unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ANA CAROLINA DE PICOLI DE SOUZA CRUZ ANÁLISE SEMIÓTICA SOBRE LEITURA NO SAEB PARA O ENSINO FUNDAMENTAL ARARAQUARA – S.P. 2024 ANA CAROLINA DE PICOLI DE SOUZA CRUZ ANÁLISE SEMIÓTICA SOBRE LEITURA NO SAEB PARA O ENSINO FUNDAMENTAL Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina ARARAQUARA – S.P. 2024 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Esta pesquisa, cujo campo teórico compreende as áreas de linguística e da educação, visa contribuir com o processo de formação de leitores na educação básica, propondo (re)pensar os conceitos de leitura e de leitor competente, impactando consequentemente nos instrumentos de avaliação da competência leitora dos estudantes. Nesse aspecto, os impactos social e cultural desejados estão voltados à cooperação para o oferecimento de uma educação de qualidade e para a redução de desigualdades sociais. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This research, which encompasses theoretical fields in linguistics and education, aims to contribute to the process of developing readers in basic education by proposing a rethinking of the concepts of reading and competent reader, thereby impacting the tools used to assess students' reading competence. In this regard, the desired social and cultural impacts focus on cooperation to provide quality education and to reduce social inequalities. ANA CAROLINA DE PICOLI DE SOUZA CRUZ ANÁLISE SEMIÓTICA SOBRE LEITURA NO SAEB PARA O ENSINO FUNDAMENTAL Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estrutura, organização e funcionamento discursivos e textuais Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Data da defesa: 16/09/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Universidade Estadual Paulista – Unesp/FCL-Ar. Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Diana Luz Pessoa de Barros Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Patrícia Verônica Moreira Prefeitura Municipal de Araraquara Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Ana Carolina Cortez Noronha Universidade Estadual Paulista – Unesp/FCL-As. Membro Titular: Prof. Dr. Matheus Nogueira Schwartzmann Universidade Estadual Paulista – Unesp/FCL-As. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Construir uma tese, seja ela sobre qualquer assunto, é, na verdade, construir um espelho em que se refletem nossos saberes – os que já temos internalizados, aqueles em que hesitamos e aqueles que ainda nos faltam. É tecer, a cada palavra, a cada frase, a cada parágrafo, a cada capítulo, a cada página, um pouco do que somos e, portanto, um pouco de como enxergamos o mundo. Escrever uma tese é estar disposto a percorrer o árduo caminho do autoconhecimento e dos saberes que se encontram no mundo disponíveis a quem queira deles se aproximar, a quem tenha a coragem de deles se apropriar para sempre e, a todo momento, construir tantos e muitos outros saberes! Construir uma tese é mergulhar em profundo silêncio, mas também é se debater entre ideias, páginas e palavras que nos assombram, nos saltam aos olhos, nos chegam aos ouvidos e, por vezes, nos bagunçam a mente e a alma. É, portanto, viajar em inquieto silêncio; é quase viver uma incompletude completa; é ter já nas malas ideias e palavras, mas permanecer com a sensação de estar disjunto, dividido entre um e outro querer, por vezes entre quereres e quereres... Construir uma tese é percorrer um caminho profundo, solitário, embora nunca estejamos sozinhos, é ter a sensação de nunca findar a busca iniciada, é sempre virar a página. Mas, como as páginas, assim como as dos livros e as dos cadernos, sempre terminam, construir uma tese é saber ter de chegar a um fim, embora ele sempre pareça nos escapar, pois uma vez terminada, nunca se consolida findada, porque sempre haverá outras mãos para lapidá-la, para reconfigurá- la e, assim, colocá-la novamente no ciclo eterno do sem-fim da busca pelo sentido. Dedico esta construção, em especial, a minha mãe, Elvira Paolineli e a todos aqueles que caminharam ao meu lado nessa jornada. AGRADECIMENTOS Agradeço a minha mãe pela vida compartilhada, pelas lições durante este meu percurso sobre força, coragem; sobre aceitar, sobre não desistir; por me ensinar, enfim (e no fim) a ressignificar o verbo “continuar”. Ao meu orientador, Prof. Dr. Arnaldo Cortina, pela paciência, incentivo e parceria nos momentos mais difíceis desta jornada. Agradeço por sua dedicação aos estudos sobre leitura e formação de leitores, sem os quais esta tese não seria possível. Agradeço também aos professores da FCL-Ar do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa, nas pessoas do Prof. Dr. Jean Cristtus Portela e do Prof. Dr. Matheus Nogueira Schwartzmann, por acreditarem no meu potencial, pelo incentivo e pela oportunidade de participar do Programa Capes-Print. Agradeço, assim, à Capes pela bolsa concedida no terceiro ano de doutorado. Por meio dela, a alcancei novos horizontes como pesquisadora e esta tese ganhou novos rumos. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001”. Aos meus colegas de doutorado e àqueles com quem estreitei laços de amizade que permanecerão para além da Universidade. Meu agradecimento especial à Profª Drª. Maria Giulia Dondero que me recebeu na Universidade de Liège e com quem tive a oportunidade de aprofundar os estudos sobre semiótica visual. Agradeço também ao Prof. Dr. François Provenzano (Universidade de Liège) pela atenção a mim dispensada, pelas ricas trocas e pelo incentivo a minha pesquisa. Agradeço imensamente ao Prof. Dr. Daniel Delbrassine, também da Universidade de Liège, que me recebeu em suas aulas sobre literatura e didática do ensino de literatura, apresentou-me o trabalho de seus orientandos em escolas de Liège e com quem pude partilhar ideias sobre educação, literatura, leitura e formação de leitores. Agradeço aos professores e pesquisadores com os quais tive a oportunidade de conviver durante a jornada de doutoramento no Brasil e na Bélgica. A verdade dividida A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade (2012, p. 52) RESUMO Este trabalho visa refletir sobre o processo de formação de leitores no ensino fundamental por meio da análise do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Fundamentada na teoria da semiótica discursiva, esta pesquisa trabalha com documentos que marcaram mudanças metodológicas e conceituais desde a criação desse sistema até o ano de 2017 (última edição do Saeb, antes das alterações realizadas em virtude da Base Nacional Comum Curricular – BNCC), a saber: “Saeb – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica: objetivos, diretrizes, produtos e resultados” (1994); “Matrizes curriculares de referência para o Saeb” (1997); “Saeb 2001: novas perspectivas” (2001), “Relatório Saeb 2001” (2002) e, finalmente, o “Relatório Saeb 2017” (2019). Sob nosso ponto de vista, essa avaliação institucionaliza um perfil de leitor, uma concepção de leitura e, por conseguinte, as concepções de texto e de discurso que se estabelecem em uma dada cultura (nas salas de aula e na sociedade de modo geral). Em nome da busca pela qualidade educacional, o Saeb apresenta em seus princípios a busca pela eficiência e pela eficácia fundadoras da cultura do desempenho. Nesse sentido, o que significa ser um leitor proficiente? Ao pensar em uma educação humanizadora voltada à formação de cidadãos críticos, indagamo-nos sobre como a semiótica discursiva poderia contribuir na formação desses leitores desde o ensino fundamental? Seria possível estabelecer um conceito de competência leitora fundamentado na semiótica discursiva? Para tal, apoiamo-nos em autores como Greimas (1975, 1979, 2014); Greimas e Fontanille (1993); Greimas e Courtés (2021); Cortina (2000; 2006); Barros (1994, 2002, 2005, 2019); Fiorin (1990, 1998, 2002, 2004, 2012); Fontanille (1987,1999, 2008); Floch (1985, 1990); Pietroforte (2004, 2006) Oliveira e Teixeira (2009). A partir deles, tecemos nossas hipóteses sobre o que seria a competência leitora na perspectiva semiótica, dividindo-a em duas etapas: uma de decodificação e outra referente aos mecanismos intra e interdiscursivos. Apresentamos também o conceito de leitura como um processo de interpretação que, por meio do entrelaçamento de duas consciências discursivas (a do texto lido e a de seu leitor) gera outro texto (Cortina, 2000). Além disso, após analisarmos a matriz de referência e a escala de proficiência do Saeb, apontamos algumas possibilidades de leitura no Saeb, considerando não apenas os textos verbais, mas também os visuais e os verbovisuais como relevantes para a formação de leitores desde o ensino fundamental. Almejamos com este estudo contribuir para o aprimoramento da oferta de uma educação de qualidade, bem como para a diminuição das desigualdades sociais. Palavras-chave: leitura; leitores; competência leitora; educação; semiótica discursiva. ABSTRACT This work aims to reflect on the process of developing readers in elementary education through the analysis of the Basic Education Evaluation System (Saeb). Based on the theory of discursive semiotics, this research examines documents that marked methodological and conceptual changes from the creation of this system up to 2017 (the last edition of Saeb before changes were made due to the National Common Curriculum Base – BNCC), namely: "Saeb – National System of Basic Education Assessment: objectives, guidelines, products, and results" (1994); "Curricular Reference Matrices for Saeb" (1997); "Saeb 2001: New Perspectives" (2001); "Saeb 2001 Report" (2002); and finally, "Saeb 2017 Report" (2019). From our point of view, this evaluation institutionalizes a profile of the reader, a conception of reading, and consequently, the conceptions of text and discourse established in a given culture (in classrooms and in society at large). In the pursuit of educational quality, Saeb's principles emphasize efficiency and effectiveness that underpin a performance culture. In this sense, what does it mean to be a proficient reader? Considering a humanizing education aimed at developing critical citizens, we question how discursive semiotics could contribute to the formation of these readers from elementary education. Is it possible to establish a concept of reading competence grounded in discursive semiotics? To address this, we rely on authors such as Greimas (1975, 1979, 2014); Greimas and Fontanille (1993); Greimas and Courtés (2021); Cortina (2000; 2006); Barros (2002, 2005, 2019); Fiorin (1990, 1998, 2002, 2004, 2012); Fontanille (1987, 1999, 2008); Floch (1985, 1990); Pietroforte (2004, 2006); Oliveira and Teixeira (2009). Based on their work, we develop our hypotheses about what reading competence would be from a semiotic perspective, dividing it into two stages: one of decoding and another related to intra- and interdiscursive mechanisms. We also present the concept of reading as an interpretative process that, through the intertwining of two discursive consciousnesses (the text read and the reader’s), generates another text (Cortina, 2000). Furthermore, after analyzing Saeb's reference matrix and proficiency scale, we point out some reading possibilities within Saeb, considering not only verbal texts but also visual and verbal-visual as relevant for reader development from elementary education. We aim with this study to contribute to the enhancement of quality education and the reduction of social inequalities. Keywords: reading; readers; reading competence; education; discursive semiotics. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Questões do Saeb disponíveis no site do Inep ............................................. 