0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Lessandra Marcelly Sousa da Silva DO IMPROVISO ÀS POSSIBILIDADES DE ENSINO: ESTUDO DE CASO DE UMA PROFESSORA DE MATEMÁTICA NO CONTEXTO DA INCLUSÃO DE ESTUDANTES CEGOS Rio Claro (SP) 2015 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 1 Lessandra Marcelly Sousa da Silva DO IMPROVISO ÀS POSSIBILIDADES DE ENSINO: ESTUDO DE CASO DE UMA PROFESSORA DE MATEMÁTICA NO CONTEXTO DA INCLUSÃO DE ESTUDANTES CEGOS Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática do Instituto de Geociência e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Rio Claro, como requisito para obtenção do título de Doutora em Educação matemática. Orientadora: Miriam Godoy Penteado Rio Claro (SP) 2015 Marcelly, Lessandra Do improviso às possibilidades de ensino: estudo de caso de uma professora de matemática no contexto da inclusão de estudantes cegos / Lessandra Marcelly. - Rio Claro, 2015 194 f. : il., figs., tabs., fots. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Miriam Godoy Penteado 1. Matemática – Estudo e ensino. 2. Educação inclusiva. 3. Educação matemática. 4. Materiais manipuláveis. 5. Formação continuada. 6. Desenho universal. I. Título. 510.07 M313d Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP 2 Lessandra Marcelly Sousa da Silva DO IMPROVISO ÀS POSSIBILIDADES DE ENSINO: ESTUDO DE CASO DE UMA PROFESSORA DE MATEMÁTICA NO CONTEXTO DA INCLUSÃO DE ESTUDANTES CEGOS Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática do Instituto de Geociência e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Rio Claro, como requisito para obtenção do título de Doutora em Educação matemática. Comissão Examinadora Prof(a). Dr(a). Miriam Godoy Penteado (Orientadora) IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Prof(a). Dr(a). Ivete Maria Baraldi FC/UNESP/Bauru (SP) Prof(a). Dr(a). Roger Miarka IGCE/UNESP/Rio Claro (SP) Prof(a). Dr(a). Sergio Apparecido Lorenzato FE/UNICAMP/Campinas (SP) Prof(a). Dr(a). Solange Hassan Ahmad Ali Fernandes UNIBAN/São Paulo (SP) Rio Claro, SP, 13 de outubro de 2015. Resultado: APROVADO 3 Dedico este trabalho ao meu irmão, Leandro Pastor Sousa da Silva, in memoriam, que sempre me apoiou em tudo e incentivou em todos os momentos. Te amo, mano, sempre irei te amar. 4 Agradecimentos Primeiramente a Deus, pela esperança que alimentou em mim, segurou minhas mãos e ombros, dando-me força nos momentos em que passei maior dificuldade. Afirmando para ter fé, que não seria fácil, mas que iria conseguir realizar este trabalho. A ti dedico esta pesquisa. A minha mãe, Leudiana Vieira, e os seus humildes joelhos, firmes em oração, para que Deus não me deixasse desistir. A minha família, Andres (pai), Leandro (in memoriam), Lizandra, Leonardo, Dimitria, Matheus e Domitila. Pela paciência com as minhas inevitáveis ausências. Amo vocês. À professora Miriam, minha orientadora, minha amiga, pelo apoio e estímulo para a realização deste trabalho. Obrigada por ser esta pessoa tão incrível e humana. Ter sido sua orientanda no mestrado e no doutorado foi um privilégio esplêndido. Aos professores e Ivete Baraldi, Roger Miarka, Sergio Lorenzato e Solange Fernandes, que participaram da Banca de Qualificação, pelas contribuições. A riqueza de suas experiências me fez refletir sobre a questão da inclusão escolar através de diferentes olhares. Agradeço também Sami Bartolomeu, meu médico, pelos cuidados que teve comigo. Nunca esquecerei o quanto se tornou importante nesta trajetória. Ao amigo Eduardo Henrique Cruz, sempre presente nos momentos mais difíceis. Obrigada por tudo, e por ter cuidado do nosso filhotinho Petrus. Às importantes contribuições que recebi dos amigos Renato, Guilherme, Amanda, Luciano, Natalia e Raquel. Às experiências que obtive através das discussões no grupo Épura. A minha irmã acadêmica Amanda Moura, por tudo. Pela amizade, carinho, cuidados, sempre presente e ajudando. À turma do cortiço. Cada almoço, cada jantar, cada churrasco, cada conversa foi importante para meu crescimento como pessoa e como pesquisadora. Em especial: Regina, Renato, Guilherme, João Paulo, João Severino, Sergio e Raquel. 5 Aos amigos especiais Rosania Moreira, Moacy, Sabrina, Marcela, Jéssica, Fabiana, Sofia, Jocimar, Ivan, André Barbosa, André Luiz, Luis Fernando e Adriane Menezes, que, mesmo ausentes, mantive sempre em meu pensamento. À Dani Florido, pelo apoio, pelas palavras, sempre pronta para ajudar, não importando o momento. A todos os professores da Unesp de Rio Claro, que contribuíram, direta ou indiretamente, para meu crescimento enquanto educadora matemática. A todos os colegas que fiz na Unesp de Rio Claro, não citarei os nomes por serem muitos e para não esquecer ninguém, porém, em especial à Inajara, minha queridíssima, sempre pronta para ajudar. À Secretaria de Educação de São Paulo, pelo apoio financeiro, em especial às supervisoras Luciana e Tereza. 6 RESUMO Resumo: Este texto apresenta uma pesquisa de natureza qualitativa cujo objetivo foi explorar possibilidades de ensinar matemática para todos, inclusive os estudantes cegos. De forma mais específica, investigar aspectos que se mostram relevantes para se pensar a prática docente no contexto da educação inclusiva, conforme defendida pelas políticas públicas. Para isso, foi realizado um estudo de caso da própria prática da pesquisadora, que atuou como professora de matemática por dez anos na rede pública de ensino. O caso é composto pela apresentação da professora e por relatos de três momentos de sua trajetória. No momento inicial, os relatos são sobre seu primeiro contato com um estudante cego no contexto da inclusão; no segundo momento, os relatos são sobre suas experiências numa instituição para pessoas com deficiência, sendo a apresentação do caso encerrada com relatos de sua prática nos últimos anos, após alguns anos de atuação em escolas inclusivas. Deste caso foram destacados aspectos que se mostraram relevantes para a prática docente no contexto da inclusão. São eles: a construção e o uso de materiais manipuláveis para o ensino de matemática; a formação do professor e as condições de trabalho na escola regular. Esses temas foram discutidos a partir da legislação brasileira para a educação inclusiva, bem como literatura sobre o uso educacional de materiais manipuláveis, desenho universal, tecnologia assistiva e sobre formação de professores. Os resultados ressaltam a importância do uso de material manipulável para a educação matemática, questionando a ideia de adaptação de currículo e de material. A base para essa defesa é a construção a partir da perspectiva do desenho universal. Palavras-chaves: Matemática - Estudo e ensino. Educação inclusiva. Educação matemática. Materiais manipuláveis. Formação continuada. Desenho universal. 7 ABSTRACT Abstract: This qualitative research aims to explore possibilities of teaching mathematics for all, including blind students. Specifically, aims to investigate aspects proved as relevant to think about the teaching practice, in the context of inclusive education as advocated by Brazilian public policies. Therefore, a case study of the researcher own practice were conducted. The researcher worked as a mathematics teacher for ten years in the Brazilian public school system, in Sao Paulo state. The case consists in a presentation of the teacher, reporting three moments in her career. Firstly, stories about her first contact with a blind student in the context of inclusion; on the second moment, narratives about her experiences in an institution for people with disabilities, and the presentation of the case is ended with narratives of her recently own practice, after a few years of experience in inclusive schools. In this case study were highlighted aspects that had been proved as relevant to the teaching and learning practice in the context of inclusion, as follows: the construction and the use of manipulative materials for teaching and learning math; teachers training and working conditions in regular schools. These issues were discussed from the Brazilian legislation for inclusive education perspective, as well as literature on the educational use of manipulative material, universal design, assistive technology and teacher training. The results underscore the importance of using manipulative materials for teaching and learning mathematics, questioning the idea of adaptation, both didactical materials as curricula. The basis for this defense is to build didactical materials from the perspective of the universal design. Keywords: Inclusive education. Mathematics education. Manipulative material. Continuing education. Special education. Universal design. 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Instrumentos para a produção dos dados. ................................................. 22 Figura 2: Dados da pesquisa..................................................................................... 24 Figura 3: Sentenças pintadas. ................................................................................... 25 Figura 4: Setenças recortadas. ................................................................................. 25 Figura 5: Cubo desenhado. ....................................................................................... 49 Figura 6: Material manipulável (cubo). ...................................................................... 50 Figura 7: Depoimentos dos alunos. ........................................................................... 59 Figura 8: HQA - As Histórias em Quadrinhos Adaptadas. ......................................... 63 Figura 9: Sistema ortogonal cartesiano em braille e relevo. ...................................... 64 Figura 10: Pontos colineares e não colineares em relevo. ........................................ 65 Figura 11: Marreta de plástico. .................................................................................. 65 Figura 12: Representação de ângulo e de retas em relevo. ...................................... 66 Figura 13: Anotações em braille – nota 1. ................................................................. 67 Figura 14: Anotações em braille – nota 2. ................................................................. 67 Figura 15: Triângulo em EVA. ................................................................................... 68 Figura 16: Régua comum com con-tact transparente. .............................................. 68 Figura 17: Transferidor com o material EVA. ............................................................ 69 Figura 18: Réguas com pontos em relevo. ................................................................ 69 Figura 19: Transferidor com pontos em relevo. ......................................................... 70 Figura 20: Figuras com alfinetes e elástico. .............................................................. 70 Figura 21: Ensinando índice. ..................................................................................... 79 Figura 22: Aula expositiva de função do primeiro grau. ............................................ 86 Figura 23: Aula expositiva de função quadrática. ...................................................... 93 Figura 24: Atividades com feijão e papel-alumínio. ................................................... 98 Figura 25: 5 feijões positivos e 6 feijões negativos. .................................................. 99 Figura 26: 14 feijões positivos e 13 feijões negativos. ............................................ 100 Figura 27: Atividades com feijões. ........................................................................... 100 Figura 28: Reglete e punção. .................................................................................. 102 Figura 29: Soroban adaptado. ................................................................................. 