CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 1 Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 8.n.2, dezembro de 2010 IGNACIO ASSIS SILVA E OS ESTUDOS LITERÁRIOS IGNACIO ASSIS SILVA AND LITERARY STUDIES Maria Célia LEONEL UNESP – Universidade Estadual Paulista RESUMO: O texto pretende homenagear o semioticista Ignacio Assis Silva pela intensidade impressa em suas atividades de toda ordem. Destaque-se, principalmente, o rigor nos ensaios percucientes, tendo sido não apenas um dos mais importantes divulgadores da semiótica greimasiana no Brasil, mas também um dos responsáveis por seu desenvolvimento. Ressalte-se ainda a dedicação com que atuou no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FCL/UNESP de Araraquara, envidando esforços na sua fundação. Deve-se muito aos semioticistas a saudável integração entre o Programa de Linguística e Língua Portuguesa e o de Estudos Literários, inicialmente um programa de literatura centrado na semiótica. Alie-se a isso o persistente interesse do Ignacio pela construção de uma “teoria sobre a linguagem”, que perseguiu profunda e tenazmente em suas aulas e em seus textos e que pode ser detectada em Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso (1995). PALAVRAS-CHAVE: Ignacio Assis Silva; Semiótica; Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários; Teoria da Linguagem. ABSTRACT: This paper aims to honor the semiotician Ignacio Assis Silva printed by the intensity in all his activities, emphasizing mainly on the accuracy insightful essays, which made him not only one of the most important promoters of semiotics greimasian in Brazil, but one of those responsible for its development. It should be noted also that he served with dedication in the Postgraduate Program in Literary Studies FCL/Araraquara UNESP, including efforts since its founding. The program owes much to him and others of FCL semioticians for the healthy integration between programs, Linguistics/Portuguese Language and Literary Studies. The latter was even initially, a literature program focusing on semiotics greimasian. Join together with all his persistent interest in building a "theory of language", which deeply and tenaciously pursued in their classes and in their texts and can be detected in Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso (1995). KEYWORDS: Ignacio Assis Silva; Semiotics, Postgraduate Program in Literary Studies; Theory of Language. Ignacio Assis Silva é um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento e pela difusão da semiótica greimasiana no Brasil, não apenas pelos ensaios publicados, mas também pelas atividades docentes no Curso de Letras e nos Programas de Pós-graduação em Estudos Literários e em Linguística e Língua Portuguesa da FCL da UNESP de Araraquara. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 2 A iniciativa do Grupo CASA de realizar este evento em sua homenagem é digna dos maiores elogios, merecendo destaque na organização do mesmo a Prof a Dr a Ude Baldan e a graduada em Letras Cristiane Passafaro Guzzi. Os componentes desta mesa − professores doutores Edna M. F. S. Nascimento, Alceu Dias Lima e Neiva Ferreira Pinto – podem, com maior propriedade, traçar a trajetória do Ignacio semioticista, mas, honrada com o convite, quero fazer parte dos que lhe prestam homenagem. Gostaria de começar lembrando a singularidade de meu contato inicial com a semiótica. Na graduação e na pós-graduação, não tive oportunidade de estudá-la. Iniciando as atividades docentes na UNESP, em fins dos anos oitenta, ao corrigir trabalhos de alunos, deparei-me com o retângulo que imediatamente soube que era o quadrado semiótico. Foi então que apreender os princípios da semiótica greimasiana tornou-se fundamental; para isso, contei com a ajuda de colegas como o próprio Ignacio e outros professores doutores como Edna M. F. S. Nascimento, Alceu Dias Lima, Ude Baldan. Em tempos muito produtivos em que a proximidade entre os Departamentos e Programas de Pós-graduação de Linguística e de Literatura era grande, as discussões sobre linguística, semiótica e literatura foram