UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE ANA CAROLINA DOS SANTOS MARQUES PRÁTICAS ESPACIAIS DA CULTURA PERIFÉRICA DE JOVENS MULHERES NEGRAS NA CONSTITUIÇÃO DE PERIFERIAS VIVÍVEIS Presidente Prudente - SP 2024 ANA CAROLINA DOS SANTOS MARQUES PRÁTICAS ESPACIAIS DA CULTURA PERIFÉRICA DE JOVENS MULHERES NEGRAS NA CONSTITUIÇÃO DE PERIFERIAS VIVÍVEIS Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Tecnologia – Campus de Presidente Prudente. Área de Concentração: Produção do Espaço Geográfico Orientador: Prof. Dr. Nécio Turra Neto Presidente Prudente - SP 2024 M357p Marques, Ana Carolina dos Santos Práticas espaciais da cultura periférica de jovens mulheres negras na constituição de periferias vivíveis / Ana Carolina dos Santos Marques. -- Presidente Prudente, 2024 267 p. : tabs., fotos, mapas Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente Orientador: Nécio Turra Neto 1. Jovens mulheres negras. 2. Cultura periférica. 3. Práticas espaciais. 4. Interseccionalidades. 5. Lógicas socioespaciais. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Presidente Prudente “As práticas espaciais da cultura periférica de jovens mulheres negras na constituição de periferias vivíveis em diferentes contextos de cidade” TÍTULO DA TESE: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTORA: ANA CAROLINA DOS SANTOS MARQUES ORIENTADOR: NECIO TURRA NETO Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Doutora em Geografia, área: Produção do Espaço Geográfico pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. NECIO TURRA NETO (Participaçao Virtual) Departamento de Geografia / Faculdade de Ciencias e Tecnologia de Presidente Prudente - FCT/Unesp Profa. Dra. MARIA ENCARNAÇÃO BELTRÃO SPOSITO (Participaçao Presencial) Departamento de Geografia / Faculdade de Ciencias e Tecnologia de Presidente Prudente - FCT/Unesp Profa. Dra. JOSELI MARIA SILVA (Participaçao Virtual) Departamento de Geociências / UEPG/Ponta Grossa Prof. Dr. MÁRCIO JOSÉ CATELAN (Participaçao Virtual) Departamento de Geografia / Faculdade de Ciencias, Tecnologia e Educacao de Ourinhos - FCTE/Unesp Profa. Dra. CLARICE CASSAB (Participaçao Virtual) Departamento de Geociências/UFJF / Universidade Federal de Juiz de Fora Presidente Prudente, 20 de novembro de 2024 Faculdade de Ciências e Tecnologia - Câmpus de Presidente Prudente - Rua Roberto Simonsen, 305, 19060900 http://www.fct.unesp.br/pos-graduacao/--geografia/CNPJ: 48.031.918/0009-81. Dedico esta tese a todas as mulheres negras que vieram antes de mim e abriram caminhos, e a todas as mulheres negras que produzem cultura periférica e continuam construindo campos de possibilidades para nós. AGRADECIMENTOS Pensar em agradecimentos é relembrar toda uma trajetória de vida, antes e durante o doutorado. Me orgulho muito de todo meu percurso de doutorado: os aprendizados, as oportunidades, as amizades e o amadurecimento pessoal, acadêmico e profissional. Termino esse ciclo com um sentimento de missão cumprida, enquanto mulher negra, pesquisadora, professora e militante. Nesse caminho formativo, inúmeras pessoas foram importantes e deixaram marcas especiais, a elas eu agradeço nos parágrafos seguintes. Escrever agradecimentos simboliza a finalização de um ciclo e afirmo que escrevo essas páginas com olhos marejados. Não é possível mencionar todas as pessoas e peço desculpas pelos possíveis esquecimentos (efeitos do fim de um doutorado). Agradeço: À minha família, Minha mãe, Ana Cristina dos Santos Marques, por ser minha maior inspiração de determinação, de coragem e de força. Por ter acreditado em mim e me incentivado. Por se emocionar e vibrar comigo em cada conquista. Muito do que escrevo, é pensando em você, enquanto uma mulher negra que foi obrigada a ser forte, em meio às dificuldades. Obrigada por me ensinar tanto. Meu pai, Marcos Antônio Marques, pelo incentivo, pelo apoio e pela força. Por vibrar a cada conquista e estar ao meu lado durante toda a minha vida. Por me chamar de doutora, cheio de orgulho, antes mesmo de eu concluir o doutorado. Aprendo cotidianamente com sua bondade, com a forma leve de conduzir a vida e com a sua responsabilidade. Minha irmã, Yasmin dos Santos Marques, pelo carinho, pelo apoio e por acreditar em mim. Nos momentos de insegurança, você olhou pra mim e disse “você consegue!”, com somente duas palavras você me deu força e eu percebi a importância de continuar te mostrando que existem possibilidade para nós. Ainda que uma adolescente, eu aprendo muito com você e me orgulho da mulher que tem se tornado. Ao meu orientador, Prof. Dr. Nécio Turra Neto, pelo apoio e pela orientação. Por contribuir imensamente na minha formação e por me incentivar a construir uma imaginação geográfica. Me lembro de te encontrar na UEL em 2018 e, em meio ao nervosismo, dizer: “Oi, eu sou Ana Carolina e estou pleiteando uma vaga de mestrado sob sua orientação!”, desde então são 6 anos de uma parceria que me ensinou muito. Que escolha acertada ir para UNESP e ser orientada por você. Obrigada pela autonomia e por acreditar nas minhas ideias. Você é uma inspiração. Às minhas pessoas, que compartilhei a amizade, os cafés no GeoJuves, as cervejas e as risadas sinceras, Janaína Conceição da Silva pelos ensinamentos, pelo companheirismo. O doutorado foi mais leve pois tive você ao meu lado, nos dois lados do Atlântico. Nos encontramos enquanto mulheres negras e aprendemos muito uma com a outra. Quantos sábados e madrugadas passamos na UNESP, trabalhando muito, mas também comendo boas comidas e muitos docinhos, partilhando reflexões e rindo das situações da vida. Você representa um lugar de força e de inspiração para mim, obrigada por ter me estendido a mão em tantos momentos. Te admiro muito. Fernando Freitas de Almeida, o Jandira, pela parceria e pelo apoio. Por compartilhar choros e vivências. Por debater questões raciais comigo, me ensinar e demonstrar a potência da amizade. Por me acolher junto com a sua família. Por ser meu parceiro de trilhas, viagens e conversas leves. Aprendi com você sobre o amor por ensinar e que nunca é tarde para corremos atrás daquilo que queremos. Magno Ricardo Silva de Carvalho, pelo apoio e pelo carinho. Por me ouvir durante horas falando sobre a minha pesquisa, conversar com entusiasmo sobre ela, questionar e acreditar nas minhas ideias. Pelos abraços de acolhimento e pelas palavras de incentivo. Pela leveza com as suas piadas que traziam risadas para o meu dia. Você foi um ponto de conforto muito importante e me inspira enquanto pessoa e pesquisador. Amanda Baratelli, pelo apoio e pelo incentivo. Que presente ter você no percurso do doutorado, com suas conversas divertidas, em que era impossível não rir, mas também com suas conversas reflexivas, em que pude aprender muito. Estar ao seu lado era sinônimo de leveza, mas também de inspiração enquanto pesquisadora. Torço para que nos encontrarmos em eventos, na posição que sonhamos. Renata Rizzon, pelo apoio e pelos abraços. Descobrir o quanto somos parecidas nesse processo e compartilhar com você os medos, mas também as alegrias e os anseios, me deram força. Aprendi muito com você, para além da pós-graduação, mas a também olhar para o mundo com mais calma. Sua empatia, leveza e força me inspiram, ver seu crescimento e crescer ao seu lado foi gratificante. Laís Neves Lopes, pelo incentivo e pelas trocas. A minha amiga de graduação, que se tornou amiga de grupo de pesquisa, amiga de pós-graduação e amiga para a vida. Foi maravilhoso ter ao meu lado, uma pessoa que compartilhava interesses de pesquisa e tem tanta sensibilidade para olhar a vida. Aprendo a ter uma imaginação geográfica com você, que me inspira. Raisa Regala, pelo carinho e pela presença, mesmo longe. Por me acolher e me inspirar. Presidente Prudente foi mais divertida pela sua existência e era impossível se sentir sozinha sabendo que você estava ali, mais difícil ainda era ir para a casa com seus convites para ir ao bar após o trabalho. Aprendi muito com sua força e determinação. Ricardo Lopes Fonseca, pelos ensinamentos e pela parceria. Por estar ao meu lado sempre que precisei e por dizer “Seja a Ana”. De orientador a amigo, você foi fundamental na minha trajetória e na própria escolha do meu tema de pesquisa na graduação. Você me inspira enquanto pessoa e profissional, por toda sua empatia, competência e amor pelo que faz. Às/Aos amigas/os, Felipe César Augusto Silgueiro dos Santos, pelo apoio, pelo carinho e pela parceria nas disciplinas de Estágio Supervisionado, você é um exemplo de professor e me inspira. Gustavo Henrique Pereira da Silva, pelo apoio, pelo carinho e pelas trocas, você me inspira e nossas conversas me ensinaram para além das questões raciais. Antonio Eusébio Souza, por me acompanhar desde o mestrado e se fazer presente mesmo longe, aprendi sobre a vida com você. Caique Mateus Souza Leite, pelo carinho, pelas trocas e pelas conversas sobre questões raciais, foi gratificante acompanhar seu processo de crescimento na universidade. Gustavo Santana da Silva, Nathaly Julia Silva Cruz e Rebeca Santos Silva, o querido Aquário, pelo acolhimento, incentivo e momentos divertidos. Luis Flávio de Araújo, pela amizade desde o mestrado, em que nos encontros durante o doutorado você me ensinava sobre leveza. Victor Hugo Oliveira de Paula, por estar comigo desde a graduação. Thalita Santos, pelo incentivo e por segurar minha mão. Lindberg Nascimento Júnior, pelo incentivo, por acreditar em mim e por contribuir na minha formação. Ao GeoJuves, O Grupo de Estudos de Geografia das Juventudes, em que dialoguei sobre minha pesquisa, aprendi com as pesquisas das/os colegas e debati temas que foram fundamentais para a construção desta tese. Por compartilharem as ideias diferenciadas, em que nos incentivamos e reconhecemos a pertinência das elaborações. Em especial, Bruno Salvi, Célio Santos, Igor Sufi, João Turino, Laís Neves Lopes e Marta Campos. Às minhas supervisoras no exterior, Profa. Dra. Margarida Queirós, pelo carinho e acolhimento no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, em Lisboa. Pela parceria em escritas, pelas contribuições na minha pesquisa e pelo incentivo em continuar trilhando o caminho das Geografias Feministas. Profa. Dra. Anna Ortiz, pelo acolhimento no Grupo de Estudos de Geografia e Gênero, na Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha. Por contribuir com a minha pesquisa e me apresentar à importantes pesquisadoras. À banca de defesa, que contribuiu imensamente na elaboração da pesquisa realizando uma leitura atenta e cuidadosa, Profa. Dra. Joseli Maria Silva, por todas as contribuições em minha formação, desde o mestrado. Pela sensibilidade, empatia e carinho. Por ser a ponte de minha primeira experiência internacional de pesquisa. Por abrir caminhos nas Geografias Feministas e demonstrar a pertinência nesse debate na ciência geográfica. Por ser uma referência de mulher, professora e pesquisadora. Por me inspirar. Profa. Dra. Maria Encarnação Beltrão Sposito, pelas contribuições na banca de qualificação. Pelo incentivo em prosseguir em minhas ideias, mas sugerindo caminhos de reflexão com cuidado e sensibilidade. Por ser um exemplo de pesquisadora, professora e mulher, que me inspira. Por conduzir um grupo de pesquisa, o GAsPERR, com tanta maestria e responsabilidade. Por demonstrar a potência da Geografia Brasileira dentro e fora do país. Profa. Dra. Clarice Cassab, pelos ensinamentos sobre Geografia das Juventudes, em disciplina e nos espaços de diálogo. Pela leitura generosa da tese e pelos caminhos sugeridos. Prof. Dr. Marcio José Catelan, pela leitura sensível e pelas provocações sobre o conceito de interseccionalidades. Pelo carinho que sempre teve comigo ao longo do mestrado e doutorado. Às/Aos professoras/es, Divino José da Silva, Vanda Moreira Machado de Lima, Arthur Magon Whitacker, Eliseu Savério Sposito, Everaldo Santos Melazzo, Eda Maria Góes, Rosiane de Fatima Ponce, João Osvaldo Rodrigues Nunes e Maria Rodó-de-Zárate, pelas contribuições em minha formação. Por serem profissionais exemplares, que conduzem importantes agendas de pesquisa. Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, Foi uma honra ser discente de um programa de pós-graduação tão importante para a Geografia Brasileira. Nesses seis anos, entre mestrado e doutorado, pude me qualificar e conhecer muitas/os pesquisadoras/es excelentes. Tive muitas oportunidades que fizeram toda diferença em minha vida e experiências que jamais esquecerei. Às/Aos servidoras/es da UNESP, Aline da Silva Ribeiro Muniz, Aparecida Tamae Otsuka e Adriano da Silva Ribeiro, pelo suporte nas questões burocráticas, disponibilidade, empatia e competência. Vocês são exemplos de profissionais. Katiane pelo cuidado com o GeoJuves, pela competência e simpatia, eu entrava no Bloco de Aulas 01 esperando um bom dia. Aos seguranças da guarita, sempre simpáticos e queridos, em especial Mauro, Ciro e Pedro. À UNESP Pelas oportunidades, infraestruturas e instalações. Fui discente e docente nessa instituição, graças às oportunidades de uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Ao Slam Quilombo de Dandara, Pela amizade e aprendizados. Estabelecemos uma ligação que foi além da pesquisa e pude aprender sobre o fazer cultura. Aline da Silva Marcelino, Emily Fernanda Viana de Souza, Lorena Tomiazzi e Thiago Faustino Aguiar, obrigada pelos ensinamentos e pelas trocas. Presidente Prudente se tornou mais especial pela presença de vocês. Parabéns por fazerem cultura e resistirem. Às jovens negras das coletivas da cultura periférica, Pelas contribuições na elaboração desta tese, pelos ensinamentos e pelo acolhimento. Por se tornarem mais do que interlocutoras da pesquisa, mas sim amigas e companheiras da produção cultural. Aprendi sobre ser mulher negra e resistir em cidades que não foram feitas para nós. A força e a história de vocês me inspiram. Alliblack, Emily Souza, Tawane Theodoro, Ingrid Martins, Nyarai, Cleópatra, Venezian e Lav, o mundo precisa conhecer a arte de vocês. À CAPES, O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. À FAPESP, O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil. Processo nº 2021/05258-2 (Bolsa Regular) e processo nº 2023/14622-5 (Bolsa de Estágio de Pesquisa no exterior – BEPE). javascript:openProcess('338069',%20'false') Vozes-Mulheres A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade. (Conceição Evaristo. Poemas de recordação e outros movimentos. p. 10-11, 2008) RESUMO No anseio de viver da arte e traçar outras trajetórias de vida espacializada, jovens mulheres negras se encontram na cultura periférica, produzindo narrativas sobre si e contribuindo na reconfiguração das periferias, enquanto espaços vivíveis. Elas instituem práticas espaciais e desencadeiam outras, a partir da organização de coletivas para onde confluem fluxos de jovens de diferentes áreas das cidades, que rompem com barreiras socioespaciais em busca da sociabilidade e da expressão. Nesse movimento, esta tese objetiva compreender as relações entre práticas espaciais de coletivas de jovens mulheres negras da cultura periférica e as lógicas de produção das cidades e como essa cultura contribui para a instituição de suas espacialidades e identidades. Trata-se de um estudo urbano comparado entre a metrópole de São Paulo (SP) e as cidades médias de Londrina (PR) e de Presidente Prudente (SP), que se desdobrou em duas frentes: primeiro, a interpretação das práticas espaciais de deslocamentos pela cidade e de apropriação dos espaços públicos realizadas por jovens que participam de quatro coletivas culturais: a Batalha Dominação, o Sarau do Capão, a Batalha da Máfia e o Slam Quilombo de Dandara; e segundo, a tessitura de uma trama que relaciona a estrutura socioespacial e temporal com as trajetórias interseccionais de vida espacializada de oito jovens mulheres negras que organizam as coletivas culturais, no esforço de pensar o conceito de contexto geográfico. A pesquisa é etnográfica e colaborativa, em que foram realizadas entrevistas, aplicação de questionários, elaboração de mapas e proposição de uma representação cartográfica. Defendemos que a tese se estrutura sobre alguns pontos principais: interseccionalidades e espaço geográfico formam um movimento indissociável, em que a cultura periférica é responsável por positivar as identidades de jovens mulheres negras; as práticas espaciais da cultura periférica são insurgentes e ao mesmo tempo que reforçam as lógicas socioespaciais de produção das cidades, também as contrariam, como na emergência de um movimento periferia-periferia; e a cultura periférica constitui uma identidade periférica transescalar, que extrapola a delimitação espacial de uma única periferia na cidade e conecta diferentes periferias. Palavras-chave: Jovens mulheres negras; Cultura periférica; Práticas espaciais; Interseccionalidades; Lógicas socioespaciais. ABSTRACT In the desire to live from art and trace other trajectories of spatialized life, young black women find themselves in peripheral culture, producing narratives about themselves and contributing to the reconfiguration of the peripheries as liveable spaces. They institute spatial practices and trigger others, based on the organization of collectives where flows of young people from different areas of the city converge, breaking down socio-spatial barriers in search of sociability and expression. In this movement, this thesis aims to understand the relationship between the spatial practices of collectives of young black women from peripheral cultures and the logic of city production, and how this culture contributes to the institution of their spatialities and identities. This is a comparative urban study between the metropolis of São Paulo (SP) and the medium-sized cities of Londrina (PR) and Presidente Prudente (SP), which unfolded on two fronts: firstly, the interpretation of the spatial practices of moving around the city and the appropriation of public spaces carried out by young people who take part in four cultural collectives: Batalha Dominação, Sarau do Capão, Batalha da Máfia and Slam Quilombo de Dandara; and second, the weaving of a plot that relates the socio-spatial and temporal structure to the intersectional spatialized life trajectories of eight young black women who organize the cultural collectives, in an effort to think about the concept of geographical context. The research is ethnographic and collaborative, in which interviews were conducted, questionnaires applied, maps drawn up and a cartographic representation proposed. We argue that the thesis is structured around a few main points: intersectionalities and geographical space form an inseparable movement, in which peripheral culture is responsible for positivizing the identities of young black women; the spatial practices of peripheral culture are insurgent and while they reinforce the socio-spatial logics of city production, they also counteract them, as in the emergence of a periphery-periphery movement; and peripheral culture constitutes a trans-scalar peripheral identity, which goes beyond the spatial delimitation of a single periphery in the city and connects different peripheries. Keywords: Young black women; peripheral culture; Spatial practices; Center-periphery; Socio-spatial fragmentation. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Edição da Batalha Dominação – 30 de outubro de 2023 ..................................23 Figura 2: Edição de aniversário de 7 anos do Sarau do Capão – 16 de março de 2024 ..27 Figura 3: Edição da Batalha da Máfia – 27 de março de 2024 .........................................32 Figura 4: Slam Quilombo de Dandara – 12 de março de 2023 ........................................35 Figura 5: Gráficos sobre o público da Batalha Dominação - 2023 ................................131 Figura 6: Gráficos sobre o público do Sarau do Capão – 2024 ......................................136 Figura 7: Gráficos sobre o público da Batalha da Máfia – 2024 ....................................140 Figura 8: Gráficos sobre o público do Slam Quilombo de Dandara – 2023 ..................144 Figura 9: Motivação do público para frequentar os eventos das coletivas da pesquisa. 152 LISTA DE MAPAS Mapa 1: Situação geográfica de São Paulo-SP ...............................................................94 Mapa 2: Espacialização dos coletivos da cultura periférica em São Paulo-SP (2024) ...98 Mapa 3: Cultura periférica e indicadores sociais em São Paulo-SP (2024) ...................101 Mapa 4: Situação geográfica de Londrina-PR ..............................................................104 Mapa 5: Espacialização dos coletivos da cultura periférica em Londrina-PR (2024) ...109 Mapa 6: Espacialização dos coletivos da cultura periférica (2024) e da população negra (2010) em Londrina-PR .................................................................................................111 Mapa 7: Situação geográfica de Presidente Prudente-SP ..............................................113 Mapa 8: Espacialização dos coletivos da cultura periférica em Presidente Prudente-SP (2024) ............................................................................................................................119 Mapa 9: Espacialização dos coletivos da cultura periférica (2024) e da população negra (2010) em Presidente Prudente-SP ................................................................................122 Mapa 10: Locais de origem do público da Batalha Dominação em São Paulo-SP (2024) .......................................................................................................................................133 Mapa 11: Locais de origem do público do Sarau do Capão em São Paulo-SP (2024) .......................................................................................................................................138 Mapa 12: Locais de origem do público da Batalha da Máfia em Londrina-PR (2024) .......................................................................................................................................141 Mapa 13: Locais de origem do público do Slam Quilombo de Dandara em Presidente Prudente-SP (2024) .......................................................................................................145 Mapa 14: Trajetória interseccional de Ingrid Martins .................................................186 Mapa 15: Trajetória interseccional de Nyarai .............................................................191 Mapa 16: Trajetória interseccional de Tawane Theodoro ...........................................195 Mapa 17: Trajetória interseccional de Cleópatra .........................................................200 Mapa 18: Trajetória interseccional de Venezian .........................................................203 Mapa 19: Trajetória interseccional de Alliblack .........................................................207 Mapa 20: Trajetória interseccional de Emily ..............................................................211 Mapa 21: Trajetória interseccional de Lav ..................................................................215 Mapa 22: Espacialidades das jovens negras da cultura periférica em São Paulo...........219 Mapa 23: Espacialidades das jovens negras da cultura periférica em Londrina ............222 Mapa 24: Espacialidades das jovens negras da cultura periférica em Presidente Prudente .......................................................................................................................................224 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Coletivos da cultura periférica de São Paulo-SP, em número (2024) .............97 Quadro 2: Coletivos da cultura periférica de Londrina-PR (2024) ...............................107 Quadro 3: Coletivos da cultura periférica de Presidente Prudente-SP (2024) ..............118 LISTA DE SIGLAS BNH Banco Nacional de Habitação CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior COHAB Companhia de Habitação COOPERIFA Cooperativa Cultural da Periferia DJ Disc Jockey FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FNMH2 Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop GAsPERR Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LGBTQIAPN+ Lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais, pan e polissexuais, não-binários e mais MC Mestre de cerimônias MTE Ministério do Trabalho e Emprego PROAC Programa de Ação Cultural PROMIC Programa Municipal de Incentivo à Cultura PROUNI Programa Universidade para Todos RAIS Relação Anual de Informações Sociais REGIC Regiões de Influência das Cidades SEADE Sistema Estadual de Análise de Dados SESC Serviço Social do Comércio UEL Universidade Estadual de Londrina UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” VAI Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais SUMÁRIO PRÓLOGO – AS COLETIVAS E AS JOVENS NEGRAS DA PESQUISA ........... 