102 Figura 30: Xadrez adaptados e máquina braille. ..................................................... 102 Figura 31: Materiais em EVA. .................................................................................. 103 9 Figura 32: Materiais em termoform. ........................................................................ 103 Figura 33: Materiais em termoform encadernado. ................................................... 104 Figura 34: Máquina de fazer materiais em termoform. ............................................ 104 Figura 35: Borracha e tela para desenho. ............................................................... 105 Figura 36: Figuras em relevo. .................................................................................. 105 Figura 37: Tangran de borracha e blocos lógicos. .................................................. 105 Figura 38: Cubaritmo. .............................................................................................. 106 Figura 39: Multiplano. .............................................................................................. 106 Figura 40: Multiplano em modelo termoformado. .................................................... 107 Figura 41: Kit multiplano. ......................................................................................... 107 Figura 42: Geoplano. ............................................................................................... 107 Figura 43: Sólidos geométricos. .............................................................................. 108 Figura 44: Lupa de aumento. .................................................................................. 108 Figura 45: Régua de aumento ................................................................................. 108 Figura 46: Atividades com material dourado. .......................................................... 109 Figura 47: Figuras feitas com papel sulfite A4. ........................................................ 110 Figura 48: Figuras feitas com cartolinas. ................................................................. 110 Figura 49: Figuras feitas com papel para dobradura. .............................................. 110 Figura 50: Figuras feitas com papel espelho. .......................................................... 110 Figura 51: Quebra-cabeça com relevo – teorema de Pitágoras. ............................. 111 Figura 52: Batalha naval para números complexos. ............................................... 111 Figura 53: Jogo de possibilidades. .......................................................................... 112 Figura 54: Materiais feitos com palito de madeira e bola de isopor - triedos. .......... 112 Figura 55: Materiais feitos com palitos de madeira e elástico. ................................ 113 Figura 56: Gráficos feitos com cobre e solda. ......................................................... 113 Figura 57: Geoplano feitos com pregos. ................................................................. 114 Figura 58: Conteúdo de trigonometria. .................................................................... 117 Figura 59: Material manipulável - círculo trigonométrico. ........................................ 117 Figura 60: Determinando o seno de um ângulo – simulação I. ............................... 120 Figura 61: Determinando o cosseno de um ângulo. ................................................ 120 Figura 62: Determinando o seno de um ângulo – simulação II. .............................. 121 Figura 63: Ilustração do movimento do raio (ferro). ................................................. 123 Figura 64: Determinando o sinal da tangente de um ângulo – simulação I. ............ 124 10 Figura 65: Determinando do sinal do seno de um ângulo. ...................................... 125 Figura 66: Materiais manipuláveis feito pelos alunos. ............................................. 125 Figura 67: Determinando do sinal da tangente de um ângulo – simulação II. ......... 126 Figura 68: Material manipulável - geoplano............................................................. 127 Figura 69: Beta contruindo figuras no geoplano – Simulação I. .............................. 129 Figura 70: Beta contruindo figuras no geoplano - Simulação II. .............................. 130 Figura 71: Beta contruindo figuras no geoplano – Simulação III. ............................ 131 Figura 72: Beta contruindo figuras no geoplano – Simulação IV. ............................ 132 Figura 73: Beta calculando área – simulação I........................................................ 133 Figura 74: Beta calculando área – simulação II....................................................... 134 Figura 75: Beta calculando área – simulação III. ..................................................... 134 Figura 76: Beta calculando área – simulação IV. .................................................... 135 Figura 77: Beta calculando área – Simulação V. ..................................................... 135 Figura 78: Analisando o geoplano. .......................................................................... 136 Figura 79: Construção de sólidos geométricos – simulação I. ................................ 136 Figura 80: Construção de sólidos geométricos – simulação II. ............................... 137 Figura 81: Sólidos geométricos. .............................................................................. 137 Figura 82: Construção de figuras com palito de madeira e bola de isopor. ............. 137 Figura 83: Figuras com palito de madeira, bola de isopor e elástico. ...................... 138 Figura 84: Ilustração de material manipulável - cubo. ............................................. 138 Figura 85: Descobrindo as faces de um cubo. ........................................................ 140 Figura 86: Descobrindo vertices, arestas e faces – pirâmide. ................................. 141 Figura 87: Figuras geométricas utilizadas com Beta. .............................................. 141 Figura 88: Célula braille. ......................................................................................... 142 Figura 89: Ilustração do uso da reglete e punção. .................................................. 143 Figura 90: Ilustração do uso da máquina braille. ..................................................... 143 Figura 91: Soroban adaptado. ................................................................................. 144 Figura 92: Máquina braille. ...................................................................................... 146 Figura 93: Código braille – simulação I. .................................................................. 147 Figura 94: Código braille – simulação II. ................................................................. 148 Figura 95: Código braille – simulação III ................................................................. 148 Figura 96: Explicando o soroban - operações básicas. ........................................... 150 Figura 97: Ensinando a utilizar o soroban - simulação I. ......................................... 151 11 Figura 98: Ensinando a utilizar o soroban – simulação II. ....................................... 151 Figura 99: Ensinando a utilizar o soroban – simulação III. ...................................... 152 Figura 100: Soroban e código braille – simulação I. ................................................ 152 Figura 101: Soroban e código braille – simulação II. ............................................... 153 Figura 102: Soroban e código braille – simulação III. .............................................. 153 Figura 103: Soroban e código braille – simulação IV. ............................................. 154 Figura 104: Soroban - operações básicas - simulação I. ........................................ 155 Figura 105: Soroban - operações básicas - simulação II. ....................................... 156 Figura 106: Soroban - operações básicas - simulação III. ...................................... 156 Figura 107: Marreta de plástico. .............................................................................. 159 Figura 109: Faixa de sequência geometria em EVA. .............................................. 162 12 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Momentos das sentenças .......................................................................... 26 13 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...............................................................................................................................15 2 CAMINHOS DA PESQUISA .............................................................................................................20 2.1 A CONSTITUIÇÃO DOS DADOS .......................................................................................................... 22 2.2 ANÁLISE DOS DADOS ...................................................................................................................... 24 3 INCLUSÃO ESCOLAR E FORMAÇÃO DE PROFESSORES ...................................................................27 3.1 LEGISLAÇÃO .................................................................................................................................. 27 3.2 ESCOLA INCLUSIVA E FORMAÇÃO DO PROFESSOR ................................................................................. 31 4 MATERIAIS MANIPULÁVEIS PARA O ENSINO DE MATEMÁTICA ....................................................41 4.1 OS MATERIAIS MANIPULÁVEIS PARA O ENSINO E A APRENDIZAGEM ........................................................ 41 4.2 MATERIAIS MANIPULÁVEIS PARA ESTUDANTES CEGOS .......................................................................... 45 5 QUEM ME FARÁ VER COM AS MÃOS? ..........................................................................................51 5.1 DESENHO UNIVERSAL ..................................................................................................................... 51 5.2 TECNOLOGIA ASSISTIVA ................................................................................................................... 54 6 PERCEBER, EXPLORAR POSSIBILIDADES E ENFRENTAR OS DESAFIOS DE SER PROFESSOR .............58 6.1 APRESENTAÇÃO DA PROFESSORA ...................................................................................................... 58 6.1.1 Quem é a Lessandra-professora? ........................................................................................ 58 6.1.2 O que aconteceu no primeiro contato com um estudante cego? ...................................... 61 6.1.3 Como aconteceram as primeiras construções de materiais manipuláveis? ...................... 63 6.2 OS RELATOS ................................................................................................................................. 70 6.2.1 Percebendo os desafios da inclusão.................................................................................... 70 6.2.1.1 Relatos de trechos de aulas sobre sequências lógicas e sequências numéricas ............................73 6.2.1.2 Relatos de trechos de aulas sobre conjuntos numéricos ..............................................................79 6.2.1.3 Relatos de trechos de aulas sobre função do primeiro grau .........................................................86 6.2.1.4 Relatos de trechos de aulas sobre função quadrática ...................................................................89 6.2.2 Explorando possibilidades ................................................................................................... 95 6.2.2.1 Trechos de atividades envolvendo operações com inteiros ...........................................................96 6.2.3 Enfrentando os desafios da inclusão ................................................................................ 