14 Figura 2: Objetivo pedagógico - Fontanille ................................................................ 16 Figura 3: Níveis de pertinência .................................................................................... 25 Figura 4: Topografia de atitudes, reações e estratégias possíveis dos educandos ....... 31 Figura 5: Topografia a partir dos valores .................................................................... 32 Figura 6: Definição de termos usados no relatório Saeb 2017 .................................... 48 Figura 7: Representação de uma escala de proficiência hipotética ............................. 65 Figura 8: Poema "Solto", de Arnaldo Antunes ............................................................ 82 Figura 9: Poema "Rio: o ir", de Arnaldo Antunes ....................................................... 85 Figura 10: Modalidade intencional .............................................................................. 95 Figura 11: Propaganda de adoçante ........................................................................... 104 Figura 12:Temas e figuras do texto do Ministério da Saúde ..................................... 105 Figura 13: Livro "A tempestade" ............................................................................... 111 Figura 14: Trechos do livro "A tempestade" ............................................................. 112 Figura 15: Trechos do livro « Je veux mon chapeau ». ............................................. 113 Figura 16: Trecho do texto verbal de "Aladim e a lâmpada maravilhosa" ............... 115 Figura 17: Ilustração do final de "Aladim e a lâmpada maravilhosa" ....................... 115 Figura 18: Descritor 5 Saeb ....................................................................................... 117 Figura 19: Questão D5 para a 4ª série ....................................................................... 118 Figura 20: Questão D5 com propaganda para 8ª série ............................................... 120 Figura 21: Propaganda Petrobrás colorida ................................................................ 121 Figura 22: Quadrinho de Ziraldo ............................................................................... 124 Figura 23: Quadrinho de Ziraldo versão colorida ..................................................... 125 Figura 24: Exemplo de questão para 9º ano Editora do Brasil .................................. 129 Figura 25: Questões referentes à charge da figura 24 ............................................... 130 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Pontos positivos e negativos das avaliações de larga escala ...................... 36 Quadro 2: Objetivos gerais o Saeb .............................................................................. 38 Quadro 3: Matriz de referência de 1997 e de 2001 ..................................................... 44 Quadro 4: Matriz de Língua Portuguesa do Saeb 2017 para o 5º ano ....................... 51 Quadro 5: Matriz de Língua Portuguesa do Saeb 2017 para o 9º ano ......................... 52 Quadro 6: Comparação dos descritores de 5º e 9º ano do ensino fundamental .......... 54 Quadro 7: Descritores para 4ª série do E.F. que constam apenas na matriz de 1997.. 56 Quadro 8: Escala de proficiência em Língua Portuguesa - 1997 ................................ 61 Quadro 9: Trechos da escala de proficiência do 5º ano .............................................. 62 Quadro 10: Escala de proficiência do 9º ano .............................................................. 63 Quadro 11: Temas e figuras da propaganda de adoçante .......................................... 106 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Proficiência média em Língua Portuguesa no Saeb 2017- 5º ano E.F. ...... 68 Gráfico 2: Proficiência média em Língua Portuguesa no Saeb 2017 - 9º ano E. F. .... 68 Gráfico 3: Evolução de proficiências médias do 5º ano no Saeb de 1995 até 2019 .... 69 Gráfico 4: Evolução de proficiências médias do 9º ano no Saeb de 1995 até 2019 .... 69 Gráfico 5: Gráfico da estrutura tensiva proposto por Fontanille ................................. 93 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 SOBRE A HISTÓRIA DA LEITURA ......................................................... 21 1.1 A leitura em seus primórdios .............................................................................................. 21 1.2 Breve história da leitura no Brasil e seu ensino.................................................................. 27 CAPÍTULO 2 A AVALIAÇÃO DE LARGA ESCALA E O SAEB .................................. 35 2.1. A avaliação de larga escala ................................................................................................ 35 2.2 O Sistema de Avaliação da Educação Básica – Saeb ......................................................... 38 2.3 O Saeb 2017: a matriz de referência e a escala de proficiência ......................................... 46 2.4 Saeb: éthos e formas de vida deônticas .............................................................................. 65 CAPÍTULO 3 LEITURA NA PERSPECTIVA SEMIÓTICA........................................... 75 3.1 A competência leitora ......................................................................................................... 78 3.1.1 Primeira etapa da competência leitora: a decodificação .................................................. 79 3.1.2 A segunda etapa da competência leitora e seus elementos para a produção de sentido .. 86 3.1.2.1 Conhecimento enciclopédico, intertexto e interdiscurso .............................................. 87 3.1.2.2 Modalidades de leitura ................................................................................................. 90 3.1.2.3 Contexto e descontextualização.................................................................................... 95 3.1.2.4 Enunciação e leitura ..................................................................................................... 97 3.1.2.5 Uma análise sob a ótica da segunda etapa da competência leitora ............................... 99 CAPÍTULO 4 LEITURAS NO SAEB: CONCEITOS E POSSIBILIDADES ................ 102 4.1 Textos verbais, visuais e verbovisuais .............................................................................. 102 4.2 Conceito de textos sincréticos e de textos verbovisuais ................................................... 107 4.2 Possibilidades de leituras de textos verbovisuais e de textos visuais no Saeb ................. 116 5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 131 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 136 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ..................................................................................... 141 ANEXO A – DOCUMENTO DO SISTEMA DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA DATADO DE 1994 ............................................................................................... 145 ANEXO B – MATRIZ DE REFERÊNCIA DO SAEB 1997 PARA 4ª, 8ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL E 3ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO ..................................... 177 13 1 INTRODUÇÃO O ato de avaliar, devido estar a serviço da obtenção do melhor resultado possível, antes de tudo, implica a disposição de acolher a realidade como ela é. Isso significa a possibilidade de tomar uma situação da forma como se apresenta, seja ela satisfatória ou insatisfatória, agradável ou desagradável, bonita ou feia. Ela é assim; nada mais que isso! Acolhê-la, como está, é o ponto de partida para fazer qualquer coisa que possa ser feita com ela. Sem esse acolhimento da realidade como ela é, não há possibilidade de uma intervenção adequada, pois que qualquer outro tipo de partida seria enganoso e sem sustentação. Avaliar um educando implica, antes de mais nada, acolhê- lo no seu ser e no seu modo de ser, como está; para então, a partir daí, decidir o que fazer. (LUCKEZIE, 2005, p. 40-41). Este trabalho visa refletir sobre o impacto que avaliações de larga escala como as do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) têm na formação de leitores no ensino fundamental brasileiro – que abrange alunos entre seis/sete anos até aqueles com quatorze/quinze, ou seja, alunos do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental. Para tanto, tomamos como objeto de análise alguns dos relatórios e dos documentos de referência de algumas edições do Saeb ao longo de seus trinta anos de criação, a saber: “Saeb – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica: objetivos, diretrizes, produtos e resultados” (1994); “Matrizes curriculares de referência para o Saeb” (1997); “Saeb 2001: novas perspectivas” (2001), “Relatório Saeb 2001” (2002) e, finalmente, o “Relatório Saeb 2017” (2019). A seleção desses documentos deu-se, especificamente, por se tratar de marcos temporais relevantes no que tange a alterações conceituais e metodológicas nesse sistema, cujos impactos nas concepções de leitura e de formação de leitores, sob nosso ponto de vista, foram determinantes para o que se entende por leitura e leitor até os dias atuais. Isso deve-se ao fato de consistir o Saeb em uma avaliação, essencialmente, da competência leitora dos alunos. Destacamos que esse corpus é formado somente pelos relatórios até a data de 2017, pois, apesar de diversos esforços, não conseguimos acesso às avaliações aplicadas aos alunos. Essas não estão disponibilizadas nos sites do Governo Federal ou do Inep. Além disso, a edição de 2017 é a última antes da publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2018. Ressaltamos, ainda, que até fevereiro de 2024 constavam, no site do Inep, apenas duas questões como modelos de questões da avaliação que são referentes, justamente, ao Saeb 2017, conforme indica a figura a seguir: 14 Figura 1: Questões do Saeb disponíveis no site do Inep Fonte: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/Saeb/testes- e-questionarios. Acesso em 11/02/2024. Sendo assim, analisaremos o corpus citado à luz, principalmente, da teoria semiótica de linha francesa e de alguns conceitos da semiótica de Umberto Eco – como os de enciclopédia e de tipos de leitores. Como toda a prática de avaliação visa verificar a ocorrência de uma transformação – ou, nos termos da semiótica discursiva, de acordo com o nível narrativo do percurso gerativo de sentido, a passagem de um estado a outro – no caso do Saeb, verifica-se a passagem do estado de ignorância ao de conhecimento em termos de leitura. Mas, não é só isso. Esse tipo de avaliação da leitura apresenta a nova arquitetura educacional fundamentada a partir das alterações decorrentes da globalização e refletidas em novas relações entre ela, a economia e as políticas sociais. Assistimos, assim, a uma transformação no nível dos valores: do conhecimento como objeto de valor a ser adquirido, passamos à busca da eficiência e da eficácia, ou, segundo Greimas e Fontanille (1993, p. 89), estamos testemunhando a ascensão da cognição sobre a paixão. Tanto no interior dos sistemas filosóficos, como também, de maneira geral, no interior da épistémé, a economia política assume o lugar das teorias das paixões que perecem, e a teoria das necessidades suplanta a dos desejos; isso se traduz, em particular, por uma mudança da modalização dos objetos de valor: de desejáveis que eram, tornam-se necessários ou indispensáveis. https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/saeb/testes-e-questionarios