UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS GIOVANNA SPINELI DE PAIVA EFETIVAÇÃO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO PROCESSO PENAL: Análise de necessidade e viabilidade de encerramento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Franca 2024 GIOVANNA SPINELI DE PAIVA EFETIVAÇÃO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO PROCESSO PENAL: Análise de necessidade e viabilidade de encerramento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, para obtenção do título de Bacharela em Direito. Orientador: Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges Franca 2024 GIOVANNA SPINELI DE PAIVA EFETIVAÇÃO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO PROCESSO PENAL: Análise de necessidade e viabilidade de encerramento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, para obtenção do título de Bacharela em Direito. Data da defesa: 24/10/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Campus de Franca ______________________________________ Prof. Ms. Gabriel Menezes Horiquini UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Campus de Franca ______________________________________ Prof. Ms. Guilherme Rodrigues da Silva UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Campus de Franca Dedico este trabalho aos meus pais, que me ensinaram a aproveitar dos tempos nublados para praticar a arte de correr na chuva. AGRADECIMENTOS À minha mãe, Rosalva, por ser a minha maior inspiração e por ter me ensinado a enfrentar os desafios com coragem. Ao meu pai, João Carlos, por sua fé imensurável em mim e cujo apoio incondicional me guiou nos momentos mais difíceis. Ao meu irmão, Matheus, de quem sou a maior fã, por ter sido meu primeiro amigo. Aos meus amigos, minha segunda família por todas as cidades que fiz de lar. Ao Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges, pela orientação na realização desse trabalho. “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente” (Assis, 2016, p. 24-25). RESUMO Segundo as diretrizes da Resolução nº 487/2023 do CNJ, o sistema judiciário deve adotar políticas antimanicomiais na condução da execução penal. Urge, nesse sentido, a extinção dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico - estruturas sobreviventes do movimento de Reforma Psiquiátrico de meados dos anos 90. Assim sendo, o presente trabalho se dedica à compreensão assertiva sobre a viabilidade do encerramento dessas instituições e à avaliação da necessidade dessa medida. Com esse intuito, busca-se entender as implicações do manicômio no processo penal e possíveis violações de direitos fundamentais de sujeitos inimputáveis para construir reflexão sobre os avanços do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial nas políticas criminais, através de alternativas como o PAI-PJ e o PAI-LI. Para atingir tal finalidade, faz-se uso de repertório bibliográfico e dados sobre o conceito de periculosidade, a fim de contemplar as perspectivas jurídicas e sociais acerca dessas formas de tratamento alternativo. Palavras-chave: reforma psiquiátrica; manicômios judiciários; periculosidade; HCTP; política antimanicomial. ABSTRACT According to the guidelines of Resolution No. 487/2023 of the CNJ, the judiciary must adopt anti-asylum policies in the execution of criminal sentences. In this context, the closure of Custody and Psychiatric Treatment Hospitals - institutions that survived the Psychiatric Reform movement of the mid-90s - is urgent. Thus, this study is dedicated to understanding the feasibility of shutting down these institutions and assessing the necessity of this measure. The research aims to analyze the impact of asylums on criminal proceedings and possible violations of the fundamental rights of legally incapacitated individuals in order to reflect on the advances of the National Anti-Asylum Movement in criminal policies through alternatives such as the PAI-PJ and PAI-LI. To achieve this objective, the study employs bibliographic resources and data on the concept of dangerousness, in order to consider the legal and social perspectives of these alternative forms of treatment. Keywords: psychiatric reform; judicial asylums; dangerousness; HCTP; anti-asylum policy. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS HCTP Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico CNJ Conselho Nacional de Justiça TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo TJMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais CPP LEP OMS SUS UBS UA UPA SAMU RAPS CAPS SRT PAI-PJ PAILI PVC Código de Processo Penal Lei de Execução Penal Organização Mundial da Saúde Sistema Único de Saúde Unidades Básicas de Saúde Unidades de Acolhimento Unidades de Pronto Atendimento Serviço de Atendimento Móvel de Urgência Rede de Atenção Psicossocial Centro de Atenção Psicossocial Serviço Residencial Terapêutico Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator Programa “De Volta para Casa” SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 10 2 INIMPUTABILIDADE E APLICAÇÃO DE MEDIDAS DE SEGURANÇA: TRATAMENTO À LOUCURA NO SISTEMA PENAL .................................. 15 2.1 Definição de crime no Direito Penal ................................................................... 15 2.2 Culpabilidade: fundamentos teóricos e estruturação jurídica ...................... 16 2.3 Inimputabilidade e suas implicações no sistema penal ..................................... 18 2.4 Medidas de Segurança: conceito, objetivos e aplicações .................................... 20 2.5 Periculosidade: perspectivas do fundamento das medidas de segurança ......... 27 2.5.1 Análise histórica da periculosidade no contexto penal ............................................ 28 2.5.2 Panorama contemporâneo da periculosidade .......................................................... 32 2.6 Aspectos procedimentais do exame de cessação da periculosidade.................... 34 2.7 Controvérsias jurídicas na aplicação das medidas de segurança no Brasil ...... 36 3 CONTEXTO NACIONAL: DE “MANICÔMIOS JUDICIAIS” AOS HCTPS ................................................................................................................... 40 3.1 Surgimento dos manicômios judiciais no Brasil ................................................. 41 3.2 Críticas ao modelo manicomial e a necessidade de reformas ............................. 47 3.3 Transição para HCTPs (Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico) ... 51 4 EFETIVAÇÃO DA POLÍTICA ANTIMANICOMIAL NO PODER JUDICIÁRIO ........................................................................................................ 53 4.1 Legislação e políticas públicas contemporâneas sobre saúde mental .............. 53 4.2 A Política Antimanicomial do Poder Judiciário: Análise das Diretrizes do CNJ ........................................................................................................................ 56 4.3 Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ................................................................. 59 4.4 Programas de ressocialização do paciente judiciário ......................................... 60 4.4.1 Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) .............................. 61 4.4.2 Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI) ....................................... 63 4.4.3 Programa “De Volta Para Casa” .............................................................................. 66 5 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 68 REFERÊNCIAS ................................................................................................... 