114 6.2.3.1 Relatos de trechos de aulas envolvendo trigonometria ..............................................................117 6.2.3.2 Relatos de trechos de aulas que envolveu geometria plana. ......................................................127 6.2.3.3 Relatos de trechos de aulas envolvendo geometria espacial ......................................................136 6.2.3.4 Relatos de trechos de uma aula envolvendo operações aritméticas ...........................................142 7 ASPECTOS RELEVANTES PARA SE PENSAR A PRÁTICA DOCENTE NO CONTEXTO DA INCLUSÃO .. 158 7.1 MATERIAIS MANIPULÁVEIS ............................................................................................................ 158 14 7.2 FORMAÇÃO DOCENTE ................................................................................................................... 163 7.3 CONDIÇÕES DE TRABALHO ............................................................................................................. 170 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 180 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 184 15 1 INTRODUÇÃO “Não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda a possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes.” (FREIRE, 2000, p. 17). A pesquisa aqui apresentada deu seus primeiros passos nos questionamentos e reflexões que me foram surgindo, enquanto professora de matemática de escolas públicas que atendem alunos com deficiência. Por não ter recebido nenhum preparo durante o meu curso de licenciatura em matemática sobre como lidar com a inclusão de alunos com deficiência em sala de aula, passei por diversas fases na trajetória docente, buscando maneiras e recursos para lecionar matemática para todos os estudantes que estavam matriculados. Por ser um fato novo, desenvolvi uma atitude diária de registrar em cadernos situações que me chamavam a atenção sobre os alunos que tinham algum tipo de deficiência. Muitos avanços e evoluções destes alunos me surpreendiam, mas, em especial, foram as anotações das aulas com alunos cegos que mais produziam inquietações. Minha intenção era retomar essas notas numa situação futura, para refletir sobre minha prática e aperfeiçoá-la. Escrevia de maneira que recordasse das falas dos alunos e também das minhas falas daquele momento, anotava como fazia as avaliações e como se davam a evolução dos alunos. Depois, fora do contexto de sala de aula, questionava-me se estava agindo corretamente com todos os estudantes. Após alguns anos nessa prática, percebi que havia a necessidade de buscar, na literatura da educação especial, educação matemática e das leis que regem a educação deste país, a luz que faltava para iluminar minha prática docente. Fiz um estudo de pesquisas sobre inclusão e educação matemática para cegos, objetivando encontrar os materiais ou quaisquer recursos que existissem para ajudar os professores no ensino da matemática para estudantes que não podem enxergar. Foi 16 a partir desta imersão na literatura que comecei a formular perguntas sobre o que poderia existir para auxiliar no ensino do conteúdo programático para a escola. Encontrei alguns recursos materiais para representar ideias matemáticas e percebi que não estava sozinha naquele abismo em que me encontrava. Outros professores e pesquisadores estavam buscando por respostas para o ensino da matemática para cegos. Foi através desses estudos sobre o contexto da inclusão de pessoas cegas na escola que notei o quanto ainda havia por se fazer nesta área. Diante disso, realizei uma pesquisa em nível de mestrado que teve como objetivo descrever e discutir o processo de elaboração de uma História em Quadrinhos Adaptada (HQ-A), como recurso para o ensino da matemática para alunos cegos e videntes. Para dar acesso aos estudantes cegos, utilizei uma máquina de escrever braille, uma carretilha de costura e alguns recursos em relevo. Para esta construção, obtive ajuda de um jovem cego e um vidente1. Os anos se passaram e continuei lecionando em sala de aula no contexto da inclusão. Porém, de uma forma diferenciada, utilizava materiais manipuláveis para o ensino da minha disciplina e passei a acreditar não mais em adaptações, mas, sim, em ampliações de materiais que pudessem ser usados por todos os estudantes. Fazia pesquisas sobre recursos táteis e realizava estudos sobre inclusão, por estar comprometida com as questões da educação inclusiva. Por participar como membro de um grupo de pesquisa sobre educação matemática inclusiva – Épura, durante as reuniões e discussões com os outros membros sobre a realidade em sala de aula para os professores atuantes, percebi o quanto a minha prática docente havia mudado em relação aos anos anteriores. Notei que, quando lecionava no início de minha carreira, tinha uma postura completamente diferente da postura ali defendida naquelas discussões. Percebi então que isto poderia tornar-se uma possibilidade de investigação. A pesquisa aqui apresentada foi de natureza qualitativa, um estudo de caso da minha própria prática como professora de matemática no contexto da inclusão por uma década. O objetivo foi explorar possibilidades de ensinar matemática para todos, inclusive os estudantes cegos. De forma mais específica, investigar aspectos que se mostram relevantes para se pensar a prática docente no contexto da educação inclusiva. 1 Veja Marcelly (2010). 17 Deste modo, a pesquisa foi norteada pela pergunta: Que aspectos se mostram relevantes para pensar a prática docente no contexto da inclusão na trajetória de uma professora que se torna pesquisadora da própria prática? Voltei-me para a literatura e centralizei meus estudos na Legislação e políticas públicas para uma escola inclusiva, como, por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, as Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica, a Política Nacional de Educação Especial, a Constituição Federal de 1988, os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais, entre outras Leis, Emendas, Decretos e Resoluções; na Formação de Professores na perspectiva da inclusão, como as obras de Mantoan (2001, 2008), Rodrigues et al. (2014), Oliveira e Profeta (2008), Baleotti e Del-Masso (2008), Manzini (2013), Castro et al. (2012), Galvão Filho e Miranda (2012), Bersch (2013), Mendes e Malheiros (2012), Capellini e Rodrigues (2009) e Santos e Neme (2014). Sobre a importância dos materiais didáticos para o ensino, obras como as de Lorenzato (2010, 2012), Fossa (2012), Mendes (2009), Passos (2012); sobre educação matemática inclusiva, as obras de Healy (2007), Fernandes (2004, 2008), Segadas et al. (2007), Realy (2004), Lirio (2006), entre outros; sobre Desenho Universal, apoiei-me nos estudos de Carletto e Cambiaghi (2008), García e Galvão Filho (2012), Decreto 5.296/2004; e sobre a Tecnologia Assistiva (TA), nos estudos de Bersch (2008), Bersch (2009, 2013) e Galvão Filho (2004), entre outros. As expectativas e intenções da pesquisa são de contribuir com as discussões na área da educação matemática e da inclusão e formação de professores que atendam a diversidade dos estudantes da escola regular. A tese é constituída desta introdução como primeiro capítulo, mais sete capítulos, sendo o oitavo as considerações finais. O Capítulo 2 é constituído pela metodologia. Neste texto, apresento como foram produzidos e organizados os dados para responder à pergunta da pesquisa. Como também quais procedimentos foram tomados para fazer a análise desses dados. O Capítulo 3 traz um estudo sobre a Legislação no contexto da inclusão e da formação do professor. A importância deste texto para a tese é mostrar que as políticas públicas estão fazendo emendas, resoluções e decretos como estratégias 18 de adaptações nas leis já existentes, porém, não se tem colocado em prática no contexto da escola regular tais exigências, e que a formação continuada para o professor da escola regular ainda é falha no sistema de ensino. No quarto capítulo, apresento um levantamento de literatura sobre a importância dos materiais didáticos para o ensino, e autores que fizeram pesquisas na área da educação matemática inclusiva que contribuíram para nos dar um embasamento teórico do quanto é possível ensinar matemática para alunos cegos através de materiais concretos. A importância deste capítulo para a tese é a de lançar mão de autores que defendem a ideia da utilização de materiais que possam ser manipulados no ensino da matemática, mas trazendo como novidade, para o ensino, a construção de materiais manipuláveis, desde o processo de criação, com recursos de acessibilidade para todos, sem a necessidade de adaptação. O Capítulo 5 será reservado para esclarecer ao leitor sobre a perspectiva utilizada no estudo analisado – Desenho Universal – e sobre a Tecnologia Assistiva, que possui os recursos de acessibilidade que podem ser úteis aos materiais para todos. A importância deste capítulo para a tese é a da compreensão de como podemos pensar na construção de materiais manipuláveis almejando uma ampliação destes materiais para o contexto da escola inclusiva, sem a necessidade de adaptação para os cegos. No Capítulo 6 apresento me como professora e descrevo três momentos de minha trajetória, a saber: 1 - o primeiro contato com um estudante cego no contexto da inclusão; 2 - as experiências numa instituição que atende pessoas com deficiência; e 3 - após alguns anos de prática no contexto da inclusão utilizando materiais manipuláveis. Cada um desses momentos foram constituídos por relatos de situações de ensino. No Capítulo 7 retomo a questão de pesquisa e discuto os aspectos que foram encontrados nos dados como relevantes para se pensar a prática docente no contexto da inclusão através do estudo de caso realizado. Nesta oportunidade, utilizo a Legislação e a literatura para discussão. No oitavo capítulo, por serem as considerações finais do texto, comento sobre como foi ser protagonista – fazendo dois papéis – numa pesquisa legitimada através da minha própria prática docente. Como também retomo os aspectos que se mostraram relevantes na investigação, mas dando ênfase aos materiais 19 manipuláveis como possibilidades de trazer para o ensino da matemática uma nova proposta de incluir a todos, de maneira que, ao utilizá-los de forma ampliada, como foi defendido, não existirão alunos deficientes, pois estes materiais não serão construídos para excluir. 20 2 CAMINHOS DA PESQUISA “A prática de pensar a prática e de estudá-la nos leva à percepção anterior ou ao conhecimento do conhecimento anterior que, de modo geral, envolve um novo conhecimento” (FREIRE, 1993, p. 113). Como já mencionado no capítulo anterior, o objetivo principal de minha pesquisa é investigar aspectos que se mostravam relevantes para se pensar a prática docente no contexto da educação inclusiva. Isso será feito através de um estudo de caso da minha própria prática como professora de matemática em dez anos lecionando neste contexto. A abordagem de pesquisa utilizada nesta investigação é qualitativa. Ludke e André (1986) afirmam que, nessa abordagem, o ambiente natural é a principal fonte de dados e o pesquisador o principal instrumento da pesquisa. Isso se manifesta em meu trabalho, visto que, enquanto pesquisadora, tive contato direto e longo com a situação investigada. Como pesquisadora, juntei os registros de anos de prática enquanto professora de matemática em escolas inclusivas e transformei estes registros em um conjunto de relatos de ensino quando havia alunos cegos presentes. Isso foi possível porque, durante a minha prática docente, sempre fazia anotações das situações que ocorriam em salas de aulas que tinham alunos com deficiência. Estas anotações eram armazenadas em um acervo pessoal. Quando resolvi olhar para estes registros, observei que algo tinha mudado nestas anotações, algumas tinham presença de materiais manipuláveis e outras não. A priori, eu não tinha intenções de utilizar essas anotações como fonte de dados de pesquisa. Contudo, após anos de prática e ter ingressado na pós- graduação, percebi a necessidade de uma reflexão mais sistematizada dessa prática. De acordo com Ludke e Andre (1986), é uma vantagem investigar os próprios registros, pois eles propiciam reflexões que seriam menos acessíveis se realizadas por um observador externo. As autoras afirmam que isso é um dos focos do pesquisador: retratar as perspectivas do participante na pesquisa qualitativa. 