UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE SÃO PAULO - INSTITUTO DE ARTES STELA MARTINS DE SIMONE OPERA INUTILE SÃO PAULO - SP 2021 STELA MARTINS DE SIMONE OPERA INUTILE Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para a conclusão do curso de Bacharelado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol SÃO PAULO - SP 2021 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S598o Simone, Stela Martins de, 1998- Opera Inutile / Stela Martins de Simone. - São Paulo, 2021. 113 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Arte. 2. Livros de artistas. 3. Religião e mitologia. I. Spaniol, José Paiani. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 704.948 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 STELA MARTINS DE SIMONE OPERA INUTILE Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para a conclusão do curso de Bacharelado em Artes Visuais e apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Aprovado em: 16 de dezembro de 2021. ________________________________________________ __________ Prof. Dr. José Paiani Spaniol 16/12/2021 ________________________________________________ __________ Prof. Dr. Sergio Mauro Romagnolo 16/12/2021 ________________________________________________ __________ Mestra Juliana Ferrari Guide 16/12/2021 “Have you ever Been to my myopia?1” (Agnes Obel) 1 “Você já esteve alguma vez; dentro da minha miopia?” tradução da autora. RESUMO A presente monografia visa registrar o processo de criação e desenvolvimento do livro de artista “Opera Inutile”, revelando seu contexto e apresentando a pesquisa sobre os temas presentes no trabalho. Considera os mitos gregos de Aracne, Minotauro, Medusa, Quíron, e Argos; e as histórias bíblicas de Caim e Jó, investigando como o assunto da teodiceia e da justiça divina podem estar presentes entre esses contos. Analisa-se também o pessimismo e oferece uma opção secular aos tópicos tratados, olhando para a figura do detetive noir e a tragédia grega. Aborda a vida e obra de Aby Warburg, expondo seu nomadismo intelectual e revelando sua importância para a pesquisa. Ainda, apresenta cinco possibilidades de mitologia comparada, bem como introduz a hipótese da mitologia indo-europeia, permitindo o aprofundamento do conteúdo tratado anteriormente. Por fim, registra o processo de concepção e realização do trabalho artístico, expondo materiais, esboços e a iconografia resultante do processo. Palavras-chave: Mitologia grega. Estudos bíblicos. Teodiceia. Pessimismo. Tragédia grega. Neo-noir. Warburg. Mitologia Comparada. Indo-europeu. Livro de artista. ABSTRACT This paper aims to register the creation and development of the artist’s book “Opera Inutile”, revealing its context and presenting research about the themes present in the work. The Greek myths of Aracne, Minotaur, Medusa, Chiron, and Argus are considered, as well as the biblical stories of Cain and Job, investigating how the matter of theodicy and divine justice may be present in these tales. It also analyzes pessimism and offers a secular option to the topics, looking to the figure of the hard-boiled detective and Greek tragedy. It approaches the life and work of Aby Warburg, exposing his intellectual nomadism and revealing its importance to the research. Still, presents five possibilities of comparative mythology, as well as introduces the hypothesis of Indo-European mythos, allowing the development of the themes approached previously. Finally, it registers the conception and making process of the artistic work, showing materials, sketches, and the iconography resulting from the process. Keywords: Greek mythology. Biblical studies. Theodicy. Pessimism. Greek tragedy. Neo-noir. Warburg. Comparative mythology. Indo-European. Artist’s book. LISTA DE IMAGENS Figura 1 - Mapa de interesses 15 Figura 2 - Lista de histórias 15 Figura 3 - Cena do filme Nomadland 16 Figura 4 - Pasiphaë e o Minotauro 18 Figura 5 - Cena do seriado Dark 19 Figura 6 - Helhesten 21 Figura 7 - Cena do filme Harry Potter e a Ordem da Fênix 24 Figura 8 - Gorgoneion (face de górgona) 27 Figura 9 - Rodanini Medusa 28 Figura 10 - Cena do seriado Mindhunter - café da manhã 31 Figura 11 - Cena do seriado Mindhunter - fio dental 32 Figura 12 - Cena do filme Fargo 34 Figura 13 - Cena do filme Hércules. 38 Figura 14 - Deusa Tétis no filme Fúria de Titãs. 39 Figura 15 - Panfleto no seriado True Detective 43 Figura 16 - Cena do filme Nomadland 47 Figura 17 - Cena do filme Se7en - Somerset 49 Figura 18 - Cena do seriado True Detective 51 Figura 19 - Cena do seriado True Detective. 54 Figura 20 - Astigmatismo 56 Figura 21 - Cena do seriado Dark. 57 Figura 22 - Cena dos créditos do filme Robin Hood. 59 Figura 23 - Cena dos créditos do filme Robin Hood - 2. 60 Figura 24 - Cena do filme Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban 62 Figura 25 - Rei Théoden e Grima Língua de Cobra 69 Figura 26 - Cena do filme Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban 70 Figura 27 - Cena do filme O Rei 72 Figura 28 - Cena do filme O Rei - 2 74 Figura 29 - Kylix de Aison 75 Figura 30 - Par de manoplas 77 Figura 31 - Cena do filme O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei - exército dos mortos. 79 Figura 32 - Io e Argus. 82 Figura 33 - Io 82 Figura 34 - Canavial, a partir de uma cena de True Detective 83 Figura 35 - Cena do filme Um Homem Sério 84 Figura 36 - Medusa 85 Figura 37 - Arachne 85 Figura 38 - O Ashlad e o troll 86 Figura 39 - Die Pest kommt 87 Figura 40 - Atena encontra Aracne 87 Figura 41 - The coming of Glaurung 88 Figura 42 - Estudo para Jó 88 Figura 43 - Licáon em seu trono 88 Figura 44 - Orthanc Destruída 88 Figura 45 - Cena da animação O Senhor dos Anéis 89 Figura 46 - Cena da animação O Senhor dos Anéis - 2 90 Figura 47 - She Came To Speak to the Manager 91 Figura 48 - Camera noturna 93 Figura 49 - Reação da cola 93 Figura 50 - Foto do processo 94 Figura 51 - Javé e o Satã nos apresentam seu plano 95 Figura 52 - Javé resgata Jó 95 Figura 53 - Tornado 95 Figura 54 - Capacete de tipo Coríntio , 96 Figura 55 - O perigo à porta 96 Figura 56 - Aracne se esconde. 97 Figura 57 - Terceira seção de aprendizagem assistida 97 Figura 58 - Asterius mata Golias 98 Figura 59 - Coroa 98 Figura 60 - Licáon 2 98 Figura 61 - Oficiais do governo observam a primeira transformação de Caim 99 Figura 62 - Morro dos fantasmas 100 Figura 63 - Retrato de Quíron. 100 Figura 64 - O exército dos mortos tem um dia ocupado 101 Figura 65 - Reviravolta 102 Figura 66 - No Túmulo 103 Figura 67 - A ponte de Khazad-dûm 103 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - A palavra mãe em diferentes línguas 60 Quadro 2 - Opiniões sobre divindades e justiças 68 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 CONTOS SELECIONADOS 14 2.1 Aracne 16 2.2 Touro de Minos 17 2.3 Quíron 20 2.4 Argos 22 2.5 Medusa 23 2.6 Caim 28 3 TEODICÉIA E PESSIMISMO 33 3.1 Teodicéia 33 3.1.1 Gregos 36 3.1.2 Paciência de Jó 49 3.2 Pessimismo 45 3.2.1 Um mundo onde nada é resolvido 47 3.2.2 True Detective como uma tragédia grega 59 4 INTERLÚDIO: WARBURG 54 5 PARALELOS SELECIONADOS 58 5.1 Leviatã e Hidra 60 5.2 Jó e Hércules 64 5.3 Licaón e Caim 67 5.4 Asterius e Golias 70 5.5 Quirón e a Morte 75 6 O TRABALHO FINAL 80 6.1 O começo 80 6.2 Um breve parênteses: o livro de artista 82 6.3 Rascunhos para a compreensão 84 6.4 Trabalho final 89 6.4.1 A escolha das fotos 91 6.4.2 O processo 91 6.5 Iconografia 93 6.5.1 Jó 93 6.5.2 Aracne 94 6.5.3 Minotauro 96 6.5.4 Caim 97 6.5.5 Medusa 98 6.5.6 Quíron 99 6.5.7 Argos 100 6.5.8 Azulejos 101 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 104 APÊNDICE A - CRONOLOGIA DE AUTORES CLÁSSICOS E LIVROS DA BÍBLIA 112 12 1 INTRODUÇÃO “So che molti diranno questa essere opera inutile1 [...]”. Me deparei com essa frase enquanto folheava os cadernos de Da Vinci por pura curiosidade. Nada de produtivo saiu dessa empreitada, mas as palavras ficaram comigo. Leonardo as usou ao ponderar a possível recepção do seu tratado sobre pintura, mas elas representavam tantas possibilidades para mim, daquilo que pode ser considerado inútil, ainda mais por na época estar ponderado sobre meu próprio trabalho e sua inutilidade. Qual outra classificação me restava quando tinha, praticamente, decidido brigar com divindades e usar o resultado como tema do TCC? Ou, pelo menos, é o que eu acreditava estar fazendo. Preferi escrever sobre minha própria produção artística devido a um sentimento de que seria mais fácil. Se a escolha coubesse ao eu do presente, teria vetado essa opção imediatamente. Ao tomar esse caminho, a pessoa no papel de autora simplesmente sabe demais, se encarcerando dentro de sua própria visão. Ao invés de explorar a realidade de outra pessoa, seu trabalho se torna trazer os leitores e leitoras para dentro da sua. Até agora, já consegui aludir aos dois núcleos centrais do trabalho: meu desejo de contrariar alguns deuses e deusas (gentilmente mascarado como “ponderações sobre o capricho divino” em outras seções), e a tentativa de criar uma realidade externa onde o trabalho artístico possa existir (completa com visões de mundo). Infelizmente para a leitora e leitor, não sou tão direta nos outros capítulos, tomando um caminho tortuoso para explicar esse processo, mas devo insistir aqui quanto à sua necessidade. Não estou somente explicando conceitos, mas sim tentando alterar sua visão. Gostaria que, por um momento, você entrasse na minha miopia. No primeiro capítulo introduzo seis das sete histórias que formarão a base de nossa análise, as recontando, mas apresentando diferentes interpretações quando acredito serem pertinentes. Em seguida olharemos para a questão da razão do mal no mundo, em busca de tentar explicar a injustiça divina que encontramos no primeiro capítulo. Aqui também conheceremos a sétima história. No capítulo quatro 1 “Eu sei que muitos vão chamar isso de trabalho inútil [...]”. Tradução minha. In: DA VINCI, Leonardo. The Notebooks of Leonardo Da Vinci — Complete. Project Gutemberg, 1888. p.23 13 faremos um intervalo e desviaremos o olhar das mitologias por umas páginas: nele apresento o historiador Warburg e algumas de suas teorias que nos ajudarão a mudar o nosso ponto de vista para os capítulos seguintes. Depois, traçaremos paralelos entre dez personagens, misturando as mitologias que estavam sendo tratadas separadamente até este ponto. Por fim, abordaremos o trabalho artístico, munidos e munidas com o conhecimento acumulado até lá. Com relação à objetos de estudo, permeamos principalmente nas mitologias greco-romanas e hebraico-cristãs, só nos desviando ocasionalmente. Essa escolha foi feita puramente por interesse próprio, e pelo fato de já possuir algum conhecimento prévio no tema. Antes de começarmos de fato, devo avisar que continuo escrevendo na primeira pessoa pelo resto da monografia. Prefiro ler textos escritos dessa forma e acho ridícula a ideia de fazer esse trabalho de qualquer outra maneira. Pretender possuir uma abordagem impessoal em meio a esse tema seria um esforço em futilidade. Sem mais, vamos ao trabalho. Cantem, ó musas, dos feitos de deuses e mortais. 