https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/saeb/testes-e-questionarios 15 Caminhamos cada vez mais para uma racionalização da educação em detrimento de uma educação mais humanizadora. Não estamos com isso afirmando que a educação deva se solidificar apenas na dimensão patêmica (as modulações dos estados de alma), mas estamos afirmando, sim, que ela não deve manter-se somente sob o prisma da cognição, uma vez que vemos o mundo – ou melhor lemos o mundo – de acordo com o que somos e, nesse sentido, é impossível não equilibrar paixão e razão, sensível e inteligível no processo de formação de leitores. Edificada sobre os pressupostos da racionalidade, como nos aponta Fontanille (1987), a educação valeu-se do que é essencial as suas ciências: A racionalização em questão fez uso de todos os recursos, mas, mais particularmente, das essências cultivadas pelas ciências da educação. Assim, os objetivos pedagógicos, as avaliações preditivas e formativas, a docimologia e a psicologia cognitiva tiveram uma forte entrada, se não nas práticas de sala de aula, ao menos no vocabulário dos professores e, entre outras coisas, nos discursos realizados nas discussões pedagógicas. Para um semioticista, o que se modificou inicialmente foi o discurso sobre a pedagogia, ou seja, para usar uma distinção um tanto desgastada, a teoria tal como é verbalizada pelos praticantes. O que acontece no discurso didático quando ele visa a racionalidade? Ele apresenta uma estrutura narrativa. De fato, a análise da prática pedagógica muitas vezes permite apenas reconstruir um fio narrativo e uma sintaxe modal; por outro lado, a simples escuta desse "novo" discurso teórico revela uma arquitetura narrativa explícita. (FONTANILLE, 1987, p. 5 – tradução nossa – grifos do autor)1. Isso significa, resumidamente, que a educação trabalha sempre a partir de objetivos (metas) a serem alcançadas, de um lado, pelos professores e de outro pelos alunos. As avaliações são os meios utilizados para mensurar o que a semiótica chama de competencialização: no percurso do sujeito, há o encadeamento lógico e pressuposto do programa da competência e do programa pressuponente da performance, isso quer dizer que o sujeito-aluno, por exemplo, adquire competência modal e semântica, torna-se sujeito 1 « La rationalisation en question a fait feu de tout bois, mais plus particulièrment des essences que cultivent les sciences de l’education. Ainsi, les objectifs pédagogiques, les évaluations prédictives et formatives, la docimologie et la psychologie cognitive ont-elles fait une entrée en force, sinon dans les conduites de classe, du moins dans le vocabulaire des enseignants, et, entre autres, dans discours tenus dans les concertations pédagogiques. Pour un sémioticien, ce qui s’est d’abord modifié, c’est le discours sur la pédagogie, c’est-à-dire, pour employer une distinction un peu usée, la théorie telle que la verbalisent les praticiens. Que se passe-t-il dans le discours didactique quand il vise la rationalité? Il affiche une structure narrative. En effet, l’analyse de la pratique pédagogique ne permet le plus souvent que de reconstruire un fil narratif et une syntaxe modale ; en revanche, la seule écoute de ce « nouveau » discours théorique révèle une architeture narrative explicite ». (FONTANILLE, 1987, p. 5 – grifos do autor). 16 competente para executar uma determinada performance (um fazer), tornando-se sujeito realizador. Parece-nos, dessa maneira, que a avaliação não apenas possui um grande peso educacional e sociocultural, mas dita finalmente como podemos entender, pensar e denominar um leitor competente, uma “boa” leitura. Fontanille (1987) aponta, ainda, como a organização dos objetivos educacionais indica o processo de competência do sujeito no percurso narrativo: Figura 2: Objetivo pedagógico - Fontanille Fonte: FONTANILLE, 1987, p. 5 – tradução nossa. Esse processo corresponde ao que o aluno deve ser capaz de fazer. Nele, o Destinador- Social determina os valores que o sujeito-aluno deve adquirir (a competência semântica do sujeito) e, ao mesmo tempo, é quem atribui os valores modais necessários para o fazer (competência modal do sujeito). Desse modo, a partir da manipulação cognitiva (dotação de competência semântica) é estabelecido um contrato fiduciário por meio do qual o destinador exerce um fazer persuasivo sobre o destinatário visando sua adesão, ou seja, ao realizar o fazer interpretativo, esse destinatário crê ser verdadeiro o discurso do destinador-manipulador. Nesse sentido, o /dever-fazer/ pressupõe um /saber-fazer/. A obrigação de ser um leitor competente implica crer no que é prescrito. Ao aceitar essa prescrição, o sujeito-aluno passa a realizar uma performance que será avaliada. É nesse sentido que a avaliação torna-se um norteador de práticas, cujos objetivos são a obtenção de uma sanção positiva ao final de um processo de aprendizagem não só pelo aluno, mas também pelo sistema de ensino, pela escola e pelo professor. No âmbito social, a avaliação – e, portanto, o Saeb – ganha destaque como orientadora de políticas públicas. Ela institucionaliza: um perfil de leitor que é considerado competente quando desenvolve um determinado número de habilidades estabelecidas nos níveis descritos na escala de proficiência do Saeb – esses, por sua vez, pautam-se na Taxonomia de Bloom –; uma concepção de leitura pautada nos seguintes termos: O teste de língua portuguesa do Saeb tem como foco a leitura e seu objetivo é verificar se os alunos são capazes de apreender o texto como construção de conhecimento em diferentes níveis de compreensão, análise e interpretação. A alternativa por esse foco parte da proposição de que ser competente 17 no uso da língua significa saber interagir, por meio de textos, nas mais diferentes situações de comunicação. é uma atividade complexa que exige do leitor demonstrar habilidades como reconhecer, identificar, agrupar, associar, relacionar, generalizar, abstrair, comparar, deduzir, inferir, hierarquizar. (INEP, 2019, p. 23-24 – grifos nossos). Isso significa que ler é ser capaz de realizar as operações citadas. Por conseguinte, essa avaliação termina por ditar também as concepções de texto e de discurso que se estabelecem em uma dada cultura – questões caras a todos os envolvidos na área da linguagem. Analisar o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) é um caminho, portanto, para se pensar a formação de leitores, especificamente, no âmbito escolar e, principalmente, no ensino público – uma vez que ele é obrigatório para esse segmento educacional. Inquietações envolvendo os universos educacional e linguístico sempre estiveram presentes em nossa formação, desde o mestrado em Estudos Literários, no qual analisamos a obra “O Ateneu” de Raul Pompéia. A partir dessa dissertação, foi elaborado um artigo publicado em 2022, de cujo excerto a seguir, depreende-se um brevíssimo resumo da obra citada de Pompéia: Escrito em primeira pessoa, a obra tem como fio condutor as memórias do narrador-personagem, Sérgio já adulto, que relembra sua passagem pelo internato, Athenaeum, palco central em que se desenvolve a narrativa. Ao revisitar seu passado, por meio da memória, Sérgio faz a leitura adulta da experiência infantil. Ao descrever os objetos do colégio, suas divisões espaciais e os significados que outras personagens atribuem a cada um desses espaços, a rotina da escola e do austero diretor Aristarco, com seus discursos repletos de “verdades absolutas”, revela ao leitor uma imagem menos idealizada da instituição escolar da sociedade brasileira do fim do século XIX. (CRUZ; CORTINA, 2022, p. 115). Observa-se nesse romance, a escola como o lugar privilegiado de produção do “saber” e o palco em que podem ecoar os discursos de valores plurais ou os de valores do absoluto. Uma das chaves para que se propaguem um ou outro é, justamente, o ensino da leitura. Mas, de que leitura estamos falando? Em documentos educacionais oficiais e nas escolas, qual significado é atribuído à leitura, ou melhor, o que significa ler? E o que significa ser um “bom” leitor? As duas perguntas-chave, no entanto, que subjazem todas as anteriores são: i) como poderia a semiótica discursiva contribuir na formação de leitores críticos desde o ensino fundamental, ou seja, com alunos do 1º ao 9º ano? (ii) É possível estabelecer um conceito de competência leitora fundamentado na semiótica discursiva? Ao buscarmos responder a essas questões, as indagações de Cortina (2000) sobre leitura apontaram-nos um caminho: 18 Em que medida se pode falar de leitura errada ou de leitura correta de um texto? Que mecanismos estruturais devem ser observados durante o processo de leitura? Qual o papel do contexto sócio-histórico no momento da produção e recepção de um texto? O processo de leitura é sempre igual para qualquer tipo de texto? (CORTINA, 2000, p. 16 – grifos nossos). A partir disso, outras reflexões vieram à tona: ler refere-se à leitura de qualquer texto (verbal, visual, verbovisual, sincrético)? E como esses textos são lidos pelos alunos e pelos professores? Quais mecanismos são usados para levar os alunos a interpretarem um texto? E quais mecanismos são usados pelos professores para isso? Quais expectativas em relação ao leitor estão em jogo na escola? Como essas expectativas são textualizadas, comprovadas e disseminadas, enfim, à sociedade? Há muitas pesquisas e debates no âmbito mundial em relação à leitura e à formação de leitores, seja para auxiliar nações cujos baixos índices de leitura preocupam – e, por consequência, de desenvolvimento social – seja para ampliar pesquisas que possibilitem melhores condições de acesso, preservação e difusão das mais diferentes manifestações culturais. No campo linguístico, há muitos estudos sobre a temática da leitura, como, por exemplo, os trabalhos de Ana Carolina Cortez Noronha: “A viagem de um leitor: uma investigação semiótica sobre o processo de leitura” (2006) e “Semiótica, educação e o uso da tecnologia digital em sala de aula”; ou ainda “Semiótica e ensino: competências e habilidades para a expressão escrita em língua portuguesa” de Rosane Reis de Oliveira (2014), cujo foco está na análise da escrita. Há também alguns trabalhos voltados à análise de livros didáticos, como o de Luciano Magnoni Tocaia: “Linguagem e ensino: identidade e diversidade discursiva em livros didáticos brasileiros e franceses” (2014); e outros que tratam das questões do letramento e dos multiletramentos, como os estudos de Eliane Soares de Lima, a saber: “(Multi)letramentos na escola: proposições da semiótica discursiva à ação didática” (2019) e “Semiótica discursiva e Educação básica: um diálogo possível e necessário” (2021). Todos, sem dúvida, renderam – e rendem ainda – avanços relevantes nas pesquisas sobre o tema, no entanto, eles não tratam da questão das avaliações e de seu impacto na formação de leitores e nem estão todos concentrados no ensino fundamental. Como já dissemos, concentramos nosso foco no ensino fundamental por acreditarmos que o processo de formação de leitores, apesar de não ocorrer apenas na escola, é marcado principalmente nessa etapa de escolarização. É nela que se criam ou não hábitos de leitura. Além disso, a questão da avaliação nos interessa por ela criar um perfil de leitor competente, 19 como já afirmamos, ao mesmo tempo em que traça os percursos de ação do professor, da escola, dos sistemas de ensino e, finalmente, de políticas públicas para educação. Dito isso, dividimos este trabalho em quatro capítulos. O primeiro trata da história da leitura desde seus primórdios em uma linha do tempo ligada, principalmente, à história do livro, visando apresentar