21 Portanto, por se tratar de um caso isolado, de uma professora na área de educação, e relacionado com questões que ocorrem na escola, vou apoiar-me em Ludke e Andre (1986) e assumir que o que estou fazendo é um estudo de caso. Para as autoras, “o estudo de caso é o estudo de um caso seja ele simples e específico, como de uma professora” (p. 17). Assim sendo, para elas pode até ser semelhante a outros casos, mas é considerado inédito por ter um interesse próprio do pesquisador e, portanto, uma característica singular. Baseada nos estudos de Ludke e Andre (1986), por ser um estudo de caso, a pesquisa torna-se de generalização naturalística. Sendo assim, permite ao leitor, um professor de escola pública, por exemplo, associar suas experiências com a investigação aqui realizada. Porém, apesar dessa permissão natural de semelhança, não queremos afirmar que o estudo aqui apresentado tem a função de desmerecer qualquer outra posição profissional contrária à da prática aqui investigada e nem dizer que esse conhecimento experiencial investigado não seja aberto aos usuários do estudo a tirarem suas conclusões sobre aspectos contraditórios da mesma. O pressuposto que fundamenta essa orientação é o de que a realidade pode se vista sob diferentes perspectivas, não havendo uma única que seja a mais verdadeira. Assim, são dados vários elementos para que o leitor possa chegar às suas próprias conclusões e decisões, além, evidentemente, das conclusões do próprio investigador. (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 20). O contexto que me levou a pensar na pergunta norteadora foi quando olhei para os antigos registros e percebi que havia uma diferença em relação aos registros mais recentes. Ou seja, entre as antigas práticas e as práticas mais atuais em sala de aula com alunos com deficiência, e optei por trabalhar com estudantes cegos, visto que possuía um número maior de estudantes com esta deficiência do que com outras, e era a que mais me instigava. O objetivo da pesquisa foi explorar possibilidades de ensinar matemática para estudantes cegos no contexto da escola inclusiva. De forma mais específica, investigar aspectos que se mostram relevantes para se pensar a prática docente neste contexto, e então contribuir para ações de formação de professores que atendam à diversidade dos estudantes da escola regular. 22 A pergunta diretriz que norteou a pesquisa foi: Que aspectos se mostram relevantes para pensar a prática docente no contexto da inclusão na trajetória de uma professora que se torna pesquisadora da própria prática? 2.1 A Constituição dos Dados O caso foi construído a partir de registros e lembranças mantidos durante os meus dez anos de atuação como professora de matemática, e está organizado da seguinte forma: uma apresentação da professora a respeito da sua formação e prática, mais nove relatos, dos quais alguns possuem imagens de materiais manipuláveis obtidas a partir de simulações utilizando os mesmos materiais. Os relatos estão apresentados em três seções, de forma a destacar três momentos significativos no caso estudado. Para organizar o texto, fiz uma seleção de oito relatos de trechos de aulas no contexto escolar, separados em dois momentos: quatro deles em que tive o primeiro contato com aluno cego e quatro escolhidos por terem sido após alguns anos de experiência ensinando matemática neste contexto, utilizando diferentes recursos. Entre os oito relatos dentro de escola regular, um se encontra fora do contexto escolar. A figura 1 sumariza esta ideia. Figura 1: Instrumentos para a produção dos dados. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. A primeira seção, intitulada Percebendo os desafios da inclusão, é composta por quatro relatos de aulas de trechos reconstituídos dos registros do primeiro contato com um estudante cego e de minhas lembranças referentes a estas aulas. O primeiro relato traz trechos de uma aula que envolveu sequências lógicas e 23 sequências numéricas, cujo objetivo era desenvolver habilidades relacionadas ao reconhecimento de uma sequência e suas regularidades numéricas. O segundo relato diz respeito a uma aula sobre conjuntos numéricos. Já o terceiro evidencia uma situação ocorrida em uma aula em que abordei o tema função do primeiro grau. Para finalizar este momento, o quarto relato envolveu o tema função quadrática. Na seção denominada Explorando possibilidades, destaco outro momento, composto por um relato que envolveu uma situação de ensino sobre operações de adição e subtração com os números inteiros. Foi realizado numa instituição fora do contexto de sala de aula e nele foi possível ajudar os interessados a realizarem e compreenderem operações envolvendo números inteiros. A seção traz algumas imagens de materiais que fazem parte das descobertas neste momento de imersão. Na última seção, denominada Enfrentado os desafios da inclusão, destaco o terceiro momento. Este é formado por relatos reconstruídos através dos registros de situações em que, já com alguns anos de experiência, utilizei materiais manipuláveis nas aulas de matemática de uma forma mais sistemática. O primeiro relato deste episódio envolveu o tema trigonometria. O segundo envolveu geometria plana. O terceiro relato envolveu geometria espacial. Por fim, finalizo o momento com um quarto relato, que traz trechos uma aula sobre operações aritméticas. É importante observar que nestes relatos foram mantidos os equívocos relacionados com conteúdos matemáticos cometidos no momento da aula. A ideia é que possam ser comentados durante os relatos. A partir dessa organização, foi possível fazer um texto (capítulo 6) que foi utilizado para reunir os dados da pesquisa. A figura 2 sumariza a ideia. 24 Figura 2: Dados da pesquisa. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. 2.2 Análise dos Dados Para a análise, retomei o texto conforme apresentado na seção anterior, fiz várias leituras e busquei grifar as partes que mais chamavam a atenção. Conforme a orientação de Ludke e Andre (1986), atentei-me ao maior número possível de elementos presentes na situação que queria estudar, levando em consideração tudo que poderia ser importante para compreender o problema que estava sendo estudado. Após as leituras e releituras do texto, montei um novo arquivo, com 132 sentenças, o qual nomeei de Sentenças Importantes (SI) e que fazem parte dos meus arquivos de pesquisadora. Após impresso o SI, passei a pintar as sentenças do arquivo com as mesmas cores daquelas em que eu percebia as mesmas ideias, frequência ou coisas semelhantes. Conforme ilustra a Figura 3. 25 Figura 3: Sentenças pintadas. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. A partir daí, recortei cada uma das partes do SI e agrupei por cores. Isto feito, nomeei os grupos de acordo com que se tratava cada grupo, a saber: materiais manipuláveis, formação docente e condições de trabalho. Conforme ilustra a Figura 4. Figura 4: Setenças recortadas. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Dessa maneira, elegi os seguintes temas para discussão: aspectos sobre o uso e a construção de materiais manipuláveis para o ensino de matemática, aspectos sobre a formação do professor e aspectos sobre condições de trabalho na escola regular. Esses temas constituem os resultados da pesquisa e foram discutidos a partir das literaturas escolhidas. Para o texto de análise dos dados, foi necessário retomar algumas das sentenças do SI. Para mostrar a localização de tais sentenças, utilizei um codificador para o local em que foram observadas, como mostra a tabela 1. 26 Tabela 1: Momentos das sentenças. Momentos codificador Apresentação da Professora [AP] Percebendo os Desafios da Inclusão [PDI] Explorando Possibilidades [EP] Enfrentando os Desafios da Inclusão [EDI] Fonte: Elaborado pela pesquisadora. O exemplo mostra como as sentenças foram destacadas no texto de análise. Como eu nunca havia tido contato com uma pessoa cega, imaginava que era preciso falar próximo do estudante para que ele me ouvisse. Já na primeira atuação nesta sala como professora, aumentei meu tom de voz e fiquei bem perto do estudante a todo o momento. [PDI] A partir dessa organização, foi possível responder à pergunta: Que aspectos se mostram relevantes para pensar a prática docente no contexto da inclusão na trajetória de uma professora que se torna pesquisadora da própria prática? e trazer como resultado algumas possibilidades de ensinar matemática para estudantes cegos no contexto da escola inclusiva, com a intenção de contribuir para ações de formação de professores que atendam à diversidade dos estudantes da escola regular. 27 3 INCLUSÃO ESCOLAR E FORMAÇÃO DE PROFESSORES “Quando se trata de propiciar oportunidades iguais e justas para todos, temos muito ainda por fazer nas escolas para corresponder ao princípio segundo o qual os seres humanos têm direito à dignidade, sejam quais forem as suas capacidades ou realizações.” (MANTOAN, 2001, p. 56) Como professora de matemática de uma escola regular de ensino que recebe estudantes com deficiência, sempre me questionava: O que é a escola inclusiva? O que outros professores pensam sobre o assunto? O que dizem as leis que garantem uma educação para todos? Quem caberia nesse todos?2 Podemos pensar numa escola que reconhece e respeita as diferenças? O professor é o único responsável por uma escola inclusiva? Os professores estão tendo formação continuada para trabalhar em sala de aula com estudantes com deficiência? O que é ser um professor na perspectiva da inclusão? Este capítulo apresenta o resultado das leituras que fiz guiada pelos questionamentos acima. Concentrei-me no estudo da legislação e em textos sobre formação de professores no contexto da escola inclusiva. 3.1 Legislação O acesso de estudantes público-alvo da Educação Especial às escolas de ensino regular no Brasil é garantido por lei. O caminho inicial para este acesso já está previsto desde a Constituição de 1988. Nela se prevê a oferta de matrículas para estudantes com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. Os seus artigos 206 e 208, respectivamente, tratam da igualdade de condições de acesso e permanência com oferta de atendimento educacional especializado na rede regular de ensino. 2 Cláudia Werneck (2006) escreveu um livro que me instigou essa pergunta. 