14 2 CONTOS SELECIONADOS Ao entrarmos na universidade sabemos que, inevitavelmente, faremos um trabalho de conclusão de curso ao sairmos dela, portanto, não é um exagero dizer que a questão da escolha do tema desta monografia ocupou minha mente por um certo tempo. Como toda pessoa que cultiva diversos interesses simultaneamente, acho extremamente difícil escolher um único para servir de objeto (e apesar de ter conseguido estreita-los um pouco não tenho dúvida que isso ficará aparente nesse texto). Ao me inscrever na matéria de orientação (pela segunda vez, já que a havia trancado no ano anterior justamente pela dificuldade da decisão), pensei que ter uma atitude metódica talvez fosse a melhor abordagem. Sabia desde já que não queria escrever sobre minha produção artística dos anos anteriores, nem mesmo enfrentar alguma questão da história ou teoria da arte. Não. Escolhi, portanto, explorar um tema artisticamente. Peguei um caderno novo e comecei a listar meus interesses, criando mapas mentais e gráficos, fazendo as conexões aparentes para mim. Dessas palavras, “animais” apareceu como uma constante neles, e, considerando que outra foi “mitologia grega”, acreditei que me debruçar nas Metamorfoses de Ovídio seria um bom ponto de partida. Olhando para trás, me pergunto por que não considerei as Fábulas de Esopo - livro que estava lendo na época - mas como veremos a seguir, é difícil escapar do destino selecionado pelas Moiras. Figura 1 - Mapa de interesses 15 Fonte: Caderno da autora. Comecei lendo a tradução de Henry Thomas Riley, em inglês, domínio público, e fácil de encontrar na internet, porém, quando foi possível, adquiri a edição em português traduzida por Domingos Lucas Dias e publicada pela Editora 34. Ambas têm seus defeitos e méritos, e durante essa pesquisa acabo usando em cada momento uma. Enquanto a última tem o texto original em Latim ao lado da tradução, a primeira tem um ótimo índice que torna achar a história que se procura bem mais fácil, além de notas de rodapé comentando o texto. Figura 2 - Lista de histórias 16 Fonte: Caderno da autora. Com minha listagem completa, anotei também as histórias envolvendo animais que me saltavam aos olhos (usando principalmente as Metamorfoses, mas também a memória), por fim, as filtrei selecionando as personagens que considerei sofrerem algum tipo de injustiça. Explicarei melhor essa decisão no próximo capítulo, mas, por hora, ficamos com a seguinte seleção: Aracne, Minotauro, Caim, Medusa, Argos e Quíron. Antes de prosseguir com mais nada, gostaria de registrar aqui a história de cada uma. 2.1 Aracne. O nome de Aracne vem do grego arakhnēs (αραχνης), que significa literalmente “aranhas”. Ao contrário das outras histórias abordadas nesse trabalho, não possuímos muitas versões dessa, e nossa principal fonte são as Metamorfoses. Felizmente, isso não quer dizer que o mesmo arquétipo não apareça em diversos lugares e culturas, a transformação em um animal sendo uma punição comum para o crime de desafiar os deuses. Os Bubi da Ilha Bioko na Guiné Equatorial possuem a história de um sábio que questiona deus e sofre o mesmo destino de Aracne, e em diversos países hispanofalantes há o conto recorrente de uma criança que desobedece aos pais e é transformada em um animal, tendo que passar o resto da vida trabalhando em um circo de horrores (PEDROSA, 2011, pp. 118-131). Figura 3 - Cena do filme Nomadland Fonte: Nomadland, 2020. 17 Aracne era a costureira mais famosa de Lídia, mas quando habitantes atribuíam seu sucesso a deusa Atena2, ela negava e tomava o mérito para si, adicionando ainda que se a deusa quisesse realizar uma competição com ela, ela estaria mais que disposta, arcando com as consequências caso perdesse. Atena escutou essa declaração, e após remoer por um tempo, visita Aracne na forma de uma idosa, que a aconselha a ceder e suplicar pelo perdão da deusa. Aracne recusa: "Mantenho a minha decisão. Por que não vem ela em pessoa? Por que evita esse desafio?” (OVÍDIO, Metamorfoses, VI, 42). A idosa então se revela como Atena e ambas colocam-se a fiar. Atena borda o Areópago de Atenas, bem como a disputa com Poseidon que lhe cedeu a patronagem da cidade. Borda os doze olimpianos3 sentados e sentadas em tronos, além de quatro casos de ousadia punidos pelas divindades. Na borda ela fez ramos de oliveira, sua planta sagrada. Aracne por sua vez resolve retratar os crimes das deidades, bordando os casos de estupro cometidos por Zeus, Poseidon, Dionísio, e Apolo, além de outras infrações4. Na borda, ela fez flores entrelaçadas com ramos de hera. “Nem Palas, nem a Inveja poderiam por defeito naquela obra [...]” (OVÍDIO, Metamorfoses, VI, 129). Atena fica fora de si com o conteúdo do tecido e atinge quatro vezes a cabeça de Aracne com sua lança. Incapaz de aguentar esse insulto, Aracne amarra uma corda em seu pescoço e se enforca. Atena se compadece e salva a vida dela, mas a amaldiçoa a viver para sempre como uma aranha. 2.2 Touro de Minos. A palavra “minotauro” vem do grego “minōtauros” (μινώταυρος) que significa literalmente “Touro de Minos”, mas ele tinha outro nome, um dado por sua mãe, “Asterius”, o estrelado (APOLLODORUS, Bibliotheca,1.1.8). Esse nome não é tão comumente usado, eu mesma descobri ele a pouco tempo, e traz uma camada de 4 Precisamos notar aqui que Ovídio é um autor mais tardio, e que alguns dos crimes que ele cita em seu trabalho (principalmente estupros) não aparecem em outras obras mais antigas sobre o mesmo herói ou heroína. Veremos um exemplo dessa situação quando falarmos sobre Medusa em [2.5]. 3 Comumente fazem parte do grupo: Zeus, Hera, Poseidon, Ares, Afrodite, Hermes, Deméter, Apolo, Ártemis, Atena, Dionísio e Hefesto, apesar de não haver um consenso entre os autores clássicos. Ver: HANSEN, William. Classical Mythology: A Guide to the Mythical World of the Greeks and Romans. Nova York: Oxford University Press, 2005. p. 250. 2 Deusa da sabedoria e da guerra, e, mais importante para essa história, patrona da tecelagem. 18 humanidade para uma personagem vista sempre como mais um monstro a ser derrotado na trajetória de um herói. Portanto, é o nome que vou usar principalmente aqui. Asterius era filho da rainha Pasífae e do touro de Creta, e seu padrasto era o rei Minos. Esse, para provar que as divindades apoiavam seu governo, afirma que elas atenderiam a qualquer pedido que ele fizesse. Minos pede um touro para Poseidon e promete que o sacrificaria quando aparecesse. Poseidon manda um touro branco muito bonito, e ao vê-lo, Minos reluta matá-lo, mandando-o para seus estábulos e sacrificando outro no lugar. Como retribuição por não ter cumprido sua promessa, Poseidon enlouquece o touro tornando-o selvagem, fazendo também com que Pasífae se apaixone pelo touro5. Pasífae pede ajuda à Dédalo que constrói uma vaca de madeira cobrindo ela com a pele de uma vaca real para que a rainha possa ter relações sexuais com o touro. Dessa união sai Asterius. Figura 4 - Pasiphaë e o Minotauro Fonte: Wikipédia6. Quando ele já está crescido, o rei Minos “[...] decide afastar de seu lar essa infâmia [...]” (OVÍDIO, Metamorfoses, VIII, 154) e ordena para que Dédalo construa 6 Disponível em: Acesso em: 25 out. 2021. 5 Hyginus atribui essa paixão à Afrodite. Ver: PSEUDO-HYGINUS. Fabulae. In: The Myths of Hyginus. Tradução e edição de Mary Grant. University of Kansas Publications in Humanistic Studies, no. 34. Lawrence: University of Kansas Press, 1960. 40 19 um labirinto, onde ele prende Asterius em seu centro. Não satisfeito, o rei continua criando problemas. Como vingança pela morte de seu filho Androgeos, ele exige que Atenas providencie sete moças e sete moços desarmados para serem sacrificados e sacrificadas a cada nove anos, servindo como comida para Asterius, ou dependendo da versão, andariam pelo labirinto, e incapazes de achar a saída, morreriam lá (PLUTARCO, Theseus, 15.2)7. Figura 5 - Cena do seriado Dark Fonte: Dark, temporada 1, episódio 5: “Verdades”, 2017. Quando era tempo de sortear a terceira leva de jovens, Teseu se oferece para ir apesar de ser um príncipe, acreditando ser importante compartilhar da sorte do resto da população. Nesse ponto, Teseu já era considerado um herói. Filho de Aethra e do rei de Atenas (apesar que muitos consideram Poseidon como seu pai8), Teseu cresceu longe do rei, só descobrindo sua ascendência quando atingiu a maioridade e foi mandado para Atenas, matando vários monstros no caminho. Chegando em Creta, Teseu e Ariadne se apaixonam e ela lhe dá um novelo de lã, que ele amarra na porta do labirinto, permitindo com que ache o caminho de volta. Encontrando Asterius, Teseu o derrota e retorna vitorioso com Ariadne para 8 Em todas as fontes que encontrei há essa dualidade, algumas até supondo que os dois são os pais de Teseu ao mesmo tempo, mas Plutarco acredita que Aegeus é o pai e que a antecedência divina foi um rumor criado pelo avô de Teseu, Pittheus. (PLUTARCO, Theseus, 3.4; 4.1) 7 De acordo com Plutarco, os cretenses não admitiam que essa prática era verdadeira, mas sim que os atenienses eram presos no labirinto e eventualmente viravam escravos. Existem muitas especulações sobre a origem do mito do minotauro, e essa é uma possibilidade. Ver: PLUTARCO. Theseus. In: Lives Vol. I. Tradução de Bernadotte Perrin. Loeb Classical Library Volume 46. Cambridge: Harvard University Press. London: William Heinemann Ltd. 1914. 16. 20 Atenas. Os dois param na ilha de Naxos onde Teseu abandona Ariadne para ser encontrada futuramente pelo deus Dionísio que a toma como esposa. Li em algum lugar uma versão em que Teseu não mata Asterius, mas o resgata do labirinto e eles viram companheiros de viagem, porém não consigo encontrar esse relato novamente, sendo possível então, que ele saiu da minha imaginação. Porém, não podemos negar que esse é um destino muito mais feliz para nosso querido Asterius. 2.3 Quíron. Quíron é injustiçado de maneira próxima a Asterius, sofrendo as consequências de ações cometidas antes de seu nascimento, mas apesar de tudo, ele é sem dúvida o mais ajustado de nossa lista, se mantendo em alta consideração por heróis e divindades. Seu nome em grego é kheirōn (χείρων), derivado da palavra “mão” (kheir - χειρ) e pode significar algo como “habilidoso com as mãos”. Também é próximo da palavra “cirurgião” (kheirourgos - χειρουργος), que pode ser um aceno para seu papel como criador da medicina, tendo até mesmo curado a cegueira de uma fênix. Figura 6 - Helhesten Fonte: Gerhard Munthe, 1892 21 Durante sua caçada à Zeus, Cronos estupra Philyra enquanto ele tomava a forma de um cavalo, e ela dá à luz a Quíron. Ele é então meio-irmão de Zeus e igualmente imortal, fato que só lhe trará problemas depois. Ao contrário dos outros centauros (que nasceram depois dele e foram criados pelas filhas de Quíron), ele era retratado com um corpo humano inteiro na frente (e pernas humanas) e o traseiro de um cavalo, provavelmente devido à sua representação no teatro grego. Quíron também foi conhecido por ser mentor de deuses e heróis como Asclepius, Aristaeus, Acteon, e Jasão; mas sem dúvida seu pupilo mais conhecido é Achiles9, que o considerava como um pai. “Suas mãos amáveis acariciavam repetidamente as mãos frágeis de Quiron [...] Ele o beijava frequentemente, e dizia a ele onde jazia: ‘Vive, eu te imploro; não me deixe querido pai!10 ” (OVÍDIO, Fasti, 5.379, tradução minha a partir do inglês) Quíron é morto acidentalmente por Hércules, porém existem duas versões de como isso aconteceu: ou uma de suas flechas envenenadas com o sangue da Hidra atingiu Quíron por engano enquanto Hércules atacava outros centauros (APOLLODORUS, Bibliotheca, 2.5.4); ou Quíron derruba a flecha em seu próprio pé enquanto a examinava (OVÍDIO, Fasti, 5.379). A dor da ferida causada pelo veneno era insuportável, mas a morte escapava Quíron devido ao seu estatuto de imortal. Finalmente Zeus toma pena de Quíron e o transforma na constelação de Sagitário. 2.4 Argos. Encontramos um caso peculiar ao olharmos para o envolvimento de Argos no mito de Io. Terminamos a leitura com a sensação de que alguém foi injustiçado, mas na hora de apontar o dedo, não conseguimos nos acomodar em uma pessoa. Pela primeira vez nesta pesquisa encontramos o caso de ações que só foram tomadas 10 [...]His loving hands often stroked Quíron's frail hands [...]; He kissed him often, and said to him where he lay : ‘Live, I beg you; don't leave me, dear father’.” 9 Acho válido uma breve nota. Asclepius é o deus da medicina (seu bastão é o símbolo da medicina, apesar de sempre ser confundido com o caduceu de Hermes, e considero isso bem engraçado já que ele é o deus da mentira); Aristaeus é deus da apicultura, produção de queijo e azeite; Acteon foi transformado em veado após espiar a deusa Ártemis; Jasão é o protagonista da história dos Argonautas e o Velocino de Ouro; e Achiles é um herói da Ilíada. 