73 10 1 INTRODUÇÃO Promulgada em 6 de abril de 2001, a Lei nº 10.216, reconhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, tornou-se um marco nas mudanças referentes ao tratamento de pacientes psiquiátricos no Brasil. Ao instituir tutela sobre seus direitos e dar novo direcionamento ao modelo assistencial em saúde mental, a legislação simbolizou avanços possibilitados pela insurgência de movimentos sociais em defesa de políticas antimanicomiais, inspirados por causas internacionais similares, à luz da aplicação efetiva dos direitos humanos às pessoas portadoras de transtornos mentais. Nesse sentido, a observância das insurreições em prol da desinstitucionalização se faz necessária sobre o campo da condução do Processo Penal brasileiro, posto que ainda é possível notar a existência de aparatos manicomiais no sistema punitivo em vigor no país. Tratam-se dos denominados Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, ora alcunhados como manicômios judiciais, que subsistiram às reformas incitadas no final do século XX e começo do século XXI. A permanência dessas instituições no escopo normativo ocasiona debates acerca da efetividade desses avanços no âmbito da execução penal no que concerne aos indivíduos inimputáveis submetidos a medidas de segurança, que são direcionados a essas instituições por diligências que visam assegurar a serenidade da sociedade fora do cárcere em detrimento de sua recuperação e ressocialização. Para tanto, é sobressalente a existência de idealizações teóricas sobre a periculosidade desses indivíduos, herança da escola positiva do Direito Penal nos moldes sociais. Nesse ínterim, ante incontrovertível ameaça às garantias fundamentais dessas pessoas, urge a necessidade de medidas que findem a aplicação de medidas de segurança em meios asilares. A fim de abonar mecanismos que assegurem a reabilitação desses sujeitos à vida social, é publicada, no ano de 2023, a Resolução nº 487 do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece diretrizes para a substituição progressiva desses estabelecimentos, instituindo prazo limite para o fim das atividades em HCTPs ao longo do país, sob o propósito de assegurar princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório e acesso à justiça, além do direito à saúde e à dignidade da pessoa humana. A normativa prescreve esclarecimentos quanto à adoção de medidas destinadas a pessoas com transtorno mental, ou qualquer forma de deficiência psicossocial, sob custódia - sejam elas, segundo o Art. 1º, “investigadas, acusadas, rés ou privadas de liberdade” (Conselho Nacional de Justiça, 2023, p. 5). 11 Não obstante, entende-se que, para o vislumbre de um ordenamento livre dos manicômios judiciais, é fundamental assimilar as camadas complexas de aspectos históricos, sociais e jurídicos inerentes às questões sobre a pauta. Dessa maneira, torna-se impossível versar sobre a incidência da Reforma Psiquiátrica no Direito Penal sem a priori, estabelecer como o paciente psiquiátrico, quando delinquente, é visto, interpretado e acolhido pelo âmbito normativo. Para tal, é necessário recapitular os entendimentos preceituais que pontuam o crime como a ação típica, antijurídica e, sobretudo, culpável - para que, desta forma, seja viável compreender os enfoques sobre a culpabilidade e, consequentemente, a inimputabilidade intrínseca a esse tipo de agente. Em decorrência dessas definições, faz-se imprescindível a explanação sobre a referida periculosidade desses agentes e o subsequente domínio sobre as matrizes históricas desses conceitos. Ademais, é de suma relevância aferir as implicações contemporâneas desta concepção, assim como a aplicação deste termo no sistema penal através do exame de cessação de periculosidade - requisito para o encerramento da medida de segurança. Paralelamente, é fundamental que haja a assimilação do panorama histórico motivador ao surgimento dos manicômios judiciais no ordenamento jurídico brasileiro, para que, a partir deste, sejam elencadas as críticas cabíveis ao modelo manicomial. Outrossim, d eve-se compreender, de maneira adequada, a transição dos manicômios judiciais aos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico para a exercer discernimento competente sobre o fim de suas atividades. Neste contexto, o presente trabalho de conclusão de curso visa tecer análise crítica sobre o binômio existente entre a necessidade e a viabilidade do fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no país, com destaque às desaprovações teóricas ao obsoleto modelo manicomial e à potencialidade de alternativas a essa modalidade. Nesse sentido, utiliza-se da exposição de programas assistenciais em vigor no país, como os Programas de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) e ao Louco Infrator (PAI-LI), buscando esclarecer as metodologias empregadas e os resultados obtidos por estes. Atém-se como objeto de pesquisa, portanto, os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, dedicando-se à análise da conjuntura relativa à sua subsistência, desde aspectos normativos até panoramas históricos. Compõe o objeto de estudo, conjuntamente, o intrínseco reconhecimento sobre os impactos decorrentes da existência dessas entidades no que diz respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos submetidos a medidas de segurança. A realização deste estudo se justifica não apenas pela latente premência de revisão das práticas vigentes no regimento penal; mas, também, pela urgência notória pela garantia 12 legislativa de que os direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos no sistema penal sejam respeitados e promovidos. É mister que haja advertência quanto ao amparo legal a esse contingente marcado por um cenário de segregação social e, por conseguinte, de esquecimento, tratando-se de sujeitos abandonados à custódia de uma instituição que, além de não nutrir mecanismos que capacitem sua reintegração à comunidade, não apresentam diretrizes claras e expressas quanto à execução de sua punição perante o Direito. Isso porque, diferentemente das penas privativas de liberdade, que têm prazo máximo definido em lei, as medidas de segurança não possuem duração delimitada, sendo condicionadas ao tempo indeterminado em que não houver laudo técnico-pericial que indique a cessação da periculosidade do agente - ainda quando incidente sobre internações em Hospitais de Custódia. Para tal, o presente estudo adotará uma pesquisa descritiva, mediada por métodos indutivo e hipotético-dedutivo. Realiza-se a metodologia através da coleta de informações qualitativas, dada a integração de fontes bibliográficas e coleta de dados jurisprudenciais, cuja finalidade é apresentar uma perspectiva alinhada às diretrizes teóricas e à realidade das implicações do tema. Obtém-se, portanto, o encerramento dos HCTPs como problemática central e se estabelece hipóteses plausíveis à viabilidade dessa operação frente à constatação de sua necessidade por indução. Para tanto, adotou-se o arcabouço teórico-bibliográfico obtido em pesquisa junto a repositórios acadêmicos, a partir da consulta de trabalhos científicos e artigos publicados em revistas competentes para as tratativas do tema. Esta abordagem permitiu a coleta e análise de informações relevantes e atualizadas, proporcionando uma base sólida para o desenvolvimento do estudo e a identificação de lacunas na literatura existente, o que contribuiu para uma compreensão profunda das problemáticas relacionadas