28 Constitucionalmente a educação é um direito de todos. E o sistema de ensino brasileiro fez a adequação na sua legislação de forma a atender à Constituição, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN 9.394/96, que estabeleceu a Educação Especial como modalidade de educação escolar transversal a todos os níveis de ensino (BRASIL, 1996). Além disso, outros referenciais legais formalizam a adesão do Brasil aos acordos e tratados internacionais relacionados à questão. No âmbito internacional, na década de 1990 os países desenvolvidos aceleraram fortemente a prática de matricular alunos com deficiência em escolas regulares e, a partir destas práticas, foi possível perceber que, para estes estudantes terem acesso, permanência e sucesso na vida escolar, precisariam de um sistema educacional diferente do que era oferecido na então conjuntura. Desta maneira, através de debates e discussões a respeito de direitos, vários documentos oficiais foram escritos na tentativa de garantir que a educação inclusiva acontecesse. A este respeito, podemos destacar a Declaração Mundial de Educação para Todos (UNICEF, 1991), pela qual passa a existir uma universalização do acesso à educação para qualquer pessoa com deficiência. Recomenda a eliminação de preconceitos e estereótipos de qualquer natureza e o atendimento às pessoas com deficiência, como parte integrante do sistema educativo. Destaca-se também um documento de representatividade internacional – a Declaração de Salamanca (1994), originária de uma conferência em que participaram 25 organizações internacionais e representantes de 92 governos, que tem como princípio fundamental que todas as escolas tenham caráter inclusivo e atendam a todos os estudantes, sendo que todos os alunos matriculados devem aprender juntos, sempre que possível, independentemente das dificuldades e diferenças que venham a apresentar. O Brasil não fez parte da Conferência de Salamanca, porém, demonstrou apoio quando em 1996 promulgou a lei nº 9.394 – de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN –, que ofereceu subsídios para as possíveis mudanças nas práticas escolares de alunos com surdez, deficiência física ou intelectual, cegueira, baixa visão, surdocegueira, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades e superdotação. 29 Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1998) recomendam a toda comunidade escolar uma atenção especial para a diversidade de seus alunos. Uma das recomendações diz respeito à organização curricular, de forma a atender às necessidades particulares dos estudantes. Os PCN consideram que esta atenção à diversidade precisa estar vinculada à criação de medidas concretas que não só prestigiem as capacidades intelectuais e os conhecimentos dos estudantes, mas, também, sua motivação e interesse. De acordo com o MEC (2006), após movimentos internacionais, estratégias de orientações com documentos oficiais das secretarias de educação e o surgimento da LDBEN 9.394/96, cresceu no Brasil um movimento de enorme força sinalizando que todas as pessoas têm direito à educação, independentemente de classe, raça ou gênero, incluindo aqueles que apresentam significativas diferenças físicas, sensoriais e intelectuais, decorrentes de fatores inatos ou adquiridos, de caráter temporário ou permanente. A Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de fevereiro de 2001, no seu artigo 2º, determinou que os sistemas de ensino devam matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizarem-se para o atendimento aos estudantes com necessidades educacionais especiais, assegurando que tenham as condições necessárias para uma educação de qualidade. Assim sendo, baseado nas Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica (SEESP/MEC, 2001) o Ministério da Educação deve trabalhar para que todas as crianças estejam na escola e com uma educação de qualidade assegurada. Neste sentido, de acordo com recomendações oficiais, temos um novo paradigma educacional, em que os estudantes com deficiência não devam ser considerados como um problema, o que exige da escola um ajustamento para que todos os estudantes aprendam juntos. Um grande desafio para o sistema de ensino público passou a ser o de construir condições para atender aos estudantes respeitando a diversidade. Sendo assim, a Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da educação inclusiva (MEC, 2008), assegura a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento3 e altas 3 A terminologia não é mais utilizada. Hoje é usada TEA – Transtorno do Espectro Autista. 30 habilidades/superdotação, e orienta os sistemas de ensino a garantir o acesso de todos os alunos ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados de ensino. Porém, para que tais exigências sejam atendidas, de acordo com as Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais (SEESP/MEC, 2003), o novo modelo implica na reestruturação dos sistemas de ensino, a partir da qualificação dos professores, viabilizando a reorganização escolar de modo a assegurar aos alunos as condições de acesso e, principalmente, de permanência, com sucesso, nas classes regulares. Para tal, prevê a formação de professores especialistas para fazerem Atendimento Especializado Educacional (AEE) na escola. Segundo o Ministério da Educação (SEESP/MEC, 2008), este tipo de atendimento não somente contribui para a formação do estudante com deficiência, mas, também, ajuda no desenvolvimento de sua independência e autossuficiência em situações do cotidiano. O AEE serve para identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade, que eliminam as barreiras para a plena participação dos estudantes, considerando suas necessidades especiais. De acordo com o MEC (2011), o AEE deve ser realizado na sala de recursos multifuncional, um espaço localizado na escola de educação básica. Esta sala multifuncional é constituída de mobiliário, materiais didáticos, recursos pedagógicos e de acessibilidade, com equipamentos específicos e professores com formação para realizar o atendimento educacional especializado de acordo com a necessidade de cada estudante. É válido destacar que o documento ressalta a importância deste serviço como primordial para a educação escolar de um aluno com deficiência matriculado em uma escola regular. As orientações para uma educação inclusiva estão bem documentadas e legisladas. Há o apoio legal da Constituição da República Federativa do Brasil/1988, especialmente no inciso III do Art.º 208, do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, de 1990, e da Lei nº 8.069/90, atualizada com a Lei nº 12.010, de 2009, que determina o direito das crianças com deficiência à educação. Portanto, de acordo com as orientações e leis, a educação inclusiva, aparentemente, está assegurada com todos os recursos de acessibilidade e apoio 31 pedagógico aos estudantes. Porém, na prática, apesar de todo o aparato legal, não podemos afirmar que isso esteja acontecendo nas escolas de ensino regular. Capellini e Rodrigues (2009) afirmam que os direitos estão explicitados nas leis, mas nem sempre são efetivados. No entanto, as autoras dizem que, apesar dos possíveis desânimos diante da complexidade deste assunto, da falta de condições reais para o cumprimento das leis, “é importante lembrar que, ao longo dos séculos, conquistas foram alcançadas. Não podemos acreditar que estamos partindo do zero, como se tudo ainda estivesse por fazer” (p. 358). Refletir sobre leis e a falta efetiva de seu cumprimento nesta temática implicou na busca por uma literatura sobre o tema escola inclusiva, e o que está sendo feito no que diz respeito a formação dos professores das escolas regulares para o cumprimento destas exigências das políticas públicas. Nesse sentido, o próximo item apresenta uma reflexão sobre o que os pesquisadores estão dialogando sobre isso e uma revisão de literatura que dá destaque às contribuições dos cursos de formação continuada aos professores da rede regular. 3.2 Escola Inclusiva e Formação do Professor Segundo Oliveira e Profeta (2008), escola inclusiva é aquela que garante a qualidade de ensino para todos os estudantes matriculados, reconhecendo e respeitando a diversidade dos alunos. Responde a todos de acordo com suas potencialidades e necessidades. Assim, uma escola somente poderá ser considerada inclusiva quando estiver organizada para favorecer a aprendizagem de todos os alunos, sejam cegos, surdos, pobres, ricos, mulheres, homens ou em qualquer outra condição. Assim sendo, um ensino somente é considerado inclusivo se garantir o acesso ao conjunto sistematizado de conhecimentos. Para Mantoan (2001), escolas inclusivas são aquelas que estão abertas às diferenças. Todas as pessoas matriculadas nesta escola são respeitadas e reconhecidas nas suas diferenças. São ambientes educacionais que se caracterizam por um ensino de qualidade em que todos os alunos devem estudar juntos, sem exclusão, na mesma sala de aula de ensino regular. 32 Para Rodrigues et al. (2014), a inclusão escolar não se limita apenas às pessoas com deficiência, mas impulsiona a valorização da diversidade como um fator de qualidade da educação, pois traz à tona a questão do direito de todos à educação e ao atendimento às necessidades educacionais especiais dos estudantes com deficiência, TGD [transtornos globais do desenvolvimento] e altas habilidades/superdotação, enfatizando o acesso, a participação e a aprendizagem. Nessa visão, promover a participação e o respeito às diferenças significa enriquecer o processo educacional, reconhecendo a importância do desenvolvimento das potencialidades, saberes, atitudes e competências de todos. (RODRIGUES et al., 2014). Baleotti e Del-Masso (2008) comentam que, para uma escola inclusiva, tem que se pensar nas mudanças de atitude e de ações da equipe escolar: professores, diretores, coordenadores pedagógicos, entre outros profissionais que atuam no espaço educacional. Isto significa levar em conta as intenções, os valores, as crenças e as atitudes que permeiam o cotidiano e as trocas estabelecidas entre os elementos do grupo. Além disso, é fundamental a participação do professor como desencadeador de mudanças e de novas práticas nessa escola que considera a diversidade e as particularidades de cada um de seus alunos. Porém, para que todos os estudantes sejam respeitados em suas diferenças e que a escola possa promover o que Mantoan (2006) chama de educação de qualidade e sem exclusão, não se depende somente de mudanças de atitude e de ações da equipe escolar. Estes profissionais precisam de apoio para que possam promover o ensino, respeitando as diversidades dos estudantes. Este tipo de apoio foi uma das propostas das políticas públicas para oferecer suporte para o processo de inclusão dos estudantes com deficiência na escola regular. Pelo Decreto nº 6.571/2008, o Atendimento Educacional Especializado (AEE) passou a prever este serviço, porém, foi revogado pelo Decreto nº 7.611/2011, para ser aprimorado e oferecido por meio de Salas de Recursos Multifuncionais (SRMF) nas escolas regulares de educação básica. As SRMF são os ambientes onde o professor especializado realiza AEE para alunos com deficiência, no contraturno escolar. Elas estão disponíveis e podem ser utilizadas para ampliar ou possibilitar a execução de uma atividade necessária e pretendida por uma pessoa com deficiência com objetivos educacionais. 