22 devido ao fato que Argos e Hermes estavam empregados por um terceiro. A história de Io é antiga e possui diversas versões que inclusive se contradizem por vezes. Tento o meu melhor ao resumi-la abaixo, porém vamos focar nossa atenção na parte que se refere a Argos. Zeus se apaixona por Io, uma sacerdotisa de Hera em Argos (lugar), e eles têm relações sexuais, porém o consentimento de Io, se existe, é no mínimo dúbio.11 Hera suspeita da ausência de seu marido e vai procurá-lo, e Zeus, sentido a presença de sua esposa, transforma Io em uma vaca para esconder suas ações. Hera demanda a vaca como presente (Ovídio nos informa ser uma bela vaca) e não tendo razões para negar esse presente à Hera sem parecer suspeito, Zeus concorda. Hera designa o gigante Argos para vigiar e pastorear a vaca. Sua característica marcante eram os olhos, que podiam ser quatro (HESÍODO, Aegimius, fragmento 5) ou permear todo seu corpo (APOLLODORUS, Bibliotheca, 2.1.2), o tornando perfeito para o trabalho de vigilante. Além de sua atuação nessa história, Argos é conhecido por outros feitos: como matar um boi que devastou Arcádia, um sátiro que causava problemas, e mais famosamente, matar Echidna12: uma mulher com metade do corpo de serpente, que atacava passantes de uma estrada e morava em uma caverna, se alimentando de carne crua nos confins da terra (idem). Argos coloca Io para pastar e senta-se no topo de uma montanha para melhor vigiá-la. Cansado de ver seu sofrimento, Zeus ordena para que Hermes roube ela de volta, algo nada incomum já que ele é o mensageiro pessoal de Zeus e está a seu serviço. Além de deus dos ladrões, Hermes também preside sobre o sono, pastoreio e flautas (HINO HOMÉRICO, 4: para Hermes, 464 - 580), todos os fatores que se mostrarão importantes aqui. Esse ponto da história é melhor desenvolvido por Ovídio (Metamorfoses, I.624), portanto são suas palavras que seguiremos. 12 A respeito dela, ver: HESÍODO. Teogonia. In: Hesiod, Homeric Hymns, Epic Cycle, Homerica. Tradução de H.G. Evelyn-White. Loeb Classical Library Volume 57. London: William Heinemann, 1914. 300-305. 11 Ver: ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado. In: Aeschylus. Tradução de Herbert Weir Smyth. Loeb Classical Library Volumes 145 & 146. Cambridge: Harvard University Press. 1926. 645-670. Ver também: OVÍDIO, Metamorfoses. Tradução, introdução e notas de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017. I. 595. 23 Assim que recebe a ordem, Hermes pega suas coisas e apanha o caduceu, voando para os pastos onde Io está. Chegando lá, ele remove suas sandálias e chapéu, usando o caduceu como um cajado, parecendo um pastor para quem o visse. Ele guia um rebanho de cabras tocando uma flauta até onde Argos está. Percebendo que não conseguirá roubar Io debaixo de seu nariz, devido aos inúmeros olhos do gigante, Hermes senta-se com ele contando histórias para passar o tempo e tocando a flauta até Argos adormecer, todos os olhos se fechando. Rapidamente Hermes decapita o gigante com sua espada, libertando Io. Sabendo da morte do gigante, Hera coloca seus olhos no seu pássaro favorito: o pavão (OVÍDIO, Metamorfoses, 722). 2.5 Medusa. O nome Medusa vem da palavra medeōn (μεδεων), que significa “guardiã” ou “rainha”. Ela e suas duas irmãs górgonas, Euryale e Stheno, eram filhas de Phorcys e Ceto, ambas divindades marítimas. Sabemos pouco da vida de Medusa além do que encontramos no mito de Perseu, onde ela aparece como uma das várias antagonistas, e não ocupa muito mais do que duas linhas de texto. Ainda assim, quando pensamos em figuras injustiçadas da mitologia grega ela é uma das primeiras a aparecer em nossa mente. A garota estuprada no templo de Atena, que ao invés de amparo pela deusa, recebe uma cabeleira de cobras como punição, só para ser morta pelo capricho de um rei. Figura 7 - Cena do filme Harry Potter e a Ordem da Fênix Fonte: Harry Potter e a Ordem da Fênix, 2007. 24 Fiquei tão surpresa quanto qualquer um ao descobrir que a culpa dessa versão da história é principalmente de Ovídio e ela não aparece em redações anteriores por outros poetas. O autor Stephen R. Wilk (2000) aponta o relato que aparece na Bibliotheca de Apollodorus como o mais confiável, por ele apenas colher e agrupar as histórias que encontrava sem adicionar invenções próprias como fazia Ovídio, e por essa mesma razão, é ela que resumirei aqui. Vamos pular um pouco da história de Perseu e chegar no ponto onde o rei Polidectes queria se casar com a mãe dele: Danae, algo a qual Perseu aparentemente se opunha (apesar de isso não ser explicitado nessa versão, encontrei em outras13). O rei pede que cada um de seus amigos (incluindo Perseu) lhe desse um cavalo como presente, e Perseu responde que trará a cabeça de uma górgona. Eu interpreto que ele possa ter dito isso em um tom sarcástico, mas na hora de entregar o cavalo, Polidectes não estava de brincadeira. Ele recusa o presente e demanda a cabeça da górgona, vendo uma oportunidade para se livrar de Perseu. Hermes [2.5] o encontra cabisbaixo e após escutar a história, fala para ele não se preocupar. Com o conselho de Hermes e Atena, Perseu procura as graiae para que elas lhe informem a localização das nymphae, possuidoras de itens que o ajudariam em sua empreitada. As graiae são três irmãs chamadas: Enyo, Pemphredo e Dino; e tem os mesmos pais que as górgonas. Elas são idosas com cabelos grisalhos, e possuem um único olho e um único dente, que compartilham, passando uma para a outra. Perseu consegue se infiltrar entre elas e roubar o olho e o dente, usando-os como barganha para tirar a informação das idosas. Quando ele encontra as nymphae Perseu recebe um par de sandálias aladas (iguais as de Hermes, apesar que Hyginus coloca que ele recebeu as próprias sandálias do deus14), o kibisis15 (uma sacola para colocar a cabeça da Medusa), e o capacete de Hades, que deixa 15 Kibisis não é uma palavra grega e seu significado é fonte de confusão e debate desde sempre. É frequentemente traduzida como “carteira”, e eu concordo com Wilk (2000, p. 21) quando ele diz que é ridículo para o leitor e leitora moderna imaginar Perseu colocando a cabeça da Medusa ao lado de seus trocados e documentos. 14 “[...] ele recebeu de Mercúrio [Hermes], que consideram ter amado ele, talaria e petasus [...]; (he received from Mercurius [Hermes], who is thought to have loved him, talaria and petasus). HYGINUS, Astronomica, 2.13) Talaria é a sandália, e pétasus (πέτασος) é um chapéu de sol, que Hermes frequentemente usa. 13 Ver: GRAVES, Robert. Os Mitos Gregos: volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p 421. 25 aquele que o veste invisível. Hermes também o presenteia com uma harpe (ἅρπη): uma espada no formato de foice. Assim armado, Perseu vai até à margem do Oceanos (rio que circunda o mundo16) e encontra as Górgonas, mulheres tão feias que qualquer um que olhasse para elas viraria pedra. Com Atena guiando sua mão, Perseu usa seu escudo como espelho e corta a cabeça de Medusa que dormia, a única mortal das irmãs. Assim que sua cabeça cai, do pescoço saem Pegasus (cavalo alado) e Crisaor (gigante, ou um javali alado), e Perseu foge com a cabeça em sua sacola. Quando termina suas aventuras Perseu devolve os itens que recebeu para Hermes, e a cabeça de Medusa para Atena que a coloca no centro do aegis (αιγίς)17. Poseidon é mencionado como o pai de Pégaso e Crisaor, mas não sabemos sobre como esse encontro entre deus e górgona pode ter acontecido. A ajuda de Hermes não é estranha e segue seu carácter filantrópico18 para com a humanidade, porém a de Atena por vezes é atribuída como uma retribuição por Medusa ter dito ser mais bela do que ela. Medusa também não possuía os cabelos de serpente em suas primeiras descrições e aparições em obras. A górgona entre os séculos 8 e 5 AEC tinha os olhos arregalados, presas alongadas, barba e a língua de fora. Apollodorus a descreve dessa maneira: “[...] as cabeças eram entrelaçadas com as escamas pontudas de serpentes, e elas tinham grandes presas, como javalis, mãos bronzeadas, e asas de ouro com que voavam [...]19” (APOLLODORUS, Bibliotheca, 2.4.2, tradução minha a partir do inglês). Eram geralmente retratadas como cabeças flutuantes, e sempre frontalmente; se tinha um corpo, então a cabeça era muito 19 “[...] heads were entwined with the horny scales of serpents, and they had big tusks like hogs, bronze hands, and wings of gold on which they flew [...]” 18 Hermes é frequentemente descrito como tal: philanthrōpótate (φιλανθρωπότατε) (ARISTOPHANES. Paz. 392), phílon (φίλον) (ÉSQUILO, Agamemnon, 515). Ver também: VERSNEL, H. S. A God: Why is Hermes Hungry?. In: ______. (org.). Coping With the Gods: Wayward Readings in Greek Theology. Leiden: Brill, 2011. p.316 17 Considerado por vezes o escudo, por outras a capa de Atena. Wilk (2000, pp. 42-45) apresenta bem o assunto, além de introduzir a teoria de William Ridgeway que supõe que o aegis poderia ser uma pele de cabra. 16 Aqui o significado é próximo a dizer que Perseu foi ao fim do mundo. No Oceanos também fica a Casa de Hades, o reino dos mortos. 26 maior e não tinha pescoço. Esse fato levou à especulação que a górgona começou como uma máscara, e de fato artefatos assim foram encontrados20. Figura 8 - Gorgoneion (face de górgona) Fonte: Metropolitan Museum21. Górgonas eram comuns em moedas, e seu rosto poderia ter feito o papel de uma carranca para afastar o mal. Também eram pintadas como um aviso, por exemplo, nas portas de fornos para que ninguém o abrisse, e o pão não abaixasse22. A partir do século 5 AEC entramos em um momento de transição, com a górgona ficando cada vez mais bela e jovem: suas asas são afixadas na cabeça, as bochechas ficam redondinhas, e sua expressão vira uma de lamentação. Medusa vira uma figura que evoca pena ao invés de medo. (WILK, 2000, p. 35). Figura 9 - Medusa de Rodanini 22 Ver: GRAVES, Robert. Os Mitos Gregos: volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 228. Ver também: WILK, Stephen R. Medusa: Solving the Mystery of the Gorgon. Nova York: Oxford University Press, 2000. p.42 21 Disponível em Acesso em 25 out. de 2021. 20 Wilk (2000, p. 36) menciona cinco máscaras feitas de argila encontradas na cidade de Tiryns, e após uma breve pesquisa acredito que elas estão no museu arqueológico de Nafplio. Disponível em: https://www.worldhistory.org/image/521/greek-terracotta-masks/. Acesso em 08 out. 2021. 27 Fonte: Wikipédia23. Podemos nos perguntar o que aconteceu para que suas madeixas virassem serpentes. Medusa esteve associada com cobras desde o início, tendo elas enroscadas em seus cabelos e usando elas como cintos, mas aparece com o penteado feito só com cobras em moedas, provavelmente pela necessidade de priorizá-las em um espaço tão pequeno, e não é até o renascimento que as górgonas perdem o cabelo humano completamente. Por fim, não só Medusa tem cobras casualmente em seus cabelos: as Erínias possuem disposição similar. Gostaria de introduzi-las brevemente aqui já que estamos no tema de serpentes, pois elas se tornaram importantes para o trabalho final. Seu nome provavelmente veio da palavra grega eureunaô (ευρευναω), “perseguir”, ou da palavra arcádia erinuô, (ερινυω) “eu estou brava”, o que parece alinhar com seu nome romano: fúrias. Seu número não fica exatamente claro, mas Apollodorus (Bibliotheca, 1.1.4) as aponta como sendo três: Megaira, Alecto e Tisiphone. As erínias são a personificação das maldições impostas em criminais, punindo as transgressões das almas, tanto no Tártaro24, quanto em vida, chamadas para exercer vingança em nome da parte injustiçada. Em descrições sua aparência 24 Também chamado de “masmorras dos condenados”. 23 Disponível em: . Acesso em: 25 out. de 2021. 