a ligação entre registro e leitura, além da intrínseca relação entre sociedade burguesa e leitura. Destacam-se, no capítulo, considerações sobre as diferentes maneiras de ler que os diferentes suportes de registro geraram, mas pensando, finalmente, a leitura como um fenômeno social, (produto e (re)produtora das dimensões cultural, econômica, histórica, política das diferentes sociedades em que é praticada). O capítulo traz também a história da leitura no Brasil e seu desenvolvimento, principalmente, no ensino, destacando questões como a leitura enquanto objeto-valor cultural, mas também objeto-valor de mercado; a leitura quase como uma fronteira que divide a classe dominante e a classe dominada, ou ainda, a linha sob a qual se inscrevem as oposições fundamentais de inclusão vs exclusão sociais. Para isso, valemo-nos da visão de autores como Roger Chartier (1988), Robert Darnton (apud Burke, 1992), Marisa Lajolo (1997), Villalta (1997), Regina Zilberman (s/d), Cláudio DeNipoti (2002), Arnaldo Cortina (2006) e Ivete Lara Camargos Walty et al (2007). O segundo capítulo versa sobre avaliação de larga escala, apresentando seu histórico, seu conceito, sua disseminação pelo mundo por meio de órgãos internacionais que a controlam e visam fazer prevalecer seus interesses políticos e econômicos. Retrata também estudos sobre os pontos positivos e negativos desse tipo de exame educacional e seus impactos sociais. Em seguida, ocupa-se do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para descrever sua história – desde sua criação, ressaltando as mudanças realizadas ao longo de seus mais de trinta anos de existência e seu impacto na política educacional ao longo desse período; ocupa-se, ainda, da descrição detalhada dos conceitos fundamentais que norteiam esse sistema, principalmente sua matriz de referência para a elaboração dos testes cognitivos para os alunos e sua escala de proficiência por meio da qual se mede o nível de competência leitora dos estudantes das séries conclusivas do ensino fundamental (5º e 9º anos) e ensino médio (3º ano). Ressalte-se que este estudo ocupa-se apenas do ensino fundamental. Por fim, o capítulo busca mostrar como o Saeb termina por tecer, também, concepções de leitura e de leitor na educação básica. O terceiro capítulo é dedicado a reflexões sobre a leitura na perspectiva da semiótica discursiva. Pautados em Greimas e Courtés (2021), apresentamos as definições de leitura que constam no “Dicionário de semiótica”, buscando estabelecer um paralelo entre elas e as definições que circulam no âmbito pedagógico, ou seja, as denominações próprias nessa área. 20 Em seguida, tentamos estabelecer o conceito de competência leitora sob a perspectiva semiótica, dividindo-a em duas etapas. A ideia é, além de traçar o conceito de competência leitora, pensar em como alguns mecanismos intra e interdiscursivos de construção do sentido podem contribuir nos processos de formação de leitores, assim como na leitura de textos visuais, verbovisuais a partir das perspectivas da semiótica discursiva. Aliás, para mostrar a importância da leitura de imagens e de ilustrações em textos que fazem parte do cotidiano de sala de aula do ensino fundamental (principalmente nas séries iniciais), trazemos o ponto de vista de um estudioso da « littérature de jeunesse 2», Daniel Delbrassine et al (2022). Embora o autor não utilize a semiótica discursiva, ele chama a atenção do leitor – ainda que não seja da área das letras – para os sentidos tecidos também pelo visual. O quarto e último capítulo, refere-se à exploração de possibilidades de leituras de textos verbais, visuais e verbovisuais no Saeb em consonância com as hipóteses tecidas no capítulo 3. Em um primeiro momento, apresentamos as definições para cada um desses textos e, em seguida, as análises deles ancoradas na semiótica discursiva. O intuito é, portanto, apresentar as contribuições que essa metodologia pode trazer à educação e, principalmente, à ampliação do que se entende por leitura e leitor tanto no meio educacional, quanto na sociedade de modo geral. Destacamos que as análises são feitas com questões do Saeb 2001, pois o relatório dessa edição apresenta exemplos de cada descritor para o 5º e para o 9º ano. Desse modo, na medida do material de que dispúnhamos, mantivemo-nos fiel ao corpus deste trabalho. Por fim, em nossas conclusões refletimos sobre o trabalho realizado até aqui e sobre os caminhos ainda a trilhar para, efetivamente, contribuirmos no sentido de ampliar e de enriquecer a formação de leitores críticos em nossas escolas. Nenhum caminho está totalmente pronto em teoria (seja ela qual for). Sempre há novas possibilidades de aprimoramento e novos pontos de vista a serem lançados sobre objetos já estudados. Essa é a riqueza da ciência, a riqueza dos leitores investigadores que leem o mundo com olhos de descobrir, de desvendar, de acrescentar. Esperamos que este trabalho desperte naqueles que o lerem senão o desejo de buscar mais, ao menos, a centelha em aproximar e estreitar os laços entre a semiótica e a educação. 2 Literatura infanto-juvenil 21 CAPÍTULO 1 SOBRE A HISTÓRIA DA LEITURA Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive. Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem por aí, na chamada escola da vida: a leitura do voo das arribações que indicam a seca – como sabe quem lê Vidas secas de Graciliano Ramos – independe da aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros. Como entre tais coisas e tais outros incluem-se também livros e leitores, fecha- se o círculo: lê-se para entender o mundo, para viver melhor. Em nossa cultura, quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, numa espiral quase sem fim, que pode e deve começar na escola, mas não pode (nem costuma) encerrar-se nela. [...] Mundo da leitura, leitura do mundo: onde acaba um e começa a outra? Talvez os limites sejam esgarçados, aquela terceira margem do rio de que fala Guimarães Rosa... (LAJOLO, 1997, p. 7). 1.1 A leitura em seus primórdios O excerto de Lajolo convida-nos a pensar na necessidade de o homem expressar-se e, ao mesmo tempo, de apreender um pouco das experiências, conhecimentos, emoções e sentimentos registrados por ele mesmo ao longo do tempo. Sob essa perspectiva, podemos afirmar que a leitura nasce de uma necessidade de apreender o mundo, assim como a escrita, da necessidade de o homem registrar sua própria história. Dessa maneira, podemos pensar a história da leitura relacionada à história do mundo como a conhecemos atualmente, principalmente, em seu aspecto cultural. É desse modo que leitura e escrita – ou pensando em abarcar diferentes formas de expressão, talvez seja melhor dizermos leitura e registro – caminham juntas(os). É o caso, por exemplo, das pinturas rupestres nas cavernas até se chegar a uma forma de escrita sistematizada (a escrita cuneiforme) com os sumérios em 3500 a.C. na Mesopotâmia; já no Egito, na mesma época, surgem os hieroglifos, tipo de escrita que apenas os sacerdotes, escribas e aqueles que pertenciam às classes mais altas da sociedade dominavam. Os diferentes tipos de escrita passaram também por diferentes suportes de registro: as tabuletas de argila, o óstraco (escrita feita em fragmentos de cerâmica), o papiro, o pergaminho. Somente, a partir do século XV, com a invenção dos tipos móveis e da impressão mecânica ocorreu a produção de grande número de textos impressos em papel e sua maior circulação. O primeiro livro impresso data de 1436, conhecido como incunábulo, ele era um tipo de livro caracterizado pelas letras irregulares, pela ausência de paginação, de assinatura e de título, além de não possuir margens, capítulos ou sinais de pontuação. Ele foi impresso dessa maneira até 1500 (Walty, 2007, p. 19). O que existia antes eram os rolos ou volumen – que precisavam ser 22 desenrolados para serem lidos. Só depois, a escrita em linha reta e o uso do verso da folha criaram a primeira forma do códex: manuscritos reunidos pelo dorso e cobertos por uma capa semelhante à das encadernações atuais. A história da leitura pode ser tecida por diferentes pontos de vista, como nos mostra Robert Darnton em capítulo de livro de Peter Burke (1992). Sob a ótica dos livros, há pesquisas macro e microanalíticas que estudam a tradição bibliográfica e traçam os hábitos de leitura em um dado espaço temporal – como as de Henri-Jean Martin, de François Furet, de Robert Estivals e de Frédéric Barbier que traçaram a evolução dos hábitos de leitura do século XVI até os dias de hoje na França, “utilizando séries de longo prazo, construídas a partir do dépôt legal, dos registros do livro e da publicação anual da Bibliographie de la France” (1992, p. 203). Há também os estudos de Wolfgang Milde, de Paul Raabe e de John MacCarthy sobre bibliotecas públicas e particulares de nobres e sacerdotes, por exemplo. A partir dos registros de empréstimos da biblioteca ducal de Wolfenbüttel, os autores apresentam uma considerável democratização da leitura na década de 1760, pois além de os empréstimos terem dobrado, eles partiam das classes sociais menos privilegiadas e a temática de leitura deslocava-se dos volumes eruditos para as novelas sentimentais. Darnton, no entanto, aponta para o problema dessas micro e macroanálises: a disparidade das documentações e a dificuldade, portanto, para reuni-las. Dessas breves considerações sobre a história da leitura, o que nos interessa observar são as diferentes maneiras de leitura que existiram, bem como os diversos modos de ler que os diferentes suportes de registro geraram. Em seus primórdios, o que observamos é que a leitura não era acessível a todas as pessoas. Somente os letrados, ou seja, as pessoas que dominavam a técnica de ler e que podiam adquirir textos e/ou livros eram leitores. Desde seu início, então, podemos afirmar que ler é uma atividade elitista. Além disso, ela era feita em voz alta e coletivamente. Darnton (apud Burke, 1992) afirma que se lia nos locais de trabalho, em celeiros, em tavernas e que a instituição de leitura mais relevante do Antigo Regime era a veillée3. Nesse sentido, os livros sempre tiveram mais ouvintes que leitores. Mas, além dessa leitura para entreter, havia um caráter doutrinador do ler em voz alta e, nesse sentido, é preciso destacar que a democratização da leitura na antiguidade clássica só ocorreu com o advento do cristianismo, uma vez que houve um processo de alfabetização não intencional por meio da propagação do Novo Testamento e, justamente do 3 Segundo Darnton: “A instituição de leitura popular mais importante sob o Antigo Regime era um encontro à beira do fogo, conhecido como veillée na França e Spinnstube na Alemanha. Enquanto as crianças brincavam, as mulheres costuravam e os homens consertavam ferramentas, um do grupo que podia decifrar um texto os regalaria com as aventuras de Les quatre fils Aymon, Till Eulenspiegel ou algum outro favorito do repertório padronizado dos livros populares e baratos. (apud BURKE, 1992, p. 215-216). 