frequentes, porém, nem sempre, totalmente pacíficas. Essa integração entre as áreas na FCL da UNESP de Araraquara, para a qual a semiótica e os semioticistas muito colaboraram, se foi extremamente vantajosa naquele momento, neste ano de 2010, adquire maior relevância. O coordenador da nossa área na CAPES vem propondo a discussão sobre a separação das duas áreas – Linguística e Literatura − para a avaliação dos programas de pós-graduação. Tal foi o ponto mais debatido no Encontro da ANPOLL realizado em julho deste ano na UFMG em Belo Horizonte. Tal proposta, já aventada anteriormente, propiciou manifestações de variados tipos antes mesmo do ENANPOLL. A separação das duas áreas, conforme se pôde depreender do Encontro, foi sugerida, sobretudo, como solução para dificuldades de ordem administrativa e de gestão: a grande quantidade de programas de pós-graduação na área – 125 – impede que a avaliação seja feita com o rigor desejável. O fato de a Prof a Dr a Diana Luz Pessoa de Barros ter sido a especialista que melhor se opôs à separação das áreas no Encontro da ANPOLL tem a ver, certamente, com seu interesse pela semiótica. O Prof. Dr. Waldir Beividas, eu e poucos outros participantes – a despeito dos aplausos às palavras da Prof a Diana − opusemo-nos à divisão. O que chamou a atenção nos debates sobre tal questão foi, de um lado, a tentativa de transformar em problema acadêmico e epistemológico o que é de outra natureza (administrativa e de gestão). De outro lado, o fato de ter-se tornado uma polêmica de ordem política, muitas vezes debatida com tintas da emoção. A proposta chegou mesmo a impulsionar ressentimentos entre as áreas, com argumentos como, por exemplo, a necessidade de a Literatura, que já teve a sua vez, ceder espaço para a Linguística, ou a crença, por parte de alguns docentes da Literatura, de que o julgamento dos programas da área seria tendencioso em consequência da maneira de avaliar dos especialistas em Linguística. Nesse debate, não adiantava muito lembrar que a avaliação dos programas é, em geral, feita por especialistas de cada área. Das falas de colegas de diferentes cursos de Letras pude perceber que, algumas vezes, a idéia de separação veio fomentar rixas internas, como as advindas do modo como cursos, departamentos e programas de pós-graduação foram criados e/ou desenvolvidos. Velhas e novas divisões locais resultantes desse processo misturaram-se à proposta do coordenador da área na CAPES. Já entre o Departamento de Literatura e o de Linguística do Curso de Letras desta FCL e entre o Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa e o CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 3 Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, não apenas as relações foram – e continuam a ser − amistosas, como alguns dos professores pertenceram, por longo tempo, aos dois Programas – de Estudos Literários e de Linguística. Mais que isso, na fundação do Programa de Estudos Literários, atuaram muito ativamente colegas da Linguística, como é o caso do Ignacio. Além disso, até bem recentemente, o Prof. Dr. Alceu Dias Lima, bem como outros colegas como os professores doutores Maria do Rosário Valencise Gregolin e Arnaldo Cortina fizeram parte do Programa de Estudos Literários por um tempo bastante significativo, ministrando disciplina e orientando. Isso ocorreu também com a professora doutora Edna M. F. S. Nascimento, embora há mais tempo. Talvez seja uma avaliação exagerada, mas a semiótica foi o elemento a unir os estudiosos das duas áreas, ainda que se tenha que considerar a contribuição da análise do discurso nessa integração. Aliás, como tive oportunidade de dizer na abertura do XI Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários − cujo encerramento constituiu também a abertura deste evento − a proposta inicial do Programa foi de estudos de semiótica. Tem relação com essa origem o fato de o Programa de Estudos Literários ser marcado, principalmente, pelo foco na teoria e na análise de textos e não, por exemplo, na história literária. Fora daqui, não é incomum ouvir-se que o Programa é estruturalista e