28 é comparável com a das górgonas25: serpentes enroscadas nos cabelos, braços e cintura; e asas. Outros aspectos particulares das Erínias são túnicas pretas e chicotes usados para torturar a alma de pessoas mortas. A descrição feita por Estácio é a minha favorita: [...]cem serpentes córneas eretas cobriam sua face, o terror coroado de sua cabeça horrível; profundamente nos seu olhos cavados brilha uma luz de ferro [...]; sua pele se distende e incha com corrupção; um vapor de fogo sai de sua boca maligna, trazendo para a humanidade uma sede insaciável e doença e fome e morte universal. De seus ombros cai um manto escuro e pavoroso; cujos fechos pretos se encontram em seu peito [...] ambas sua mãos tremem de raiva, uma reluzindo com uma tocha funeral, a outra chicoteando o ar com uma cobra d'água viva [...] e saiam repetidamente de seus cachos verdes violentos sibilos [...]26 (ESTÁCIO, Thebaid, 88, tradução minha a partir do inglês) 2.3 Caim. A escolha de Caim como uma das personagens pode parecer estranha por dois motivos: o primeiro, é que da minha seleção, ele é o único que não tem uma conexão direta com algum animal. Isso se deve ao fato de eu sempre pensar nele em relação à outra figura: Licáon, que é geralmente ligado à lobos. Antes de abordarmos essa conexão precisamos falar de outros temas, portanto esse assunto será retomado na seção [5.3]. Segundo - já que não podemos ignorar o elefante na sala - Caim era um assassino, o que pode parecer fora de lugar em um capítulo onde eu basicamente procuro gerar simpatia por cada personagem. O que não podemos esquecer é que temos outros assassinos em nosso meio: Asterius muito provavelmente matou e 26 [...] A hundred horned snakes erect shaded her face, the throning terror of her awful head; deep within her sunken eyes there glows a light of iron hue [...]; her skin distends and swells with corruption; a fiery vapour issues from her evil mouth, bringing upon mankind thirst unquenchable and sickness and famine and universal death. From her shoulders falls a stark and grisly robe, whose dark fastenings meet upon her breast [...]; both her hands are shaken in wrath, the one gleaming with a funeral torch, the other lashing the air with a live water-snake [...] and sent forth from her green locks fierce repeated hisses [...] 25 “Ah, ah! Servas, olhem elas ali: como Górgonas, envoltas em roupas de zibelinas, entrelaçadas com um enxame de cobras! Eu não posso ficar mais.” (Ah, ah! You handmaidens, look at them there: like Gorgons, wrapped in sable garments, entwined with swarming snakes! I can stay no longer) (ÉSQUILO, Portadores de Libação, 1048, tradução minha). 29 comeu os jovens atenienses, Medusa petrificou algumas pessoas, e Argos possui uma lista de homicídios como seus feitos honrosos [2.5]. Caim deveria ter um tratamento especial porque faz parte da mitologia judaico-cristã? Porque a vítima foi seu irmão? Acredito que não. O trecho que conta a história de Caim e Abel é incrivelmente curto e sucinto, o que abriu espaço para muitas interpretações durante os séculos, considerando não só possíveis narrativas a partir do que foi dito, como também do que não foi dito. Como fundação teórica desta seção estou usando o livro "Caim e Abel em texto e tradição27” de John Byron (2011). Ele apresenta diversas possibilidades de interpretação para cada parte da história, e recomendo a leitura do livro para qualquer pessoa que queira se aprofundar no tema. Infelizmente não seria relevante abordar todas essas possibilidades aqui, então apresento algumas que nos auxiliarão nas propostas desse trabalho, mas saiba que elas não são as únicas leituras. A história de Caim e Abel é uma de “primeiros”. Primeiros nascimentos; primeiros sacrifícios; e é claro, primeiro assassinato. Caim e Abel são os primeiros filhos de Adão e Eva. Sabemos que Abel virou um pastor e Caim um fazendeiro, e que eventualmente, ambos tiveram que fazer uma oferenda de seus produtos: Caim sua colheita e Abel o primeiro cordeiro nascido. “Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda. Mas não agradou de Caim e de sua oferenda” (BÍBLIA, Gênesis, 4, 4-5). A bíblia só provém essa sentença para descrever o ocorrido, nos deixando com a pergunta: Porque a oferenda de Caim não foi aceita? Essa foi a primeira oferenda de todos os tempos. Como eles sabiam o que fazer? Os irmãos receberam algum tipo de instrução? Javé tinha algum critério de escolha, ou seguiu puramente um capricho? Figura 10 - Cena do seriado Mindhunter - café da manhã 27 Cain and Abel in Text and Tradition 30 Fonte: Mindhunter, temporada 1, episódio 2, 2017. Diversas interpretações dão diferentes explicações, mas aqui gostaria de apresentar a solução apresentada na Bíblia Septuaginta (LXX), a tradução mais antiga da bíblia hebraica para o grego. Vamos tratar da visão teológica grega frequentemente no resto desse trabalho, portanto ela aqui se torna relevante. O texto hebreu usa a mesma palavra para ambas as oferendas, mas a tradução grega escolhe usar "sacrifício" (thusía - θυσία) para Caim; e “presente” (dṓron - δῶρον) para Abel. Dṓron pode indicar que a oferenda foi destinada integralmente para Javé, enquanto thusía poderia se referir ao modo helênico pagão de realizar sacrifícios: assim como na tradição judaica, a carne seria queimada e as divindades se alimentariam da “fumaça” (knisē - κνίση28), porém, adicionalmente um “jantar de festa” seria organizado para o deus (theoxenia - θεοξενία29), e uma mesa sagrada (trapeza - τράπεζα30) seria arrumada com outras partes do animal sacrificado além de vários tipos de bolos. Um ritual oficial diferenciava as porções para os devotos31, para os sacerdotes, e para o deus; mas se fosse feito de maneira privada essa diferenciação entre porções divinas e humanas não era feita. Considerando que 31 Splancha (σπλάγχνα) geralmente eram as vísceras do animal, assadas e comidas pelos devotos ainda quentes. 30 Literalmente “mesa”, mas adiciono essa informação aqui porque também será importante na seção [5.3] 29 Theos (θεος) “deus”; Xenia (ξενία) “hospitalidade”. 28 “Ao céu sobe a gordura, espiralando o fumo” (κνίση δ᾽ οὐρανὸν ἷκεν ἑλισσομένη περὶ καπνῷ) (HOMERO,Ilíada, I. 317). 31 Caim e Abel foram os primeiros a realizar oferendas, e não havia nenhum tipo de religião organizada, podemos ponderar que a tradutora ou tradutor se refere a esse tipo de thusia privado32. Após a recusa da oferenda, Javé conversa brevemente com Caim sobre o pecado que espera na porta33, e eventualmente Caim leva Abel para um campo e o mata. Porque Caim matou seu irmão? O consenso parece colocar a culpa na inveja, mas a Genesis Rabbah (22.8) apresenta uma ideia mais interessante dentre três outras: que a morte de Abel foi na verdade um sacrifício. “E ele vai agradar o Senhor melhor do que um boi [...]34“ (tradução minha a partir do inglês). Quase como que, sem sucesso na primeira vez, Caim tenta novamente. Qual é a diferença mais óbvia entre a oferenda feita por ele e por Abel? O sacrifício de Abel era um animal inocente. Javé pergunta para Caim onde está seu irmão, que tenta desconversar e esconder o assassinato. Deus afirma que escuta o sangue de Abel chamar por ele do solo, revelando que sabe das ações de Caim, e apresenta sua sentença. Figura 11 - Cena do seriado Mindhunter - fio dental Fonte: Mindhunter, temporada 1, episódio 2, 2017. 34 [...] And it shall please the Lord better than a bullock [...]. 33 “Não jaz o pecado na porta, como um animal acuado que te espreita;” (BÍBLIA, Gênesis, 4,7). 32 Podemos comparar o ritual helênico com as orientações para os holocaustos encontradas no primeiro e segundo capítulo do Levítico, onde de fato todo o animal é queimado. Ver: BÍBLIA, Bíblia de Jerusalém. São Paulo: PAULUS, 2002. Levítico, 1, 3-17. 32 Muitos consideram a punição de Caim injusta, mas no sentido de ter sido muito leve, e não caber ao crime de assassinato. Javé amaldiçoa Caim (marcando aqui o primeiro humano a ser amaldiçoado) a não conseguir cultivar o solo, e ser para sempre um fugitivo. Como eventualmente Caim funda a cidade de Henoc, muitos interpretam a segunda parte como exclusão da unidade familiar, ou ser abandonado pelo próprio deus35. Caim lamenta seu destino, alegando que todas as pessoas que o encontrassem tentariam matá-lo. Por fim, para protegê-lo, Javé estabelece que quem matá-lo será sete vezes punido36, além de colocar uma marca sobre ele para que seja facilmente identificado. Ao meu ver, Caim parece mais do que tudo, uma pessoa perdida que não sabe muito bem o que está acontecendo, o que só muda no momento que Javé dá a sua sentença. Desde não saber como realizar um sacrifício do modo correto, a não ter uma compreensão completa do que a morte de um humano significa37. Javé parece entender isso e não pune ele de forma extrema, porém não podemos ignorar que a negação do sacrifício de Caim foi o estopim dessa série de eventos. 37 Já que Abel foi o primeiro humano a ser morto, mas isso é uma interpretação minha. 36 Há controvérsias sobre essa punição, se “sete vezes” significa que a pessoa morrerá, além de mais seis pessoas queridas; ou que a sétima geração na linhagem será punida. 35 Várias interpretações olham para Caim como uma espécie de primeiro “ateu”, que acredita na existência de Deus, mas não em seus poderes e onisciência (como quando tenta esconder o assassinato), e seria abandonado por deus durante sua punição. 33 3 TEODICÉIA E PESSIMISMO 3.1 Teodicéia. No começo dessa pesquisa, ainda no momento de definição de tema, encontrei o artigo “Fargo: Uma peça de Moralidade Bíblica” de Mary Ann Beavis (2000) enquanto considerava se a filmografia dos irmãos Coen seria relevante para esse trabalho ou não. Nele, a autora sugere como algumas personagens desse filme personificam certos temas bíblicos, de modo que podemos pensar em como fazer essa interpretação em um filme secular. No fim, os diretores acabaram tomando uma posição menor nessa pesquisa do que eu imaginava no começo, mas esse artigo me pôs a ruminar algumas questões de moralidade, e principalmente de punição divina. Figura 12 - Cena do filme Fargo Fonte: Fargo, 1996. Foi nesse estado que li a história de Aracne nas Metamorfoses de Ovídio. Esse tema já foi trabalhado no capítulo dois [2.1], mas vale retomá-lo brevemente aqui. Minha primeira reação ao ler a descrição da tapeçaria que ela produz foi de agradável surpresa. Cuidadosamente detalhando os crimes das divindades em seu trabalho, a heroína não só dá um tapa na cara da deusa Atena, mas na cara do leitor e leitora também. A partir desse momento decidi querer fazer o mesmo, tecer de certo modo minha própria denúncia contra as figuras divinas, assim definindo o 34 meu norte verdadeiro: entender a justiça divina, ou talvez melhor dito, o capricho divino. Acredito que para as pessoas atentas pode ficar claro - a partir da minha surpresa no parágrafo anterior - que saí automaticamente de um ponto de vista judaico-cristão durante a leitura desse mito. Ao pensar a relação Deus-humanidade, cristãos e hebreus partem de algumas preposições: que divindades são boas e que elas não têm interesses egoístas (MONTEFIORE, 1893). O que nos deixa com algumas questões: se esse é o caso e o bem da humanidade é sempre a prioridade, então, por que existe mal no mundo? Ainda, se Deus é bom, porque divindades agem de forma cruel? É familiar essa atitude vinda de divindades pagãs, que servem por vezes de antagonistas em tragédias, contos e mitos (alguns panteões possuem deuses constantemente antagônicos, como o deus Loki na mitologia nórdica, por exemplo), mas o deus da bíblia cristã não está isento dessa narrativa. Basta nos lembrarmos do dilúvio para termos exemplos de punições que foram no mínimo, longe demais. Felizmente para nós, existe uma área da teologia que se ocupa exatamente dessa questão, tentando defender a bondade de Deus, em relação ao mal do mundo: a teodiceia38. É claro que não só cristãos e hebreus se questionaram sobre o mal, tragédia, infortúnios, e o porque eles nos afligem. Por essa razão começaremos esse capítulo entendendo qual é a visão helênica com relação à justiça e arbitrariedade divina, e em seguida, partiremos para uma análise da teodiceia no Livro de Jó, cujo tema central é justamente porque Deus está punindo Jó que é um homem correto e justo. 3.1.1 Gregos. “Os deuses tecem vida amarga para os homens tristes, enquanto eles vivem sem angústia” (HOMERO, Ilíada, 24. 