21 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 41 A posicionalidade da pesquisadora: encontro entre jovens mulheres negras ............. 43 A hipótese da tese ....................................................................................................... 47 As tramas da tese: os capítulos ................................................................................... 48 CAPÍTULO 1: JOVENS MULHERES NEGRAS E A CULTURA PERIFÉRICA: INTERSECÇÕES NA PRODUÇÃO DAS CIDADES ............................................... 51 1.1 Jovens mulheres negras da cultura periférica: a margem como potência ............. 52 1.2 A cultura periférica e uma identidade periférica ................................................... 62 1.3 Periferia: entre conceituações, reconfigurações e disputas de significado ........... 70 CAPÍTULO 2: A TRAJETÓRIA INVESTIGATIVA MULTILOCALIZADA – O DEVIR DA PESQUISA COLABORATIVA .............................................................. 80 2.1 As bases epistemológicas ...................................................................................... 80 2.2 As estratégias metodológicas ................................................................................ 83 CAPÍTULO 3: CULTURA PERIFÉRICA E OS CONTEXTOS URBANOS - AS JUVENTUDES SE FAZEM NOS ESPAÇOS PÚBLICOS ....................................... 91 3.1 A cena da cultura periférica de São Paulo ............................................................ 92 3.2 A cena da cultura periférica na cidade de Londrina ........................................... 103 3.3 A cena da cultura periférica na cidade de Presidente Prudente .......................... 112 CAPÍTULO 4. COLETIVAS DE JOVENS NEGRAS DESENCADEANDO PRÁTICAS ESPACIAIS: A MARGEM COMO ABERTURA .............................. 127 4.1 Centro e periferia na produção cultural de São Paulo: Batalha Dominação e Sarau do Capão ................................................................................................................... 128 4.1.1 Batalha Dominação .......................................................................................... 130 4.1.2 Sarau do Capão ................................................................................................ 135 4.2 Londrina: Batalha da Máfia ................................................................................ 139 4.3 Presidente Prudente: Slam Quilombo de Dandara .............................................. 143 4.4 Práticas espaciais insurgentes da cultura periférica: as coletivas em relação às lógicas socioespaciais ............................................................................................... 147 CAPÍTULO 5: ENTRE INSURGÊNCIAS E SUBORDINAÇÕES: CONTEXTOS URBANOS, CULTURA PERIFÉRICA E FRAGMENTAÇÃO SOCIOESPACIAL ....................................................................................................................................... 154 5.1 Uma leitura interseccional do processo de fragmentação socioespacial ............ 154 5.2 O estudo comparado que nos direciona para os contextos geográficos da cultura periférica ................................................................................................................... 158 5.3 Cultura periférica e fragmentação socioespacial ................................................ 169 CAPÍTULO 6: TRAJETÓRIAS INTERSECCIONAIS DE JOVENS NEGRAS: O CONTEXTO GEOGRÁFICO DAS CIDADES MÉDIAS E METRÓPOLE ........ 180 6.1 Interseccionalidades e contexto geográfico ........................................................ 180 6.2 As trajetórias interseccionais das jovens negras da cultura periférica ................ 184 6.3 O contexto geográfico das cidades médias e da metrópole para as jovens mulheres negras da cultura periférica ....................................................................................... 217 6.4 Jovens mulheres negras nas cidades fragmentadas ............................................. 230 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 234 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 240 APÊNDICES ................................................................................................................ 259 APÊNDICE A ........................................................................................................... 259 APÊNDICE B .......................................................................................................... 261 APÊNDICE C ........................................................................................................... 263 APÊNDICE D ........................................................................................................... 265 APÊNDICE E ........................................................................................................... 266 21 PRÓLOGO – AS COLETIVAS E AS JOVENS NEGRAS DA PESQUISA Na metrópole São Paulo e nas cidades médias Londrina e Presidente Prudente, as trajetórias de vida espacializada de jovens mulheres negras da cultura periférica se constituíram e se cruzaram a outras, produzindo novos encontros, entrelaçamentos e insurgências. Quatro coletivas – batalhas de rima, sarau e slam – se construíram nesse movimento. Elas orientam as interpretações tecidas nesta tese e são apresentadas nas páginas seguintes, assim como as jovens que as organizam. Batalha Dominação (São Paulo): corpos transgressores ocupando o berço do Hip Hop O Largo São Bento, berço da cultura Hip Hop no Brasil, localizado no centro de São Paulo, possui uma circulação intensa de pessoas durante todo o dia, muitas delas entrando e saindo da Estação São Bento. À noite, as movimentações cessam, poucas pessoas passam pelo local e quem está mais presente são as que vivem em situações de rua, que dormem em barracas no Largo. Contudo, quinzenalmente nas noites de segunda- feira, a movimentação é outra. A Batalha Dominação ocupa a São Bento. Classificada pelas organizadoras como “batalha de conhecimento voltada para mulheres, trans masculinos e não bináries”. Por volta das 19h, três mulheres iniciam a montagem de equipamentos embaixo de uma banca de jornal: gerador, mesa, som, refletor, microfone e tendas. Elas são Nyarai, Ingrid Martins e Priscilla Simas, as três organizadoras da Batalha Dominação. Enquanto isso, outras pessoas jovens abrem uma tenda e realizam as preparações para a venda de bebidas, é o “Bar Delus”. E DJ Taiwan monta seus equipamentos para discotecar e embalar a galera com raps, traps e funks. Nesse contexto, jovens da metrópole começam a chegar na São Bento e vão se cumprimentando, muitas/os se conhecem e vibram quando se veem, mas na atmosfera de coletividade que ali se instala não é necessário conhecer para ser cumprimentada/o com um “salve”. Mulheres, homens trans e pessoas não binárias marcam suas corporeidades na Batalha, os homens são minoria. Os estilos são variados, desde roupas justas a largas, tênis a salto alto, cabelos diversos, seja black power, tranças, dreads ou liso. As pessoas vão chegando, comprando bebidas e formando rodas. Algumas rimam e outras conversam e riem. Chegam também as/os 22 empreendedoras/es que intencionam vender seus produtos como bijuterias, sabonetes, fanzines e comidas. Nyarai conversa com as pessoas e vai anotando os nomes daquelas que querem participar do microfone aberto ou da batalha de rima. Enquanto isso, Ingrid Martins desenha a folhinha da/o vencedora/or. Por volta das 20h, começa o microfone aberto, pessoas recitam poesias e cantam seus sons. Aplausos e gritos para todas. Em seguida, é a hora da batalha! Nyarai e Ingrid Martins são as MCs que conduzem a competição. É marcante a sintonia entre elas, que criam um clima descontraído e acolhedor, brincando inúmeras vezes entre si e com o público. A batalha começa e a cada round, o público sugere temas para as batalhas: racismo, machismo, amor, prazer, política, educação e outros. Na Dominação não se fala somente de desigualdades, injustiças e reivindicações, rima-se também sobre amor e prazer, demonstrando que aqueles corpos transgressores não querem se resumir à resistência, mas querem demonstrar que possuem sentimentos, desejos e alegrias, o que também é uma forma de militância. Gritos, aplausos e comemorações. Nas rimas críticas sobre os temas sociais, a galera apoia e demonstra que compartilha dos mesmos ideais. Nas rimas sobre amor e prazer, a galera vibra. O clima não é de competição, as/os MCs se apoiam, se abraçam e se ajudam, assim como o público. A coletividade prevalece! São corpos marginalizados que entendem o espaço da Dominação como potência e forma de expressão, assim não intencionam criar rivalidades, mas sim amizades. Antes da batalha final, geralmente acontece um pocket show e a descontração aumenta, todas/os dançam, descem até o chão, cantam e gritam. São formas de demonstrar para a pessoa que se apresenta que a arte dela é apreciada. Pessoas que hoje têm muito alcance na cena do rap nacional passaram pela Dominação: Bia Ferreira, Emicida, Rap Plus Size, Sodomita, Brisa Flow e Souto MC. Os pocket shows são também uma forma de aumentar a visibilidade de quem soma com a batalha. Durante toda a batalha, pessoas passam pelo Largo São Bento, geralmente trabalhadoras/es que objetivam chegar em casa o mais rápido possível para descansar para um novo dia de trabalho. Algumas pessoas param, apreciam a batalha por alguns minutos e logo depois seguem seus trajetos. Há também as pessoas em situação de rua, que assistem atentamente a batalha, pedem bebida, cigarro ou comida às/ aos jovens, pedem para falar no microfone e também sugerem temas. Todas são bem-vindas na Dominação, aqueles corpos sabem o que é opressão e buscam não discriminar ninguém. 23 Por volta das 23h30, a batalha termina (Figura 1). Algumas pessoas vão embora antes do fim, nem sempre o trajeto para a casa é rápido. A organização se preocupa em finalizar as atividades antes de o metrô fechar, a maior parte do público utiliza esse meio de transporte e o deslocamento até suas casas é longo, muitas vezes ainda combinado ao uso do ônibus. Mas há também aquelas/es jovens que continuam na São Bento, bebendo, fumando, conversando, rindo e rimando. As organizadoras curtem um pouco e logo começam a desmontar todos os equipamentos. É necessário levar tudo até um box1 localizado na área central, que foi alugado porque, conforme a coletiva adquiriu mais equipamentos através de editais, já não era possível carregar tudo no metrô ou em carros de aplicativo de transporte. Quem ajuda a guardar os equipamentos é um homem que integra um coletivo de futebol que apoia a Batalha. Esse parceiro utiliza seu automóvel próprio para auxiliar no transporte, uma Kombi. Após tudo organizado, Nyarai, Ingrid Martins e Priscilla Simas podem voltar para as suas casas. Já é madrugada. Figura 1: Edição da Batalha Dominação – 30 de outubro de 2023 Fonte: Instagram2, 2024. Essa narrativa é possível porque há oito anos ocorreu um acontecimento que iniciou a formação da coletiva Batalha da Dominação, nas palavras de Ingrid Martins, em entrevista: “[...] se abriu um portal, todo mundo que tava nesse dia subentende que abriu um portal mesmo, um buraco se criou na terra e ali surgiu alguma coisa muito doida [...] 