33 Portanto, na perspectiva da educação inclusiva, a participação dos estudantes nas mais diversas atividades do contexto escolar está garantida nestes espaços. Assim sendo, para suporte de materiais e produtos nestes ambientes, as SRMF recebem recursos da Tecnologia Assistiva (TA). Estes serviços de TA nas escolas têm por objetivo, segundo Bersch (2009), “prover e orientar a utilização de recursos e/ou práticas que ampliem habilidades dos alunos com deficiência, favorecendo a participação nos desafios educacionais” (p. 27). A autora afirma que a TA poderá ser então reconhecida como um instrumento facilitador que serve para contribuir com o desempenho das tarefas que fazem parte da escola. Ajudas que podem resolver os problemas dos alunos, encontrando alternativas para que eles participem das aulas. Bersch (2013) diz que as SRMF recebem esses kits com os recursos e equipamentos de Tecnologia Assistiva. Para tratar dos kits para o AEE das SRMF, apoiei-me na pesquisa de Manzini (2013), que analisou os kits de 2009 a 2013 e contribui, neste momento, para sabermos sobre os conteúdos destes kits destinados às SRMF, durante este intervalo de tempo. Segundo Manzini (2013), de 2009 a 2010 faziam parte deste kit 42 itens: 2 computadores, 2 estabilizadores, 1 impressora multifuncional, 1 roteador wireless, 1 mouse com entrada para acionador, 1 acionador de pressão, 1 teclado com colmeia, 1 lupa eletrônica, 1 notebook, 1 software para comunicação aumentativa e alternativa, 1 mesa redonda, 4 cadeiras para mesa redonda, 2 mesas para computador, 2 cadeiras giratórias, 1 mesa para impressora, 1 armário, 1 quadro branco, 1 software para comunicação aumentativa e alternativa, 1 esquema corporal, 1 sacolão criativo, 1 quebra-cabeça superposto – sequência lógica, 1 bandinha rítmica, 1 material dourado, 1 tapete alfabético encaixado, 1 dominó de associação de ideias, 1 memória de numerais, 1 alfabeto móvel e sílabas, 1 caixa tátil, 1 kit de lupas manuais, 1 alfabeto braille, 1 dominó tátil, 1 memória tátil, 1 plano inclinado – suporte para livro. Baseado no mesmo autor, após uma atualização do kit das Salas de Recursos Multifuncionais, ele passou a ter outros elementos considerados recursos da TA. Faziam parte deste kit 32 itens no ano de 2011: 1 impressora braille – pequeno porte, 1 scanner com voz, 1 máquina de escrever em braille, 1 globo terrestre tátil, 1 calculadora sonora, 1 kit de desenho geométrico, 2 regletes de 34 mesa, 4 punções, 2 soroban, 2 guias de assinatura, 1 caixinha de números e 2 bolas com guizo. Segundo Manzini (2013), em 2012 e 2013, após a intervenção do MEC, o kit passou a contar com outros materiais: 2 notebooks, 1 alfabeto móvel e sílabas, 1 alfabeto braille, 1 caixinha de números, 1 bola de futebol com guizo, 1 scanner com voz, 1 mouse estático de esfera, 1 teclado expandido com colmeia, 1 impressora multifuncional, 1 material dourado, 1 caixa tátil, 1 dominó tátil, 1 memória tátil, 2 bolas com guizo, 1 lupa eletrônica e 1 máquina de escrever em braille. O objetivo de Manzini (2013) foi analisar e discutir até que ponto os professores teriam conhecimento para utilizarem na prática estes recursos e equipamentos de tecnologia assistiva. Chegando a uma conclusão de que nem sempre os professores estão preparados para usar os recursos de TA na escola. Após investigar a percepção de professores da escola regular sobre recursos e estratégias de ensino, o autor indicou que parece ser necessária uma base teórica mais sólida na formação desses professores. Manzini (2013) revela que a TA é algo que pode surgir para auxiliar a inclusão, mas nada adianta ter apenas a tecnologia, se o professor não sabe utilizá- la. “Sem a ação humana, sem os processos de mediação adequados para ensino- aprendizagem, os recursos e os equipamentos de Tecnologia Assistiva, por si só, não trarão contribuição.” (p. 22). Estes recursos e serviços, para Castro et al. (2012), devem ser integrados às ações educativas, devendo as propostas contemplarem, também, a formação dos professores e outros profissionais que atuam com processos educativos na perspectiva da inclusão. As autoras confirmam isso através de resultados de uma pesquisa realizada sobre a presença dos recursos tecnológicos no ambiente escolar, focalizando, nesta produção, a presença das Tecnologias Assistivas no contexto de ensino e de aprendizagem do aluno com deficiência. A investigação permitiu desvelar que ainda há um grande distanciamento entre o que propõe a teoria sobre a TA e o cotidiano das escolas. Seria mais viável que todos os professores soubessem como trabalhar com instrumentos que apoiem os estudantes nas atividades da sala de aula. Mas, de uma maneira mais ampla, pensando em todos os estudantes. Que estes materiais fossem criados e pensados para todos, que pudessem atingir um número maior de 35 estudantes da sala de aula do ensino regular, quebrando assim o paradigma da adaptação de materiais. “Mas será que de fato as salas de recursos se constituem no melhor modelo para apoiar a escolarização de estudantes com necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino público?” – questionam Mendes e Malheiros (2012, p. 359). Para as autoras, o conceito de AEE como serviço de apoio à sala de recursos multifuncionais, associado à ideia do atendimento escolar em classe comum, começou a ser amplamente utilizado no discurso político, mas No caso específico de alunos com necessidade educacionais especiais é preciso melhorar a qualidade de ensino comum para então se poder avaliar o quanto essa escolarização qualificada na classe comum pode fazer pela educação desses estudantes; e a partir daí se definir as necessidades de complementação, suplementação ou até mesmo substituição, nos casos em que as classes comuns não produzam evidencias de benefícios educacionais aos alunos com necessidades educacionais especiais. (MENDES; MALHEIROS, 2012, p. 363). Dessa maneira, para se construir uma proposta de inclusão escolar para alunos com deficiência, precisaríamos refletir antes de tudo em como melhorar a escola e o ensino para todos os alunos matriculados. Portanto, enquanto houver ensino de baixa qualidade nas escolas comuns todo e qualquer AEE extraclasse, como é o caso dos serviços prestados tanto em salas de recursos quanto nas instituições especializadas, assumirá caráter remediativo e se mostrará insuficiente para responder tanto às necessidades educacionais comuns quanto especiais dos alunos que requerem educação diferenciada. (MENDES; MALHEIROS, 2012, p. 363). Dessa forma, o discurso de obrigatoriedade da matrícula para os alunos com necessidades educacionais especiais, que têm hoje os direitos garantidos de frequentar uma escola regular, e o enfraquecimento da prática pedagógica do professor da classe, para Mendes e Malheiros (2012), não têm encontrado espaços de formação para os professores nem para trocas entre os especialistas do AEE. Portanto, acabam por empobrecer as oportunidades de ensino para os alunos com deficiência no contexto da classe comum, que é o principal lócus de escolarização. Santos e Neme (2014) afirmam que, por mais que professores e funcionários tenham boa vontade e dedicação com as questões do ensino de qualidade para todos, e mesmo que a legislação brasileira elabore e fundamente leis para oferecer 36 infraestrutura escolar adequada aos princípios da inclusão, ainda há limites que impedem o acesso de todos os alunos aos espaços e atividades escolares. A escola até insiste em dizer que os estudantes são diferentes quando garantem a matrícula na mesma série escolar. Mas o objetivo escolar, no final do período letivo, é que todos se igualem em conhecimento a um padrão que é estabelecido para cada série – os que não estiverem aptos serão excluídos por repetência. O fato é que o ensino escolar brasileiro continua sendo para poucos, situação que se acentua de maneira drástica no caso dos alunos com deficiência, diz Mantoan (2006). São muitas as variáveis que dificultam o processo de inclusão nas escolas regulares. Capellini e Rodrigues (2009) comentam sobre o número de alunos colocados na mesma sala de aula, bem como o espaço físico inadequado para comportá-los. De uma pesquisa feita com 423 professores a respeito das dificuldades por eles identificadas no processo de inclusão escolar, a maioria apontou que são as questões do número excessivo de alunos por classe, a falta de suporte de uma equipe técnica e a falta de materiais adequados. Na opinião desses professores, o sistema escolar não está preparado para receber alunos com deficiência. Assim, é necessário investir em formação inicial e continuada, além de romper com a estrutura tradicional de escola que está posta, concluem Capellini e Rodrigues (2009). Segundo Silva e Pinto (2010), além do despreparo dos professores na sua formação, e a inadequação das escolas para receber crianças com deficiência, as escolas não possuem infraestrutura física nem materiais adequados para que os estudantes desenvolvam suas habilidades e competências. Além disso, Costa (2012) diz que uma grande parte dos professores revela que não teve acesso, em sua formação inicial, aos conhecimentos relacionados com educação inclusiva. Esse fato tem trazido a eles receios ante a inclusão, justificados pela suposta falta de preparo prévio para lidar com alunos com deficiência. A ausência desse conhecimento profissional sobre as peculiaridades das deficiências e o não reconhecimento das potencialidades desses estudantes são considerados fatores determinantes para práticas pedagógicas. A formação do 37 professor é um requisito importantíssimo para a garantia da inclusão de estudantes com deficiência na escola regular. A inclusão educacional requer professores preparados para atuar na diversidade, compreendendo as diferenças e valorizando as potencialidades de cada estudante de modo que o ensino favoreça a aprendizagem de todos. A inexistência desta formação gera o fenômeno da pseudoinclusão, ou seja, apenas da figuração do estudante com deficiência na escola regular, sem que o mesmo esteja devidamente incluído no processo de aprender. Estar matriculado e frequentando a classe regular não significa estar envolvido no processo de aprendizagem daquele grupo. (PIMENTEL, 2012, p. 140). Pelosi (2006) também se posiciona frente ao contexto, dizendo que não é possível acreditar em escola inclusiva sem um planejamento de gestão responsável, incluindo a formação continuada de professores. O professor precisa possuir alguns saberes específicos para que possa planejar práticas pedagógicas com metodologias e recursos didáticos ou instrumentos de mediação com objetivos de respeitar a diversidade, o tempo de ensino e aprendizagem de todos os estudantes. Nas escolas deve haver um trabalho pedagógico efetivo para lidar com as diferentes características, potencialidades e ritmos de aprendizagem dos estudantes. Para tanto, é imprescindível investir – entre outros fatores – na formação dos professores que atuam com estes estudantes em sala de aula. O professor é aquele que empreende e resgata os saberes dos alunos. É um profissional que pode observar, perceber, entender e estimular as potencialidades de todos os estudantes. Portanto, existe a necessidade de apoiar o professor na sua formação. É o que afirmam Jesus e Effgen (2012), para quem se deve investir em grande quantidade na formação inicial e continuada do educador. É preciso haver uma política educacional pública que assegure ao professor o direito à formação de qualidade. Uma formação que considere a diversidade dos estudantes. Capellini e Rodrigues (2012) discutem relatos de professores que fizeram cursos de formação pela Plataforma Paulo Freire (MEC)4 e que demonstram a importância desse tipo de qualificação profissional nas suas práticas em sala de 4 Curso de Práticas Educacionais Inclusivas, oferecido para aproximadamente 1.200 professores/cursistas, com carga horária de 180 horas, em um Ambiente Virtual de Aprendizagem pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Bauru. 38 aula. São professores das redes públicas municipais e estaduais de várias regiões do país que tiveram a oportunidade de formação continuada gratuita, com o propósito de conhecer estratégias para trabalhar com estudantes com deficiência. Na obra de Capellini e Rodrigues (2012), podemos observar quais mudanças ocorreram após o curso de formação. Isso pode ser vistos nos relatos dos professores, tal como apontam Galvão (2012), Valadão (2012), Moura (2012), Campos (2012), Sichetti (2012), Luvisotto (2012), Soares (2012), Romani (2012), Cezário (2012), Basso (2012), Silveira (2012), Santos (2012), Hidalgo (2012), Soquetti (2012), Silva (2012), Rodrigues (2012), Oliveira (2012), Laudissi (2012), Báfica (2012), Sottovia (2012) e Ferreira (2012). Galvão (2012) comentou que o curso de formação proporcionou a ela rever e ampliar a sua visão em relação à inclusão. Possibilitando novos conhecimentos sobre o assunto, conheceu recursos e materiais pedagógicos e tecnológicos disponíveis que antes não conhecia. Valadão (2012), além de concordar com a professora, disse ter aprendido a acreditar e respeitar os limites dos estudantes, entendendo que, para cada limitação, há um aprendizado a ser alcançado. Foi o que relataram Moura (2012), Campos (2012) e Sichetti (2012), que também comentam que não conheciam nenhum recurso material para auxiliá-las em suas aulas, e que foi após frequentarem curso de formação que aprenderam a criar diferentes estratégias, desenvolver novas habilidades para o ensino. Luvisotto (2012) considerou que, após fazer curso de formação, percebeu melhoras em sua prática em sala de aula. Segundo ela, passou a olhar os seus alunos não mais pelas dificuldades, mas sim pelas habilidades e formas como eles usam essas habilidades para vencer desafios. Também comentam sobre isso Soares (2012), Romani (2012) e Cezário (2012), que mudaram de comportamento em sala de aula depois que fizeram curso de formação. Perceberam, desde então, que se tornaram mais flexíveis com os alunos. Basso (2012), Silveira (2012) e Santos (2012) sentiram que estas oportunidades promoveram a elas sucessivas ações e reflexões a respeito da escola inclusiva. De acordo com as professoras, através da formação profissional, receberam informações para realizar na própria unidade escolar experimentos de ações pedagógicas e criar outros novos, a partir da necessidade dos seus alunos. 