525) Ao pararmos para pensar no assunto, é fácil trazermos à memória histórias da mitologia grega onde a intervenção, retribuição ou atuação divina trouxe problemas para os nossos heróis e heroínas: Poseidon atrapalha a viagem de Odisseu (HOMERO, Odisseia), Afrodite faz Medea se apaixonar por Jasão (ajudando ele, mas acabando com a vida dela no processo) (APOLLONIUS, 38 Termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz. 35 Argonáutica) e Hera instrui o rei Euristeu a atribuir os trabalhos à Hércules. Quando olhamos para as tragédias do período arcaico, também percebemos que seus autores esperam sempre o pior, cultivando uma visão pessimista dos caprichos divinos. Porém, em outros trechos, os mesmos autores apresentam a ideia de justiça divina. Que as divindades vêm tudo e punem os mortais de acordo. Ainda, por vezes temos a ideia que a humanidade não deve culpar as deidades pelo próprio infortúnio e se responsabilizar pela própria má sorte. Então, afinal, qual é a verdade? Nos deparando com as ideias conflitantes oferecidas por um mesmo autor em uma mesma obra, só nos resta considerar que não existe um princípio de causalidade universal, e ainda, que apesar de se contradizerem, múltiplos motivos podem ser aplicados à mesma desgraça. “Eu não sou o culpado, mas Zeus e as Moiras e as Erínias negrierrantes, que na minha mente, na assembleia, arremessaram atē (ατη), cegueira atroz” (HOMERO, Ilíada, XIX.86-89) Só nessa frase Agamêmnon atribui culpa para pelo menos quatro figuras, que à primeira vista, não tem nenhuma relação uma com a outra39, incluindo a dicotomia de acreditar que estamos sujeitos e sujeitas a caprichos de figuras divinas, e ao destino inescapável simultaneamente. Ao ter múltiplas visões, é permitido que alguém reconheça seus erros, e culpe um agente externo ao mesmo tempo, facilitando seu perdão e reentrada na sociedade. O importante não é o fato que essas desculpas são feitas, mas sim, aceitas. Vamos olhar para Hércules, como exemplo. Após matar sua esposa e filhos devido a uma loucura enviada pela deusa Hera, Hércules procura o oráculo em Delfos para saber como se purificar e reentrar a sociedade. O oráculo o envia a Euristeu, resultando em seus doze trabalhos. Talvez, sem a loucura para poder culpar, isso não teria sido possível e a história do herói teria acabado definitivamente em tragédia antes mesmo de seus feitos mais reconhecíveis acontecerem. Em seu livro “Lidando com os deuses40”, Versnel (2011, p.187) organiza oito razões pelas quais o infortúnio pode cair sobre um herói ou heroína na tragédia - 40 “Coping with the Gods” em inglês. 39 Zeus é o deus governante, e atē (ατη) é a loucura enviada como punição por um crime. Para Erínias, consulte [2.1.1] deste trabalho, e para Moiras continue lendo essa seção. 36 lembrando novamente, que mesmo se contraditórias elas podem ser aplicadas à mesma situação. Como primeira categoria, temos as leis impessoais do universo (não conectadas com a intervenção divina): destino e sorte. O destino é imprevisível e inescapável, seja no planejamento geral da vida de uma pessoa, ou nas pequenas ações do dia a dia que levam à chance de algo acontecer, ou não. Esse destino é personificado na figura das Moiras. São três irmãs: Clotho, a que fia o destino no nascimento; Lachesis, que mede o comprimento do fio; e Átropos, que o corta. Dependendo do autor ou versão da história contada, a independência delas muda, por exemplo, Homero (Ilíada, 22.209) considerava que as Moiras respondiam à Zeus e ele teria o poder de interferir ou salvar alguma pessoa da morte. Em outras fontes, como em Heródoto (Historiae, 1.91.2), elas são completamente inflexíveis e até mesmo as deidades estão sujeitas a elas. Figura 13: Cena do filme Hércules. Fonte: Hércules, 1997. A sorte já é mais fácil de prever, pois, ela é instável e opera à procura do equilíbrio. Se a pessoa foi alvo de um período de má sorte, a boa estará logo por vir, e do mesmo modo o contrário também é verdade. É considerado que a sorte excessiva e acúmulo de riquezas e poder, inescapavelmente trará a ruína e catástrofe, por vezes súbita e inesperada. No terceiro livro da Historiae de Heródoto temos a história de Polykrates, um tirano muito rico e poderoso que recebe um aviso de seu amigo Amasis, rei do Egito. Ele o aconselha a se livrar de um pouco de suas 37 riquezas. Polykrates joga seu anel mais precioso no mar, mas o encontra novamente no estômago de um peixe, mostrando que esse tipo de sorte é inevitável. Nas palavras do seu amigo Amasis, é melhor “[...] se dar bem em algumas coisas e mal em outras, passando pela vida com sucessos e falhas alternados, ao invés de ser sortudo em todos os aspectos[...]41” (HERÓDOTO, Historiae, 3.40.2, tradução minha a partir do inglês). Como segunda categoria temos a intervenção arbitrária do divino, seja de um deus ou deusa específico, ou de uma “vontade divina” geral. Nessa mesma divisão também temos a “inveja divina”, dirigida a um ser humano, ou a um trabalho feito por mãos mortais, onde a deidade sempre procura manter o abismo de grandeza e capacidade que separa a humanidade da imortalidade. Como exemplo, podemos lembrar da história de Cassiopeia, que ofendeu o divino afirmando que ela era mais bela que as nereidas, o que levou Andrômeda ser amarrada no rochedo a mercê do monstro marítimo como punição à sua mãe (APOLLODORUS, Bibliotheca, 2.4.3). Se olharmos para a Bíblia, também encontramos dois exemplos de inveja divina: a primeira no jardim do Éden, pois ao descobrir a diferença entre bem e mal a humanidade comeria da árvore-da-vida e se tornaria imortal - portanto divina (Gênesis, 3:1 -12). A segunda na torre de Babel que tornara a humanidade muito poderosa, portanto foi derrubada e as línguas misturadas (Gênesis, 11:1). Figura 14: Deusa Tétis no filme Fúria de Titãs. 41“ [...] succeed in some affairs, fail in others, and thus pass life faring differently by turns, rather than succeed at everything.” 38 Fonte: Fúria de Titãs, 1981. Temos o erro humano como terceira categoria. A punição pode ser resultante de uma ação ou atitude errada da própria pessoa; ou ainda, retribuição de uma ofensa feita por ancestrais (esse também é o caso de uma punição que cai sobre uma cidade devido ao erro de quem a governa). Para a mitologia helênica se uma pessoa escapar à punição, sua prole, ou a posteridade, terá que pagar42, enquanto no cristianismo a punição sempre vem após a morte. Acredito que este pequeno excerto da fala do oráculo explicando as causas da tragédia que caiu sobre Creso na Historiae de Heródoto ilustra bem quase todas essas categorias e como elas podem se relacionar sem muitos problemas. Creso é o rei da Lídia que perdeu a guerra contra Ciro da Pérsia. Ele seria queimado vivo, mas no último momento Ciro decide poupar sua vida e eles ficam amigos. Assim que possível Creso envia mensageiros para confrontar os oráculos e perguntar ao deus Apolo por que ele o enganou ao enviar uma profecia que previa sua vitória. Essa é a resposta: “É impossível até mesmo um deus escapar do destino predestinado. E Creso pagou o débito devido pelo pecado de seu quinto ancestral [...] E apesar de Lóxias43 43 Epiteto de Apolo, significando “dos oráculos ambíguos”. 42 Também existia a crença que a punição sofrida por descendentes seria sentida por ancestrais no Hades. 39 esperar que a calamidade de Sardis pudesse cair sobre os filhos de Creso, e não sobre o próprio Creso, não foi possível desviar as Moiras de seu curso [...], pois ele adiou a tomada de Sardis por três anos; e faça Creso ter certeza que ele foi tomado como prisioneiro por esses anos mais tarde do que o tempo destinado: e ainda mais, em segundo lugar, ele o ajudou quando estavas prestes a ser queimado. E sobre a profecia que foi dada [...] Lóxias disse-lhe com antecedência que se ele marchasse sobre os persas ele iria destruir um grande império: e ele, ouvindo isso [...] deveria ter enviado alguém e perguntado se o deus queria dizer seu próprio império ou o de Ciro: mas ele não entendeu o que fora proferido e não perguntou de novo, deixe ele se pronunciar como a causa do que aconteceu44" (HERÓDOTO, Historiae, 1.91.1-4, tradução minha a partir do inglês) Por último, antes de passarmos para a próxima seção, é importante colocar que havia uma diferença entre o que era escrito nas tragédias e praticado no cotidiano. Como qualquer peça, ou obra literária, os acontecimentos refletiam a realidade, porém eram aumentados, dramatizados. A tragédia era um espaço seguro para colocar as emoções, dúvidas, e questionamentos sobre a relação entre a humanidade e a divindade. A vida cívica não era esse lugar. Nessa, se a culpa era atribuída ao divino era sempre em um deus ou deusa não nomeada (atribuída às deidades no geral) ou à algum daemon (espírito), ainda, se um deus ou deusa era reconhecida, era somente para o propósito de pensar em modos de conseguir seu favor novamente,”[...]os deuses eram uma explicação ou desculpa, não um objeto de culpa[...]45” (PARKER, 1997, p.156, tradução minha). 3.1.2 Paciência de Jó. “E o melhor da piada é pedir ‘Alguém nos salve!’46” 46 “And the punchline to the joke is asking; someone save us!” 45 “[...] the gods are an explanation or excuse, not an object of blame [...]. 44 “No one may escape his lot, not even a god. Croesus has paid for the sin of his ancestor of the fifth generation before [...]; And it was the wish of Loxias that the evil lot of Sardis fall in the lifetime of Croesus' sons, not in his own; but he could not deflect the Fates.[...]; for he delayed the taking of Sardis for three years. And let Croesus know this: that although he is now taken, it is by so many years later than the destined hour. And further, Loxias saved Croesus from burning. But as to the oracle that was given to him,[...]; he ought [...], to have sent and asked whether the god spoke of Croesus' or of Cyrus' empire. But he did not understood what was spoken, or make further inquiry: for which now let him blame himself” 40 (MY CHEMICAL ROMANCE, 2006) Após terminar minha exploração das Metamorfoses de Ovídio e chegar em cinco mitos para trabalhar, acreditei ser importante voltar minha atenção para as histórias bíblicas. Caso se recorde, em minha listagem inicial, adicionei o item cristianismo - apesar de que na época pensava mais no ponto estético: igrejas barrocas e santos renascentistas, mas achei válido expandir o tema e procurar a questão da injustiça divina na Bíblia. Foi assim que cheguei em Jó e no cerne que nos persegue: o que Jó fez? Acredito que não chegaremos a uma resposta nesse trabalho, apesar de apresentar mais para frente a opinião de alguns pesquisadores. O Livro de Jó é dividido em cinco partes: o prólogo, os debates, o discurso de Eliú, a voz de Javé e finalmente o epílogo. O prólogo e o epílogo estão em prosa enquanto as partes encaixadas no meio são uma poesia. É um consenso entre os pesquisadores e pesquisadoras que eles provavelmente não foram escritos na mesma época, com a prosa sendo adicionada ao texto mais tarde47 (BLOOM, 2004, pp. 26-27). Começamos o livro com uma introdução sobre a integridade de Jó, que nos conta como ele é uma pessoa afortunada, ao descobrirmos todas as riquezas que ele possui. Ler esse trecho, agora que sabemos a visão grega sobre a sorte, e o que acontece com aqueles que a possuem em demasiado, é o suficiente para nos deixar suspeitos sobre onde essa história está indo. Em seguida nos levam para um tipo de reunião, onde os Filhos de Deus se apresentam a Javé, que conta para eles como Jó é um homem íntegro. Essa afirmação é contestada pelo Acusador (ou “o Satã”48), que após uma breve discussão recebe a permissão de Javé para trazer infortúnios e doenças para a vida de Jó, à espera que ele amaldiçoe a Deus. Com isso chegamos ao fim do prólogo e damos início aos debates. Três amigos sentam-se ao lado de Jó por sete dias e sete noites tentando consolá-lo, já de luto por ele. São eles: Elifaz, Baldad e Sofar. Encontramos uma montanha-russa de emoções por parte de Jó e seus amigos, que o acusam de diversos crimes tentando descobrir o que Jó fez. Jó por sua parte amaldiçoa sua própria existência e pergunta a Deus qual é o motivo de seu sofrimento. Conseguimos ver claramente a 48 Ver: שָׂטָן In: BLUE LETTER BIBLE, Lexicon :: Strong's H7854 - śāṭān. Disponível em: https://www.blueletterbible.org/lexicon/h7854/kjv/wlc/0-1/. Acesso em 09 out. 2021. 47 “O Epílogo inepto é um absurdo, escrito por qualquer carola idiota.” (BLOOM, 2004, p. 27) 41 diferença entre o Jó do prólogo e dos debates: o primeiro é muito mais dócil parecendo confiar em Javé ao aceitar seu destino “se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” (BÍBLIA, Jó, 2:10), já o Jó do debate é muito mais combativo, demandando respostas “Se pequei que mal te fiz com isso; sentinela dos homens?; Por que me tomas por alvo?”