23 hábito de se ler coletivamente. Podemos pensar, assim, que uma das primeiras técnicas de leitura foi a de se ouvir um dado texto em voz alta e repeti-lo até que o soubessem de memória – o que era muito praticado com orações e textos religiosos. Com a difusão do comércio e da produção de exemplares de uma mesma obra, houve a consequente ampliação de material ofertado à leitura e o aumento do público leitor, ou melhor, do público consumidor. É por isso que ao falarmos de leitura necessariamente passamos pela história de diferentes formas de registro e, consequentemente, pela mais conhecida e difundida: a do livro. O historiador Robert Darnton (apud BURKE, 1992) destaca o modelo geral de Rolf Engelsing, para quem ocorreu uma revolução na leitura no final do século XVIII. Segundo ele, da Idade Média até um pouco mais de 1750, os homens liam intensivamente, ou seja, possuíam alguns livros como a Bíblia, almanaques ou livros de oração e os liam repetidas vezes, em voz alta e coletivamente; já em 1800, os homens liam todo e qualquer tipo de material como jornais, periódicos e apenas uma vez, ou seja, liam extensivamente. Darnton discorda de Engelsing, pelo caráter não-linear apresentado pelo autor e defende que a leitura não se desenvolveu apenas em extensão, mas, antes, de muitas e variadas formas para diferentes grupos sociais e em diferentes épocas. Afirma, assim, Darnton (apud BURKE, 1992, p. 212-213): Homens e mulheres leram para salvar suas almas, para melhorar seu comportamento, para consertar suas máquinas, para seduzir seus enamorados, para tomar conhecimento dos acontecimentos de seu tempo, e ainda simplesmente para se divertir. Em muitos casos, em especial entre os admiradores de Richardson, Rousseau e Goethe, a leitura tornou-se mais intensiva, não menos. Mas o final do século dezoito parece representar um ponto crítico, quando se pode visualizar a emergência de uma leitura de massa que iria atingir proporções gigantescas no século dezenove, com o desenvolvimento do papel feito à máquina, as prensas movidas a vapor, o linotipo e uma alfabetização quase universal. Todas essas mudanças abriram novas possibilidades, não diminuindo a intensidade, mas aumentando a variedade. Robert Darnton, apesar de ser cético em relação às hipóteses de Engelsing, concorda que ocorreu o que ele chamou de “deslocamento fundamental na natureza da leitura no final do século dezoito” e que marca o final de um Antigo Regime. (1992, p. 213). Já para Roger Chartier (1988), a grande revolução da leitura relaciona-se diretamente à leitura silenciosa, pois ela estabelece uma relação livre, privada e secreta com a palavra escrita, além de permitir diferentes usos do mesmo livro. 24 No que tange às diferentes formas de apresentação dos textos, ou seus diferentes suportes, chamamos a atenção para o fato, por exemplo, de que a leitura dos rolos impedia anotações do leitor no decorrer da leitura; já os infólio, por serem grandes, exigiam um suporte como mesas para serem lidos, o que permitia ler e escrever ao mesmo tempo. Com os livros como os conhecemos hoje, os leitores podiam realizar uma leitura para trás e para diante; além disso, houve ainda a vulgarização das obras clássicas da Idade Média organizadas pelos editores com a finalidade de simplificá-las para facilitar sua aceitação popular (como, por exemplo as edições da Bibliothéque Bleue)4 e, consequentemente, ampliar o comércio do livro. Seja como for, o traço comum que os historiadores da leitura nos apontam reside na alteração que a prática da leitura sofreu ao longo dos tempos e no entendimento dela como um bem social e, portanto, negociável (fato intimamente relacionado à prática de edição). A partir disso, podemos pensar a leitura com Fontanille (2008, p. 20) e sua teoria das práticas semióticas. Para o semioticista, é possível analisarmos não apenas o texto, ou o plano do conteúdo, mas tratar de todo conjunto que envolve uma determinada situação semiótica, sem perder o princípio de imanência. Fundamentado nas ideias de Jean-François Bordron a respeito da existência de diferentes planos de imanência, Fontanille (2008, p. 20), propõe um percurso gerativo do plano da expressão formado por seis planos de imanência e de pertinência: (i) figuras-signos; (ii) texto-enunciado; (iii) objeto-suporte; (iv) cenas predicativas; (v) estratégias; (vi) formas de vida. Em cada um dos níveis, o princípio de pertinência diferencia tipos de experiência, como bem ilustra a figura a seguir: 4A Bibliotheque Bleue era assim conhecida por conta da padronização de seus livros com capas azuis, cuja finalidade era baratear o custo da edição. Ela possuía clássicos medievais simplificados e histórias populares. Esse formato editorial foi criado pelos Oudot, em Troyes, no século XVII. Isso aumentou a circulação dos livros que eram baratos, impressos em grande quantidade e divulgados por meio da venda ambulante. 25 Figura 3: Níveis de pertinência Fonte: FONTANILLE, 2008, p. 20. Sendo assim, as alterações nos tipos de suporte de escrita já citados (tabuletas de argila, papiros, óstraco, volumen, códex, infólio, manuscritos, incunábulos etc.), são, na verdade, mudanças no nível dos objetos-suporte que, por sua vez, pressupõem também alterações no nível da cena prática da leitura. Além da passagem da leitura coletiva e em voz alta para aquela realizada silenciosa e individualmente, Darnton (1992), trata dos locais de leitura e nos dá indícios da natureza da experiência leitora, ao descrever, por exemplo, cenas de gravuras de bibliotecas da universidade de Leyden (datadas de 1610). Essas apontam para o desconforto do ambiente de leitura no período do humanismo clássico com pesados volumes sendo lidos em balcões ao nível dos ombros, em pé, abaixo das estantes e protegidos por capas grossas e chapéus; cita, também, os quadros La lecture e La Liseuse de Fragonard, cujas leitoras (em geral mulheres) encontram-se em poltronas reclinadas e confortáveis, com exemplares menores em suas mãos. Essas duas cenas predicativas podem diferir não apenas pelo espaço em que acontecem, mas principalmente pela modalização que representam: a primeira (da universidade) certamente regida pelo /dever-fazer/ e /dever-saber/, enquanto a segunda se coloca como um /querer-fazer/ e /querer-saber/. Assim, uma é predicada pela necessidade e a outra pelo prazer; além disso, os objetos-suporte determinam modos completamente diferentes de ler: na universidade, o peso dos livros exige do corpo sensível um esforço máximo em 26 intensidade, mas provavelmente mínimo em extensidade; enquanto o objeto livro pequeno entre as mãos proporciona, ao mesmo corpo, a sensação de conforto que pode ter mínima intensidade e máxima extensão. No caso das edições simplificadas, as alterações se dão no nível dos textos-enunciados e elas ocorrem justamente para que o leitor tenha quase a sensação de estar acompanhando uma peça teatral, uma vez que os capítulos eram totalmente fragmentados, como nos diz Darnton (apud BURKE, 1992, p. 230): [...] em meados do século dezessete, as editoras Oudot e Garnier em Troyes começaram a publicar em série de edições baratas em brochura, que a tornaram durante duzentos anos a peça principal vital da literatura popular conhecida como bibliotèque bleue. Os editores populares não hesitaram em remendar o texto, mas concentraram-se primeiramente no formato do livro, o que Chartier chama de mise en livre. Fragmentaram a narrativa em unidades simples, encurtando as frases, subdividindo parágrafos e multiplicando o número de capítulos. A nova estrutura tipográfica implicava um novo tipo de leitura e em um novo público: as pessoas humildes, a quem faltava a facilidade e o tempo para absorver longos trechos de narrativa. Ao excerto de Darnton, poderíamos acrescentar o de autores que tratam da leitura nas diferentes telas que povoam os mais diversos cenários do século XXI. No entanto, poderíamos nos distanciar do foco principal de nossa pesquisa que é a análise da formação dos leitores na educação básica a partir das concepções de leitura e de leitor reveladas pelas avaliações de larga escala. O que as alterações citadas nos permitem constatar é a ascensão da ideia – mesmo do caráter – de mercadoria dos livros. Nesse sentido, Cortina (2006, p. 54), ao estudar o leitor brasileiro contemporâneo, destaca a questão da cultura de massa, cujos primeiros sinais podemos perceber com a invenção de Gutemberg. Afirma o linguista: [...] investigar o best-seller significa adentrar no domínio da cultura de massa, compreendida como um determinado bem cultural que é produzido segundo as normas de produção industrial maciças e que, ao mesmo tempo, é propagandeado por diferentes técnicas de difusão também maciça. Isso significa dizer que os produtos culturais da sociedade industrial do século XX são destinados a uma massa social, a um vasto grupo de indivíduos, independentemente das distinções estruturais internas da sociedade, tais como, classe, família, profissão etc. A mercadoria cultural é ideologicamente marcada, porque reflete os valores de um determinado grupo social, mas, na medida em que adquire o estatuto de bem industrial que deve circular no mercado, pode expandir-se ideologicamente para outros contextos. 27 Cortina (2006, p. 55) aponta-nos para o cerne do caráter universalizante da mercadoria cultural: a diluição das diferenças e, portanto, a pressuposição da não existência, na verdade, de um valor individual, uma vez que quem dita os valores desejáveis ou indesejáveis, bons ou maus é a “sociedade tecnológica capitalista moderna”. O que vai prevalecer, por exemplo na escolha de um determinado tipo de livro é a uniformização subjacente à mercadoria cultural e a busca por aquilo com que o sujeito se identifica, ainda que essa identificação não seja ela própria livre das coerções ideológicas e culturais em que se encontra tal sujeito. Por isso também, é possível afirmar que a leitura é um fenômeno social, uma vez que ela é produto – e ao mesmo tempo (re)produtora – das dimensões cultural, econômica, histórica, política das diferentes sociedades em que é praticada. Resta-nos, agora, refletir um pouco sobre a história da leitura em nosso país e seu desenvolvimento no campo do ensino. 1.2 Breve história da leitura no Brasil e seu ensino Pensar a leitura no Brasil é pensar no período colonial de nossa história e, portanto, nas estruturas sociais, econômicas e culturais dessa época. Nesse sentido, o primeiro ponto a destacar é a grande circulação de obras religiosas desde o século XVI até meados do século XVIII na sociedade, por conta da ameaça que as obras literárias representavam aos que detinham o poder. Já mencionamos esse fato no tópico anterior, sob a perspectiva da propagação do cristianismo e da leitura de textos que se sabiam de memória, fato que ocorreu até por volta de 1750 (como citamos também). Acreditamos ser necessário destacar que os apontamentos sobre a leitura mencionados no item 1.1 ocorreram em um espaço que se pode chamar soberano, a Europa. Oposto a ele, o Brasil é o espaço do dominado. A partir da oposição dominante vs dominado, é possível depreender outras existentes em função dela: diferença cultural entre a elite e seus “empregados”, a distância geográfica e ideológica entre duas realidades bem diferentes, cuja consequência devastadora foi o temor por outros tipos de saberes que não os religiosos, como o científico e o literário, por exemplo. Buscá-los poderia significar sinônimo de perdição da alma. Curiosa e tristemente, em pleno século XXI, há ainda vestígios desse temor disseminados pelo país. Ao voltarmos nossos olhos para a leitura e seu desenvolvimento no espaço educacional no Brasil, constata-se o pouco estímulo à escolarização na colônia e a presença marcante dos jesuítas. Villalta (1997), afirma que somente após 1759, por exemplo, a Companhia de Jesus deixou de ser o principal agente educacional do país, cujas escolas estavam presentes por todo 28 território nacional, além daquelas dirigidas por beneditinos, carmelitas e franciscanos. A educação era voltada para formação de clérigos e leigos. Embora houvesse ensino superior nessas escolas, a dependência em relação a Portugal era evidente, principalmente pelo envio dos filhos da elite brasileira à Universidade de Coimbra. Isso dificultou a criação de