1 Uma área alugada para guardar objetivos, gerenciada por uma empresa de armazenamento. 2 Disponível: https://www.instagram.com/batalhadominacao/. https://www.instagram.com/batalhadominacao/ 24 porque foi ali que muitas pessoas se conheceram e estabeleceram uma amizade”. Ingrid está se referindo a uma edição do Slam das Minas, uma das maiores coletivas de slam de São Paulo, formada por mulheres e destinada a mulheres, e que realiza edições itinerantes na metrópole. Nessa edição, Ingrid Martins conheceu Gabi Nyarai, Bia do Oxum, Sara Donato, Júpiter e Souto. Anterior a esse “portal”, a batalha de rima já acontecia desde 2016 por meio do DMNA, um coletivo de audiovisual e de artistas, também feito por mulheres e voltado para elas. A Batalha Dominação foi criada a partir da constatação de que as mulheres não tinham espaço para rimar nas batalhas de rima convencionais, além de não se sentirem à vontade. Essa reflexão e incômodo motivaram Gabi Nyarai e outras MCs que integravam o DMNA a constituírem a Dominação: “[...] a batalha surge com recorte de mulheres por conta do machismo no rap e afins” (Ingrid Martins em entrevista, abril de 2024). Quando a formação do coletivo DMNA se desfez, em função das mulheres organizadoras tomarem outros rumos na carreira, Gabi Nyarai quis continuar com a Batalha e assim o fez com a contribuição de algumas pessoas. Nos dois primeiros anos, a Batalha Dominação acontecia uma vez por mês, aos sábados no Largo São Bento, até então destinada somente a mulheres. Ingrid Martins explica a escolha do Largo São Bento como espaço público em que a Batalha ocorre: “[...] o grande foco era continuar o legado na São Bento, porque o bagulho é o berço do Hip Hop e nós queríamos estourar”. Nyarai complementa: “É um lugar histórico e várias minas passaram por lá e fizeram história, mas a gente não sabe o nome delas, então nós queríamos reescrever a história, para não ser perdida”. Somado a isso, trata-se de um espaço acessível e central, ao lado da estação de metrô São Bento. Após passar por algumas formações em termos de organização, em 2018 a Dominação firmou sua formação atual influenciada pelo “portal” criado no Slam das Minas, sendo composta por Gabi, Ingrid e Priscilla. Outra mudança foi a ampliação do recorte de gênero inicial. Hoje é classificada pelas organizadoras como destinada a “mulheres, trans masculinos e não bináries”. Ingrid Martins relata que esse movimento ocorreu conforme muitas pessoas que participavam dos eventos realizaram a transição de gênero: [...] os MCs que já colava para batalhar transicionaram, muita gente transicionou, então tipo naturalmente as coisas foram acontecendo. Quando foi ver, muita gente já tava nesse processo de transição, já se reconhecendo de outras formas e não fazia mais sentido continuar com um grito só de mulheres e ser só de mulheres se tinha vários MCs com nós que transicionaram e já não se sentiam mais confortáveis com o termo mulher. Teve um dia que alguém já meteu um grito 25 “transicionando!”, o grito, tá ligado?! [risos], e aí nós ficou "Ó", aí as coisas foram naturais [...] até o momento que a gente oficializou: a batalha é voltada para mulheres, pessoas trans e pessoas não-binárias (Ingrid Martins em entrevista, abril de 2024). Atualmente, a Batalha Dominação possui grande relevância na cena da cultura periférica de São Paulo e é um exemplo de transformação social e da importância de estar disposta/o a mudar de acordo com o próprio movimento de pluralidade das juventudes. Seu maior diferencial é o acolhimento a corpos trans e não binários, além de mulheres, demarcando isso nos gritos que iniciam as batalhas, na instituição da coletiva e nas oportunidades criadas para identidades marginalizadas e transgressoras. Assim, a Batalha Dominação escreve uma nova página na história do Hip Hop e da cultura periférica, produzindo uma cultura que inclui todos os corpos. Foi a partir de um acontecimento (edição do Slam das Minas) que duas trajetórias de mulheres periféricas negras se cruzaram: Ingrid Martins da zona norte e Gabi Nyarai da zona sul de São Paulo. Jovens que estavam construindo sua trajetória na cultura periférica e que potencializam suas identidades no encontro. Naquele momento, separadas por uma extensa distância geográfica, mas que se unem no centro e passam a produzir transformação, juntamente com a jovem potiguar Priscilla Simas. Na potência desses encontros, as jovens consolidam sua importância na cena da cultura periférica e propiciam novos cruzamentos, que seguem acontecendo constantemente, fazendo periferia no centro! Sarau do Capão (São Paulo): afirmando o conhecimento e a arte produzidos na margem As trajetórias de vida espacializada de duas jovens negras periféricas do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, se cruzaram por meio da educação no ano de 2016. Tawane Theodoro e Jéssica Campos, organizadoras do Sarau do Capão, se conheceram no Cursinho Popular Carolina de Jesus, localizado no Capão Redondo, destinado à educação popular com foco na preparação de jovens periféricas/os para ingresso nas universidades. Um cursinho que visa transformação social e possui um nome memorável. Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira, mulher preta, favelada e mãe solo. Em seus diários, denunciou as dificuldades vivenciadas na antiga Favela do Canindé, que foi destruída para a construção da Marginal Tietê. A autora demonstrou como é ser uma mulher preta empobrecida, com relatos sobre a fome, a recolha de papel nas ruas, a 26 criação dos filhos e as relações entre faveladas/os. Uma mulher que demorou anos a ter o merecido reconhecimento, conquistado por meio de sua escrita, tal como Tawane Theodoro e Jéssica Campos fazem hoje. Em 2016, Tawane e Jéssica ingressaram no Cursinho e foi o ponto de mudança para as jovens desenvolveram um pensamento crítico sobre questões sociais, reconhecendo-se enquanto mulheres negras periféricas que são atingidas por uma combinação de opressões estruturais. Um professor de português foi o incentivador a iniciarem a escrita de poesias, por acreditar que a poesia abre a imaginação. Assim, antes da elaboração de redações, ele solicitava primeiro a escrita de uma poesia. O professor foi responsável não somente por estimular a criação de poesias, mas também o recital delas. Esse cenário demonstra a importância da educação para a propagação da cultura periférica, além das questões relacionadas à criticidade, conhecimento e construção das identidades. Tawane Theodoro conta que o Cursinho Popular Carolina de Jesus realizava saraus periodicamente. Percebendo o entusiasmo de Tawane e Jéssica na aproximação com a poesia, o professor convidou as jovens para recitar no sarau e a também ir em slams. Assim conheceram o Slam Resistência, além de outros coletivos como Slam das Minas, por meio do Youtube. No primeiro sarau frequentado pelas jovens e promovido pelo Cursinho, Tawane e Jéssica recitaram juntas uma poesia escrita por elas. Um evento que abriu um campo de possibilidades para as jovens que, a partir disso, continuaram participando de saraus e slams, além de escrever poesias. Vivendo uma espécie de êxtase poético, relatam que estavam viciadas em poesia, uma intensidade comum na juventude. Quando o Cursinho entrou no período de férias, as jovens ficaram sem o contato com os saraus, assim como a proximidade física com as amizades também diminuiu. Em janeiro de 2017, Tawane e Jéssica criaram o Sarau do Capão, sem imaginar a proporção que a coletiva conquistaria logo na primeira edição e nos anos seguintes: “[...] ele começa comigo e com a Jéssica tendo 17 anos e iniciando um coletivo com 4 meses de carreira, o que a gente era? Malucas! [risos] A gente tava consumindo tanto poesia, que quando o cursinho entrou de férias, a gente falou: "Pô, vamos fazer um sarau pra reunir o pessoal", fizemos o sarau na Fábrica de Cultura do Capão. Eles depois abraçam a ideia e pediram pra gente tornar mensal”. (Tawane Theodoro em entrevista, setembro de 2023) O Sarau do Capão realizou suas primeiras edições na Fábrica de Cultura do Capão, importante equipamento cultural para a zona sul. As potências da coletiva demonstram a 27 relevância desses equipamentos na periferia. São espaços que propiciam acesso à educação e cultura, alinhados com a realidade periférica. Daí a necessidade de ampliação de políticas públicas que são de cultura, mas também de juventudes, tal como o Programa de Fábricas de Cultura de São Paulo. Atualmente, o Sarau ocorre de forma itinerante na zona sul da metrópole. Reunindo poesia, dança, música e outras formas de arte, a coletiva propicia lazer, cultura, conhecimento e expressão para as juventudes periféricas. Jovens que já não precisam se deslocar ao centro para ter acesso à cultura, pois possuem a possibilidade de permanecer em suas quebradas. Nesse contexto, duas jovens periféricas estão no centro de todo o movimento, demonstrando a potência da união entre mulheres pretas. Onde se espacializa, o Sarau do Capão modifica não somente as dinâmicas socioespaciais do local. Comumente, as edições ocorrem aos sábados, as que participei já ocorreram na Fábrica de Cultura do Capão e na Associação Bloco do Beco. Outros espaços ocupados foram a Casa de Cultura do Campo Limpo, a Casa de Cultura M’Boi Mirim, a Fábrica de Cultura do Jardim São Luís e o Cursinho Popular Carolina de Jesus. O relato de observação que apresento a seguir é baseado na edição de aniversário de sete anos da coletiva (Figura 2), que ocorreu em 16 de março de 2024 na Fábrica de Cultura do Capão Redondo: Figura 2: Edição de aniversário de 7 anos do Sarau do Capão – 16 de março de 2024 Fonte: Instagram3, 2024. “Depois de 2h de deslocamento [vinha da Barra Funda, zona central de São Paulo], cheguei a Fábrica de Cultura do Capão Redondo, um trajeto que envolveu três 3 Disponível em: https://www.instagram.com/saraudocapao/. https://www.instagram.com/saraudocapao/ 28 linhas de metrô, duas baldeações, uma parte do percurso de ônibus e mais 10 minutos de caminhada entre o ponto de ônibus e a Fábrica. [...] O palco estava todo iluminado, luzes de diferentes cores que criavam uma outra atmosfera. Tawane Theodoro e Jéssica Campos preparavam os últimos detalhes, havia uma mesa de som, caixas de som e um microfone posicionado em um tripé no centro do espaço, que é aberto e possui uma arquibancada, como um palco. As jovens corriam de um lado para o outro buscando deixar tudo organizado. Essa preparação foi iniciada bem antes da minha chegada, mas continuou a ocorrer, porque organizar um coletivo envolve não ficar parado durante todo o evento, sempre há algo a se preocupar. A edição do Sarau estava marcada para as 18h30. A galera começou a chegar por volta das 19h. Muitos rostos conhecidos, que eu já havia visto em outras edições do Sarau, ou seja, há um público fiel. Em sua maioria negras/os, as/os jovens foram se posicionando na arquibancada e grupos de conversa se formaram, era visível que muitas pessoas se conheciam, principalmente pelas reações ao se encontrarem. Sempre quando novas pessoas chegavam, cumprimentavam a todas/os, inclusive a mim. Não demora muito a Tawane e Jéssica se posicionarem no centro do palco. Não disseram boa noite ou sejam bem-vindas/os, já iniciaram recitando uma poesia em conjunto que terminou com o seguinte verso: “Somos o Sarau do Capão”. O intuito era impactar, concentrar toda a atenção e demonstrar que o sarau iria começar: a poesia estava no centro. Depois disso, veio um amistoso boa noite, a menção de que era aniversário do coletivo e por isso uma edição especial e a explicação de como era um sarau, sendo que nas palavras de Tawane: “o mais importante é esse microfone não ficar vazio”. Há uma sintonia forte entre as jovens, são amigas há anos e possuem uma parceria marcante, proferindo discursos engraçados ao longo do sarau como forma de descontração. Tawane brincou que se o microfone ficasse vazio, ela seria obrigada a cantar, logo Jéssica pediu para que as pessoas não deixassem isso acontecer, afinal não considerava que a amiga cantava muito bem. Uma pessoa por vez foi caminhando até o centro do espaço, algumas foram mais de uma vez. A maior parte das/os artistas recitaram poesias, sobre diferentes temas: racismo, sexismo, amor, esperança e relações familiares. Duas pessoas cantaram, uma delas era a irmã de Tawane. A presença da família de Tawane chama muito a atenção, a mãe e a irmã sempre estão nos saraus e se expressam artisticamente. Inclusive, a mãe dela recitou uma poesia sobre o amor de mãe para suas/seus filhas/os, terminou que todas/os nós estávamos emocionadas/os, ainda mais quando mãe e filhas se abraçaram. 