semioticista, o que não corresponde à verdade, pois as abordagens nele estudadas são bastante variadas. Quanto à atuação do Ignacio no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, cabe lembrar, primeiramente, que a abertura de um Programa no campo da Literatura na FCL de Araraquara deve-se ao grupo de semioticistas que transitavam entre a linguística e a literatura e eram credenciados no Programa de Linguística. Portanto, parece- me, não queriam, como às vezes acontece, fundar um programa para abrir espaço para si próprios ou para o departamento, mas para uma direção teórica determinada: a semiótica. Desde a fundação, o Programa passou por transformações profundas. Os seis volumes que consultei para levantar dados sobre seus primórdios mostram isso. A mudança no nome – de Semiótica e Estudos Literários para Semiótica em Estudos Literários –, segundo pude apurar, deu-se por sugestão da reitoria da UNESP. O vaivém de ofícios revela os percalços nessas mudanças e ainda que os docentes envolvidos não mediram esforços para a implantação do Programa: eram determinados, dispostos à discussão e ao debate, argumentando longamente a favor das características do curso − falava-se, naquele momento, em curso e não em programa – que desejavam fundar. A tramitação burocrática, na verdade, também de política acadêmica, revela ainda que o abandono de certas diretrizes – especialmente a centralização na semiótica − era necessário para que o Programa pudesse vingar. Do processo de implantação cuidaram, entre outros, os professores doutores Ignacio Assis Silva, Edward Lopes, Alceu Dias Lima, Daisi Malhadas, Dante Tringale, Fúlvia Maria Moretto. São também citados como componentes do corpo docente, os professores doutores. Diana L. P. de Barros, Lauro F. B. da Silveira e Eduardo Peñuela Cañizal. Se o nome do Programa havia mudado, a denominação das disciplinas, as ementas e as bibliografias demonstram que a semiótica permanecia como orientação teórica privilegiada. Vejamos algumas das disciplinas: “Teoria Semiótica e Semiótica da Narrativa”, ambas sob a responsabilidade do Prof. Dr. Edward Lopes; “Sistemas Sígnicos Não Verbais”, ministrada pela Prof a Dr a Diana L. P. de Barros; “Semiótica e Filosofia”, ministrada pelo Prof. Dr. Lauro F. B. da Silveira; “Espaço e Prática Significante”, pelo Prof. Dr. Ignacio Assis Silva; “Semiologia da Fábula”, pelo Prof. Dr. Alceu Dias Lima. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 4 Todavia, outros professores doutores, não semioticistas, foram incorporados ao Programa, como Florinda J. Teani e Maria Magaly T. Gonçalves. A partir de 1984, o quadro de docentes passou a contar também com o Prof. Dr. José Luiz Fiorin. Outros se credenciaram mais tarde, como a Profa. Dra. Tieko Yamagushi Miyazaki, e aconteceram desligamentos, como os dos professores doutores José Luiz Fiorin e Lauro F. B. da Silveira em 1990. O projeto inicial do Programa de outubro de 1978, assinado pelo Ignacio, indica suas diretrizes: Uma pós-graduação, principalmente em se tratando de semiótica, não se reduz a um lugar de transmissão do saber: é sobretudo um lugar de coprodução do saber. Nesse sentido, o caráter necessariamente interdisciplinar do CPG-SEL [Curso de Pós-graduação em Semiótica e Estudos Literários] acarretará iniciativas que permitirão integrar atividades hoje dispersas e individuais, orientando-as para objetivos comuns. Saliente-se o substantivo coprodução: todos os que participaram e/ou participam de coordenação, conselho, avaliação de programas de pós-graduação sabem que um programa só subsiste adequadamente se as atividades forem concretizadas por meio de um processo coletivo. Cada programa integra docentes que devem relacionar-se academicamente entre si, o mesmo devendo ocorrer entre docentes e discentes e entre os discentes. Atualmente, como se sabe, o peso da produção discente na avaliação da CAPES aumentou bastante, tornando essa relação cada vez mais necessária. Deslocando a denominação do capítulo final do livro do Ignacio, Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso (1995), para falar da manutenção de um