(BÍBLIA, Jó, 7:20), ainda, critica Deus: “Ele extermina o íntegro e o ímpio! Se uma calamidade semear morte repentina; ele se ri do desespero dos inocentes”(BÍBLIA, Jó, 9:22). Quando todos os amigos desistem de consolar Jó, Eliú - uma quarta pessoa que esperava para falar com ele, mas que não interrompera os amigos por estes serem seus anciãos - intercede. O tema principal de sua fala, e sua proposição para a razão do sofrimento de Jó, é que Deus pune para nos manter no caminho certo. Essa seção também é considerada uma adição posterior e representa uma quebra clara no texto. Em quarto, temos a esperada voz de Javé, e aguardamos ansiosamente por sua resposta. Afinal, por que Jó está sendo punido? Nesse ponto podemos até ter começado a duvidar se ele de fato é tão íntegro, e se seus amigos não estão corretos ao acusá-lo. Se quisermos desconsiderar o prólogo e a fala inicial de Javé, essa dúvida fica ainda mais potente. Infelizmente para nós essa resposta nunca chega. Javé passa sua seção reiterando sua onipotência e a insignificância da humanidade em relação a ela, tentando a todo modo manter o abismo entre mortais e imortais, o que nos lembra da categoria de “inveja divina” que vimos na seção anterior. Deus parece um pai que se recusa a explicar para suas crianças por que as repreende para além de “eu sei o que é melhor para você!” substituindo a justificativa e argumentação pela força e poder, nos levando a acreditar que, assim como na situação familiar, ele também não tem uma resposta. Javé termina seu discurso falando de Beemot e Leviatã [5.1]. Nas palavras de Bloom: “Beemot e Leviatã representam nitidamente a tirania santificada da natureza em relação ao homem [...] Javé tem orgulho dos dois seres, e tal orgulho é um insulto a Jó e ao leitor [...]” (BLOOM, 2004 ,pp.27-28). Por último, no epílogo, Javé entrega novas riquezas para Jó e pune seus três amigos por não terem conseguido defender Deus corretamente. O que nos leva a pensar: Deus precisa de defesa? Nossas ações atingiriam ele? Certamente não, se formos levar em conta algumas linhas da teodiceia. Ainda, ele afirma que Jó falou corretamente dele. Então todas as acusações de Jó estariam corretas? Ao invés de 42 obtermos a resposta para nossa pergunta inicial, só fomos deixados e deixadas com mais questões em nossas mãos. Figura 15: Panfleto no seriado True Detective Fonte: True Detective, temporada 1, episódio 2: Vendo Coisas, 2014. A etimologia da palavra teodiceia vem do grego: theos (θεος) “deus” e dikē (δικη) “justiça”, significando literalmente “justificando deus”. O cristianismo nos apresenta dois tipos de teodicéia: um vindo de São Agostinho e outro de São Irineu. O primeiro olha para o mal como a consequência da queda do paraíso, mantendo a humanidade em eterna punição. O segundo vê a queda como oportunidade de crescimento, para que a humanidade chegue à perfeição. Por essa lente, a não punição de quem faz mal seria a maior punição de todas, pois sem ela não haveria uma evolução pessoal (MONTEFIORE,1893, p. 557). É claro que existem outras proposições além dessas: podemos pensar que a noção de justiça divina difere da humana (uma noção que também encontro no discurso de Eliú); ainda, podemos adotar uma abordagem escatológica onde as recompensas que nos esperam na morte serão maiores que as dores que sofremos em vida; além disso, podemos pensar que Deus permite o pecado como o preço pelo livre arbítrio da humanidade: fazemos nossas escolhas e tomamos responsabilidade pelos resultados. Por último temos a posição de Leibniz que argumenta ser melhor termos um mundo de variedade e plenitude. Nessa visão, Deus escolheu essa versão do mundo dentre muitas outras, e já que ele só quer o 43 nosso melhor, esse é o melhor dos mundos possíveis (THEODICY, 2020). Ao ler essa informação, inevitavelmente lembrei de uma piada que encontrei por acaso: “Otimistas esperam que vivemos no melhor mundo; pessimistas temem que esse seja o caso…” Agora que sabemos um pouco mais sobre o Livro de Jó, e conhecemos algumas respostas judaico-cristãs tanto para a presença do mal no mundo quanto às punições que parecem por vezes injustas, proponho que troquemos nossas lentes por um momento. Ora, comecei essa pesquisa olhando para a mitologia grega com um ponto de vista cristão acidentalmente, agora, proponho encararmos o Livro de Jó sob a ótica grega de propósito, analisando ele como se fosse uma tragédia. Diversos pesquisadores e pesquisadoras já se aventuraram por esse caminho, e existem inúmeras razões pelas quais essa comparação não pode ser feita - principalmente a de não ser possível haver tragédia no contexto bíblico, pois o destino está nas mãos do divino, e, como mencionado, sempre partimos do princípio que Deus é bom - mas aqui não pretendo afirmar nada, somente usar essa comparação como um exercício de imaginação secular que nos ajudará quando chegarmos em outras seções desta pesquisa. Primeiro, precisamos entender o que é uma tragédia, ou, o que um texto precisa para poder ser considerado uma tragédia. Aqui uso a conclusão de Ariel Hirschfeld (2015, p.18) que marca dois componentes centrais: o distanciamento entre o humano e o divino; e a “húbris - levando à - dikē”. Esse distanciamento não é só um de visão de mundo e compreensão, mas também de acessibilidade emocional. O divino parece ser incapaz de compreender e se simpatizar com a dor, nem cruzar o abismo para a profundidade da experiência humana. Javé é aquele que fala no meio da tempestade, mas na verdade Jó é um tornado de confusão atacando um campo aberto, incapaz de atingir nada em meio ao vazio da percepção divina. Uma parte que ilustra essa inacessibilidade é o destino dos filhos e filhas de Jó, que logo no prólogo morrem devido a um furacão. Acho curioso essa seção ser colocada junto a descrição de como Jó perde suas riquezas, dando a entender que sua prole é só mais uma propriedade dele. No epílogo, Deus devolve as riquezas e dá novos filhos e filhas para Jó, como se esses substituíssem sem problemas seus descendentes mortos. Hirschfeld compara esse Deus com aquele que pede o sacrifício de Abraão nos mostrando a disparidade entre os dois “Ele reconhece o 44 significado completo do relacionamento, a profundidade da dor, que Ele está evocando no seu pedido pelo sacrifício. O Deus do Livro de Jó não entende nada.49” (HIRSCHFELD, 2015, p.15, tradução minha). Húbris pode ser traduzida como arrogância, ou orgulho - e era usada para descrever uma ação errada contra o divino - mas também pode significar complacência ou inocência. A húbris na tragédia catalisa a falha fatal (hamartia - άμαρτία) que leva à ação vergonhosa e finalmente à catástrofe e dikē, mas aqui dikē é mais do que simplesmente “justiça”, é o realinhamento das forças de equilíbrio (similar com o que vimos sobre a sorte na seção anterior). A húbris não deve ser confundida com a falha, ela é o peso que desequilibra a balança e torna a falha possível. Portanto, se formos olhar para Jó como tragédia precisamos descobrir qual foi sua húbris e sua “falha fatal”. Ou como já coloquei anteriormente: o que Jó fez? Que falhas podemos encontrar em seu caráter ou trajetória? O próprio Hirschfeld (2015, p.18) nos dá uma opção de húbris que acredito já ter sugerido no início desta seção: Jó é perfeito demais. Não só Deus construiu “um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e seus bens”(BÍBLIA, Jó, 1:10) quanto ele criou um sistema para evitar o mal completamente, purificando seus descendentes no caso deles terem pecado sem seu conhecimento, criando um desequilíbrio em sua vida. E quanto à sua falha? Qual foi a hamartia de Jó? Encontrei uma sugestão do autor Karl Johan (2003), que apesar de não ser colocada em seu texto como uma “falha fatal” é uma falha, o que já é difícil o suficiente de encontrar em Jó. Johan sugere que o erro está nas críticas de Jó sobre Deus. Criticar por si só é errado? Não, mas “[...]criticar sem conhecimento é para alguns, visto como pecaminoso[...]50” (JOHAN, 2003, p. 329, tradução minha). Uma das primeiras falas de Javé aborda exatamente isso: “Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?” (BÍBLIA, Jó, 38:4). Jó não poderia saber do plano divino, mas isso nos leva a nos questionarmos, se Deus planejou tudo, então ele sabia que o Acusador iria desafiá-lo e a punição de Jó era inescapável de todo modo? Outro ponto que me 50 “criticising without knowledge is, by some, regarded to be sinful” 49 “He recognizes the full meaning of the relationship, the depth of the pain, that He is evoking in his request for sacrifice. The God of the Book of Job understands nothing” 45 incomoda, é a cronologia. Quando Jó crítica Javé a catástrofe já aconteceu, portanto, não poderia ser uma “falha mortal”. “Existe fora da literatura aquela coisa de ‘falha fatal', a nítida fenda escura que se estende e racha uma vida ao meio? Eu costumava achar que não. Agora acho que sim.” (TARTT, 1992, p.15) 3.2 Pessimismo. “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!” (NIETZSCHE, 1883) “O que é isso, Nietzsche? Cala a boca”. (DETECTIVE..., 2014, episódio 5, tradução minha) Em seu livreto “Pessimismo Cósmico", Eugene Thacker define o pessimismo como “[...]a forma filosófica de desencantamento[...]” (THACKER, 2015, p.4, tradução minha). Ao tentar me recordar, acredito que talvez a primeira vez que tenha entrado em contato com o sentimento pessimista foi escutando modas de viola com meus avós em longas viagens de carro. Versos como “Não tem um que cante alegre; Tudo vive padecendo; Cantando pra se aliviar” (OLIVEIRA, 1918)51 ressoavam em minha mente enquanto incontáveis pés de café viravam um borrão ininterrupto pelos campos, passando rápido pela janela do carro. Outras músicas compartilhavam o desgosto52: as coisas não estavam bem e não tinham nenhuma esperança de ficar. Conforme cresci, me voltei para o folk estadunidense, em parte por estar em tantas trilhas sonoras dos filmes que assistia, encontrando os mesmos sentimentos lá. Na tragédia grega a flauta é um instrumento de tristeza e pesar, de perda trágica. Schopenhauer tocava a flauta (THACKER, 2015, tradução minha). Me pergunto se poderíamos trocar ela pela gaita. Figura 16: Cena do filme Nomadland 52 Me lembro de “Chico Mineiro” de Tonico e Tinoco e “Saudades de Minha Terra” de Belmonte e Amaraí. 51 Ver: ANGELINO DE OLIVEIRA. Tristeza do jeca. 46 Fonte: Nomadland, 2020. No subcapítulo anterior analisamos algumas explicações para o sofrimento humano, olhando para a abordagem judaico-cristã e grega (e nos limitando a elas por serem as mais relevantes neste trabalho). Talvez essas explicações foram satisfatórias para alguns, talvez não. Aqui olharemos para uma que talvez contente quem não se satisfez: para pessimistas não conseguimos escapar do sofrimento, viver é sentir dor até o dia que morremos, independentemente se a culpa cai sobre uma divindade ou sobre o surgimento da consciência humana. Mas não estamos olhando para uma filosofia tão angustiante à toa. O pessimismo como visão de mundo (ou pelo menos como sentimento) está presente em muitos filmes noir (e neo noir)53, e em filmes de “detetives durões”54 item que estava incluído em minha já tão referida listagem inicial de interesses. Como estamos nesse capítulo que pretende oferecer algumas explicações para o sofrimento, não faz mal algum olharmos para o que o pessimismo tem a dizer. E o que ele tem a dizer é: não há uma explicação. Ligotti propõe que ser um pessimista é acreditar que “[...]a vida é algo que não deveria ser [...]55” (apud PARKER; STONEMAN, 2019, tradução minha). Já 55“[...] life is something that should not be[...]” 54 O termo em inglês é “hard boiled detective”, como um ovo que ferveu por tempo demais, mas não encontrei uma outra opção satisfatória em português, portanto a tradução é minha. Aqui usarei o termo intercambiavelmente com “detetive noir”. 53 Filmes noir são caracterizados por personagens com uma moralidade ambígua, desorientados em um mundo sem regras, filmados com um alto contraste de luz e sombra refletindo essa ambiguidade. Como noir foi um termo aplicado retroativamente para filmes entre 1920 e 1950, tudo que veio depois com essas características é chamado de neo noir (CONARD, 2007). 