29 Conforme o microfone ficava vazio, Tawane e Jéssica incentivavam o público a se expressar. Por se conhecerem, as/os jovens também se incentivavam: “vai lá, recita aquela”. Em algumas vezes, quando uma/um artista começava a recitar, alguém vibrava com reações como: “essa é profunda” e “essa é pesada”. Quando todas as pessoas que desejam se apresentar já haviam ido ao centro do palco, as meninas decidiram que era hora de encerrar o microfone aberto. Encerraram com a poesia sobre o Sarau do Capão. Em seguida, teve uma roda de samba do grupo “Amigos do Ernesto”. Todo mundo foi ao centro do palco, formou a roda, dançou e cantou músicas. Foi interessante porque eu nunca havia visto uma roda de samba em saraus, slams ou batalhas de rima, mas o samba também é uma cultura da periferia e isso demonstra como o Sarau do Capão realmente abarca diferentes artes. Ao fim do Sarau, teve bolo. Cantamos parabéns e Tawane e Jéssica agradeceram a presença de todas/os e a parceria com o coletivo. Enquanto comiam bolo, todas/os interagiram. Logo, as organizadoras começaram a guardar os equipamentos e o público foi se espalhando”. (Diário de campo, 16 de março de 2024) Nesses delineamentos ocorrem as edições do Sarau do Capão, que faz a cultura periférica na periferia, ressignifica esse espaço e confirma a ideia da zona sul de São Paulo como um polo de cultura na metrópole. O Capão Redondo, onde o Hip Hop se consolidou como cultura negra, juvenil e periférica no Brasil e que também foi a base para a estruturação da cultura periférica paulistana, transforma-se a partir do Sarau do Capão. Já não se trata de uma cultura constituída somente por coletivos organizados por homens, como foi durante anos, agora as mulheres também falam e criam seus próprios espaços de partilha e escuta. Duas jovens negras, Tawane Theodoro e Jéssica Campos, assumem posição central e desencadeiam dinâmicas socioespaciais no espaço geográfico. Batalha da Máfia (Londrina): mulheres negras continuando uma história “Criamos esse espaço pra construir a união entre quem não se sente representade em certas batalhas da cena. Para todes que querem rimar, se expressar e se sentirem segures e confortáveis. Cola com a sua poesia, sua escrita, seu Slam, sua arte. Mulheres, pessoas trans / NB, tem a vaga garantida na batalha. [...] Queremos ter a liberdade de existir, aprender com vocês e que vocês possam aprender com a gente, um espaço sem 30 rivalidade, politizado e sem julgamentos e acima de tudo SEM a presença de pessoas que são o símbolo de opressão e violência contra nossos corpos”4. Com esse post no Instagram, a Batalha da Máfia marcou uma cisão na cena cultural londrinense, que vinha sendo produzida somente por coletivos organizados majoritariamente por homens. Preta Mar, Venezian, Cleópatra e Dayo, quatro jovens negras, com trajetórias distintas, mas que já haviam se cruzado, e que além dos marcadores sociais de raça, gênero, classe e idade, também compartilhavam vivências permeadas por violências. Na ausência de um espaço acolhedor para mulheres, se fortalecem mutuamente e decidem criar seu próprio espaço: [...] a gente gostaria de ter um espaço para rimar, porque aconteceram violências dentro do movimento, de a gente sofrer machismo, misoginia e ver violências contra mulheres acontecendo na nossa frente, dentro das batalhas de rima. E foram momentos muito ruins, assim, porque a gente estava muito sem ter onde ir, tá ligado? E aí a Máfia veio muito nesse encontro. A gente já era amigas antes da coletiva e compartilhava essas vivências, e aí a Mar falou “Não mano, vamos fazer uma coisa nossa, a gente vai fazer uma batalha de rima pra gente poder, vamos fazer um movimento nosso, em que as nossas e os nossos possam se sentir confortáveis dentro do nosso espaço”, e foi assim que a Máfia surgiu, tá ligado? E é muito lindo isso, porque realmente é uma coisa que fez uma diferença extrema na nossa vida e na vida de outras pessoas que a gente vê. [...] A gente trouxe muito desse legado que foi deixado pela Batalha das Minas Londrina. [...] a Batalha da Máfia entrelaça narrativas E histórias, e a gente se reconhece uma na história da outra, estamos aprendendo juntas o tempo inteiro (Cleópatra em entrevista, setembro de 2024). A Coletiva Máfia foi criada em janeiro de 2023 e, atualmente, realiza as edições de batalhas de rima às quartas-feiras, às 19h30, na praça da Rua Argentina, na Vila Brasil, zona central de Londrina. Elas continuam uma história, pois três das quatro organizadoras participavam do coletivo Batalha das Minas – Londrina, que pude acompanhar na pesquisa de mestrado (Marques, 2021) e que foi desativado em 2022, em função da principal organizadora mudar-se da cidade. Por volta do horário de início, jovens começam a chegar na praça, sentam-se em grupos nos poucos bancos e misturam algumas bebidas alcóolicas em copos. A maior parte das pessoas chega de carro e moto, em grupos, demonstrando que compartilham caronas. Há também pessoas que chegam de bicicleta e aquelas que vêm andando do ponto de ônibus mais próximo. Por um bom tempo, todas ficam conversando. Formam- se rodas de freestyle, em que as/os MCs ficam rimando entre si para treinar. Quando uma boa quantidade de pessoas está reunida, a batalha inicia. 4 Retirado de: https://www.instagram.com/coletivomafia/. Post realizado em 15 de janeiro de 2023. https://www.instagram.com/coletivomafia/ 31 Na Máfia, a prioridade para rimar é das mulheres e pessoas LGBTQIA+, porém homens também podem participar e, inclusive, formam a maior parte das/os MCs, assim como do público. Em função de muitos MCs se inscreverem para batalhar, é comum os rounds serem em duplas ou ocorrer um sorteio para definir quem poderá competir. As organizadoras dividem o trabalho ao longo da batalha: MC, cronometragem dos tempos, sorteio de temas (quando a batalha é de conhecimento) e mídias sociais. É visível o respeito dos homens com as organizadoras e outras mulheres que frequentam a coletiva, diferente do que já presenciei em outras batalhas de rima da cidade. A Máfia deixa muito bem demarcado que não há espaço para discriminação e que qualquer discurso problemático implicará no impedimento de participar das edições. A coletiva não possui tantos equipamentos como a Batalha Dominação ou o Slam Quilombo de Dandara, então é comum os beats serem tocados em pequenas caixas de som e não há microfone, por esse motivo as/os jovens se aglomeram na roda de rima e ficam em absoluto silêncio para ouvir as/os MCs, ponto que é interessante em uma batalha de rima, uma vez que quando há microfones, uma série de jovens ficam conversando durante os rounds. Há também recital de poesia nas edições, em um momento do evento que as organizadoras questionam se alguém deseja recitar e, geralmente, são mulheres que expõem suas poesias. Considerando que não há nenhum slam em Londrina, esse espaço criado para a performance de poesia é muito positivo. O conteúdo das poesias geralmente é sobre a vivência periférica, as dificuldades de viver da arte, o racismo, o machismo e as desigualdades socioeconômicas. Por volta das 22h30min/23h, a batalha termina. Algumas/uns jovens vão embora logo em seguida, porém, muitas pessoas permanecem na praça, interagindo e bebendo. É uma atmosfera animada, de interlocuções e acolhimento. É comum ouvir “alguém quer carona?”, “quem quer dividir um Uber até o Terminal Central?” e “quem mora na zona norte e quer dividir um Uber?”. Tratam-se das estratégias de ajuda mútua para que todas as pessoas cheguem em segurança e gastem pouco dinheiro com transporte. A Máfia se propõe a ser um espaço de acolhimento para quem quer adquirir confiança e desenvolvimento na cultura Hip Hop, por meio da coletivo as/os jovens têm a possibilidade de expressão segura, sem julgamentos e opressões (Figura 3). 32 Figura 3: Edição da Batalha da Máfia – 27 de março de 2024 Fonte: arquivo pessoal, 2024. “A Batalha da Máfia é Revolução! Temos colecionado experiências e momentos únicos, aprendizados e sorrisos cheios e coração transbordando no peito. A Batalha da Máfia é zona de aprendizado revolucionário. Cada corpo resistindo e compartilhando conhecimentos e expressão é revolução. Nosso coração é o que move a nossa correria, o espaço que gente cria a energia que criamos em roda. Isso é sobrevivência artística, resistência do povo da rua. Toda quarta-feira. A Máfia tem mudado perspectivas, sobre afeto, sobre postura, sobre arte, sobre arte na rua, postura na rua. Vida longa aos mafioses sobreviventes das guerras do dia a dia. Que vingue o espaço e cultura antiracista, anticapaticista, que vinguem espaços onde transfobia, homofobia e misóginia sejam repudiados”5 E assim, as jovens vão desenvolvendo seu trabalho na cena cultural de Londrina, expondo as situações de discriminação de gênero e sexualidade que ocorrem na cena, reivindicando espaço nas competições estaduais e se somando a outros coletivos para que a cena cresça junto. Elas desestabilizam a hegemonia masculina na cultura periférica de Londrina e a posicionam no que pode ser considerado, do ponto de vista da estrutura urbana, uma área pericentral. 