39 Cursos de formação continuada, para Hidalgo (2012) e Soquetti (2012), constituem espaços de conhecimento com concepções e representações da realidade que podem ser compartilhadas com outros participantes. Uma oportunidade de interação e troca de ideias que pode levar o professor a quebrar paradigmas e refletir para modificar suas ações em sala de aula. Elas dizem que a possibilidade de contato com outros profissionais foi importante para trocarem experiências. Para Silva (2012), o curso que fez propiciou oportunidades para reflexões sobre os fundamentos e leis da educação inclusiva, destacando que discutir assuntos com quem vive a realidade de sala de aula faz muita diferença. Rodrigues (2012) e Oliveira (2012) concordam, e consideram que as leituras oferecidas e as discussões sobre os problemas apresentados no contexto escolar ampliaram seus conhecimentos teóricos e, com o compartilhamento de experiências com outros profissionais, perceberam diferenças positivas no exercício da sua prática docente. Ao abordar os aprendizados e benefícios adquiridos através de cursos de formação, Laudissi (2012) destaca que também passou a repensar a sua prática, e que as informações que recebeu lhe ajudaram a planejar, avaliar e investigar meios possíveis para ajudar seus alunos com deficiência, adequando melhor suas atividades. Báfica (2012) adere, dizendo que, com essas atitudes, foi possível perceber que as pessoas com deficiência são capazes de desempenhar diferentes atividades, desde que sejam dadas a elas condições de as executarem. Destinar um tempo exclusivo para aperfeiçoar conhecimentos e práticas pedagógicas foi significativo e importante, ressalta Sottovia (2012), para quem somente com o auxílio de conhecimentos prévios de teorias e de novas didáticas já foi possível fazer as intervenções e mudanças necessárias na sua prática. Ferreira (2012), além de consentir com Sottovia, acrescenta que agora pode contribuir para o desenvolvimento de um projeto pedagógico que envolva os alunos de forma geral, contendo materiais didáticos e recursos para o ensino de todos na escola em que leciona. O que aparentemente se mostra nos relatos é que a formação do professor proporciona um aprendizado, abre novos horizontes e contribui para práticas pedagógicas eficazes em sala de aula. Deve-se investir mais na formação do professor nos cursos de licenciatura para o contexto da escola inclusiva, tanto 40 quanto nos cursos de formação continuada aos que já estão atuando em sala de aula. Nesta revisão de literatura, entre os vários pontos levantados, foi possível notar a importância dos recursos materiais para mediar as ações de ensino e de aprendizagem em sala de aula. Refletindo sobre novas estratégias de ensino para sala de aula no contexto da inclusão para todos, os materiais didáticos que podem ser manipulados se tornam uma possibilidade de entendermos que temos em comum, entre os estudantes, um dos órgãos do sentido – o tato5. Para aprofundar a discussão sobre o uso de tais recursos, no próximo capítulo apresentamos uma revisão de literatura específica sobre o uso de materiais didáticos para o ensino e aprendizagem. 5 Mas, e os estudantes com deficiência física nas mãos? Como pergunta Werneck (2006), “Quem cabe no seu todos?” 41 4 MATERIAIS MANIPULÁVEIS PARA O ENSINO DE MATEMÁTICA “Palavras não alcançam o mesmo efeito que conseguem os objetos ou imagens, estáticos ou em movimento. Palavras auxiliam, mas não são suficientes para ensinar” (LORENZATO, p. 17, 2010). Este capítulo apresenta de que modo os materiais manipuláveis são reconhecidos como uma forma interessante por autores e estudiosos ao longo do tempo. Além de pesquisas e estudos que discutem a importância da construção e utilização dos materiais manipuláveis para estudantes cegos. 4.1 Os Materiais Manipuláveis para o Ensino e a Aprendizagem O uso dos materiais manipuláveis no ensino não é algo novo. Lorenzato (2012) faz um estudo sobre os pensadores do século XVII até o século XX e mostra a importância dos objetos concretos para o ensino e a aprendizagem. Nesta obra, ele manifesta o quanto os materiais manipuláveis são importantes para a educação das crianças. Segundo o autor, desde meados do século XVII, Comenius (1592- 1670) já defendia o uso do concreto no ensino. De acordo com Kulesza (2011), Comenius é considerado o fundador da didática moderna e o defensor do respeito ao desenvolvimento mental e físico do aprendiz. Devido ao seu interesse na relação entre o ensino e a aprendizagem, afirmou haver diferença entre o ensinar e o aprender e que o ensino deveria dar-se do concreto ao abstrato. Segundo a tradução de Kulesza (2011), para Comenius, “fazer com que a criança brinque com objetos, feitos de madeira ou outro material (...), será de grande valia não pela brincadeira, mas também para o conhecimento” (p. 39). Pode-se inferir que as ideias de Comenius influenciaram outros pensadores, pois, de acordo com os estudos de Lorenzato (2012), as ideias dos pensadores entre os séculos XVII e XX eram de que os materiais concretos traziam muitas contribuições ao ensino. Ele comenta sobre Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que defendia o uso dos materiais concretos para aprendizagem, e que no século XIX 42 foi a vez de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), pioneiro da reforma educacional, e, também, de Friedrich Froebel (1782-1852), considerado o mais completo reformador educacional. De acordo com esse estudo de Lorenzato (2012), Pestalozzi e Froebel reconheceram, por volta de 1800, que o ensino deveria começar pelo concreto. Naquela época, materiais como os blocos de construções, conhecidos como materiais específicos, eram utilizados pelas crianças nas escolas. Brinquedos, papéis, bolas, cubos e cilindros também eram utilizados. Ainda baseando-se nos estudos de Lorenzato (2012), no século XX, John Dewey (1859-1952) confirmava o pensamento de Comenius, “ressaltando a importância da experiência direta como fator básico para construção do conhecimento” (p. 3). Também ressaltou em seus estudos que Montessori (1970- 1952) “legou-nos inúmeros exemplos de materiais didáticos e atividades de ensino que valorizam a aprendizagem através dos sentidos, especialmente do tátil” (p. 4). O pensador Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934) afirmou que os brinquedos têm enorme influência no desenvolvimento de uma criança, e que os objetos concretos e suas ações com significados são primordiais para o processo cognitivo da mesma. Vygotsky (1991), em um de seus estudos sobre o processo da formação de conceitos em suas várias fases evolutivas, utilizou 22 blocos de madeira, de cores, formas, alturas e larguras diferentes. Para o experimento, misturou os blocos sobre uma mesa à frente do sujeito e confrontou-o com a tarefa de determinar as características dos blocos através de tentativas e erros. Chegou à conclusão de que cada passo do raciocínio do sujeito se refletiu na manipulação dos blocos. De acordo com Lorenzato (2010), as palavras não obtêm o mesmo resultado que conseguem os objetos tangíveis. Olhar utilizando as mãos faz parte da natureza humana, “as pessoas precisam pegar para ver, (...). Então, não começar o ensino pelo concreto é ir contra a natureza humana. Quem sabe ensinar sabe disso” (LORENZATO, 2010, p. 19). Sobre isso, Reily (2004) diz que: Quando diante de um objeto que nos interessa, antes de pensar, estendemos a mão para tocá-lo. Por mais que tenhamos sido orientados ainda em criança – “tire a mão”, “não pode tocar”, “cuidado, isso quebra” –, parece que o impulso de conhecer com as 43 mãos sempre será mais forte do que apreender pelo olhar. Sentimos necessidade de perceber pelo toque dos dedos a concretude das coisas, sua textura, sua plasticidade, sua temperatura, seu tamanho, volume e peso. (REILY, 2004, p. 49). Lorenzato (2010) reforça o ensino simultaneamente pelo concreto através da potência do ver com as mãos, quando diz que as “palavras não alcançam o mesmo efeito que conseguem os objetos ou imagens, estáticos ou em movimento. Palavras auxiliam, mas não são suficientes para ensinar” (p. 17). Isso porque as pessoas necessitam do concreto, o ato de tocar faz parte da nossa natureza. E para o ensino de matemática? A ideia seria utilizar o material manipulável para desenvolver aplicações de cálculos, criações de fórmulas, interpretações de gráficos, soluções de problemas, pensamentos lógicos para a formulação de teorias e das hipóteses. Lorenzato (2010) diz que o concreto é necessário para aprendizagem inicial, embora não seja suficiente para que aconteça a abstração matemática (...). Essa é uma caminhada de ensino aparentemente contraditória principalmente para matemáticos que acreditam ser abstração (se referindo à matemática) o único caminho para aprender matemática. Na verdade assim como é preciso abrir mão do rigor para se conseguir o rigor, para se alcançar a abstração é preciso começar pelo concreto. (LORENZATO, 2010, p. 20). O uso dos materiais manipuláveis para ensinar matemática não é a receita desejada para o ensino desta disciplina, tampouco a resolução dos problemas que a envolvem. Porém, há muitos anos, esse uso vem mostrando ser um método diferenciado e, segundo estudos que mostrarei a seguir, traz contribuições importantes para o desenvolvimento da aprendizagem. Fossa (2012), quando propõe sugestões pedagógicas para conceitos aritméticos envolvendo a história da matemática, afirma que para “aproveitar o máximo esse aspecto da aritmética antiga, o aluno deveria investigar os referidos conceitos usando materiais manipulativos” (p. 143). Para este autor, materiais podem ser considerados desde um conjunto de botões pequenos até peças de um jogo de damas, bolas de isopor ou qualquer objeto que torne o conceito concreto na prática. Mendes (2009) discute a importância de relacionar atividades manipulativas com as operações matemáticas. Para o autor, os materiais concretos devem ser tocados, manipulados ou confeccionados pelos alunos para representarem as ideias 44 matemáticas. Segundo ele, dessa forma o aluno se torna agente ativo na construção do seu próprio conhecimento matemático. Passos (2012) envolve os recursos didáticos com uma diversidade de elementos utilizados como suporte experimental na organização do ensino e da aprendizagem. Para esta autora, os materiais servem como mediadores para facilitar a relação entre o professor e o aluno no momento em que estes estão construindo o conhecimento. Através dos materiais manipuláveis, podemos traçar um caminho para a formação de conceitos matemáticos para os estudantes. Estudantes que podem ser completamente diferentes em habilidades e competências. Dentre estas intrínsecas diferenças estão linguagens, limites, condições cognitivas, deficiências sensoriais, entre outras variáveis que podem surgir no âmbito educacional. Destaco a necessidade de olharmos para os estudantes com deficiência visual. Reily (2004) contribui