aos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e às medidas de segurança na atualidade. Utiliza-se, ademais, a título de ilustração das circunstâncias em voga, de jurisprudência coletada junto ao repositório disponibilizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em seu website, a partir da seleção de decisões recentes em 2° instância nesta Corte, compreendidas entre os anos de 2023 e 2024. Para a realização da pesquisa jurisprudencial, justificadas pela menção aos temas em debate, fez-se uso das seguintes palavras-chave: “periculosidade”, “HCTPs”, “Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico” e/ou “desinternação”. Tal repertório foi selecionado com o intuito de filtrar os acórdãos incidentes sobre a desinternação de pacientes psiquiátricos em cumprimento de medida de segurança em HCTPs, a fim de se analisar as justificativas favoráveis ou desfavoráveis à liberação destes condenados ao tratamento ambulatorial. Além disso, empregou-se decisões obtidas pela mesma coleta para 13 a verificação da aplicação da Resolução n° 487/23, do CNJ, dada sua disposição clara de impedir novas internações nesse tipo de instituição. A partir do exame crítico de dados e referenciais teóricos obtidos, o objetivo do trabalho é apresentar uma visão assertiva sobre a possibilidade de encerramento dessas instituições a partir da adoção de alternativas correspondentes aos princípios de ressocialização e dignidade humana. A partir desta finalidade geral, tem-se como intuito, especificamente, investigar a efetivação dos avanços conquistados pelo Movimento Nacional de Luta Antimanicomial no Brasil, reconhecer as possíveis infrações aos direitos fundamentais dos agentes inimputáveis, e, por fim, compreender a operação e a implementação de formas alternativas de tratamento às unidades de custódia psiquiátrica. O primeiro capítulo empenha-se à compreensão do tratamento à loucura no Direito Penal brasileiro. Nesse viés, buscou-se elaborar os conceitos normativos por detrás da aplicação das medidas de segurança, tais como a culpabilidade e inimputabilidade. Tais definições são indispensáveis, posto que o exame da culpabilidade incide sobre a caracterização da inimputabilidade, que, por sua vez, torna o sujeito inapto à sujeição à pena, tornando-o objeto de medida de segurança. Faz-se, ainda, análise do conceito de periculosidade, inerente à constatação do estado de inimputabilidade, e a genealogia desse critério nas entranhas do Direito Penal, propondo-se à exposição quanto às aplicações incongruentes das medidas de segurança e do seu exigido exame de cessação de periculosidade. Em sequência, o segundo capítulo do trabalho se destina à análise panorâmica do surgimento dos manicômios judiciais até o estabelecimento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Realiza-se alusão, neste momento, ao movimento antimanicomial e ao cenário auspicioso à Reforma Psiquiátrica, sendo clarificado o contexto que possibilitou a promulgação da Lei n° 10.216/2001, ou Lei Paulo Delgado. Nesse contexto, viabiliza-se a menção às críticas inflamadas ao modelo asilar, suscitadas no final do século XXI, a partir dos levantes pela Psiquiatria Democrática ao redor do globo. Por fim, esclarecidos os pontos centrais quanto à discussão sobre a necessidade de encerramento dos HCTPs, o terceiro capítulo se deslumbra sobre a análise da possibilidade de efetivação da política antimanicomial no Poder Judiciário, sobretudo no que diz respeito ao possível encerramento das atividades dessas instituições de custódia. Nesse contexto, são apresentados os programas assistenciais capazes de acolher os indivíduos egressos desse sistema, a exemplo do Programa de Atenção Integral ao Paciente Jud iciário (PAI-PJ), em Minas Gerais, e do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAI-LI), em Goiás. Além disso, o capítulo aborda iniciativas governamentais como o Programa Volta para Casa, que, enquanto 14 vértice da Rede de Atenção Psicossocial, se configura como primordial à salvaguarda da ressocialização desses pacientes dentro de um modelo assistencial e ambulatorial. Em síntese, a relevância do estudo em questão reside no fato de que o fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no Brasil representa a reafirmação do compromisso com os direitos fundamentais dos indivíduos inimputáveis no país, além da urgência de se repensar estruturas que, na hodiernidade, se demonstram em pleno desacordo com os princípios constitucionais e internacionais de direitos humanos. A conclusão deste estudo visa, assim, oferecer uma base para debates futuros sobre a transição para um modelo de tratamento que respeite a dignidade dos indivíduos inimputáveis e promova uma verdadeira justiça penal inclusiva. 15 2 INIMPUTABILIDADE E APLICAÇÃO DE MEDIDAS DE SEGURANÇA: TRATAMENTO À LOUCURA NO SISTEMA PENAL É incontrovertível que o campo da criação e extinção das instituições manicomiais remonta às origens do manejo dado à loucura no Direito Penal - o sistema de normas jurídicas reguladoras do exercício do poder punitivo do Estado que tem, por objeto, a determinação de infrações e suas respectivas sanções em penas ou medidas de segurança (Bitencourt, 2021, p. 44). A fim de alcançar o mérito dessa questão, a compreensão adequada acerca da evolução e da aplicação contemporânea das medidas de segurança no contexto penal-brasileiro perpassa pela revisão quanto à trajetória histórica e legislativa do tratamento destinado aos pacientes psiquiátricos no sistema jurídico brasileiro. Para tal, este panorama deve incluir a análise do escopo das transformações jurídico- sociais que foram responsáveis pela construção da percepção da loucura e sua iminente relação com a criminalidade, desde as abordagens clássicas punitivas até a forma aceita na atualidade, haja vista as adequações necessárias ao movimento antimanicomial. Outrossim, a simples menção ao tratamento do “louco infrator” no Direito Penal brasileiro está envolta pela noção da culpabilidade e consequente inimputabilidade do sujeito. 2.1 Definição de crime no Direito Penal Para atingir o cerne do tema, é necessário caracterizar, com propriedade, o que é crime para as definições do Direito Penal. Crime, antes de mais nada, é um conceito cujas variáveis acompanham a evolução histórica da comunidade nos aspectos morais e éticos. Nesse sentido, institui-se a teoria geral do delito, cuja partida remarca à obra de Ernst von Beling, que, em 1906, foi responsável pela introdução do conceito de tipicidade em conjunto aos tópicos de análise de autores do final do século XIX, como Von Liszt (Médici, 2004, p. 15). Mediante a teoria, é possível delimitar as características comuns aos delitos abarcados pela legislação do país sob a formulação dos aspectos comuns a cada (Médici, 2004, p. 15). Do ponto de vista formal, o termo corresponde à conduta que está em disparidade à norma, devendo ser considerado todo ato humano proibido pela lei (Rostirolla et al., 2021, p. 2). Trata-se, portanto, da interpretação jurídica acerca do delito de que, quando a conduta é reprovável e indesejada, em sociedade, os meios naturais de pressão operam para a materialização do tipo penal em lei pelo Poder Legislativo competente (Rostirolla et al., 2021, p. 110). 