacional, especialmente da promulgação da Constituição Federal de 1988, corroborando assim com o pensamento de Pacheco de Oliveira. 1.2 Terras indígenas Terra indígena é outra categoria que precisa ser definida de forma explícita, até porque ela vem sendo utilizada de maneira indiscriminada e sem a devida compreensão até mesmo por servidores do órgão indigenista oficial que não atuam na área fundiária. Dai decorre que termos 44 como aldeia, terra indígena, reserva indígena e área indígena são empregados sem qualquer diferenciação. O primeiro esclarecimento a ser feito é que terra indígena é uma categoria jurídica, que, portanto, tem sua origem na definição de direitos territoriais indígenas. Tais direitos foram reconhecidos ao longo da história pelo Estado nacional brasileiro em diversos dispositivos legais (Ver: CARNEIRO DA CUNHA, 1987 e 1993). Atualmente, os direitos territoriais indígenas são garantidos pelo Art. 231 da Constituição Federal de 1988. No entanto, esta não foi a primeira Carta Magna em que a questão foi tratada. Neste tópico, pretendo apresentar uma breve evolução histórica dos direitos territoriais indígenas na legislação brasileira no período republicano. Desde a Constituição Federal de 1934, todas as que a seguiram trataram do tema assegurando direitos aos indígenas. Constituição Federal de 1934: Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las. Constituição Federal de 1937: Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las. Constituição Federal de 1946: Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem. Constituição Federal de 1967: Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes. Emenda Constitucional número 1/1969 Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes. Como se vê, sem levar em conta legislações específicas anteriores ao período republicano, desde a Constituição de 1934 os direitos territoriais indígenas foram mencionados. Contudo, nenhuma menção anterior é comparável à da Carta de 1988, sobre a qual falarei a seguir, mas 45 ainda assim havia garantias constitucionais aos direitos territoriais indígenas, os quais, no caso de Mato Grosso do Sul, foram simplesmente ignoradas pelas autoridades locais e federais. As constituições de 1934, 1937 e 1946 garantiam aos indígenas apenas a posse das terras em que se encontravam permanentemente localizados. A ênfase estava, portanto, na habitação permanente, não se pensava em outras áreas necessárias para a sobrevivência e para a reprodução física e cultural dos povos indígenas. Além disso, não havia nenhuma previsão de inalienabilidade das terras, o que permitia diversas manobras para titular tais terras em favor de terceiros (Ver: CUNHA, 1992, passim). Já a Constituição de 1967, somada à Emenda de 1969, além da posse garantiu o usufruto exclusivo das riquezas e a inalienabilidade das terras, dando as bases para a construção da categoria jurídica de terra indígena que apareceu na Lei 6.001 de 1973, o Estatuto do Índio, regulamentando a matéria territorial indígena, conforme previsto na Emenda Constitucional nº 01 de 1969. No caso específico de Mato Grosso do Sul, o Estado como um todo, quase sempre incluindo o SPI, durante o século XX reconheceu como sendo terras ocupadas por indígenas somente aquelas por ele próprio demarcadas. Desconsideraram-se deliberadamente os artigos constitucionais supracitados – isso fica claro nas fontes históricas analisadas no terceiro capítulo. Diante da atual situação fundiária dos Guarani e Kaiowa de Mato Grosso do Sul, a proteção constitucional baseada na habitação permanente não foi capaz de evitar que eles fossem expulsos de suas terras, prevalecendo os interesses políticos locais e nacionais, sendo que tal expulsão sempre contou com a participação direta ou com a responsabilidade indireta do Estado. O exemplo mais marcante disso foi a titulação feita pelo estado de Mato Grosso com base na Lei de Terras – Lei 601 de 1850 – de milhares de hectares, sendo que muitos deles, apesar de serem terras de habitação indígena foram então ilegalmente considerados como terras devolutas (PACHECO, 2004). Por tais fatos se conclui que o Estado deve ser responsabilizado pelos prejuízos causados aos indígenas não só com a devolução das terras, mas também com o pagamento de indenizações pelos incalculáveis prejuízos sociais, culturais e econômicos acumulados ao logo de décadas de desterro.