5 Retirado de: https://www.instagram.com/coletivomafia/. https://www.instagram.com/coletivomafia/ 33 Slam Quilombo De Dandara (Presidente Prudente): a poesia falada movimenta o centro, Dandara Vive! É dia de Quilombo de Dandara e eu sou uma das organizadoras da coletiva. O slam acontece no segundo domingo de todo mês, mas a preparação começa uma semana antes. Geralmente, na segunda-feira anterior, Alliblack envia em nosso grupo de Whatsapp: “Salve Quilombo!”, é quando sabemos que chegou a hora de nos articularmos. Assim acontece quando temos somente o slam para realizar no mês, porém, há momentos em que as interações no grupo são mais constantes: elaboração de editais, preparação de publicações nas redes sociais e convites para participar de ações culturais em Presidente Prudente. Cada pessoa fica responsável por uma tarefa: eu6 escrevo as publicações, Emily Souza movimenta as redes sociais, Alliblack entra em contato com a Secretaria de Meio Ambiente para autorizar a utilização da Praça da Ápea, numa área do centro expandido da cidade e Thiago organiza os materiais. Trabalhamos juntas/os para fazer o slam acontecer! No dia do evento, chegamos mais cedo na Praça da Ápea e iniciamos a ocupação do seu teatro arena. É hora de organizar o espaço: recolher o lixo, montar os equipamentos, preparar o Espaço Criança e iluminar a Praça com nossos refletores, mas é também tempo de conversar sobre os próximos slams, como edições comemorativas e ideias de outras ações na cidade. O slam é comumente marcado para às 19h. Por volta das 19h30, a galera começa a chegar. Conforme se aproximam, vão se cumprimentando, sentando-se nas arquibancadas, formando grupos de conversa e interagindo. Nós da organização somos cumprimentadas/os por todas/os: toques de mão, abraços e “Salve amiga!”, o público valoriza muito a equipe e entende que fazer arte em uma cidade do interior paulista tem muitos desafios. Emily Souza, nossa DJ, começa a tocar e animar a galera com muito rap, chamamos esse momento de Rádio Quilombo, quando raps muito conhecidos são tocados, mas há também a divulgação de artistas de Presidente Prudente e do Oeste Paulista. Enquanto isso, Alliblack vai recolhendo os nomes de quem vai participar do 6 A escrita da tese, em sua maior parte, está em primeira pessoa do plural, “nós”. Porém, em alguns trechos e itens, é utilizado “eu”, primeira pessoa do singular, para explicitar quando refere-se a experiências empíricas de pesquisa, como as vivências junto às coletivas, que carregam a subjetividade e corporeidade da autora. Quando o “nós” é utilizado, refere-se ao processo interpretativo de construção da tese, que resulta do diálogo com o professor orientador e as coletivas que integram a pesquisa. 34 recital aberto e da competição de poesia. Ela me passa os nomes e eu começo a organizar nossa folha de pontuação, minha principal função durante a competição é ficar responsável pelas notas atribuídas às/aos poetas. Thiago cuida do tempo de cada poesia. Lorena é responsável pelas fotos e vídeos. E Alliblack é nossa MC. Em média, 20 pessoas compõem o público de nossa coletiva. Por volta das 20h, Alliblack abre o microfone para as pessoas que se inscreveram no recital aberto, poesias são recitadas, mas há também a divulgação de músicas. Há artistas que usam o recital aberto para iniciar sua trajetória na poesia, uma vez que não há o julgamento e atribuição de notas. Posteriormente, começa nossa competição de poesia, o slam propriamente dito. Cada poeta caminha ao centro do teatro arena da Praça e se apropria do microfone, algumas/uns optam pelo uso do tripé como apoio, outras/os preferem se movimentar em suas performances e há aquelas/es que escolhem não usar o microfone. Alliblack diz: “Poesia na Praça”, e o público responde “Quilombo de Dandara!”. Silêncio! O protagonismo agora é da/o poeta, que tem três minutos para recitar e performar sua poesia. Os temas mais presentes são: racismo, sexismo, desigualdades socioeconômicas, periferia e política, são as questões que mais interferem nas vivências de nosso público, constituído em sua maioria por pessoas jovens, negras e periféricas. Quando a/o poeta finaliza sua poesia, todas/os aplaudem, escuto várias interjeições como “pow pow pow” e “oooow”. Um minuto é dado para as/os juradas/os atribuírem as notas e Alliblack pede para que levantem os quadros em que escreveram a pontuação, agora é hora de o público expressar sua concordância ou discordância: quando a nota é 10 ouvimos um “ooow”, mas quando é inferior todas/os somos convidadas/os a gritar: “Credooo!”. Assim ocorre o slam, silêncio quando necessário, interação quando preciso, e a escuta permeia todo esse processo. Na última ronda, as/os três poetas finalistas recitam suas poesias e além das/os juradas/os atribuírem notas, o público também vibra por sua/seu poeta preferida/o, o que soma mais um ponto que, inclusive, pode ser decisivo em casos de empate. Faço a somatória final e digo para Alliblack o nome da/o vencedora/o. A MC chama todas/os ao centro da Praça e anuncia o resultado. A/O vencedora/or recebe suas premiações e os aplausos do público. Por fim, tiramos uma foto de todas/os (Figura 4). Após isso, algumas pessoas vão embora e outras permanecem na Praça, conversando. Chega o momento de guardar os equipamentos e deixar a Praça organizada, diferente da forma que a encontramos antes do slam. Levamos tudo para o carro de Alliblack e Emily, e retornamos para nossas casas. Já é por volta de 23h. 35 Figura 4: Slam Quilombo de Dandara – 12 de março de 2023 Fonte: Instagram7, 2024. Mas como tudo começou? “Na ponta do abismo lá vai a mãe preta / Aguenta o infinito num corpo”8, a poesia “Na ponta do abismo” de Carol Dall Farra, poeta negra e periférica nascida em Duque de Caxias (RJ), marcou a construção inicial de um projeto que se tornou um sonho para Alliblack. Alliblack, uma jovem negra periférica nascida em Bataguassu (MS), uma cidade pequena do interior do Mato Grosso do Sul com cerca de 23 mil habitantes. A jovem se mudou para Presidente Prudente com 20 anos, intencionando estudar em uma faculdade da cidade. Já ouvia raps em sua quebrada, assim como funk e samba, a típica mistura de sons que ressoam nas periferias. Seu primo foi quem lhe apresentou o rap, principalmente na figura de Racionais MC’s e Facção Central, e apesar de todos os estigmas que existiam em relação ao rap, foi quando a jovem entendeu que: “essa é a música de preto que eu quero escutar” (Alliblack em entrevista, dezembro de 2023). Porém, Alliblack não acreditava que seria possível fazer rap em uma cidade pequena que não possuía uma cena cultural forte. Um sonho surgiu, mas permaneceu adormecido, ela ainda não entendia que o que escrevia era poesia. 7 Disponível em: https://www.instagram.com/quilombo.de.dandara/. 8 Disponível em: DALL FARRA, Carol. Na ponta do abismo. In: DUARTE, Mel (org.). Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019. https://www.instagram.com/quilombo.de.dandara/ 36 Quando se mudou para Presidente Prudente, Alliblack começou a frequentar eventos de coletivos culturais da cidade, além de que também possuía proximidade com a organização de festas, o que a fez conhecer muitas pessoas e aprender sobre produção cultural. Quando assistiu ao vídeo9 em que a poeta Carol Dall Farra recitou “Na ponta do abismo”, Alliblack se emocionou e entendeu que era aquilo o que deseja fazer. “Filha de Preta!”, poetiza Carol. [...] quando eu vi os vídeos da Carol Dall Farra eu falei ‘É isso!’. Eu comecei a acompanhar ela, outros poetas e outras poetas também, comecei a acompanhar a Kimani [...] e a acompanhar o movimento de slam, falei ‘mano, eu quero muito ir num slam’, procurava slam aqui perto e não tinha, aí eu encontrei umas pessoas e falei ‘Vamos fazer um slam aqui na cidade?’, falaram ‘Vamo!’. Eu já tava com uma ideia pronta, eu vinha planejando desde o início de 2017 e nós demos início em janeiro de 2018, quando foi o primeiro slam do Quilombo de Dandara (Alliblack em entrevista, dezembro de 2023). Alliblack desejava um espaço em que pudesse expor suas poesias, que já escrevia desde muito nova, mas que em suas palavras eram “somente versinhos”. Somado a isso, a baixa presença das mulheres na cena também a incomodava e a motivou a criar um coletivo em que todas as pessoas se sentissem acolhidas. A partir de 2018, a cena cultural de Presidente Prudente foi incrementada com o Slam Quilombo de Dandara e uma mudança começou a ser gestada: maior representatividade de mulheres. Dandara Vive! O próprio nome da coletiva é uma referência a uma importante mulher negra na história brasileira. Dandara dos Palmares foi uma guerreira que viveu no período colonial e teve papel crucial na construção do Quilombo dos Palmares e na resistência da população negra à escravização. Ela dominava técnicas de capoeira, traçava estratégias de resistência e lutava nos conflitos, além de participar das atividades cotidianas do quilombo, como caça e agricultura (Tinoco, 2014). Apesar da relevância de Dandara na existência do Quilombo dos Palmares por quase um século, em função da estrutura racista e patriarcal da construção do conhecimento, a existência da guerreira foi apagada de boa parte da história. É comum ela ser associada somente ao título de esposa de Zumbi dos Palmares. Nesse sentido, o nome “Quilombo de Dandara” coloca a mulher negra no centro, ressignifica a história da guerreira Dandara e demonstra a importância de mais mulheres assumirem posição de protagonismo, no caso do slam é por meio da arte que isso é conquistado. 9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DbQXy_jcCXE. https://www.youtube.com/watch?v=DbQXy_jcCXE 37 Alliblack iniciou a coletiva com cerca de mais oito pessoas, entre homens e mulheres. Entretanto, já no primeiro ano percebeu a necessidade de um recorte mais demarcado, em função de discordâncias em relação a posturas de membros. Assim, a formação inicial se desfez e a coletiva passou a ser constituída somente por mulheres. Outras formações conduziram as atividades e, aos poucos, a jovem também constatou a importância do marcador racial na composição, priorizando que apenas pessoas negras integrassem a organização. A formação atual vem desde 2022: Alliblack, Emily Souza, eu e Thiago Aguiar. O jovem negro ingressou na coletiva quando ainda tinha 17 anos, fazia parte de um lar de acolhimento de crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade em que Alliblack é educadora. Assim, a coletiva lhe proporcionou o contato com debates sociais (sobretudo raciais e de gênero) e ele firmou sua participação na organização. Embora tenhamos a presença de um homem, a história da coletiva é marcadamente escrita por mulheres. Portanto, o Slam Quilombo de Dandara é uma coletiva organizada por três mulheres negras e um homem negro, seu objetivo é difundir a poesia marginal em Presidente Prudente e expandir a cultura periférica na cidade. Todo segundo domingo de cada mês, a juventude prudentina se apropria da Praça Dóbio Zaina (mais conhecida como Praça da Ápea), localizada na área central de Presidente Prudente, para poetizar e sociabilizar: Quando a gente foi decidir onde seria o slam, cada um foi dando opções de praças que conhecia. Primeiro tinha a ideia do Parque do Povo, mas pensamos que tudo o que vai acontecer o pessoal joga para o Parque do Povo e não estavam acontecendo ações nos outros lugares, e a nossa ideia era que acontecesse nos outros lugares também, só que tinha que ser um lugar que as pessoas conseguissem chegar de ônibus e que elas conseguiriam achar com facilidade [...] quando todo mundo foi na Ápea, o teatro arena era o que chamava atenção, era nosso xodó, com palco e tudo, era acessível, poderíamos usar o lugar da prefeitura como referência e pensamos “é isso!” (Alliblack em entrevista, dezembro de 2023). O Slam Quilombo de Dandara modificou não somente a estrutura de gênero da cena cultural de Presidente Prudente, como também expandiu a cultura periférica para além do Parque do Povo, o espaço público mais utilizado da cidade. Além da competição de poesia, do recital aberto e da Rádio Quilombo, as edições também contam com o Espaço Larica (para que pessoas vendam alimentos), Espaço Arteiro (para que pessoas vendam seus produtos artesanais) e Espaço Criança (atividades com foco no empoderamento infantil), este último surgiu justamente da constatação de que havia 38 mulheres mães interessadas em participar do slam, sendo necessário acolher também suas crianças, mais um fato que representa os ideais da coletiva. O Slam Quilombo de Dandara marca uma fissura na cena cultural prudentina, buscando criar um espaço de acolhimento e partilha, inicialmente com foco nas mulheres, mas também da população negra. Nas palavras de Davis (2017), “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura se movimenta com ela”, Carol Dall Farras se movimentou graças a avanços propiciados por mulheres negras ancestrais, inspirou Alliblack que também se moveu e uniu outras mulheres negras em busca de uma cultura antirracista, antissexista e que reivindica o direito à cidade, ocupando um espaço público subutilizado no centro da cidade e lhe dando uso e vida. As jovens mulheres negras da pesquisa As jovens negras que organizam as coletivas apresentadas são as interlocutoras desta pesquisa. Mulheres que se posicionam no centro da produção cultural por meio da manutenção de batalhas de rima, slams e saraus, ao passo que enfrentam desafios na apropriação das cidades. Todas autorizaram a utilização de seus nomes ou vulgos10 reais. São sujeitas11 que se autodeclaram pretas e pardas, se entendem como mulheres e são artistas da cultura periférica de São Paulo, Londrina e Presidente Prudente. Ingrid Martins é poeta, escritora, cantora e designer gráfico. Tem 28 anos de idade, é preta e reside na Vila Império (distrito Jabaquara - zona sul de São Paulo), porém, nasceu na zona norte da cidade. Começou a atuar na cultura periférica com 19 anos, quando conheceu os slams e se aproximou da poesia. Todavia, já curtia rap há anos e escrevia músicas e poesias. É organizadora da Batalha Dominação. Nyarai é cantora, poeta, compositora e produtora cultural. Tem 29 anos, é preta e reside no Jardim Luso (distrito Cidade Ademar - zona Sul de São Paulo). Conheceu as batalhas de rima com 13 anos e nunca mais se afastou da cena, rimando em diferentes cidades do Brasil. É organizado da Batalha Dominação. Tawane Theodoro é poeta, tem 24 anos, é preta, reside no Jardim Dom José (distrito Capão Redondo - zona sul de São Paulo) e possui graduação em Nutrição. Sempre teve uma forte ligação com os esportes e treinou basquete até os 16 anos. 10 Nome como a sujeita prefere ser popularmente conhecida, carrega um significado e contribui para a afirmação da identidade. Geralmente, é distinto do nome de registro. 