16 Em contrapartida, o viés material definidor do conceito adere como crime toda aquela ação ou omissão que fere um bem jurídico penalmente tutelado, à luz dos direitos e garantias constitucionais, tais como a vida e o patrimônio (Rostirolla et al., 2021, p. 2). Para o postulado pelo penalista Claus Roxin, “o conceito material de crime é prévio ao Código Penal e fornece ao legislador um critério político-criminal sobre o que o Direito Penal deve punir e o que deve deixar impune” (Roxin, 1999, p. 51 apud Nucci, 2024). Não obstante, analisa Damásio de Jesus que o tópico material conduz a fundamentação do legislador para a criação da avaliação formal (Jesus, 2015, p. 193 apud Rostirolla et al., 2021), sendo o fruto da materialidade do crime. Nesse contexto, cabe destaque à apreciação do critério analítico, segundo o qual o crime se divide em elementos principais, sendo eles: o fato típico, a ilicitude e a culpabilidade. A partir dessa tríade, obtém-se a que compõem o que é alcunhado pela ciência jurídica como teoria tripartite do crime. Para o doutrinador Bitencourt (2023, p. 137), o sistema clássico é responsável pela postulação da teoria tripartida, cuja máxima se sintetiza em interpretar o crime como um fato típico, ilícito e culpável. É possível mencionar, ainda, a existência de vertentes interpretativas que aduzem uma teoria bipartida, com o crime sendo o fato típico e ilícito; sendo a culpabilidade, nessa linha de raciocínio, um pressuposto para a aplicação da pena. Caracteriza-se, ainda, na perspectiva de parte minoritária da academia, a punibilidade como um dos elementos componentes - entretanto, é de entendimento majoritário que essa está relacionada ao resultado da ação delituosa, e não uma característica própria do crime. A título de definição, entende-se como fato típico a ação humana que está definida na norma penal, sendo fundamental, para caracterizá-la, que haja a conduta do agente - ação ou omissão, dolosas ou culposas - e o resultado indesejado, jurídico ou normativo, além do nexo de causalidade entre esses tópicos e a tipicidade, que é a própria compatibilidade da situação ao tipo penal. Paralelamente, é tida como ilicitude a contrapartida entre a conduta e o ordenamento jurídico, como ora mencionado, com objetivo de tutela aos bens. 2.2 Culpabilidade: fundamentos teóricos e estruturação jurídica Superadas as interlocuções referentes à tipicidade e à ilicitude na caracterização do crime, à luz da teoria tripartite, cabe análise minuciosa da definição de culpabilidade, vez que a apreensão do conceito é imprescindível à pauta das medidas penais aplicadas a pacientes psiquiátricos, vez que o elemento figura como primordial para a caracterização do debate sobre o tratamento do sujeito portador de doenças mentais no Direito Penal. 17 Nessa acepção, convém ressaltar a máxima latina, cunhada pelos ideais liberais iluministas (Florêncio Filho, 2014, p. 178), na qual se baseia o princípio constitucional da legalidade, “nulla poena sine culpa”: logo, não há pena sem que haja culpa. Para Nucci (2024, p. 229), a culpabilidade é fundamento e limite da pena, e, salienta- se, mais uma vez, componente do crime - e não apenas um pressuposto aderente, pois fornece a razão de se aplicar a pena. Acerca do tópico, parte o doutrinador da defesa de que, se contrário fosse e o crime fosse meramente o fato típico e ilícito, não culpável, seria possível, no ordenamento jurídico, a penalização de um menor de dezoito anos que, por coação moral irresistível, o cometeu - sendo trivializado o conceito de delito (Nucci, 2024, p. 111). Em tempo, conforme Sainz, a culpabilidade se resume um juízo de reprovação pessoal feito pelo autor que praticou o injusto penal - uma vez que, sob a índole de poder se guiar pela obediência à norma e, consequentemente, à moral, optou por agir em contrariedade por livre arbítrio (Sainz Cantero, 1981, p. 41-42 apud Florêncio Filho, 2014, p. 175). Este juízo de censura, segundo Assis Toledo e Cernicchiaro (1994, p. 229-230 apud Nucci, 2024), “só pode estar na cabeça de quem julga, mas tem por objeto o agente do crime e sua ação criminosa”. Nesse ínterim, a culpabilidade figura como limitação à intervenção do Estado ao posicionar a intenção do agente como peça central na equação que envolve a interpretação delitiva (Florêncio Filho, 2014, p. 176), posto que se determina pela reprovabilidade d o autor, na teoria postulada por Welzel (1997, p. 166 apud Florêncio Filho, 2014, p. 175). Em sede de esclarecimento, o conceito de culpabilidade pode ser entendido a partir do progresso de três óticas distintas. Tem-se, em primeiro momento, a vertente psicológica, ou causalista, segundo a qual a culpabilidade se resume à indicação de dolo e culpa na conduta do agente, conferindo-lhe o aspecto subjetivo, tendo a imputabilidade penal como pressuposto. Em contrapartida, o viés normativo, ou psicológico-normativo, agrega à teoria antecedente a prova de exigibilidade e da possibilidade de orientação segundo as normas. A vertente normativa pura, ou finalista, entende como conduta a movimentação voluntária e consciente revestida de intuito - finalidade esta que deve ser amparada pela análise de dolo e culpa. Em suma: [...] culpabilidade é um juízo de reprovação social, incidente sobre o fato típico e antijurídico e seu autor, agente esse que precisa ser imputável, ter agido com consciência potencial da ilicitude e com exigibilidade e possibilidade de um comportamento conforme o Direito (Nucci, 2024, p. 226). Por fim, autores da doutrina pós-finalista, ou funcionalista, argumentam a vinculação desse elemento do crime às finalidades de prevenção relativas à pena. Não obstante, para 18 Gunther Jakobs, a culpabilidade está representada na falta de fidelidade do agente em relação ao Direito (Jakobs, 1997, p. 566-567 apud Nucci, 2024, p. 227). Claus Roxin, por sua vez, defende que a condução do exame de culpabilidade pela análise do livre-arbítrio, de tal forma que: [...] a capacidade humana de culpabilidade deve ser uma verificação científico - empírica, valendo-se de critérios fornecidos pela psicologia e pela psiquiatria, medindo-se o autocontrole do agente através de dados técnicos e menos abstratos (Nucci, 2024, p. 227). Este livre-arbítrio, no que lhe diz respeito, não perpassa os valores religiosos, sendo aplicado como sinônimo do mero querer humano, em sua essência (Nucci, 2024, p. 229). Do ponto de vista crítico, Díez Ripollés intervém que a substituição da análise psicológica do indivíduo causa déficit ao processo de imputação penal, pois, em suposição, isto depauperaria a análise por falta de instrumentação técnica para conhecimento dos efeitos preventivos-gerais ou pelo dilema da subjetividade quanto à autodeterminação do ser (Díez Ripollés, p. 205 apud Nucci, 2024, p. 227). Nucci (2024, p. 228), porém, aduz que cabe ao julgador, enquanto operador do Direito, ter as aptidões necessárias para interpretar as condições de orientação do autor segundo o regramento legal, em observância às provas dos autos. 