universidades aqui. Mesmo com a vinda da família real portuguesa para o Brasil e as reformas com ela advindas, a preocupação maior era a formação para o conhecimento prático, ficando o ensino dividido entre a subordinação aos princípios da elite e as tentativas de progresso. Além disso, o apoio à iniciativa privada para cuidar da educação auxiliou na manutenção da ordem social. Villalta (1997, p. 352) afirma: Essa perspectiva de educação restrita à preservação da sobrevivência disseminou-se socialmente. Contudo, na sociedade colonial e, dentro dela, para os diferentes grupos sociais, tanto a educação para a sobrevivência como a instrução escolar possuíram significados variados, dependendo da própria inserção diferenciada dos grupos numa hierarquia social escravista e estamental. As perspectivas educacionais foram limitadas pela precariedade da existência da maioria dos indivíduos: a luta para subsistir, reduzindo-se quase literalmente ao sobreviver, impedia-os de alimentar maiores expectativas em relação à escola, que já lhes era inacessível pelos múltiplos obstáculos colocados pelo próprio Estado. Os limites de sua experiência no mundo, suas diminutas possibilidades de agir e apreender a realidade, confinavam-nos no desinteresse pelo saber. Numa realidade marcadamente rural e selvagem, poucos desfrutavam de uma posição social sólida que permitisse a ultrapassagem de tais limites. A valorização escolar no período colonial variou de acordo com os grupos sociais, com as regiões do Brasil e com a época. Vale lembrar que grande parte dessa educação ocorreu no meio privado, uma vez que havia escassez de escolas públicas ou semipúblicas. Esse tipo de educação começou a delinear novas perspectivas em relação ao status quo da colônia, alterando os modos de gerenciamento da busca pelo saber de modo que o sujeito passou a se perceber quase como um autodidata. Some-se a isso, o incentivo que a família real deu à imprensa e a consequente circulação de folhetins e de todo tipo de texto dado à leitura, além da ampliação da diversidade de livros nas bibliotecas do país, o que descentralizou a leitura de obras religiosas, feitas, muitas vezes, também por meio de contrabando. Seja como for, o fato é que isso abriu caminhos para um comércio maior de livros e, portanto, uma maior produção de obras, como aponta Villalta (1997, p. 368-369): Os genealogistas, por exemplo, dedicavam-se a achar e a fabricar linhagens, mapeando o lugar ocupado pelos indivíduos e famílias dos estratos superiores, criando com isso um saber útil para selar alianças consanguíneas, rupturas 29 matrimoniais e brigas de sucessão em torno de heranças. [...]. Outros escritores, como José Joaquim da Rocha, nas Minas de finais do Setecentos, convertiam os livros em veículos de bajulação das autoridades, visando o provimento em cargos públicos e o granjeio de prestígio. Para os poetas, os livros talvez fossem um artifício no galanteio de mulheres, como sugerem versos de Tomás Antônio Gonzaga: Dirceu alerta Marília da enfermidade de sua beleza, apresentando-se como o agente capaz de imortalizá-la, por meio da poesia, como Tasso e Petrarca haviam feito com suas musas. O fato é que a população mais humilde continuou sem acesso aos livros e a distribuição desses aos que podiam tê-los dava-se de modo desigual a partir de critérios que variavam em razão de diferentes interesses. É nesse sentido que Zilberman (s/d), por exemplo, ao discorrer sobre a leitura no Brasil, leva-nos a refletir que se trata, na verdade, da história das possibilidades de ler e para que uma sociedade seja leitora, é preciso que a educação seja considerada fator de ingresso à ascensão social e, consequentemente, que a escrita seja considerada um bem, quase uma propriedade capaz de explicar, portanto, a lucratividade dos negócios de impressão de textos. É apoiada nesse pensamento que ela chama nossa atenção para a estreita relação entre escrita e sociedade capitalista: “Dinheiro e escrita podem não ter nascido ao mesmo tempo, mas passaram a infância juntos, e sua expansão tem ocorrido em sociedades avançadas do ponto de vista econômico”. (ZILBERMAN, s/d, s/p). Acrescentaríamos, ainda, que dinheiro e possibilidades de /poder-saber/, no sentido de ter efetivo acesso à leitura e à escrita, sempre estiveram de mãos dadas. Para a autora, é a existência da sociedade capitalista que permite que o capital cultural se torne “igualmente importante para a acumulação de capital financeiro”. Sob esse aspecto, a leitura passa a ser vista não apenas como o produto da escola, mas principalmente como critério de ingresso do indivíduo na sociedade; com ela o mundo cultural passa a ser regido pela oposição homem alfabetizado vs homem analfabeto, ou respectivamente, homem culto vs homem ignorante. Zilberman afirma: Ideia, ideal e representação, a leitura se concretiza como uma prática, que se exerce individualmente, mas que resulta da concepção que a sociedade formula para as classes e as pessoas que a compõem. Eis por que sempre nos deparamos com políticas de leitura propostas por grupos, categorias profissionais, governos - reveladoras da dimensão assumida pelas representações. Políticas de leitura não deixam de valorizar a leitura como ideia; mas seu sucesso depende de a leitura ser igualmente prezada enquanto negócio. Um importante ramo da sociedade capitalista é constituído pela indústria de livros, para não se falar das fábricas dos maquinários para impressão, nem do hoje importante segmento dado pela produção de hardwares, softwares e periféricos que fazem a alegria das feiras de informática. Não ler é ficar de fora desse mundo, o que talvez signifique ficar 30 de fora do mundo. Uma história da leitura faz parte, portanto, da história da sociedade capitalista. Mas talvez seja, ela mesma, a história da sociedade capitalista, encarada desde o prisma econômico até o das representações. A busca por esse objeto-valor (leitura/escrita) distancia o homem da cultura oral e acentua ainda mais as divisões sociais. Do lado disfórico (o da ignorância), há o homem excluído da sociedade no sentido estereotipado daquele que “deve, mas não pode” ascender socialmente para ser ouvido; do lado eufórico (o do conhecimento), o homem letrado a quem o mundo capitalista permitiu o acesso à leitura e à escrita e, portanto, está inserido social e culturalmente nele. Mas entre a falta desse objeto-valor e a busca por ele (o que transforma o sujeito do /não-poder-ser/ em sujeito do /saber-ser/), há uma perda, em alguns casos, de identidade. Como nos coloca Cortina (2006), se na cultura de massa, a identificação passa por valores que não são construídos pelo indivíduo e sim impostos a ele, a lógica da exclusão citada impõe, na verdade, o que ele /deve-ser/. Balizado pela visão da classe dominante sobre o que seja cultura, o que seja leitura e leitor, esse sujeito constrói sua imagem-estereótipo. Da mesma maneira como são tecidos outros tantos estereótipos, por exemplo, em relação aos povos com uma cultura, essencialmente, de tradição oral como a dos povos indígenas. É por esse mesmo caminho também, somado aos resquícios positivistas de comprovação, que a oralidade não é valorizada e, menos ainda, vista como passível de ser também um instrumento de avaliação. Aproximando em nossos dias, e detendo o olhar no universo da escola – embora ele não seja o único espaço de formação de leitores – não se pode negar que é na escola que ela é aprendida de maneira sistematizada. Nesse espaço educacional, circulam os valores das classes dominantes – transmitidos por meio dos livros didáticos, paradidáticos, dos textos e das diferentes prescrições oficiais que constam nos currículos. Mas, por outro lado, há também os valores marginais – referentes àqueles que compõem a classe dos dominados, os que frequentam a escola e cujas crenças determinam a adesão ou não a esses valores ensinados. Geralmente, essa adesão se dá por identificação. Sob essa perspectiva, pode-se pensar em duas dimensões valorativas por meio das quais são possíveis a circulação e instauração de diferentes filosofias e concepções educacionais que se apresentam nas diversas organizações pedagógicas. Dito isso, é preciso lembrar que é nesse contexto que se dão as diferentes interações entre os atores que compõem o universo escolar: interações entre professores/ alunos e o conhecimento; entre professores e alunos e, finalmente entre eles e a própria cultura. O semioticista Eric Landowski (2016), ao abordar o ato de educar sob a perspectiva das interações entre sujeito-educador (educator), sujeito-educável (educandum) e objeto-educante 31 (educans), afirma que as relações educativas poderiam ser concebidas sob uma (i) perspectiva humanista – fundada em uma relação intersubjetiva de confiança e de persuasão, de avaliação e de troca que corresponderia à manipulação; (ii) como uma programação – concepção tradicional que, segundo ele, teria retornado com os recursos tecnológicos substitutos do educador que “permitem, hoje, sob a cor da ‘interatividade’ e da ‘autonomia’, programar, melhor que nunca, as fases de uma aprendizagem” (2016, p. 11); (iii) como uma prática participativa, correspondente ao regime do ajustamento, por meio das atividades lúdicas que visam facilitar o desenvolvimento de cada um, ocorrendo, segundo ele um intercâmbio nas posições de professor e aluno, chegando o conhecimento ensinado a se confundir com o processo interacional; (iv) como uma maiêutica que remeteria ao assentimento a uma ordem que transcenderia a verdade e, nesse sentido, se colocaria como uma busca infinda. A partir disso, Landowski (2016) propõe uma topografia em cuja base se colocam o Mestre e o Saber como instâncias respeitáveis, dotadas de autoridade legítima, como vemos a seguir: Figura 4: Topografia de atitudes, reações e estratégias possíveis dos educandos Fonte: LANDOWSKI, 2016, p. 13. O semioticista apresenta, ainda, os níveis: estratégico (definição de objetivos), tático (dos métodos) e epistemológico (uma filosofia implícita do conhecimento). Não nos deteremos na análise de todos eles, embora sejam enriquecedores. Gostaríamos, no entanto, de propor 32 outro olhar ao que foi apresentado por Landowski a partir da questão dos valores e, consequentemente, da adesão por identificação. Isso porque acreditamos ser possível pensar em tipos de sujeitos que se enquadram, na verdade, nos valores citados ainda que de modos gradativos. O que estamos tentando dizer é que há uma relativização no que se considera, nas palavras de Landowski (2016, p. 13), “queridinho da mestra” e “puxa-sacos”. Por exemplo: um sujeito-professor(a) com valores marginais consideraria como “queridinho” os impertinentes e, provavelmente, veria como aliados os insolentes. Isso significa que tudo depende do ponto de vista dos valores adotados. A parti daí, para os professores que assumem valores marginais, teríamos como atitudes valorizadas a dos impertinentes (aqueles a quem não convém a norma dominante e que possuem conhecimento de sua posição) e dos insolentes (aqueles que não se submetem às normas dominantes). Aliás, eles assim são denominados porque o ponto de vista que rege a lógica da linguagem é a da classe dominante. Já para os docentes que aderem aos valores dominantes, a deferência e a complacência representam atitudes positivas. A figura a seguir mostra nossa nova leitura. Figura 5: Topografia a partir dos valores Fonte: Elaboração própria a partir de Landowski, 2016, p. 13 Corrobora nossa visão o pensamento de Zilberman (s/d, s/p) sobre o analfabetismo, que pode ser aplicado também ao baixo nível de competência leitora no Brasil: O analfabeto que é problemático apresenta