programa de pós-graduação, diríamos: “Um galo sozinho não tece um amanhã” nem uma manhã, como escreveu João Cabral. A posição e os argumentos do Ignacio, portanto, não apenas continuam válidos como adquiriram, atualmente, uma dimensão maior. Ignacio continuou atuando no Programa − ou na área de Literatura (como se considerava na UNESP) − de modo que, em 1986, era ele o coordenador, quando o mesmo grupo que cuidara da trabalhosa tarefa de implementar o Programa, mais o Prof. Dr. José Luiz Fiorin, tratou da etapa de reformulação. As avaliações da CAPES de 1981/1982 e 1983/1984 insistem em que a área de Semiótica em Estudos Literários é “por demais específica” e recomendam “[...] profunda reorganização para que se possa caracterizar o curso como da área de Letras”. Naquele momento, o Ignacio pede a mudança do nome do Programa para Estudos Literários. Todavia, a justificativa mostra que o pedido de modificação foi feito a contragosto. De todo modo, o Programa tem, então, duas linhas de pesquisa: Semiótica Teórica e Aplicada e Teoria, Crítica e Historiografia literária. A semiótica foi perdendo espaço no Programa, principalmente pela diminuição de professores trabalhando nessa direção, mas suas linhas de pesquisa atuais revelam esse passado, e a semiótica hoje é contemplada, em especial, na linha de Relações Intersemióticas. Voltando ao Ignacio, ele esteve na França desenvolvendo estudos de pós- doutorado, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, convivendo com Greimas. De volta à FCL, atuou no Programa até a sua morte. No Conselho do Programa, ou fora dele, prestou grande contribuição aos novos conselhos e coordenadores, como foi o meu caso e o da Prof a Dr a Sylvia H. Telarolli de A. Leite. Em 2000, quando o Programa fez 20 anos, com a morte do Ignacio, foi-lhe feita uma homenagem em evento como o que acabamos de realizar, ou seja, o Seminário de Pesquisa. Neste ano de 2010, o Programa faz 30 anos, a revista do Programa, a Itinerários, CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 5 completa 20 anos, e o grupo CASA chega aos dez. Esses números coincidentemente redondos dizem muito do entusiasmo, do rigor na pesquisa, do trabalho coletivo e permanente que aqui se implantou. Muito disso se deve aos fundadores do Programa e do CASA; nesses empreendimentos, o Ignacio teve participação muito ativa. Por isso mesmo, publicou-se um número especial da revista Itinerários com o tema Semiótica (n. 20 em 2003) em sua homenagem, organizado pelas professoras doutoras Ude Baldan e Sylvia H. Telarolli de A. Leite. A Itinerários teve 3 números especiais, externamente distinguidos pela capa de cor branca, elaborada – como todas as demais − pela nossa artista plástica Maria Tereza Roland. Esses números centraram-se nos seguintes temas: semiótica, a que me referi, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Quanto ao CASA, não é preciso lembrar que a iniciativa de sua fundação foi do Ignacio; porém, vale considerar que o modo como ele pensou e propôs o grupo e a publicação − os Cadernos de Semiótica Aplicada − diz muito dele. Na página inicial da revista Itinerários (2003), podemos ler, na sua letra caprichada, o esboço das linhas mestras do CASA sob o título “3) Suas exigências”: “- trabalho metódico - compromisso com o Projeto Greimasiano Obs.: Evitar veleidades interdisciplinares.” A necessidade de método repete-se: Tendo aprendido a trabalhar metodicamente a estrutura e o funcionamento do poema, pensa-se ter aprendido e consolidado as bases da Semiótica “tout court”, o que permitirá saltar do poético stricto sensu para o poético semiótico, vale dizer o poético intersemiótico, poético que perpassa as diferentes semióticas. (SILVA, 2003, grifo do autor). Podem-se incluir nas exigências iniciais (resultantes da maneira de ser do pesquisador rigoroso), algumas condições não escritas, mas de que ele falava: fariam parte do grupo CASA, prioritariamente, colegas, alunos e ex-alunos dele estudiosos da semiótica greimasiana que, implicitamente, tivessem um bom conhecimento da língua francesa. Naturalmente, o CASA teve que se modificar, e é