2.3 Inimputabilidade e suas implicações no sistema penal Nesse sentido, no âmbito da punibilidade de pacientes psiquiátricos, resta, portanto, a dubiedade acerca da capacidade de autorregulação do agente para se dispor da norma para se orientar na vida civil - o que é a causa central do estigma por trás da figura ambígua do “louco infrator” no Direito Penal. Ante o exposto, faz-se impreterível a conceituação do que é a inimputabilidade na ciência jurídico-social, assim como a reconstituição do arcabouço histórico no qual situa a idealização dos infratores que, por ventura, são tidos pela comunidade como doentes mentais. A imputabilidade penal é entendida como o conjunto de condições individuais, dimensionadas pela capacidade intelectual e vontade de agir do sujeito, que permite que este realize o discernimento da realidade para ser regular e orientar pelo que é exigido na norma. Em síntese, nada mais é que a atribuição do crime ao indivíduo, fundamentada na capacidade do caráter criminoso do fato, qual seja, o estado psicológico que se fundamenta na razão, e 19 capacidade de se determinar de acordo com esse entendimento, ou seja, a capacidade de se determinar (Palomba, 2016, p. 135). Dentre as tipologias análogas à capacidade de imputação jurídica, é possível elencar a modalidade total, sendo aquela na qual o agente tem entendimento pleno do caráter criminoso do fato, além de ser totalmente capaz de se determinar de acordo; parcial, quando o agente, na época do fato, era parcialmente capaz de entender o caráter criminoso da ação e não era capaz de se determinar integralmente de acordo com esse entendimento; e, por fim, nula, quando indivíduo era totalmente incapaz de exprimir tal compreensão e, de igual modo, totalmente incapaz de se regular. Por capacidade de entendimento, toma-se a possibilidade do sujeito reconhecer a natureza do delito, assim como as demais condições e consequências do ato, partindo do conhecimento da penalidade, da organização legal, das consequências sociais e morais, do seu grau de experiência, maturidade, educação, inteligência, lucidez, atenção, orientação e memória (Palomba, 2016, p. 136). Paralelamente, a capacidade de determinação corresponde, resumidamente, à capacidade de escolher ou não pela prática do ato. Para o psiquiatra forense Guido Palomba, o simples diagnóstico de transtorno mental do indivíduo “não é o quanto basta para tirar completamente ou diminuir o grau de imputabilidade penal ou a sua capacidade de imputação jurídica” (Palomba, 2016, p. 137), sendo necessária a existência de um nexo de causalidade entre a patologia e o crime praticado. Nesse sentido, o termo figura como uma das possibilidades excludentes da atribuição de culpabilidade no que é tocante ao agente do fato. Segundo Nucci (2024, p. 232), implica-se o exame do binômio sanidade-maturidade, já que a sua implementação advém de critérios biológicos, psicológicos ou, até mesmo, biopsicológicos. No primeiro cenário, se considera, com exclusividade, a saúde mental do agente (Nucci, 2024, p. 232) - ou seja, se o desenvolvimento mental do indivíduo é incompleto ou retardado. Sob a ótica psicológica, tem- se a observância quanto à capacidade do sujeito de compreensão sobre o caráter ilícito da ação; e, sobretudo, de se guiar a partir desse entendimento. O critério biopsicológico agrupa os dois fatos anteriores, sendo o princípio adotado pelo atual Código Penal, vez que: [...] não é suficiente que haja algum tipo de enfermidade mental, mas que exista prova de que esse transtorno afetou, a capacidade de compreensão do ilícito, ou de determinação segundo esse conhecimento, à época do fato (Esbec Rodríguez; Gómez- Jarabo, 2000, p. 118-119 apud Nucci, 2024, p. 232). 20 Caracteriza-se, ainda, a figura do semi-imputável - aquele que, por função de compreensão parcial da ilicitude de sua conduta e, respectivamente, do seu próprio discernimento, nos termos do parágrafo único do Art. 26 do Código Penal. Entretanto, embora o conceito seja amplamente utilizado por parte da doutrina jurídico-penal, é necessário salientar que o termo enfrenta incorreções, sendo considerado como inadequado pelo viés dogmático, posto que a configuração da imputabilidade não admite gradações. Dessa forma, tem-se que ou o indivíduo é plenamente imputável, compreendendo a ilicitude do ato e tendo autocontrole, ou não é, pois, mesmo com a capacidade reduzida, o agente ainda é imputável, visto que mantém essa condição ainda que em grau menor (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2024). Portanto, evidencia-se as tratativas quanto ao paciente de doenças mentais no alicerce legislativo do Direito Penal, para além das políticas sanitárias de saúde mental. Urge, desse modo, a recapitulação quanto ao tratamento que se é dado aos ditos loucos na sociedade brasileira, e, consequentemente, no panorama das práticas-psiquiátricas no Brasil, cuja gnose se solidifica sob os moldes das escolas criminológicas europeias do século XIX (Assis, 2019, p. 40). 2.4 Medidas de segurança: conceito, objetivos e aplicações De acordo com Nucci (2023, p. 475), a medida de segurança é a forma de sanção penal destinada, no ordenamento jurídico, aos sujeitos inimputáveis - que, autores de fato típico e ilícito, não podem ser considerados criminosos pela ausência do juízo de culpabilidade, restando-lhes, em contrapartida, o critério da periculosidade. Se, sob uma perspectiva, a culpabilidade seria a premissa basilar para a aplicação da pena ao infrator, por outro lado, a periculosidade seria pressuposto para a injunção da medida de segurança (Caetano; Tedesco, 2021, p. 194). Até a Reforma Penal, mediada pela Lei nº 7.209 de 11 de julho de 1984, predominava o sistema do “duplo binário”, segundo o qual era possível responsabilizar o sujeito por pena e medida de segurança em conjunto - o que lesaria o princípio “ne bis in idem” que rege o Direito Penal (Bitencourt, 2021, p. 955). Na atualidade, faz-se uso do sistema vicariante, de tal modo que a relação entre pena e medida de segurança é alternativa - se imputável, o réu será penalizado; se inimputável, receberá a medida de segurança em algum de seus modais. A Lei nº 7.209/1984 dá a seguinte redação aos dispositivos do Código Penal (Decreto- Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940): 21 Art. 96. As medidas de segurança são: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II - sujeição a tratamento ambulatorial. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) Imposição da medida de segurança para inimputável Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Brasil, [2024a,], grifo próprio). Seu caráter punitivo não pode ser desconsiderado e apartado em virtude de natureza curativa e preventiva, pois “toda privação, por mais terapêutica que seja, para quem a sofre não deixa de ter um conteúdo penoso” (Nucci, 2023, p. 475), conforme atesta o entendimento majoritário. Entretanto, para uma doutrina minoritária, sustentada por Luiz Vicente Cernicchiaro e Assis Toledo, se a medida de segurança possui propósito assistencial, não seria necessário aplicá-la, sequer, à apreciação sob o princípio da legalidade e anterioridade, pois, ainda que restrinja a liberdade, teria função pedagógica (Nucci, 2023, p. 475). Para Bitencourt (2021, p. 956), todavia, a submissão das medidas de segurança ao princípio da reserva legal e, consequentemente, da legalidade e da anterioridade, disposto no Art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988, e Art. 1º do Código Penal, é indubitável, já que essa condenação, assim como a pena, “consubstancia forma de invasão da liberdade do indivíduo pelo Estado” (Bitencourt, 2021, p. 956). Dentre as diferenças entre pena e medida de segurança elencadas por Bitencourt (2021, p. 956), menciona-se, em primeiro lugar, que as penas têm um caráter punitivo e preventivo, enquanto as medidas de segurança possuem uma natureza essencialmente preventiva – visto que, ao passo que a imposição da pena é baseada na culpabilidade do indivíduo, as medidas de segurança se fundamentam, exclusivamente, na periculosidade. Além disso, as penas possuem duração fixa, enquanto as medidas de segurança são aplicadas por período indefinido, encerrando-se apenas quando a periculosidade do sujeito for extinta. O cumprimento da medida de segurança ocorre em duas modalidades distintas: a medida detentiva, através internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou instituição