47 Dienstag é menos radical e inclui na lista quem “[...] questiona a possibilidade de progresso ou toma uma visão negativa da humanidade [...]56” (apud PARKER; STONEMAN, 2019, tradução minha). O pessimismo “[...] é marcado pela falta de vontade de ir além ‘do pior [...]57’” (THACKER, 2015, p.19, tradução minha) e está “[...] preso em algum lugar entre uma filosofia e uma atitude ruim [...]58” (THACKER, 2015, p.40, tradução minha), e como tal, é extremamente difícil de penetrar o público geral. Aqui é onde a mídia por vezes faz seu papel de apresentar essa filosofia, seja por “cantar o blues” ou na figura de um detetive amargurado tentando solucionar um mistério impossível. “Não nascer é, além de qualquer estimativa, melhor; mas uma vez que o homem viu a luz do dia, é de longe segundo melhor, que com a maior rapidez ele volte para o lugar de onde veio59” (SOPHOCLES, Édipo em Colono, 1225, tradução minha a partir do inglês) 3.2.1 Um mundo onde nada é resolvido. O pessimismo é uma parte essencial do que define a atmosfera do noir. Detetives noir podem até conseguir solucionar o crime, mas não conseguem escapar do labirinto de escuridão e sujeira que é a cidade onde vivem. Mesmo se criminosos forem apreendidos, logo aparece um novo caso para ser perseguido, um novo minotauro para ser derrotado60, e as questões sobre a natureza humana seguem sem resposta. Por vezes seria melhor se ele ou ela não tivesse embarcado nessa empreitada, e frequentemente deixamos a sala do cinema com nosso herói e heroína em um pior estado do que estavam no começo. Olhemos para Somerset do filme Se7en (2007), por exemplo: começamos o filme com ele prestes a se aposentar e querendo deixar a cidade onde mora para trás, mas no final, quando 60 Abrams (2005, p.70) compara o mito clássico do labirinto do minotauro com uma história de detetives: o minotauro é um criminoso preso em um “labirinto de crimes”, e Teseu é o detetive que precisa derrotá-lo seguindo uma linha de pistas (fio de Ariadne). 59 “Not to be born is, beyond all estimation, best; but when a man has seen the light of day, this is next best by far, that with utmost speed he should go back from where he came” 58 “[...]caught somewhere between philosophy and a bad attitude[...]” 57 “[...]marked by an unwillingness to move beyond ‘the worst’[...]” 56“ [...]question the possibility of progress or take a negative view towards humanity[...]” 48 perguntam por onde ele vai estar, Somerset só responde “Por aí”61. É impossível escapar e cada passo que damos só nos leva mais próximo do centro do labirinto. Figura 17: Cena do filme Se7en - Somerset Fonte: Se7en, 1995. O autor Mark T. Conard (2005) propõe que o noir pode ser visto como uma visão de mundo resultante da “morte de Deus”, no sentido de Nietzsche: no período moderno a ciência começa a tomar o lugar de explicações do mundo tradicional (como a religião, por exemplo), nos deixando em um meio-termo de entendimento sobre a realidade e existência humana, sem noção de quem e o que somos. Sem uma base valores morais e éticos. Assim também é a figura de detetives noir, não fazendo parte do grupo criminais, mas possuindo um grande conhecimento do mundo do crime e conseguindo encontrar seu caminho por ele sem problemas. Ao mesmo tempo, não fazem parte da polícia, do grupo “bonzinho”, mas estão tentando solucionar o crime. Vivem em um mundo sem um código de regras além daquele criado para si mesmo ou mesma. A inversão de papéis tradicionais é uma característica essencial do noir, sejam criminais com um código moral estrito e ações generosas para com outrem, como alguém em um papel normalmente “bom” que faz ações ruins. Se pensarmos na primeira temporada de True Detective62, um dos protagonistas, Marty Hart, é um 62 Não consegui inserir um resumo sem quebrar o ritmo do texto, mas aqui vai uma versão bem abreviada, já que tratamos dessa série mais para frente: Cohle e Hart tem que resolver o assassinato de Dora Lange, que ocorre em circunstâncias estranhas. Uma série de pistas e outros casos faz com que eles atribuam o caso a um culto e matem o principal suspeito, Reggie Ledoux. Eles continuam trabalhando juntos por mais sete anos até que brigam e se separam em 2002. Dez anos depois mais assassinatos aparecem com o mesmo modus operandi, e eles se juntam novamente para resolver o caso de vez, matando o assumido líder do culto, Errol Childress. 61 “Around, I’ll be around” 49 policial, e mora com sua esposa e filhas, um total oposto de seu parceiro desajustado Rust Cohle; mas conforme a história progride, vemos ele traindo sua esposa com uma garota mais nova, abusando de seu poder, espancando os garotos que tiveram relações sexuais com sua filha, e matando um dos criminosos à queima-roupa (saindo impune de ambas as situações). Ao compararmos detetives “noir” com detetives “clássicos63" o pessimismo usado na construção da primeira categoria fica ainda mais aparente. Ao confronta-las, o autor Jerrold J. Abrams (2005, p.78) usa como exemplo "clássico" a figura de Sherlock Holmes e como “noir” Philip Marlowe, mas aqui gostaria de usar Cohle e Hart como exemplo por serem parceiros, apesar de não serem perfeitos para essa comparação. Cohle é o detetive pessimista e moralmente ambíguo, antipático, obsessivo e anti social (todas sendo características de um detetive noir), mas à primeira vista talvez classificaríamos ele na categoria clássica: ele é um intelectual que lê livros de filosofia e psicologia para ajudar em seus casos; tem inclinação artística e sempre o vemos desenhando ou fazendo bonequinhos de lata; é alto, comprido e mais calmo (uma categoria de classificação feita pelo autor que achei um pouco estranha, mas que faz sentido), e apesar de o caso ser só parte de seu emprego ele continua trabalhando nele mesmo após se demitir, aproximando-o mais de um “jogo64”. Hart é otimista, não obcecado, mora com sua família, tem amigos, porém se encaixa bem no papel de noir: enquanto é inteligente, não é necessariamente um intelectual, e não entende muitas referências que Cohle faz; não tem inclinações artísticas nem hobbies; é mais baixo, agressivo e explosivo. O caso é só um trabalho para ele, e Hart não gasta mais tempo nele do que o necessário. No fim, ambos se equilibram, e talvez seja por isso que a série funciona tão bem. 3.2.2 True Detective como uma tragédia grega. Podemos dizer que, apesar de ser uma afirmação anacrônica, o pessimismo é uma filosofia básica para a tragédia pré-socrática (DIENSTAG, 2001), desse modo, novamente à caráter de exercício, acho que pode ser interessante tentarmos 64 Como diria Holmes no conto Abbey Grange: “ Venha, Watson, venha! O jogo começou!”. 63 Como Sherlock Holmes, Auguste Dupin, e Hercule Poirot, por exemplo. 50 analisar se um filme neo-noir pode ser encarado como uma tragédia, usando as características definidas na seção anterior [3.1.2]. Para que este exercício funcione acredito que temos que encontrar um exemplo com um final um pouco pessimista, onde o caso não foi resolvido, o vilão ou vilã não foi derrotada, ou, minimamente, protagonistas terminam o filme de modo pior do que começaram. Aqui escolhi novamente a série True Detective, por encaixar tão bem na categoria de neo noir e ser maleável o suficiente para moldarmos ela para a tragédia. Figura 18: Cena do seriado True Detective Fonte: True Detective, temporada 1, episódio 7: Depois que você partiu, 2014. Um dado importante para considerarmos é que, provavelmente, True Detective se passa em um universo chambers-lovecraftiano. Durante toda a história encontramos referências para um “rei amarelo”, e uma rápida pesquisa no Google feita pelos nossos detetives resultaria no livro “O Rei de Amarelo” de Robert W. Chambers65. Também encontramos referências a um lugar chamado “Carcosa” e “estrelas negras” que apontam novamente para a obra de Chambers. Isso nos deixa com duas opções: ou esse livro não existe em True Detective, ou True Detective faz parte desse livro (PACKER; STONEMAN, 2019). A última é a opção que vamos seguir. A primeira característica da tragédia que precisamos encontrar é o distanciamento entre o divino e o humano. Já estabelecemos que a mitologia sendo usada é a chambers-lovecraftiana, mas nossos protagonistas não possuem 65 “O Rei de Amarelo” é uma coleção de contos de ficção estranha e horror supernatural, publicada em 1895. Após ler o livro, H.P. Lovecraft faz várias referências ao Rei de Amarelo em suas obras, incorporando ele ao seu Cthulhu Mithos. 51 nenhuma conexão com esses deuses, nem mesmo sabem de sua existência; e a não ser que uma análise mais profunda seja feita, quem vê a série também não tem esse conhecimento. Portanto, acredito não ser uma boa representação desse abismo. Se formos lembrar das tragédias que conhecemos, os heróis e heroínas interagem com o divino, mesmo se for uma interação de frustração. A representação desse distanciamento tem que ser algo mais próximo e palpável, e aqui ele toma a forma do culto não nomeado que assombra os detetives durante toda a série. Não sabemos quem são seus integrantes e quais são seus motivos, se é que eles existem. A única coisa que temos conhecimento é de seu poder e crueldade, muito parecido com a figura do divino que encontramos anteriormente nesta pesquisa. Do mesmo modo ele parece sempre estar um passo à frente dos detetives que não conseguem perceber o escopo total de alcance. Ainda, apesar de alguns integrantes terem sido mortos, o culto ainda existe no final da temporada. Onisciente, onipotente e onipresente. O mesmo poderia ser aplicado para outros filmes, onde antagonistas parecem ser uma força inalcançável: John Doe em Se7en (1995), o assassino de Zodíaco (2007) e Anton Chigurh em Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007). A segunda característica da tragédia que precisamos encontrar é a húbris, ou seja: qual é o desequilíbrio, e o que o causou. O próprio Cohle nos dá uma pista no último episódio, sobre qual pode ser a natureza dessa húbris: “- Eu te digo Marty, eu fiquei naquele quarto olhando pelas janelas todas as noites só aqui pensando, é uma história só. A mais antiga. - Qual é? -Luz contra escuridão”66 (DETECTIVE…, 2014, episodio 8, tradução minha) E ainda qual é o desequilíbrio: “Bem, uma vez era tudo escuro. Se você me perguntar, a luz está ganhando67” (DETECTIVE…, 2014, episodio 8, tradução minha). Podemos olhar para essa frase de duas maneiras: ou que a dikē foi atingida e as forças estão se equilibrando (a luz chegando perto da escuridão), ou que esse 67 “Well, once there was only dark. You ask me, the light’s winning” 66 “-I tell you Marty I been up in that room looking out those windows every night here just thinking, it’s just one story. The oldest.;-What’s that?; -Light versus dark.” 52 é precisamente o desequilíbrio (a luz vencendo, quando ambas deveriam estar estáticas, iguais). Essa frase marca um “final feliz”, tão dissonante do pessimismo do resto da série que nos perguntamos se está de fato correto. A resposta novamente está no fato de que True Detective faz parte de um universo chambers-lovecraftiano, onde finais felizes são só uma premonição de mais horrores inimagináveis (PACKER; STONEMAN, 2019). A partir desse princípio, podemos assumir que o equilíbrio não foi alcançado ainda (a história não acabou, não atingimos a catarse), e a segunda opção é a verdadeira. Qual será então o peso que desequilibrou a balança? Eu assumo que foi a morte de Ledoux, o primeiro suspeito do caso, e tecnicamente a primeira vitória da luz. Podemos nos lembrar que húbris também pode significar um ato de desaforo contra o divino, e se o culto representa o divino, então esse foi o primeiro ato de ataque dos nossos protagonistas. Podemos pensar na húbris e na falha fatal de outros filmes neo noir, se quisermos: Moss rouba o dinheiro em Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007), Graysmith copia o código para si em Zodíaco (2007), Ford decide entrevistar Ed Camper em Mindhunter (2017). Se decidirmos não nos segurar pelo que é real, abrimos inúmeras possibilidades de interpretação, ou como diria Hart “Quando você junta uma suposição a um pedaço de evidência, você começa a dobrar a narrativa para suporta-la68” (DETECTIVE…, 2014, episodio 1, tradução minha). Figura 19: Cena do seriado True Detective. 