11 O perfil reflete a vida das jovens no período das entrevistas, entre setembro de 2023 e outubro de 2024. 39 Conheceu a cultura periférica em 2016, com 17 anos, e se tornou poeta. É organizadora do Sarau do Capão, poeta formadora do Slam Interescolar (projeto do Slam da Guilhermina) e já atuou como organizadora do Slam do Bronx. Cleópatra é artista, MC e estudante de Psicologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem 22 anos, é preta e reside no Jardim Lima Azevedo, zona oeste de Londrina. Encontrou o Hip Hop entre os 10 e 12 anos, por meio de um projeto social circense que participava. É integrante do projeto social independente Freestyle de Rua, que leva o Hip Hop para escolas, universidades, periferias e praças. É organizadora da Batalha da Máfia. Venezian é MC, cantora, técnica em Enfermagem e estudante de Enfermagem na UEL. Tem 25 anos, é preta e mora no bairro Alto da Boa Vista, zona norte de Londrina. Conheceu o Hip Hop por meio do irmão e escreve raps e poesias desde os 12 anos. É organizadora da Batalha da Máfia. Alliblack é MC, rapper, DJ, educadora social e produtora cultural e artística. É preta e possui 31 anos12. Reside no Jardim Aviação em Presidente Prudente. Nasceu na cidade de Bataguassu e se mudou para Presidente Prudente quando tinha 20 anos, foi também quando conheceu as batalhas de rima e os slams, embora gostasse de rap e escrevesse poesias (sem considerar que eram poesias) desde sua adolescência. É idealizadora e organizadora do Slam Quilombo de Dandara. Emily Souza é DJ, artesã e afroempreendedora, proprietária da marca Emicriou. É preta, tem 23 anos e reside no Jardim Aviação em Presidente Prudente. Mudou-se para a cidade com 17 anos para finalizar o ensino médio e trabalhar. Anteriormente residia em Sandovalina (SP), uma cidade pequena próxima a Presidente Prudente. Sempre ouviu raps e frequentava batalhas de rima, mas começou a se interessar por ser DJ com 20 anos, quando conheceu Alliblack e o Slam Quilombo de Dandara. É também organizadora dessa coletiva. Lav é MC e trabalha em bares de Presidente Prudente, não organiza nenhuma das coletivas da pesquisa, mas já integrou a organização da Oficina de Freestyle, uma batalha de rima da cidade e que tem foco na diversidade LGBTQIAPN+. É preta, tem 25 anos e reside no Parque Alvorada. Lav faz questão de pontuar que é uma mulher trans. Começou 12 Embora os critérios institucionais brasileiros definam jovens como pessoas entre 15 e 29 anos, corroboramos com Carrano (2011) que aponta que entender jovens apenas pelo fator da idade é simplificador, uma vez que as fronteiras entre a vida jovem e adulta são cada vez mais imprecisas e não podem ser definidas apenas por aspectos biológicos. 40 a escrever letras e poesias em sua adolescência. Frequenta a Batalha do Vale desde 2016, mas se sentiu confortável para batalhar somente em 2018, após treinar em rodas de freestyle e ser incentivada pelos organizadores do coletivo. * * * As trajetórias de vida espacializada das jovens negras da pesquisa demonstram os acontecimentos que levaram à formação de coletivas da cultura periférica, que colocaram as jovens no centro da produção cultural e que transformaram suas identidades em positivas. Isso desencadeia outros eventos e acontecimentos como a ressignificação das periferias, o reconhecimento de uma dimensão racial na organização das cidades, a reivindicação por equidade de gênero na cultura periférica e a apropriação do espaço urbano por práticas espaciais juvenis, que tensionam as estruturações hegemônicas das cidades. Assim, enquanto se constituem, as jovens também transformam o espaço geográfico e a vida de outras/os jovens. Desse modo, o objetivo desta tese é compreender as relações entre práticas espaciais de coletivas de jovens mulheres negras da cultura periférica e as lógicas de produção das cidades, em diferentes contextos urbanos, e como essa cultura contribui para a instituição de suas espacialidades e identidades. Trata-se de refletir sobre duas questões principais: primeiro, como as práticas espaciais desencadeadas no âmbito da cultura periférica constituem as periferias urbanas e se conformam ou contestam as lógicas socioespaciais hegemônicas do espaço urbano? E segundo, como as jovens negras constroem suas identidades interseccionais em um movimento dialético com o espaço geográfico? No esforço de refletir sobre essas questões, a pesquisa desdobra-se em duas frentes: o estudo das práticas espaciais juvenis de deslocamento e apropriação dos espaços públicos para a realização da cultura periférica; e a tessitura de uma trama (Zusman, 2014) em que as trajetórias de vida espacializada das jovens mulheres negras são entrelaçadas às urdiduras e nos permite compreender os contextos geográficos (Turra Neto, 2024) de diferentes cidades. Convidamos as/os leitoras/es a mergulharem no universo da tese, conhecerem a cultura periférica e quem a produz, valorizar as jovens mulheres negras e também estabelecer suas próprias interpretações, dialogando e confrontando as ideias, afinal é assim que a produção do conhecimento avança. 41 INTRODUÇÃO Entre insurgências esta tese foi construída. Uma palavra muito presente ao longo do texto e que caracteriza os temas discutidos: periferias, cultura periférica e jovens mulheres negras. Sujeitas que marcam suas existências nas cidades, por meio da produção artística e cultural, constituindo periferias vivíveis e demonstrando a potência da margem. Buscando seguir os seus passos, também demarcamos insurgências no campo científico, traçando uma trama geográfica na contramão de opressões coloniais e patriarcais, que secularmente vulnerabilizam as vivências de mulheres negras. Investigamos a cultura periférica por meio de batalhas de rima, slams e saraus. As juventudes dessa cultura periférica produzem outras narrativas e reconfiguram ideias estigmatizadas sobre as periferias. Quando as mulheres negras atuam nesse movimento, em suas trajetórias interseccionais elas modificam não somente os imaginários sociais, mas também a própria cultura, que é tensionada por referenciais feministas, que reivindicam equidade. Essas dinâmicas ocorrem em diferentes contextos urbanos, questionando a produção desigual do espaço, ao reivindicarem o direito a apropriar-se das cidades em todas as suas possibilidades. Porém, ao mesmo tempo em que há as insurgências, também existem os processos estruturais que configuram as cidades, tornando-as mais desiguais, como a fragmentação socioespacial, que intensifica a segmentação do tecido urbano, sobrepõe-se à lógica centro-periferia e interfere nas experiências urbanas das pessoas. No caso das sujeitas/os periféricas/os, a fragmentação impõe barreiras socioespaciais que cerceiam suas práticas espaciais. Nesse sentido, objetivamos compreender as relações entre práticas espaciais de coletivas de jovens mulheres negras da cultura periférica e as lógicas de produção das cidades, em diferentes contextos urbanos, e como essa cultura contribui para a instituição de suas espacialidades e identidades. São Paulo, Londrina e Presidente Prudente são as cidades que integram a pesquisa, junto com as quatro coletivas apresentadas no Prólogo, caracterizando um estudo urbano comparado. De forma específica, nosso objetivo desdobra-se em três: 1. Entender como as práticas espaciais relacionadas às coletivas reforçam ou subvertem as lógicas hegemônicas de produção do espaço urbano; 2. Interpretar como o engajamento na cultura periférica se desdobra em processos de afirmação de identidades interseccionais de jovens negras, conforme também possibilita a instituição de outras espacialidades; 3- Realizar 42 um estudo comparativo sobre a cultura periférica na metrópole e nas cidades médias, em suas potências e limites. Para compreender os enrendamentos entre cultura periférica e lógicas socioespaciais, interpretamos dois tipos de práticas espaciais: a apropriação dos espaços públicos, em que produzimos mapas de espacialização dos coletivos culturais nas três cidades, relacionando com suas estruturações; os deslocamentos casa-espaço público realizados pelo público das coletivas. E com a finalidade de entender o movimento de instituição de espacialidades e afirmação de identidades, interpretamos as trajetórias interseccionais das jovens, destacando quando e em que locais os marcadores sociais foram positivados em suas experiências urbanas. Nesse exercício, pensamos no contexto geográfico das cidades da pesquisa em que as sujeitas desenvolvem as suas juventudes, nosso esforço foi tecer uma trama entre os fios biográficos e a urdidura, composta pelos fatos históricos e geográficos de cada cidade e da sociedade mais ampla. A pesquisa está vinculada ao projeto temático “Fragmentação socioespacial e urbanização brasileira: Escalas, vetores, ritmos, formas e conteúdos” (FragUrb), desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Produção do Espaço e Redefinições Regionais (GAsPERR) da FCT/UNESP. De forma sintética, tal projeto temático investiga como a lógica socioespacial fragmentária altera o conteúdo da diferenciação e das desigualdades em cidades brasileiras, para tanto foi organizado em quatro planos analíticos (1. Centro, centralidade e mobilidade; 2. Práticas espaciais e cotidianos; 3. Espaços públicos; e 4. Fragmentação socioespacial, produção e consumo da habitação) e em cinco dimensões empíricas (habitação, trabalho, consumo, lazer e mobilidade) (Sposito, 2018). A contribuição desta tese à discussão que vem sendo produzida sobre a fragmentação socioespacial é refletir sobre a diversidade de corpos e suas práticas espaciais, a partir da interpretação de como as práticas espaciais de jovens mulheres negras e aquelas desencadeadas por elas na cultura periférica, modificam as cidades e se relacionam com as lógicas socioespaciais, o que nos possibilita pensar nas possibilidades de resistência aos condicionantes impostos e intensificados pelo processo. Para além de uma leitura a partir do marcador da classe social, produzimos uma interpretação interseccional, que envolve também raça, gênero, sexualidade, idade e a própria participação na cultura. A combinação desses