análoga, equiparada ao regime fechado da pena privativa de liberdade, ou tratamento ambulatorial, equivalente à pena restritiva de direitos, pelo mínimo de um a três anos, sem a 22 definição de prazo máximo (Nucci, 2023, p. 476-485), conforme se pode inferir da redação normativa do supracitado Art. 96 do Código Penal. Acerca da incompatibilidade da medida de segurança com o presídio comum, caso o indivíduo inimputável seja enviado para um estabelecimento prisional comum sem receber o tratamento adequado, é cabível a impetração de habeas corpus para pôr fim a esse constrangimento, exceto nos casos em que sua periculosidade for comprovada - circunstância na qual ele poderá aguardar vaga em instituição adequada, detido em presídio comum, se necessário (Nucci, 2023, p. 484). A regra geral, contudo, é que o portador de doença mental seja internado em um estabelecimento específico: Art. 99 - O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento (Brasil, [2024a]). Dos tipos de estabelecimento sobreditos, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, tema em enfoque no presente trabalho, é o título redesignado que se deu ao antigo manicômio judiciário após Reforma Penal de 1984 e a Reforma Psiquiátrica - aspecto sobre o qual se destinará análise aprofundada no capítulo seguinte. Paralelamente, inexiste definição na legislação do que seria um “estabelecimento adequado”; contudo, menciona-se que o internado deve ser recolhido em um local com características hospitalares para receber tratamento (Brasil, [2024a]). Quanto ao “local com dependência médica adequada”, ainda que a lei não o diferencie claramente do “estabelecimento adequado”, sua função seria o tratamento ambulatorial, conforme o art. 101 da Lei de Execução Penal, caso não haja hospital de custódia disponível (Bitencourt, 2021, p. 959). Na prática, entretanto, ambos os tipos de estabelecimento acabam sendo tratados da mesma forma. De acordo com Nucci (2023, p. 478), o estabelecimento da internação obrigatória do inimputável que comete fato típico e ilícito é criticada pois a medida desconsidera subestima as condições individuais das circunstâncias que regem cada caso - o que evitaria a internação de número volumoso de pacientes de problemas mentais, ao exemplo dado pela doutrina do inimputável que, ao cometer tentativa de homicídio com lesões leves, possui suporte familiar adequado para sua recuperação, sendo o tratamento ambulatorial uma alternativa mais apropriada sob o viés antimanicomial. Cita-se, nesse ínterim, o precedente firmado pelo Superior Tribunal que buscou equilibrar a problemática e corrigir essa padronização, admitindo a aplicação de tratamento ambulatorial para crimes punidos com reclusão, ao afirmar que a medida de segurança deve ser ajustada ao tipo de tratamento necessário, considerando a 23 condição do agente inimputável ou semi-imputável (Brasil, 2004, p. 211 apud Nucci, 2023, p. 478). Neste óbice, Carlota Pizarro de Almeida argumenta que a medida de segurança não deve ser correlacionada à gravidade do crime, mas sim à periculosidade do agente, respeitando o princípio da proporcionalidade (Almeida, 2004, p. 34 apud Nucci, 2023, p. 478). Além disso, especialistas em psiquiatria forense, como Taborda, Chalub e Abdalla-Filho, defendem que a escolha entre internação e tratamento ambulatorial deve se basear na natureza e gravidade do transtorno psiquiátrico, utilizando critérios médicos, em vez de vincular a medida ao crime praticado (Taborda; Chalub; Abdalla-Filho, 2004, p. 16 apud Nucci, 2023, p. 478). A aplicação da medida de segurança é dada pela sentença absolutória imprópria, assim denominada por configurar uma espécie de sanção penal, distinguindo-se da pena. A respeito do tópico, é disposto pelo art. 386, parágrafo único, III, do CPP: Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I - estar provada a inexistência do fato; II - não haver prova da existência do fato; III - não constituir o fato infração penal; IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; VII – não existir prova suficiente para a condenação. Parágrafo único. Na sentença absolutória, o juiz: I - mandará, se for o caso, pôr o réu em liberdade; II - ordenará a cessação das penas acessórias provisoriamente aplicadas; III - aplicará medida de segurança, se cabível (Brasil, [2024b], grifo próprio). Menciona Nucci (2023, p. 477), a despeito do tema, a existência da Súmula 422 do STF, segundo a qual a absolvição criminal não prejudica a medida de segurança cabível, mesmo que essa medida resulte em privação de liberdade. A execução da medida de segurança só pode ocorrer após o trânsito em julgado da sentença, conforme o Artigo 171 da Lei de Execução Penal, ou, simplesmente, LEP (Brasil, [2024c]). Para iniciar essa execução, é necessária a expedição de uma guia de internação ou de tratamento ambulatorial, conforme previsto no Artigo 173 da mesma lei (Brasil, [2024c]). Segundo Bitencourt (2021, p. 962), a medida de segurança provisória foi eliminada pela Reforma Penal de 1984 ao não repetir o disposto no antigo artigo 80 do Código Penal de 1940. No que se refere ao término da medida de segurança, cabe exercer a diferenciação entre suspensão e extinção. Nessa perspectiva, tem-se a suspensão quando, após um ano de liberação ou desinternação, não há a prática de qualquer ato que indique a persistência da 24 periculosidade, conforme estabelece o artigo 97, § 3º, do Código Penal. Caso esse período transcorra sem incidentes, in albis, a medida será extinta de forma definitiva, o que a lei denomina “revogação” (Bitencourt, 2021, p. 962). Comprovada a cessação da periculosidade por perícia, o juiz da execução ordenará a revogação da medida de segurança, determinando a desinternação ou a liberação provisória, aplicando as mesmas condições do livramento condicional, conforme o Artigo 178 da LEP (Brasil, [2024c]). Essa revogação, no entanto, não é definitiva, sendo uma suspensão condicional, já que, se o liberado ou desinternado cometer um ato que indique a persistência da periculosidade no prazo de um ano, a medida será restabelecida. Apenas após ultrapassar esse período sem incidentes a medida de segurança será extinta de forma definitiva (Bitencourt, 2021, p. 962). A legislação menciona “fato indicativo” de periculosidade e não necessariamente um elemento caracterizante ou crime. Durante o período de prova, o agente está sujeito às condições do livramento condicional, mas o mero descumprimento dessas condições ou a ausência do beneficiário não são suficientes para restaurar a medida de segurança (Bitencourt, 2021, p. 962). O juiz deve ouvir o beneficiário e tomar as mesmas precauções previstas para a revogação do livramento condicional, de acordo com os artigos 86 e 87 do Código Penal (Brasil, [2024a]). Paralelamente, de acordo com o Art. 96, parágrafo único, do Código Penal, uma vez extinta a punibilidade, é incabível a imposição de medida de segurança, assim como não subsiste aquela que tenha sido imposta em momento anterior (Brasil, [2024a]). Logo, ao surgir uma das causas de extinção da punibilidade, a aplicação da medida de segurança também é cessada, uma vez que a pretensão punitiva do Estado se encontra encerrada, mesmo que na forma de tratamento (Nucci, 2023, p. 476). Um exemplo disso seria a prescrição da pretensão punitiva, em que, se entre o recebimento da denúncia e a sentença decorrer o tempo necessário para a prescrição da pena, o juiz não deve impor a medida de segurança, ainda que tenha sido constatada a insanidade mental do acusado, devendo declarar extinta a punibilidade (Nucci, 2023, p. 476). Quanto à prescrição da punibilidade, por outra via, carece a legislação de um tratamento detalhado às medidas de segurança, de tal forma que se aplica a descrição do Art. 109 e 110 do Código Penal, referente à disciplina de penas restritivas de direito, que relatam em seu escopo: Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula -se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: 25 I - em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze; II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze; III - em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito; IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro; V - em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois; VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano; Parágrafo único - Aplicam-se às penas restritivas de direito os mesmos prazos previstos para as privativas de liberdade. Art. 110 - A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula - se pela pena aplicada e verifica -se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente. § 1o A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula -se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa (Brasil, [2024a]). Subsistem, portanto, no que tange à prescrição, duas categorias principais, que seriam a prescrição da pretensão punitiva e a prescrição da pretensão executória. A prescrição da pretensão punitiva ocorre antes do trânsito em julgado e se subdivide em três formas, sendo estas a prescrição in abstrato, a prescrição retroativa e a prescrição intercorrente (Bitencourt, 2021, p. 960). Já a prescrição da pretensão executória, no caso do inimputável, se regula pelo máximo da pena abstrata (Bitencourt, 2021, p. 960). Outro tópico relevante aos esclarecimentos da pauta é a conversão da pena privativa de liberdade em medida de segurança durante o percurso da execução penal. Determina o Art. 183 da Lei de Execução Penal que sobrevindo a doença mental ou perturbação da saúde mental durante no curso da execução da pena privativa de liberdade, o Juiz poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança de ofício, a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública ou da autoridade administrativa (Brasil, [2024c]). De acordo com Bitencourt (2021, p. 963), a substituição da pena por medida de segurança é uma exceção, prevista no Art. 98 do Código Penal, e ocorre quando o condenado necessita de tratamento curativo especial. Caso a enfermidade não seja permanente, o Art. 41 do Código Penal determina a transferência do sentenciado para um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico pelo tempo necessário à sua recuperação, sem que isso configure conversão da pena em medida de segurança, sendo apenas uma medida provisória para tratar a doença (Nucci, 2023, p. 480). Após a melhora, o condenado retorna ao presídio para cumprir sua pena. No entanto, se a doença mental for de caráter duradouro, a transferência deve ser definitiva, e o juiz, nesse caso, converte a pena em medida de segurança, conforme o art. 97 do Código Penal (Nucci, 2023, p. 480). É importante salientar, ainda, que a conversão do tratamento ambulatorial em internação, por sua 26 vez, não se trata de uma substituição de pena, mas de uma adequação de medida caso o tratamento ambulatorial não seja suficiente para a recuperação do condenado (Bitencourt, 2021, p. 963). O entendimento majoritário é de que, ao adoecer mentalmente durante o cumprimento da pena, o sentenciado deve ter sua pena convertida em medida de segurança, retornando à execução da pena original em caso de melhora, em ato de reconversão. Essa prática visa evitar subterfúgios e garantir que o condenado não seja indevidamente beneficiado ou prejudicado (Nucci, 2023, p. 481). Se a medida de segurança fosse aplicada de forma indefinida, além do prazo da pena fixada inicialmente, isso poderia resultar em abusos, comprometendo os direitos do condenado, visto que a imputabilidade deve ser avaliada no momento do crime (Nucci, 2023, p. 481). No entanto, se o condenado se recuperar durante a execução da medida de segurança, ele deve retornar ao cumprimento do restante da pena original, sem cabimento de medida que o confira liberdade imediata (Nucci, 2023, p. 481). Para a aplicação de uma medida de segurança, destaca-se, como requisitos, a imprescindibilidade da ausência de imputabilidade plena, uma vez que o imputável está sujeito apenas à pena. Ademais, é indispensável que o sujeito inimputável tenha praticado um ilícito típico. O apontamento a este requisito se faz relevante porque o critério deixa de existir quando há excludentes de criminalidade ou de culpabilidade, como erro de proibição invencível, coação irresistível, obediência hierárquica ou embriaguez completa acidental, com exceção da inimputabilidade (Bitencourt, 2021, p. 957). Além disso, a ausência de prova do crime ou da autoria também impede a aplicação da medida. Logo, deve ser garantido ao agente, mesmo que inimputável, o direito à ampla defesa e ao contraditório (Nucci, 2023 p. 477), no curso do devido processo legal. Adiciona, ainda, a doutrina, que se houver alguma excludente de ilicitude, obriga-se o Juiz, mesmo em julgamento de sujeito inimputável, absolvê-lo por falta do pressuposto da ilicitude, o que também se aplica aos casos de insuficiência de provas para comprovação da materialidade e consequente autoria do delito (Nucci, 2023, p. 477). Cabe salientar que a medida de segurança preventiva, anteriormente prevista no art. 378 do Código de Processo Penal, foi considerada revogada pela opinião majoritária da doutrina (Brasil, [2024b]). Inicialmente, o juiz poderia aplicar essa medida durante a instrução, mas tal previsão estava ligada à vetusta redação do Art. 80 do Código Penal de 1940, que permitia submeter inimputáveis, ébrios habituais e toxicômanos a medidas de segurança durante o processo de tal forma que, com a revogação desse dispositivo, tornou-se inevitável que o direito processual penal adotasse a mesma direção (Nucci, 2023, p. 477). Contudo, após a 27 promulgação da Lei nº 12.403, de 4 maio de 2011, o Código de Processo Penal passou a prever a possibilidade de o juiz decretar a internação provisória, nos casos de crimes cometidos com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem pela inimputabilidade do acusado, havendo risco de reincidência (Nucci, 2023, p. 477). Outro requisito fundamental é a supramencionada periculosidade do agente, definida como um estado subjetivo e duradouro de antissociabilidade, que indica a probabilidade de reincidência com base na conduta antissocial e em anomalias psíquicas (Bitencourt, 2021, p. 957) – herança da Escola Positiva no Direito Penal Moderno. Por fim, sintetiza-se as disposições do Código Penal que conferem distinção entre periculosidade presumida, aplicável a inimputáveis, nos termos do Art. 26, caput, e a periculosidade real, consoante aos “semi- imputáveis” nas definições do Art. 26, parágrafo único: Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (Brasil, [2024a]). 