por isso – por seu dinamismo e ainda pelo exercício do trabalho coletivo − que o grupo sobrevive. O CASA resulta de que “um galo sozinho não tece um amanhã”. Para tratar brevemente do Ignacio semioticista, lembro duas de suas preocupações ou autoexigências: a necessidade de construção de uma “teoria sobre a linguagem” e a relevância da metalinguagem. Na base de suas investigações estava a semântica, bem como o conhecimento de línguas: o semioticista permaneceu latinista, tradutor do latim como se vê no livro Figurativização e metamorfose (1995). Em se tratando do Ignacio pesquisador – a reflexão, a discussão de ideias ocupavam-no sempre − não se pode deixar de mencionar o grande interesse pelas artes plásticas, pela relação entre literatura e artes plástica ou entre artes plásticas e literatura, como demonstram seus textos e as pesquisas de seus orientandos. A relação da arte com a ciência também era outro ponto de interesse importante. O que anotamos em seguida pode parecer paradoxal, mas não é: a exigência, por parte dele, de conceituação adequada, de metalinguagem rigorosa tinha como objeto a indeterminação, a instabilidade, a imperfeição, ou, como se lê na página 212 de Figurativização e metamorfose (1995), o “vivo jato de energia”, ou na 214, a “expressão de CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 6 uma força”. Ou seja, a necessidade de precisão relativamente a conceitos, dirigia-se à instabilidade, à imperfeição, à errância, à ambivalência, à espera. Destaque-se ainda, no perfil do Ignacio estudioso de literatura, a preferência pela poesia e pelos textos narrativos curtos. Os romances muito longos não o agradavam tanto, talvez porque lhe interessava apreender a essência com rapidez. Nosso homenageado tinha como características maiores de seu pensamento a profundidade, a agudeza, o querer chegar, como foi dito, à essência. Não posso falar dele como professor e orientador diretamente, mas os alunos eram, em geral, seduzidos por suas aulas, e sua orientação era disputada. Era comum que os alunos se apaixonassem pela semiótica e pelas direções que Ignacio lhes dava. Na “Apresentação” do número da Itinerários (2003, p. 9-10) dedicado a ele, temos o testemunho de uma de suas alunas – a Prof a Dr a Ude Baldan – que corrobora o que dissemos: A obra escrita pelo Professor Ignacio, [...] completa-se com o que o Professor deixou nos alunos, seres encantados de suas aulas, e nos orientandos de mestrado e doutorado, pesquisadores que hoje o seguem. Aprender a exercer a escuta do figural, a recuperar algo profundo a partir da superfície figurativa do discurso foi tarefa das mais árduas e mais compensadoras a seus alunos. Quem escutou alguma vez sua voz potente (inconfundível!) insistir em que o importante é reaprender a sentir e a ouvir o latejar do signo-palavra, o signo-coisa, desaprendendo, de algum modo, a imagem do signo, a imagem da língua que o esforço de educação linguística foi incutindo em nós... quem sofreu tal experiência jamais foi o mesmo depois disso. O Professor operou a metamorfose radical que só os artistas e os grandes mestres são capazes de operar: modificou, de forma extraordinária, a relação fundamental entre seus alunos e o mundo. No livro Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso (1995), certa tendência à oralidade, à explicitação do diálogo, ao uso do gerúndio, às exclamações talvez tenha a ver com o permanente espírito de professor-mestre. Levanto, a seguir, pontos que me parecem fulcrais em sua tese de livre- docência, publicada com o título de Figurativização e metamorfose (1995). Argumentando sobre a proposta de estudo da “figuratividade profunda”, Ignacio retoma Greimas (apud SILVA, 1995, p. 30): com ela, pode-se “[...] reconhecer as inflexões da alma devolvidas por alguns toques ligeiros da/na superfície do mundo.” Tal afirmação, de algum modo, remete à posição de Luis Costa Lima (1989) − que já recortei uma vez (LEONEL, 2000, p.49) para discutir a questão da intertextualidade − ao tratar da relação fundamental entre mimese e intertexto. Lima (1989, p.4), em busca do conceito de mimese a