uma configuração a priori: ele é pobre, está fora da idade para ser alfabetizado (mesmo quando ainda se trata de crianças), nem sempre foi bem nutrido, habita o campo ou vem de lá, precisa trabalhar desde cedo e muito para sobreviver. Os métodos de 33 alfabetização parecem invadir um terreno já ocupado por outros problemas, provavelmente mais prementes, de modo que terão de decifrar o enigma, para não serem devorados. O enigma talvez se resuma a uma única pergunta: como lidar com as camadas populares? Alfabetizá-las é adequá-las à sociedade burguesa, proporcionando a essa última mão-de-obra qualificada? Ou é prepará-la para se defender no mundo moderno, industrializado, globalizado e complexo, de difícil enquadramento? Ou é conscientizá-la, para que entenda sua situação de exploração e miséria, levando-a a virar a mesa? Para a autora, o grande problema na educação refere-se a uma questão de sujeito e não de método. É nesse sentido que propomos uma releitura de Landowski, a partir da oposição citada anteriormente do homem alfabetizado (detentor do conhecimento e da cultura) vs homem analfabeto (ignorante, aculturado). Para responder às questões colocadas por Zilberman, o que estaria em jogo sob nossa perspectiva seria a escolha por um modo de interação – que, por sua vez, naturalmente, envolveria a seleção de objetivos, de estratégias e de métodos – em que outros valores além dos da classe dominante fossem considerados. Para que se efetive uma interação humanista, como denomina Landowski (2016, p. 11), pautada na confiança, ou a participativa no sentido do ajustamento, é preciso que se considere o universo discursivo e ideológico daqueles que aderem aos valores marginais. Isso implica, por exemplo, a utilização de textos próprios desses universos cujos temas dialoguem com outros da alta literatura, por exemplo. Essa seria uma maneira de se fazer a “ponte” entre o mundo letrado e o mundo a letrar. A perspectiva da programação é fechada no sentido de que passa por um processo de previsibilidade que admite apenas um tipo de valor. Com relação à interação como uma maiêutica, essa só se estabelece no momento em que a heterogeneidade discursiva tem lugar, ou seja, quando é possível a coexistência dos valores dominantes e dos marginais enquanto indutores de argumentos e contra-argumentos, enfim, enquanto desenvolvedores da criticidade. Desse modo, as atitudes virtuosas, as viciosas, as de respeito e as de desrespeito dependem do ponto de vista e do valor ao qual se adere por identificação. Sendo assim, enquanto não houver abertura no espaço escolar para que textos da cultura popular sejam inseridos, valorizados e comparados aos da alta literatura, cada vez mais se distanciará o leitor da leitura e da cultura e os baixos níveis no desenvolvimento da competência leitora continuarão. No entanto, o regime fechado da programação parece ganhar cada vez mais força e espaço por meio das avaliações de larga escala. É o que se pode comprovar com o exame internacional Programme for International Student Assessment (PISA), coordenado pela 34 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Aplicada a cada três anos, ela engloba as áreas de matemática, leitura e ciências, havendo a cada edição maior ênfase em cada uma dessas áreas. O objetivo desse programa é a produção de indicadores que possam contribuir para a discussão da qualidade educacional dos países participantes dessa avaliação, subsidiando políticas para melhoria da educação básica. Em cada país participante, há uma coordenação. O Brasil participa desse exame desde 2000 e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) é o responsável por ele. O que avaliações como essa apresentam, muito mais que índices sobre a competência leitora dos alunos, são as faltas no âmbito educacional brasileiro que vigoram desde o período colonial, como já foi dito. Ademais, mensurações como o PISA inspiraram a criação de avaliações de larga escala nacionais, cujas finalidades são enfatizar uma preocupação com a leitura e sua sistematização na escola. Dessa forma, no Brasil, temos o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), iniciado em 1990 para verificar e monitorar a qualidade da educação básica em todo país. Seguindo o mesmo formato do PISA, essa avaliação nacional também possui uma matriz de referência, uma escala de proficiência e questionários que são aplicados aos diretores das unidades escolares, aos professores e à comunidade escolar, como apresentaremos no capítulo 2 que aborda as questões relacionadas às avaliações de larga escala e à cultura do desempenho. 35 CAPÍTULO 2 A AVALIAÇÃO DE LARGA ESCALA E O SAEB No presente estágio do capitalismo, têm sido implementadas políticas públicas que, articuladas à globalização econômica, reconfiguram as políticas sociais. Este processo faz parte do ajuste estrutural, em que a criação do Estado mínimo exige reformas que repassem para o setor privado encargos e compromissos até então assumidos pelo setor público. Neste cenário se delineia uma nova arquitetura para o setor educacional, edificada a partir de critérios de eficiência e eficácia em consonância com os interesses do mercado, que alicerçam mudanças de várias ordens nos sistemas de ensino. (SANTOS, 2004, p. 1146). Na verdade, as formas de organizar a avaliação podem motivar ou desmotivar os alunos, podem constituir importantes alavancas para superar, podem ajudar os alunos a estudar e a compreender bem suas limitações e potencialidades ou, muito simplesmente, desinteressá-los. (FERNANDES, 2009, p.40). 2.1. A avaliação de larga escala Desde o final do século XX e início do século XXI até a atualidade, os estudos internacionais de avaliação realizados pela Internacional Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA) e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm ditado as concepções sobre avaliação, cujas bases estão pautadas em perspectivas para a qualificação dos estudantes para o mercado de trabalho e para o desenvolvimento econômico e social. É o caso das avaliações de larga escala – procedimentos amplos e extensivos, que abrangem todo um sistema de ensino. Elas são externas às instituições escolares e padronizadas, pois seguem uma matriz de referência e uma escala de proficiência. Uma de suas principais funções é a de orientar políticas públicas educacionais. De acordo com Alavarse, Bauer e Oliveria (2015, p. 1370) por meio dessas avaliações: “busca-se o poder de induzir o(s) outro(s) a fazer o que se deseja. Ademais, possibilita um discurso progressista, agora reconceituado, de possibilitar a autonomia da escola, a descentralização da gestão, a participação etc.”. Desse modo, elas manipulam os sistemas ou redes de ensino por meio da intimidação, uma vez que o valor em jogo é de ter ou não autonomia e estar ou não em um patamar minimamente aceitável pela sociedade no ranking dos que são considerados competentes em termos de leitura. Como esses sistemas aderem às crenças discursivizadas pelo manipulador, as avaliações de larga terminam por propiciar informação, diagnóstico, regulação, monitoramento e controle (dos indivíduos, sistemas de ensino e políticas públicas). Após, assumidos os valores do Destinador-manipulador, como consequência, temos outro tipo de 36 manipulação (aquela por desafio) aos alunos que deverão provar seu /saber-fazer/ no momento da performance na avaliação. A partir dos diferentes posicionamentos científicos em relação às avaliações de larga escala, destacados por Alavarse, Bauer e Oliveria (2015), elaboramos o quadro a seguir: Quadro 1: Pontos positivos e negativos das avaliações de larga escala PONTOS FAVORÁVEIS PONTOS NEGATIVOS 1-Maior comprometimento de professores e de escolas pelos resultados obtidos nas avaliações, por meio da responsabilização de professores e das instituições educacionais. 2- Implementação da cultura de avaliação dos serviços públicos e sua respectiva transparência. 3- Possibilidade de escolha dos estabelecimentos de ensino pelas famílias, pois acompanhariam seus resultados. 4- Possibilidade de comparações entre alunos, escolas, regiões e até países diferentes, principalmente nos contextos com matriz de referência e um currículo básico comum. 5- Correções mais objetivas. 6- Garantia do acompanhamento da evolução educacional, gerando parâmetros para a tomada de decisões nas políticas públicas que subsidiam programas educacionais específicos. 7- Responsabilização também dos estudantes por sua aprendizagem. 8- Possibilitam ajustes em currículos inadequados. 1- Imposição de uma agenda transnacional, aliada a um novo modelo de gestão e controle das redes de ensino. 2-Implementação de políticas de responsabilização e de prestação de contas (accountability); políticas de alto impacto (atribuição de bônus e/ou premiação a professores e escolas). 3- Interesses econômicos (controle da nação e por parte das empresas que aplicam os testes, aliadas à venda de materiais didáticos). 4- Implementação de um modelo de reforma educacional que aprofunda as desigualdades educacionais e sociais. 5- Negação das principais variáveis do processo educacional e que se voltam contra os professores, considerados nessas políticas como os únicos responsáveis pelos resultados escolares. 6- Aumento da possibilidade de empobrecimento curricular para garantia do ensino daquilo que é cobrado nas avaliações 7- Interferência na autonomia docente, cuja forma de ensino é, muitas vezes, alterada em função das avaliações. 8- Desvalorização dos processos de ensino e de aprendizagem, uma vez que se ensina e se aprende para a realização de testes. 9- Incentivo à competição entre alunos e entre escolas, nem sempre saudável. 10- Avaliam parcialmente tanto os currículos (e redes de ensino), quanto os alunos, uma vez que apenas algumas áreas do conhecimento são testadas. 11- Recusa ao atendimento de alunos de baixo rendimento escolar, bem como negociação na seleção de alunos que farão as avaliações (o que tornaria os dados nem sempre reais). Fonte: Elaboração própria De modo geral, o que se observa são procedimentos que revelam alterações nas relações sociais, cujos fundamentos voltam-se cada vez mais para os valores unilaterais, da ordem do absoluto. Como a escola é sempre um microcosmo da sociedade, essa dinâmica de interesses passou a circular de maneira mais sistematizada no espaço escolar, alterando nele as relações entre os atores dos processos de ensino e de aprendizagem, bem como deles com o conhecimento. 