marcadores produz as experiências urbanas de jovens periféricas/os, assim como interfere em sua realização plena. Interessa- 43 nos pensar como resistem às barreiras socioespaciais e ressignificam sua dupla posição, de mulheres negras e de periféricas. As nossas interlocutoras, no encontro com a cultura tornaram-se produtoras culturais e intelectuais periféricas, que já não precisam de mediadoras/es. Assim, intentamos falar com elas, o que implicou em uma pesquisa colaborativa, com construção horizontal de conhecimentos. Embora não tenham propriamente escrito esta tese, suas visões de mundo, anseios e projetos de futuro estão presentes em toda a construção. Nesse processo, foi possível constatar a potência de suas existências, como ressignificam a posição periférica, como fazem centro na margem e levam a margem ao centro e como têm produzido mudanças em suas trajetórias e nas de diversas/os jovens. A capa da tese, elaborada pela autora, representa as temáticas da pesquisa. De plano de fundo está a periferia, em sua multiplicidade de construções e cores. Na base das periferias e do desenho, estão mulheres negras e suas raízes, que simbolizam ancestralidade. Cada uma dessas mulheres, também representa uma coletiva da pesquisa. Por fim, ocupando posição de centralidade, estão duas jovens negras, com microfones nas mãos, rimando e poetizando. Cada capítulo da tese também possui uma arte, acompanhada de poesias e músicas produzidas por algumas das sujeitas da pesquisa, o intuito é valorizar suas produções. Nas próximas páginas, apresentamos a posicionalidade da pesquisadora em relação à temática, a hipótese da tese e a organização dos capítulos. A posicionalidade da pesquisadora: encontro entre jovens mulheres negras13 “O Slam Quilombo de Dandara publicou no Instagram um convite para pessoas interessadas em somar com a coletiva e fazer parte da sua organização. Algumas pessoas que antes eram organizadoras saíram e eram necessárias mais pessoas para os eventos acontecerem. Vi como uma oportunidade de me aproximar da coletiva e construir uma pesquisa colaborativa, estabelecendo uma devolutiva efetiva para o grupo. Inscrevi-me para integrar a organização e as meninas aceitaram, convidando-me para participar de uma reunião antes do slam do mês de maio. No dia 22 de maio de 2022, cheguei à Praça da Ápea às 17h. Lá estavam Alliblack e Emily que já integravam a coletiva, e Lorena e Thiago que, assim como eu, também se inscreveram para compor a organização. Fizemos uma breve reunião, Alliblack explicou 13 O item é escrito em primeira pessoa do singular. 44 sobre a coletiva e sobre todas as atividades desenvolvidas. Foi uma conversa descontraída, mas também séria, pensando nos próximos rumos do Slam. Apresentei-me como pesquisadora, expliquei um pouco da minha ideia e perguntei se estava autorizada a utilizar toda a minha participação na coletiva como elaborações para a pesquisa. A galera aceitou e Alliblack criticou a distância entre a universidade e os coletivos da cultura periférica, apontando que não gosta que as/os estudantes universitárias/os se interessem pelo slam apenas quando querem fazer suas pesquisas, e depois da conclusão, nunca mais retornam, sendo que muitas vezes ela nem sabe o que foi feito com os dados gerados. Destaquei que era justamente o contrário disso que eu queria fazer, por isto queria contribuir efetivamente na organização. Logo em seguida, fomos preparar a Praça para receber as pessoas e fazer o slam acontecer. Entre varrer o espaço, recolher os lixos e organizar os equipamentos, fomos conversando, rindo e nos conhecendo melhor. [...] O slam foi incrível, teve cerca de 30 pessoas participando, muitas poesias potentes e vibração de todas/os. Teve também um pocket show e uma contação de história. Fiquei responsável pela contagem das pontuações e controle do tempo das poesias. [...] Quando o slam terminou, organizamos a praça, novamente recolhemos todos os lixos e fomos embora. A Praça que antes estava tão cheia de vida, cultura e arte, voltou a ficar vazia, porém, limpa.” (Diário de campo, 22 de maio de 2022) Hoje foi dia de Slam Quilombo de Dandara e também dia de aplicar os questionários da pesquisa. Estava nervosa porque queria que tudo caminhasse bem. Antes pedi autorização para a galera da organização, mostrei as perguntas e disse que os dados nos permitiriam conhecer o público e construir um mapa da centralidade da coletiva, que poderia ser anexado ao portfólio e aos editais que eu escrevo. [...] Apliquei os questionários antes do início da competição e durante os intervalos. Foi bem tranquilo, expliquei rapidamente o intuito das perguntas e foi notável o quanto fez diferença as pessoas me conhecerem enquanto uma organizadora da coletiva. Muitas elogiaram a iniciativa e se animaram para ver os resultados do processo.” (Diário de campo, 9 de dezembro de 2022) 45 Os trechos de diários de campo apresentados demonstram o desenvolvimento da minha relação com o Slam Quilombo de Dandara e como minha posicionalidade se alterou ao longo da pesquisa. Haraway (1995) e Rose (1997) defendem que é necessário explicitar nossa posicionalidade e reflexividade na produção do conhecimento, uma vez que não há conhecimentos neutros e universais. O contexto espacial e temporal do qual falamos e a nossa corporeidade e trajetória biográfica influenciam nos escritos, assim como nossas pesquisas e intencionalidades interferem nas relações com as/os sujeitas/os do recorte espacial que interpretamos. No cenário de Presidente Prudente, a tese foi construída em uma perspectiva de dentro, como demonstra o diário de campo, o que também influenciou nas relações com as coletivas de São Paulo e Londrina. Até maio de 2022 eu era a pesquisadora, a partir do dia 22 me tornei também a organizadora de um slam, novos cruzamentos foram produzidos no encontro. Foi interessante esse processo de mudança, os impactos dele na constituição da minha identidade e perceber a relação sólida que consegui construir com as meninas ao longo dos últimos dois anos. De “Ana” eu passei a ser “amiga”, conheci mais sobre elas, elas conheceram mais sobre mim, saímos após alguns slams para comer e beber e assim as relações foram sendo estreitadas. As alegrias não são das minhas sujeitas de pesquisa, são nossas, compartilhamos as frustrações e desafios de organizar uma coletiva, mas também comemoramos juntas os avanços que conquistamos: eu sou uma delas, estou com elas e me interesso por falar sobre nós. Nessa caminhada, a pesquisa colaborativa foi sendo tecida. Os encontros com as interlocutoras foram potencializados pelos marcadores identitários que temos em comum. Posiciono-me enquanto mulher, negra, jovem, periférica, geógrafa, professora e organizadora do Slam Quilombo de Dandara. Cresci em uma periferia da zona norte de Londrina, vendo o mundo à margem e acumulando as desvantagens de gerações de pessoas negras e empobrecidas. Pude entender os episódios cotidianos de racismo e de sexualização que sempre vivi, por meio de aulas do intitulado “professor negro de Geografia”, Claudio Francisco Galdino, no ensino médio. “Despertei” um outro olhar e passei a refletir sobre minha posição no mundo. Sempre desejei ser professora e com os incentivos (e renúncias) de meu pai e de minha mãe, tive a oportunidade de me dedicar somente aos estudos e ingressar em uma universidade pública, sendo a primeira pessoa de toda minha família a cursar um doutorado. 46 O ingresso na universidade representou maior empoderamento em minha vida, mas também reconhecimento de que o espaço acadêmico historicamente contribuiu para a desumanização das/os minhas/meus. Conforme Kilomba (2019), o espaço acadêmico não é neutro e nos negou o privilégio de fala durante séculos, considerando nossos saberes como a-científicos, fruto somente das experiências pessoais, da subjetividade e do emocional. Foi a partir do ingresso de identidades marginalizadas, que as universidades mudaram e novas narrativas foram produzidas: “[...] um novo discurso com uma nova linguagem” (Kilomba, 2019, p. 58). Em 2014, ingressei no curso de Geografia na Universidade Estadual de Londrina e ao me deparar com a escassez do debate sobre raça, gênero e interseccionalidades, escolhi estudar sobre as realidades de mulheres negras, como eu. A cultura periférica foi identificada como uma forma de estabelecer interlocuções entre as temáticas relacionadas às mulheres negras e o espaço geográfico. Na monografia de conclusão de curso, interpretei a participação de mulheres negras em batalhas de rima de Londrina (Marques, 2019) e conclui que possuíam representação inferior em relação aos homens, tendo que realizar inúmeros enfrentamentos quando desejavam participar de uma competição. Em 2019 ingressei no mestrado em Geografia na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT/UNESP) e na dissertação discuti as espacialidades instituídas pelas jovens mulheres negras em seu processo de afirmação e negociação identitária na e por meio da cultura Hip Hop em Londrina (Marques, 2021). Conclui que a cultura ampliava as espacialidades das jovens e que, a partir de aportes feministas, um Hip Hop feminista vinha sendo construído em Londrina. Em 2021 ingressei no doutorado e foram as inquietações despertadas durante os anos de pesquisa acadêmica que influenciaram no delineamento do tema desta tese. A exterioridade que possuía em relação às minhas sujeitas de pesquisa na graduação e no mestrado foi rompida durante o doutorado. Tornei-me parte da cultura periférica, não enquanto artista, mas como uma organizadora de uma coletiva. Caminhei entre a posição de insider e outsider, estabelecendo relações com as colaboradoras e buscando confrontar as teorias com a realidade empírica. Embora uma narrativa subjetiva esteja presente nesta tese, não se trata de uma leitura romantizada, mas estruturada em conceitos científicos e rigorosidade metodológica. A partir de Kilomba (2019, p. 82-83), a tese buscou ser uma pesquisa entre iguais ou similares, com relações de poder mais equitativas em que “Ser uma pessoa ‘de dentro’ produz uma base rica, valiosa em pesquisas centradas em sujeitos”. 47 Na produção desta tese, assim como em toda minha trajetória acadêmica, vivi paradoxalidades. Segundo Rose (1993) as pessoas ocupam diferentes posições simultaneamente, oscilando entre o centro e a margem. Enquanto uma mulher negra, a margem foi destinada a mim, assim como às minhas ancestrais. Estar no espaço acadêmico me coloca no centro, usufruindo de certo privilégio e possuindo a chance de ascender socialmente. Mas a posição da margem ainda existe, sobretudo em relação às temáticas que escolhi me aprofundar. A universidade é um centro, porém reproduz exclusões e silenciamentos, nas palavras de Kilomba (2019, p. 51): “é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a”. Ainda há uma descredibilização de discussões sobre temas não-hegemônicos, mas destaco que os temas debatidos nesta tese também falam sobre a estrutura social, uma vez que essas opressões são produtos do capitalismo, que por sua vez está diretamente ligado ao racismo e ao patriarcalismo. Debater sobre questões relacionadas a mulheres negras, interseccionalidades, cultura periférica e juventudes não é pensar em “identitarismo” ou falar somente a partir de “subjetividades romantizadas”, há a possibilidade de refletir sobre estruturas socioespaciais que interferem nas espacialidades das/os sujeitas/os, esforço que busco realizar nesta tese. Conforme hooks (2019a), faço parte do todo, mas não do corpo principal, enquanto uma mulher negra. Contudo, a autora também nos estimula a pensar “a margem como um espaço de abertura” (hooks, 2019a, p. 280) e, no mesmo movimento, Kilomba (2019, p. 69) defende que “é o entendimento e o estudo da própria marginalidade que criam a possibilidade de devir como um novo sujeit