partir de Auerbach, retoma Platão e fala de metamorfose: Todos os caracteres distintivos adquiridos pelo corpo vivo são reconhecíveis no cadáver, ou quase todos, durante um certo tempo. Creio, Cálicles, que o mesmo sucede com a alma, e que aí se percebe, quando está despojada de seu corpo, todos os seus traços naturais e todas as modificações que sofreu por decorrência das maneiras de viver a que o homem se submeteu em cada circunstância (Górgias, 524 d). Assim fazendo, a mimeses podia aparecer como um conceito atemporal e unitário, pois, diante da mutabilidade do mundo, há uma maneira de respeitá-la e, ao mesmo tempo, de dar conta da CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 7 permanência de uma atitude. O ato mimético seria em si dialético: permanência que não se nega ao transformado, transformado que não lança um abismo entre o que passou. Homero dá as mãos a Rabelais, que se reconhece na tão distinta senhora Woolf. Essa proposição faz pensar que talvez coubesse uma discussão mais alentada sobre as relações entre mimese, intertextualidade e metamorfose que o estudo do Ignacio incentiva. Lembremos ainda os “tourinhos picassianos”, epígrafe visual que abre o estudo sobre figurativização e metamorfose e o que significam: “Um touro soberbo que, à medida que avançam os dias e o trabalho do pintor, vai se tornando cada vez, digamos, „menos touro‟, até chegar àquele do dia 17 de janeiro, um touro-linha.” (SILVA, 1995, p. 34). É o mesmo percurso de Eco: “de voz cheia, plena de amor,” metamorfoseia-se, diz o Ignacio,“ „ao contrário‟: voz, osso, estrutura calcárea, som.” (p. 34) e o de Brancusi ao voo. No mito de Eco e em Brancusi, temos o mesmo que em Picasso: “[...] uma espécie de percurso gerativo „ao contrário‟: da forma plena do touro à sua estrutura figurativa elementar.” Na análise semiótica ter-se-ia esse mesmo procedimento: [...] temos inicialmente um texto que soberbamente reverbera, cintila, de figuratividade, um texto que nos cativa (captura) pelo seu poder figurativo. Mas isso é a superfície do texto, o lugar de seus efeitos de sentido; não posso ficar aí perdido nessa cintilação, nessa reverberação textual [...]. (SILVA, 1995, p. 34-35). O semioticista (como o professor, o crítico, o historiador de arte), diz nosso homenageado, deve “[...] encontrar um jeito de falar do texto de maneira comunicável. E o jeito semiótico é percorrer o caminho entre a figuratividade plena da superfície textual e sua figuratividade profunda.” (idem, ibidem, p. 35). Essa trajetória dos touros de Picasso, do mito de Eco, de Brancusi, a meu ver, remetem aos versos de Jorge Luis Borges do conhecido poema “El otro tigre” (1981, p. 29- 30) em que lemos: Entre las rayas del bambú descifro sus rayas y presiento la osatura bajo la piel espléndida que vibra. Neles está a tigridade borgiana a par da tauridade picassiana de que fala Ignacio. Há alguma ironia no fato de os três versos do poema que me chamaram a atenção terem sido lidos numa citação do texto “A mimese e o motivo para a ficção” do professor norte-americano Robert Alter (1998, p.134), que se opõe ao estruturalismo e à semiótica. Como diz o título, o estudioso parte da contraposição entre a mimese e a abordagem que seria própria do “homo significans, fazedor e leitor de signos” (idem, ibidem, p. 131), para centrar-se na proliferação do estruturalismo nos Estados Unidos no início dos anos 70 do século passado. Para defender seu ponto de vista antiestruturalista e também antissemioticista, toma o citado “grande poema de Jorge Luis Borges „O outro tigre‟” (idem, ibidem, p.134), que lhe serve para discutir a relação do texto com o mundo, com a experiência (idem, ibidem, p. 135) e, ainda, para dizer que os estruturalistas erram ao supor CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 8 [...] que não existe uma diferença qualitativa fundamental entre nossa percepção de um tigre pintado e de um tigre no zoológico. Qualquer que seja o grau de sofisticação que tenhamos alcançado em cognição, o indispensável senso comum nos diz que o tigre real existe – de modo bastante terrífico, como o poeta sabe – fora de nossa cognição. Temos liberdade para descentrar, desconstruir, decodificar, recodificar um tigre num texto, mas mesmo o mais ousado estruturalista não entraria na jaula da besta fera, cujas garras e mandíbulas, afinal, são mais do que um padrão semiótico. (ALTER, 1998, p. 135). Sobre o poema de Borges, diz o ensaísta norte-americano: [...] o poeta reconhece, como os estruturalistas advertem muitas vezes, que ao nomear o tigre ele o está convertendo continuamente num „tigre de símbolos [...] uma cadeia de tropos trabalhados‟, mas ele faz com que seu meio de expressão se esforce, numa febre de mimese, por apreender algo da beleza graciosa e mortal da fera que é uma presença real fora dali, tantalizando o poeta no esforço de representação [...] (ALTER, 1998, p.134). Na parte final da citação, verifica-se como o autor, como argumento para atacar estruturalistas e semioticistas, percebe o processo de figuratividade; diríamos a propósito disso, com base no Ignacio, que Jorge Luis Borges vai da forma mais ou menos plena do tigre “à sua estrutura figurativa elementar” (SILVA, 1995, p. 34) ao tentar apreender “algo da beleza graciosa e mortal da fera”: ossatura e listras. É o caminho de Picasso, de Michaux, do mito de Eco. Mas sobre o que disse o Ignacio acerca dos primitivos figurativos, tenho uma pergunta. Em “Balizas” do livro citado (p. 29), ele fala do desejo (desideratum) que, naquele momento, era um sonho, [...] o de poder chegar a descrever um dia, de maneira sistemática, objetiva, autoconsistente, a estruturação possível dos primitivos figurativos, vale dizer, chegar a constituir uma espécie de gramática profunda dos modos de expressão, por meio de figuras, dos grandes temas que embasam e embalam o ser-estar do homem no mundo. (p. 29, grifo do autor). Pode-se dizer, hoje, que os estudiosos da semiótica tenham desenvolvido essa preocupação? Também vale ressaltar um ponto das “Balizas” para mim importante naquele momento. Definindo figurativização − relação entre a figuratividade profunda e a de superfície (p. 30) −, Ignacio escreve o seguinte: Estamos acostumados a pensar nessa relação como se dando no sentido que vai da estrutura profunda em direção à superfície. Usando as metáforas Eco e Narciso, estou sugerindo uma orientação dupla na leitura desse percurso: pode ser que as figuras de superfície sejam eco da estrutura profunda, pode ser ainda que a relação entre esses níveis seja uma espécie de relação narcísica, um jogo de espelhos. Tal afirmação foi significativa para mim porque havia internalizado, como outros talvez, o caminho de uma só mão, que talvez só seja bom na estrada. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 9 Preocupa-me hoje – talvez o Ignacio achasse o mesmo − a proliferação de conceitos entre os diferentes semioticistas franceses e sua repercussão nos estudiosos brasileiros. Parece faltar, no todo da semiótica atual, o espírito de coletividade. Achei, portanto, muito interessante a proposta de uma mesa a ser realizada neste evento com “Representantes dos Grupos de Pesquisa em semiótica no sudeste do Brasil.” Imagino um balanço, um mapeamento do que se fez e uma reflexão sobre as perspectivas para a segunda década do século XXI. Ao Alceu, Edna, Neiva, Ude, Edward, Tieko e outros aqui presentes que conhecem o trabalho do Ignacio e/ou que viveram os primórdios do Programa, peço que corrijam e completem as minhas reflexões. Referências bibliográficas ALTER, R. A mimese e o motivo para a ficção. In: _____. Em espelho crítico. Trad. Sérgio Medeiros e Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 127-146 . BORGES, J. L. Antología poética. Madrid: Allianza; Buenos Aires: Emecé, 1981. ITINERÁRIOS, revista de literatura, Araraquara, FCL/UNESP-Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, n. especial: Semiótica (20), 2003. LEONEL, M. C. Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra. São Paulo: Ed. UNESP, 2000. LIMA, L. C. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980. SILVA, I. A. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. São Paulo: Ed. da UNESP, 1995. (Prismas).