68 “Once you attach an assumption to a piece of evidence, you start to bend the narrative to support it” 53 Fonte: True Detective, temporada 1, episódio 2: Vendo Coisas “Em manhãs estelares distantes, formas verdejantes, exuberantes, flutuam silenciosamente ao menor barulho. Florestas inteiras levitam69” (THACKER, 2015, p.59, tradução minha) 69 “In distant stellar mornings, lush, verdantique shapes hover noiselessly on the slightest sound. Entire forests levitate.” 54 4 INTERLÚDIO: WARBURG “Qualquer texto de Bunny se caracterizava pela originalidade extrema, pois começava por consultar as obras citadas e acabava por desfigurar tudo com sua confusão mental” (TARTT, 1992, p.115) Quando tentei explicar pela primeira vez o que pretendia fazer nesta monografia - com questionáveis graus de sucesso - sugeriram que talvez devesse me debruçar sobre Warburg. Acredito que se o leitor e leitora já conhecer um pouco sobre sua obra e biografia nossa conexão pode ter começado a ficar aparente no capítulo anterior, mas quando comecei a desenvolver esse trabalho sabia pouco além do fato que ele é uma pessoa importante para os estudos de renascimento, e que seus textos são densos e difíceis de ler. Aqui gostaria de apresentar apenas alguns conceitos centrais que aparecem no pensamento de Warburg, mas não queria me demorar, por no final das contas não ser tão significativo assim para o trabalho final. Por isso esse pequeno interlúdio, como um limpador de paladar: beba a água com gás que veio com o expresso, cheire a borra de café entre perfumes, se prepare para o que vem a seguir. Considero que ao pensarmos na obra de Warburg, podemos destacar três momentos ou aspectos: seu trabalho com a vida póstuma (Nachleben) da antiguidade; o modo de organização de sua biblioteca; e por último o Atlas Mnemosine. Podemos afirmar que Warburg tinha a pesquisa da arte renascentista como um centro gravitacional, e dentro dela a análise de como certas formas, movimentos e imagens da antiguidade clássica eram usadas novamente pelos pintores e pintoras do renascimento. Essa pesquisa leva Warburg a pensar uma memória social e coletiva inconsciente - como um engrama - de imagens e símbolos, considerando não necessariamente seu contexto e significado, mas sim a emoção e sentimento gerados pela imagem, indo na contramão de outros pesquisadores e pesquisadoras de sua época que se preocupam muito mais a configuração formal e consciente da arte70. 70 Aqui devemos pensar na polaridade entre apolíneo e dionisíaco, como colocado por Nietzsche. De forma extremamente resumida considere o apolíneo como a figuração formal e consciente, e o dionisíaco como a pulsão criadora. Sobre a relação com Warburg ver: WARBURG, Aby. Introdução à 55 Warburg fez um acordo com seu irmão mais novo aos treze anos, onde ele concederia seus direitos de primogenitura, desde que esse concordasse em comprar todos os livros que Warburg desejasse durante sua vida. Esse acordo adolescente foi o que permitiu que Warburg criasse sua biblioteca, que futuramente viraria o Instituto Warburg em Londres. Essa biblioteca não era organizada por assunto, autoria, ou ordem alfabética, mas sim pela política da boa vizinhança: ao lado de um livro, viria outro que se relacionaria com o tema do primeiro. Por exemplo, se fosse organizar minha modesta coleção desse mesmo modo, acredito que colocaria Orlando de Virginia Woolf ao lado das Metamorfoses de Ovídio; e O Retrato de Dorian Gray ao lado de O Espectador Emancipado de Ranciére. Essas conexões estão incrivelmente claras para mim, mas talvez não estejam para você que lê esse trabalho, e aí mora o problema do sistema miópico de Warburg. Talvez seja um pesadelo para estudantes de biblioteconomia, mas um que nos permite ver o começo da organização espacial de ideias que segue Warburg para o Atlas. Figura 20: Astigmatismo Fonte: Optica Publishing Group71. 71 Disponível em: . Acesso em 27 out. 2021. Mnemosine. In: WAIZBORT, Leopoldo. (org.). Histórias de Fantasmas Para Gente Grande: Escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 344- 354 56 Nele, Warburg prendia imagens em painéis cobertos de tecido preto, organizando e reorganizando-as, mudando sua localização no painel, ou trocando elas de painel inteiramente. Criando conexões entre imagens que ilustravam o processo de transmissão cultural da memória coletiva, em uma tentativa de mapear o tempo e espaço através de motivos visuais (LUBERDA, 2013). As imagens eram organizadas por afinidades eletivas, não presas a um contexto prévio, já que ele mudava a cada constelação. O Atlas funciona do mesmo modo que memória e o processo do pensamento funcionam, pulando de um assunto para outro e fazendo conexões improváveis. O trabalho foi deixado inacabado e pouco foi escrito sobre ele pelo próprio Warburg (muitas vezes só algumas palavras-chave que deviam fazer sentido só para ele), de modo que não podemos afirmar com certeza nem mesmo o tema de cada painel. Warburg possuía um nomadismo intelectual (JOHNSON, 2012, p.19), desprezando disciplinas e limites conceituais e cronológicos, e acredito que estamos trabalhando de um modo análogo nessa pesquisa. Figura 21: Cena do seriado Dark. Fonte: Dark, temporada 1, episódio 6: “Sic Mundus Creatus Est”, 2017. Por fim, Warburg me lembra inevitavelmente do eterno retorno72, abordagem onde ao invés de termos o modo otimista de ver o tempo como uma progressão linear, encaramos ele como uma repetição cíclica, onde tudo está fadado a 72 Mito transcultural, que pode ser observado em diversos lugares, como no antigo Egito, Grécia e Índia, entre outros lugares. Foi popularizado por Nietzsche (apesar de menos como visão de mundo e mais como exercício filosófico) e Mircea Eliade. 57 acontecer novamente. Talvez com nova essência, mas com a mesma forma. Ou vice-versa. Warburg vê as cobras virarem relâmpagos no ritual Hopi; Eva come a maçã; gregos esculpem Laocoonte; renascentistas o descobrem séculos depois; Jormungandr devora o mundo; a serpente pica Cleópatra; Frances McDormand segura uma cobra no filme Nomadland. “Alguém uma vez me disse, ‘O tempo é um círculo plano.’... Tudo o que já fizemos ou vamos fazer, nós vamos fazer de novo e de novo [...] de novo e de novo, para sempre…”73 (DETECTIVE…, 2014, episódio 5). 73 “Somebody once told me, ‘Time is a flat circle.’... Everything we’ve ever done or will do, we’re gonna do over and over again [...] again and again, forever…” 58 5 PARALELOS SELECIONADOS - Não pule direto para as conclusões - Eu estou pulando, eu já pulei, eu aterrissei74. - Buzzfeed Unsolved Segundo Littleton, mitologia comparada “se refere à comparação sistemática de mitos e temas míticos retirados de uma ampla variedade de culturas” (1973, p.32). Ela se ocupa da procura por motivos comuns, relacionando esses motivos a uma iconografia, e, se possível, reconstruindo uma "proto-mitologia". Apesar de interessantes, esses não são necessariamente nossos objetivos para esse capitulo. Assim como vimos em outras partes desta monografia [3.1.2; 3.2.2], tenho o hábito de traçar paralelos improváveis e impertinentes, e provavelmente, essa é a razão pela qual Warburg me traz um certo nível de conforto. Figura 22: Cena dos créditos do filme Robin Hood. Fonte: Prologue Films75. Neste capítulo vamos nos debruçar sobre alguns desses paralelos impertinentes, mas que ainda são passíveis de fundamentação (tenho alguns realmente absurdos em mente, mas serão poupados deste trabalho), e foram importantes para a criação do trabalho final. Não fui a primeira a fazer algumas dessas comparações - no caso as similaridades entre Leviatã e a Hidra; e entre Licáon e Caim - e ao falar delas me referirei a outras pesquisas no campo. Com relação aos outros dois, estarei um pouco sozinha em meus argumentos. 75 Disponível em: Acesso em 27 out. 2021. 74 “Don’t jump to conclusions; I’m jumping, i’ve jumped, i’ve landed” 59 Uma fundamentação importante para esse capítulo, e talvez um dos melhores exemplos de mitologia comparativa, é a hipótese da mitologia indo-europeia. Primeiramente, “indo-europeu” é um termo da linguística histórica que se refere a uma família de línguas que provavelmente possuem uma comunidade linguística comum, e assumimos ter uma medida de tradição compartilhada: religião, ideologia, histórias e é claro, mitologia. Os grupos de línguas indo-europeias sobreviventes são: celtas, itálicas, germânicas, bálticas, eslavas, albanesas, armênias, iranianas, védicas e gregas (ADAMS; MALLORY, 2006, p.9). Podemos observar um exemplo dessa similaridade compartilhada por elas com a palavra “mãe”: Quadro 1 - A palavra mãe em diferentes línguas. Inglês Arcaico Nordico Arcaico Sânscrito Latim mōdor mōðir76 mātár māter Fonte: Adams; Mallory, 2006, p.2 É claro que nem todas as similaridades entre palavras são necessariamente uma ancestralidade comum. Não podemos ignorar a circulação e trânsito dos povos, nem o relacionamento com seus vizinhos. Por exemplo, é provável que a própria palavra “māter” tenha sido importada para o inglês arcaico por um monge medieval letrado, já que latim era a língua de prestígio na época. E se isso acontece com palavras, com certeza o mesmo não encontraria nenhuma barreira com relação às histórias. Figura 23: Cena dos créditos do filme Robin Hood - 2. 76 “ð” é pronunciado como “th”, assim como a palavra “there” em inglês. 60 Fonte: Prologue Films77 Enquanto o grupo linguístico semita não faz parte da classificação indo-europeia, ele era falado principalmente no sudoeste asiático junto a outros grupos indo-europeus78 (ADAMS; MALLORY, 2006 p.10), portanto não seria difícil considerarmos as influências dos arquétipos indo-europeus na bíblia (e veremos mais para frente uma ocorrência em particular). De todo modo, a evidência desse contato não é necessariamente importante aqui. Somente estamos fazendo um exercício de comparação e criando um chão sólido por onde pisarmos. Sem mais, vamos olhar para algumas comparações selecionadas. 5.1 Leviatã e Hidra. Um paralelo muito comentado e pesquisado é a comparação entre o Leviatã e a Hidra de Lerna. Um dos arquétipos que encontramos na mitologia indo-europeia é a história de um deus do trovão/tempestade que luta com, e eventualmente derrota, uma serpente/dragão marinho (que geralmente representa o caos primordial) trazendo assim a ordem ao mundo. Talvez o exemplo que apareça mais rápido em minha cabeça desse arquétipo seja a batalha de Thor com a serpente Jormungand durante o Ragnarok79 (mas isso provavelmente é culpa parcial da Marvel). Esse arquétipo, porém, não é limitado à cultura indo-europeia e aparece em diversos lugares do mundo, talvez indicando uma história muito mais antiga que se espalhou. No grupo indo-europeu, Zeus parece ser um caso peculiar já que na maioria dos outros panteões o deus do trovão não ocupa o lugar de deus do céu (que tem o papel de “pai” ao lado da terra como “mãe”). Ele inclusive não se encaixa nas características de um deus do trovão que geralmente é “[...] musculoso, fortão, uma figura arrogante, que sempre recorre à violência, um adversário a par de qualquer 79 Apocalipse da mitologia nórdica. 78 Ver também: FRIEDMAN, Richard Elliot. Who Wrote The Bible? Nova York: HarperCollins, 1987. pp. 33-34 77 Disponível em: Acesso em 27 out. 2021. 61 monstro [...]80” (WEST, 2007, p. 249, tradução minha), portanto, supõe-se que ele provavelmente incorporou a função de outra deidade. Figura 24: Cena do filme Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban Fonte: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, 2004. Um possível candidato seria Keraunos, nome dado ao raio de Zeus, mas que poderia ter começado como um deus menor. Podemos traçar essa conexão a partir da etimologia de seu nome com relação ao do deus do trovão báltico: Perkunas. O sufixo -no, é geralmente interpretável como “mestre de”; “perku” tem uma contrapartida no Latim “quercus”, significando carvalho, uma árvore sagrada para ambos os deuses. Então o caminho poderia ser: Perkunas - Perkaunos - Keraunos (WEST, 2007, p.240). Eventualmente algumas funções e atribuições comuns a deuses do trovão, mas não dignas de Zeus, acabam sendo passadas para seu filho Hércules81 e ele ganha seu próprio dragão para derrotar: a Hidra de Lerna. Ela é a prole resultante entre Typhon (a serpente derrotada por Zeus)