dizendo: Como tornar acessível o conhecimento matemático ao aluno com necessidades educativas especiais é uma questão que preocupa o professor à medida que o aluno avança nas séries escolares. É difícil guardar informações numéricas na memória, assim como é complicado realizar cálculos mentais sem marcar as operações no papel. De fato, sem recursos especiais, alunos com cegueira (...) terão bastante dificuldade de acompanhar a matéria. (REILY, 2004, p. 60). Os materiais manipuláveis são importantes para todos os estudantes e, através destes, os mesmos podem ver e pegar com as mãos para representar alguns conceitos da matemática. Porém, ver pode não ser muito apropriado quando estamos tratando de pessoas com deficiência visual. Ou seja, uma nova variável – a limitação – poderá aparecer para dificultar a prática pedagógica do professor de matemática. Tal fato me leva a considerar outras variáveis e questionamentos: O que estou considerando sobre materiais concretos? Os materiais concretos, ao serem manipulados por um cego, terão o mesmo significado do que para um estudante dentro dos padrões de normalidade (videntes)? Quais as relações entre materiais concretos e materiais manipuláveis? Como podemos garantir as representações simbólicas da matemática através destes materiais manipuláveis? Que fatores poderão influenciar o ato de podermos ver com as mãos? 45 4.2 Materiais Manipuláveis para Estudantes Cegos A criação de materiais manipuláveis e a utilização desses instrumentos pelos estudantes cegos vêm mostrando, aos pesquisadores da área de educação matemática e inclusão, aspectos cada vez mais positivos para a aprendizagem destes estudantes. Muitos dos pesquisadores da área constroem, junto com os estudantes cegos, materiais adaptados para cegos, como também utilizam materiais construídos por outros pesquisadores e comprovam a eficiência desses materiais. Fernandes (2008), que desenvolveu pesquisas com materiais manipuláveis com alunos cegos, afirmou que não existe o veto do ensino da matemática para cegos e que estes estariam aptos a aprender, se forem a eles dados recursos materiais e semióticos de acordo com suas necessidades específicas, pois estes aprendizes captam e processam informações através dos estímulos dados, como, por exemplo, o tato e a audição. A cegueira dos aprendizes de nossas pesquisas nos conduz a destinar atenção especial às praticas discursivas e as ações sobre as ferramentas materiais disponibilizadas a esses aprendizes na hora de aprender Matemática. (p. 63). Um estudante cego poderá se mostrar muito capaz de aprender matemática se a ele forem dadas oportunidades e tecnologia adequadas aos seus estímulos. Fernandes e Healy (2007), após desenvolverem trabalhos sobre estímulo háptico, afirmaram que as ferramentas materiais facilitam a compreensão e solução de exercícios matemáticos. As atividades e ferramentas materiais que utilizamos em nossas pesquisas são de modo geral bastante simples, e normalmente envolvem conceitos matemáticos usualmente desenvolvidos nas escolas regulares. (FERNANDES; HEALY, 2007, p. 16). Vianna et al. (2007) utilizaram alguns materiais manipuláveis, feitos de dobraduras, para o ensino de simetria, e consideram que os mesmos facilitaram a compreensão dos conteúdos ensinados. Concluíram que o uso de materiais manipuláveis é fundamental para um trabalho dessa natureza, ressaltando que muitas das dificuldades dos alunos cegos também são de alunos videntes. O ábaco, um material bastante utilizado no passado, foi pesquisado por Souza (2007), que analisou, a partir de uma sequência de atividades, a influência 46 desse instrumento na construção do sistema de numeração e da percepção das crianças sobre a importância do uso do ábaco para deficientes visuais. Garantiu que os alunos, além do estímulo em aprender e dominar o instrumento, obtiveram um ganho no cálculo mental com a manipulação do aparelho em termos de rapidez, raciocínio operatório e motor. Os ábacos mostram-se como potenciais instrumentos para desenvolver a aprendizagem da criança sobre nosso sistema de numeração. O soroban é uma criação do homem adaptada para cegos e que facilita também a aprendizagem do aluno “normal” valorizando o raciocínio lógico sobre nosso sistema de numeração na própria operacionalização do instrumento. (SOUZA, 2007, p. 10). Para alguns conteúdos específicos da matemática, geometria, por exemplo, o professor poderia propor aos alunos materiais para a exploração de outros sentidos. Em sua pesquisa, Lirio (2006) usou um programa específico para cegos, o Desenhador Vox, para ensinar geometria. A autora acredita que o uso dos materiais manipuláveis é um recurso eficiente na aprendizagem dos estudantes cegos, pois dão aos estudantes significados dos conteúdos e facilitam no processo de ensino e aprendizagem. A conclusão positiva sobre os recursos materiais de Lírio (2006) é justificada após a pesquisadora ter observado que trabalhar antecipadamente com figuras geométricas planas (concretas) como forma de materiais manipuláveis, antes de trabalhar conceitos geométricos no computador, trouxe significados antecipados para as duas participantes (estudantes cegas) da pesquisa. Os materiais potencializaram o conhecimento prévio de que as estudantes precisavam para utilizar a tecnologia. As potencialidades dos estudantes cegos devem ser estimuladas para que haja um aprendizado efetivo. Para o ensino da matemática, em especial, teremos que buscar outras formas para que os olhos não sejam considerados o único meio de entrada de informação. Há necessidade de utilização de outros recursos metodológicos que não façam da visão a principal porta de entrada de informação para a constituição de conhecimento do estudante cego. Através de recursos táteis em alto-relevo e do código braille, Vieira (2007) discutiu formas de flexibilização do conteúdo de geometria e afirmou que a limitação dos estudantes cegos poderá ser suprida explorando outros sentidos 47 remanescentes. Segundo o autor, o concreto é um dos únicos meios possíveis de conhecimento das coisas que os rodeiam. A perda da visão não os limita sentir e presenciar as formas geométricas que os cercam, pois, a partir do toque esses alunos podem “visualizar” toda beleza do mundo geométrico em sua volta. O que parecia então vazio e sem forma, com um simples toque ganha forma e vida na mente desses alunos possibilitando-os, assim, acompanhar conteúdo. (VIEIRA, 2007, p. 4). O currículo de matemática, organizado de forma concreta, pode ajudar os estudantes cegos na construção de conceitos. De acordo com Fernandes (2008), o uso dos métodos próprios, concretos e sistemáticos, traz possibilidades de obtermos informações táteis. Portanto, devemos promover para nossos estudantes cegos programas de atividades orientadas que lhes oportunizem experimentações com objetos. Neste momento do texto, estou limitando-me a falar das possibilidades de recursos materiais para visualização de conteúdo para cegos. Porém, reforço que este mecanismo pode trazer muitas contribuições também para qualquer estudante. Porém, o estudante cego precisa dos materiais manipuláveis para literalmente sentir para poderem fazer abstração. Não que os outros alunos não tenham essa necessidade, mas é que no caso dos deficientes visuais, o concreto é um dos únicos meios possíveis de conhecimento das coisas que o cercam. (SCHUHMACHER; ROSA, 2009, p. 747). O recurso material é de extrema importância para o ensino e a aprendizagem do estudante cego não somente em matemática, mas em qualquer outra disciplina do conteúdo escolar. Reily (2004), que descreveu alguns materiais para auxiliar estudantes com algum tipo de deficiência em diversas áreas do conhecimento (geografia, matemática, ciências, etc.), mostrou a importância da aprendizagem pela ação sobre o objeto e a experiência do toque. Segundo Reily (2004), para o ensino da matemática “existem algumas soluções já consagradas e amplamente utilizadas nas salas de recursos ou em classes especiais, como o cubaritmo e o sorobã” (p. 60). Com o uso de materiais manipuláveis, os estudantes podem produzir novos significados na disciplina de matemática. Mas, infelizmente, na prática, a utilização de materiais manipuláveis ainda não é tão comum na escola regular de ensino. 48 Temos uma demanda de alunos com deficiência visual que precisam desse auxílio, porém, o uso e a presença dos materiais ainda são insuficientes. Alguns trabalhos foram estudados por Reily (2004), que observou que às vezes “professores muito criativos e sensíveis às possibilidades de seus alunos inventam e adaptam jogos para tornar o conteúdo acadêmico acessível ao aluno com necessidades especiais” (REILY, 2004, p. 61). Aconselha-se construir materiais manipuláveis com a parceria dos próprios estudantes. Isso trará como contribuições atividades individuais e coletivas entre eles, como também interações com o meio escolar. Haja vista que as abstrações matemáticas não seriam eliminadas por este método, o conhecimento matemático poderá ser produzido respeitando-se o rigor teórico de tais abstrações, porém, seus conceitos serão alcançados por outro procedimento, pelo concreto. Este caminho poderá unir os estudantes e o ensino da matemática, criar uma nova cultura escolar, e a inclusão destes estudantes em escolas regulares e no meio social. É importante respeitar a individualidade do estudante, sendo ele cego ou não, pois cada um tem seu tempo e sua própria bagagem de conhecimento oriunda da experiência relacionada com o meio em que vive. Baseando-se nos estudos de Vygotsky (2008), qualquer mente humana compete sua própria história e o seu próprio fenômeno psicológico. “O aprendizado das crianças começa muito antes de elas frequentarem a escola. Qualquer situação de aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem sempre uma história prévia.” (p. 94). O ser humano, independentemente de idade e aprendizado, é único e tem suas próprias interpretações e decisões. Cada um de nossos estudantes cria sua própria relação entre as coisas. E, no momento de fazer as constatações das diversas possibilidades de relações das coisas ou fazer as correspondências daquilo que está aprendendo, o aprendiz o fará sozinho e individualmente. Ao exigir que os alunos se nivelem, a escola consegue prejuízos educacionais: o fracasso daqueles que não possuem as habilidades exigidas e o não desenvolvimento das habilidades possuídas, ambos com conseqüências desastrosas, tanto para o individuo quanto para sociedade. (LORENZATO, 2010, p. 35). 49 Portanto, informações oferecidas aos alunos poderão ser as mesmas, mas o aprendizado acontecerá de forma diferente para cada estudante, de acordo com seu próprio tempo e a experiência vivida. Ensinar matemática utilizando apenas lousa e giz impossibilita a pessoa cega ter acesso as representações matemáticas. Desta forma os materiais manipuláveis poderão contribuir com essas representações. Entretanto, não se espera que eles garantirão a aprendizagem de qualquer aluno. Os materiais disponibilizados aos alunos serão apenas os meios que poderão levar o aluno a desenvolver seu pensamento matemático. Ou seja, permitir o estudante conheça algumas representações de objetos matemáticos. Para uma pessoa cega, em particular, é muito difícil fazer a representação visual de um desenho, logo, o material manipulável pode permitir que se representem certos assuntos da matemática por outras vias. Por exemplo, para quem não enxerga, um cubo desenhado, mesmo em relevo, não é como o cubo na sua forma tangível ou forma tridimensional. O ver com as mãos pode permitir ao cego compreender as propriedades matemática a partir da manipulação de um objeto. As Figuras 5 e 6 ilustram a ideia. Figura 5: Cubo desenhado. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. 50 Figura 6: Material manipulável (cubo). Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora. Para que o benefício