37 Uma visão utilitarista da educação, portanto, vem ganhando espaço na sociedade atual e traz como consequência o foco na eficiência interna dos sistemas, em relação aos custos educacionais, bem como a preocupação com a adequação ao mercado de trabalho – a eficácia externa. Isso vai, muitas vezes, na contramão de uma educação humanizadora. É nesse sentido que o Banco Mundial e órgãos como a Unicef e a Unesco financiam políticas públicas, currículos, projetos educacionais e, naturalmente, estão na base de influência das avaliações. O que vem à tona, então, são os diferentes tipos de interações: do sujeito com o conhecimento; do sujeito com a sociedade; do sujeito com o trabalho; do sujeito com outros sujeitos e do sujeito com a própria cultura. E, por meio das avaliações, o traço comum entre todas essas relações é o da programação de que nos fala o semioticista Eric Landowski (2024): A programação preside, em primeiro lugar, as atividades de tipo tecnológico que concernem as nossas relações com as coisas. Mas ela pode também subjazer a um modo de organização social e política de tipo tecnocrático, no que tange às relações entre as pessoas. Dado que esses dois aspectos podem muito bem seguir de mãos dadas, quanto melhor se conseguir conjugá-los, mais se aproximará de um regime de segurança perfeita, sem acidentes nem desvios de qualquer tipo”. (Landowski, 2014, p. 32 – grifos do autor). Desse modo, a avaliação educacional visaria verificar se o que estava programado, seja em termos do que esperar dos alunos, seja se o que constava nos currículos foi cumprido ou não, para então (re)programá-lo de modo a que tudo possa caminhar conforme o previsto. Como os regimes da programação e da manipulação estão interligados por meio de passagens graduais de um a outro, é possível afirmarmos também que o Destinador-Social manipula o sujeito-aluno pelo /dever-fazer/, “ameaçando” ainda que implicitamente o manipulado numa interação estratégica hierarquizada: o primeiro assume o papel do detentor do conhecimento. Ao fazê-lo, estabelece o segundo como “ignorante” que, por meio de uma provocação, de um desafio (a avaliação) deverá mostrar-se apto para ser promovido, por exemplo, à etapa seguinte de escolaridade. Isso significa que há um reconhecimento mútuo entre dois sujeitos em relação ao saber (um /saber-fazer/ e um /não saber-fazer/). No campo das avaliações educacionais, ainda, é possível afirmarmos que as tentativas de limitação dos riscos tecem um fio tênue entre os regimes da programação e da manipulação, ou seja, os currículos e sistemas educacionais prescrevem o que deve ser seguido por professores e alunos (conteúdos, habilidades e competências) em um esforço de previsibilidade. Há uma motivação consensual subjacente à execução de práticas instituídas tão recorrente que 38 as inúmeras tentativas de aprimoramento do sistema avaliativo terminaram majoritariamente por reiterar os mesmos padrões como poderemos observar mais adiante. 2.2 O Sistema de Avaliação da Educação Básica – Saeb No Brasil, o final da década de 1980 foi marcado por iniciativas para a criação de um sistema nacional de avaliação do ensino fundamental. Denominado Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), ele foi iniciado em 1990, mas apenas em 1994 foi instituído formalmente pela Portaria nº 1.795, de 27 de dezembro. Desde seu início, ele se configurou como uma avaliação com a finalidade de diagnosticar e de monitorar a qualidade da educação básica nas diferentes regiões do Brasil. Desse modo, ele é um sistema de avaliação realizado a cada dois anos, composto por testes cognitivos (respondidos pelos estudantes) e questionários (respondidos pela escola, pelos diretores, professores e alunos). Os testes cognitivos são elaborados a partir de uma matriz de referência e a correção deles está pautada na escala de proficiência de Língua Portuguesa referente aos anos escolares da educação básica avaliados (5º e 9º anos do ensino fundamental, na nomenclatura atual do ensino de nove anos, e 3º ano do ensino médio). Seus resultados, aliados às taxas de aprovação, reprovação e abandono – informados pelo Censo Escolar – compõem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Ao longo dos anos, passou por importantes reformulações metodológicas as quais são destacadas no quadro a seguir: Quadro 2: Objetivos gerais o Saeb Ciclo/Ano Objetivos Gerais Alterações metodológicas 1º Ciclo: 1990 Desenvolver e aprofundar a capacidade de avaliar as unidades gestoras do sistema educacional (MEC, secretarias de Estado e órgãos municipais); operacionalizar de modo regional o processo avaliativo, estabelecendo conexões e estimulando o desenvolvimento de infraestrutura para pesquisa e avaliação educacionais; propor estratégias de articulação dos resultados das pesquisas e avaliações. *Nessa primeira edição, era conhecido como Saep (Sistema de Avaliação do Ensino Público de 1º Grau). Apenas no segundo ciclo, foi chamado de Saeb. 1990 - 1993 - Alunos de 1ª e 3ª série: 30 testes semi-objetivos de Português e Matemática. - Alunos de 5ª e 7ª série: 30 testes objetivos de Português, Matemática e Ciências, uma prova de Redação. - Instrumental elaborado pela Fundação Carlos Chagas a partir do currículo real. -Correção: equipes de professores e especialistas das Secretarias Estaduais de Educação, seguindo grades de correção por série e disciplina, preparadas pela equipe central do projeto. A redação foi corrigida a partir de um guia denominado "Critérios de 2º Ciclo: 1993 Fornecer dados para formulação, reformulação e monitoramento das políticas educacionais com vistas à melhoria da 39 qualidade da educação ofertada; promover o desenvolvimento e aperfeiçoamento do Saeb; incrementar, descentralizar a capacidade técnico-metodológica na área de avaliação educacional. avaliação da produção textual (Redação)". 3º Ciclo: 1995 Fornecer subsídios para as políticas voltadas à melhoria da qualidade, equidade e eficiência da educação brasileira. - Avaliação apenas das séries conclusivas do ensino fundamental e nas disciplinas de Português (habilidade de leitura) e matemática. - Adoção da Teoria de Resposta ao Item (TRI). - Totalmente organizado pela Fundação Carlos Chagas e pela CESGRANRIO em convênio com o MEC. 4º ciclo: 1997 Fornecer e organizar dados sobre a qualidade, a equidade e a eficiência da educação, de modo a permitir o monitoramento das políticas públicas. - Acréscimo das áreas de Ciências para as 4ª e 8ª séries. - Associação da aprendizagem de conteúdos à aquisição de habilidades e competências cognitivas. - Inep resgata parte da formulação e controle sobre as definições de o que o Saeb avalia. - Apresentação de matrizes curriculares de referência do Saeb, feita pelo Inep, cuja área de Língua Portuguesa é dividida em: 1. Práticas de leitura de textos. 2. Análise e reflexão linguística 3. Práticas de produção de texto 6º Ciclo: 2001 Contribuir para a melhoria da qualidade da educação brasileira e para a universalização do acesso à escola e oferecer subsídios para formulação, reformulação e monitoramento das políticas públicas da educação básica, bem como uma visão clara e concreta dos resultados dos processos de ensino e aprendizagem à sociedade, consolidando uma cultura de avaliação nas redes e instituições de ensino. - Recorte na matriz de referência de Língua Portuguesa original (de 1997). - Opção por avaliar apenas habilidades de leitura, sendo a área de Língua Portuguesa dividida em: I-Procedimentos de leitura II- Implicações do suporte, do gênero e/ou do enunciador na compreensão do texto III- Relação entre textos IV- Coerência e coesão no processamento do texto V- Relações entre recursos expressivos e efeitos de sentido VI- Variação linguística Fonte: Elaboração própria. 40 Podemos observar uma alteração conceitual desde o início desse sistema até 2001, ano que marca a mudança de paradigma na avaliação de Língua Portuguesa e, consequentemente, as bases que nortearão o trabalho do professor generalista (1º ao 5º ano do ensino fundamental) e do professor especialista (6º ao 9º ano do ensino fundamental). Essa matriz, inclusive perpetua-se até o Saeb 2017 e, embora ela tenha sido reformulada após a publicação, em 2018, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), seus vestígios permanecem até hoje. No primeiro e no segundo ciclos do Saeb, há menos modalização pelo /dever-fazer/ e mais pelo /poder-ser/, pois ele se apresenta um enunciador menos centralizador, que busca estabelecer “conexões”, considerar os currículos de cada região, ou seja, apresenta-se como menos detentor dos valores de absoluto no que tange ao /saber-fazer/ e mais adepto aos valores participativos que instigam um /querer-ser/. As expressões “estabelecendo conexões”, “regionalizar operacionalização do processo”; “estímulos para o desenvolvimento”; “descentralizar” e “desconcentrar” corroboram nossa afirmação. A organização estrutural do Saeb também nos diz muito sobre os princípios desse Destinador-Social, pois de 1990 até 1993(primeira e segunda aplicações) foram avaliadas as áreas de Português, Matemática e Ciências, contando, ainda, com uma redação. Apesar de estruturadas pela Fundação Carlos Chagas, as equipes de elaboração e de correção das provas contaram com a participação de professores das redes oficiais de ensino. O documento intitulado “Saeb – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – objetivos, diretrizes, produtos e resultados” (MEC, 1994) apresenta um histórico detalhado do surgimento da proposta de avaliação e acompanhamento do ensino fundamental que migrava de uma pesquisa dos aspectos quantitativos para os qualitativos. Segundo o documento, a grande dificuldade encontrada pelo Ministério da Educação e do Desporto (à época ainda unidos em um único ministério) era não conseguir investigar e intervir em um segmento de ensino que estava sob o controle de Estados e Municípios e que apresentava significativas diferenças regionais, mas seguia a mesma estrutura padronizada nacionalmente. O documento afirma: Nesse contexto, ao tomarem vulto esses principais problemas, aos poucos tomou corpo uma decisão política de estruturar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Saeb surgiu como um projeto integrador e cooperativo entre a União e as Unidades da Federação na medida em que permite a realização de um diagnóstico nacional capaz de orientar as políticas do governo federal para o subsetor Educação Básica com as administrações estaduais e municipais dos sistemas escolares. Concebido 41 de forma sistêmica e celular, o Saeb permite a avaliação e a aplicação dos resultados das pesquisas e estudos realizados sob seu amparo, tanto no âmbito dos estados em que os dados são coletados quanto o intercâmbio, a análise comparativa e a consolidação das informações em nível nacional. Desde 1991, o Inep, agência executora deste projeto, integrando-se às ações do Ministério de Educação e do Desporto, vem estabelecendo novos mecanismos de integração com os centros decisórios e com os sistemas de formulação de políticas educacionais. Destacam-se, entre eles, a promoção de Pesquisa & Desenvolvimento necessários para apoiar o processo de institucionalização de um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Saeb e de um Centro de Referências sobre Experimentos e Inovações Educacionais - CRIE. Para tal, dispõe de um respeitável acervo de resultados de investigações, de um sistema de disseminação das informações geradas e de uma extensa rede de contatos e intercâmbio com pesquisadores, especialistas e técnicos das administrações educacionais. (MEC, 1994, s/p – grifos nossos). Embora, esse enunciador apresente-se com um viés “integrador e cooperativo”, em seus primórdios, ele é instituído com o intuito de migrar o poder de decisão sobre os currículos locais (ou regionais), implementando, na verdade, um sistema de ensino conduzido e avaliado pela instituição federal do Ministério da Educação (ou um órgão a ele subordinado). Para referendar uma imagem positiva (de um Destinador-Social integrador, cooperativo), o documento afirma ainda contar com a efetiva participação de professores das redes de ensino das diferentes regiões do país, conforme consta a seguir: Participaram da estruturação dessa programação professores da rede oficial que procuraram definir os elementos desenvolvidos em atividades de aula indispensáveis na sequência curricular. Desse modo, os diversos pontos identificados compuseram os programas mínimos (...). Os mesmos professores integraram uma equipe para a elaboração dos instrumentos de medida, os quais procuraram reproduzir o que fora efetivamente ministrado na escola de 1a Grau". As provas de Português e Matemática relativas à 1ª e 3ª séries são compostas por 30 itens semi-objetivos. As da 5a e 7a séries, referentes a Português, Matemática e Ciências, também co