2.5 Periculosidade: perspectivas do fundamento das medidas de segurança Nesse contexto, a periculosidade está associada à propensão do agente à prática de novos atos antissociais. A avaliação dessa tendência fundamenta a intervenção estatal quanto à detenção do sujeito em internação, sob o cunho de proteção da sociedade diante desse sujeito tido como ameaçador, colocando a tutela do próprio indivíduo em situação de vulnerabilidade em segundo plano. As apreensões da genealogia dessa periculosidade, real ou presumida, é, portanto, crucial para a compreensão plena dos problemas intrínsecos às medidas de segurança estabelecidas no ordenamento jurídico-penal, sendo a sua análise uma etapa determinante na discussão sobre a responsabilização e a reabilitação dos sujeitos envolvidos no sistema judiciário. Nesse sentido, no campo do Direito Penal e da Criminologia, o conceito de periculosidade emerge da necessidade de prevenir futuros delitos e de resguardar tanto a comunidade do indivíduo que possa apresentar um risco potencial. Nota-se, portanto, a aplicação acrítica do denominado princípio “in dubio pro societate” - ou seja, “na dúvida, a favor da sociedade”. Essa máxima, ao determinar a condução de processos penais, é alvo de 28 divergência por parte da doutrina jurídica, haja vista que não está fundamentada sobre qualquer base constitucional (Lopes Júnior, 2017, p. 359) ou nos demais instrumentos legislativos (Aguiar; Brito, 2021, p. 15). Além dessa lacuna, conforme Lopes Júnior (2017, p. 359), o aforismo é “incompatível com a estrutura das cargas probatórias definidas pela presunção de inocência”. No âmbito das medidas de segurança, o “in dubio pro societate” é relativo à presunção de que, em caso de dúvida sobre a cessação da periculosidade do réu, a internação privativa de liberdade deve ser mantida, mesmo que em tempo superior à pena referente ao crime cometido, por se tratar da solução benéfica aos interesses da população geral. Ademais, é incontroverso que tal preceito é diametralmente oposto ao vigente princípio constitucional de “in dubio pro reo”, qual seja, “na dúvida, a favor do réu” que se manifesta, por exemplo, no corpo do Art. 386 do Código de Processo Penal, que certifica a absolvição do réu perante a inexistência de provas satisfatórias à sua condenação (Brasil, [2024b]). Como há de se verificar pela disposição de jurisprudência relacionada ao tema da desinternação em medida de segurança, é possível observar decisões que provêm pela manutenção desse tipo de encarceramento sob a falta de indícios de cessação da periculosidade do agente. Assim, deve-se mapear as noções históricas sobre as quais tal periculosidade está arraigada, a fim de não somente entender como surgiu a intersecção doutrinária entre as condições pessoais, comportamentais e contextuais do delinquente à predisposição para a prática de atos criminosos, como, também, para suscitar no raciocínio que asseverou a criação dos manicômios judiciais no país. A partir desse viés, possibilita-se a verificação dos desafios contemporâneos para a extinção desse tipo de instituição, dada sua solidificação no consciente coletivo. 2.5.1 Análise histórica da periculosidade no contexto penal Ante o exposto, urge a acepção acerca da naturalização da máxima de “periculosidade”, inerente ao paciente psiquiátrico envolvido no cometimento de crimes, que, conforme observa Barros-Brissef (2010a, p. 17) é uma significante embutida ao tecido social de forma intrínseca e orgânica. Nesse ínterim, é fundamental, em visão macroscópica e multifocal, a compreensão acerca da evolução narrativa que perpassa as escolásticas do Direito Penal em evolução histórica. 29 Segundo os estudos postulados por Foucault (2005 apud Moreira, 2021, p. 26), na narrativa histórica do mundo ocidental, a dicotomia entre a razão e a irracionalidade despertou o interesse da civilização desde a antiguidade grega, que já buscava formas de justificar a loucura em causa e efeito, a fim de compreender aquilo que fugia aos moldes sociais do que era moralmente aceito. O tema retornaria aos holofotes nos meados dos séculos XVII e XVIII, época em que a loucura seria conceituada como uma alienação mental e, portanto, uma doença mental (Moreira, 2021, p. 27). O conceito de periculosidade criminal emerge, portanto, do cenário da episteme filosófica que toma o homem como peça central da fonte e objeto de estudo do decurso do século XIX para Foucault (2004 apud Barros-Brisset, 2011, p. 38). Sob análise histórica, é necessário reconstituir o contraponto existente entre duas das escolas criminológicas que se sobressaíram à construção sistemática do Direito Penal posto em prática na contemporaneidade: a Escola Clássica e a Escola Positiva. À luz dos movimentos reformadores e humanitários suscitados pela Revolução Francesa, em meados do século XVIII, a Escola Clássica – idealizada, em um momento filosófico, por Cesare Beccaria, e, jurídico, por Francisco Carrara - dedicou-se ao domínio da finalidade da aplicação das penas, em contraposição ao arbítrio dos juízes da época, em sustentação acerca da correlação de proporcionalidade entre o crime e sua retaliação (Nucci, 2024, p. 11). A nomenclatura, entretanto, não é decorrente da homogeneidade da linha de pensamentos entre seus adeptos, tendo sido assim identificada de maneira pejorativa pelos positivistas que viriam tecer críticas quanto ao caráter científico das contribuições (Bitencourt, 2021, p. 116). Inspirados pelas ideologias do “século das luzes”, os pensadores contemplavam a razão e a humanidade no tocante à legislação criminal em vigor, baseando-se na ideia do livre arbítrio do sujeito e na sua inerente noção de responsabilidade (Peres; Nery Filho, 2002, p. 337), ante os pressupostos da igualdade dos homens perante a lei, da pena equiparada à gravidade do crime e do condicionamento da pena à legalidade (Peres; Nery Filho, 2002, p. 336). Em síntese, assume Bitencourt (2021, p. 120): A pena era, para os clássicos, uma medida repressiva, aflitiva e pessoal, que se aplicava ao autor de um fato delituoso que tivesse agido com capacidade de querer e de entender. Os autores clássicos limitavam o Direito Penal entre os extremos da imputabilidade e da pena retributiva, cujo fundamento básico era a culpa. Preocupada em preservar a soberania da lei e afastar qualquer tipo de arbítrio, a Teoria Geral do Delito limitava duramente os poderes do juiz, quase o transformando em mero executor legislativo. 30 Nesse contexto, a tese sustentada pela obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Bonessana, Marquês de Beccaria, defendia a missão de regeneração do criminoso penalizado e condenava a natureza intimidatória das penalidades que eram impostas aos penitenciários, com insurgências em defesa do princípio da responsabilidade pessoal (Nucci, 2024, p. 11). A obra, reconhecida pelo impacto nas percepções modernas do Direito Penal, utiliza da concepção contratualista, para arrazoar quanto à igualdade absoluta dos homens, e utilitarista, para conceber que a prevenção de delitos futuros não era oriunda do terror, porém da eficácia e certeza da sanção punitiva (Bitencourt, 2021, p. 102). Em contrapartida à teoria da prevenção, de Beccaria, inclinada à função utilitária da pena, a teoria da retribuição, liderada por Francesco Carrara, ia ao encontro à ideia de uma pena absoluta que retribuísse o crime ao criminoso através do castigo, (Nucci, 2024, p. 13). Dentre os princípios fundamentais que se vincula à sua asserção, pode-se mencionar o caráter de ente jurídico do crime; o livre-arbítrio como pressuposto da punibilidade; a pena como instrumento para retribuição da culpa moral; e, por fim, o princípio da reserva legal (Bitencourt, 2021, p. 119). Segundo Carrara (1971 apud Bitencourt, 2021, p. 118): A pena não é mais do que a sanção do preceito ditado pela lei eterna: a qual sempre visa à conservação da humanidade e à tutela dos seus direitos, sempre procede da norma do justo: sempre corresponde aos sentimentos da consciência universal. Com a noção de que o Direito Penal Clássico teria sido falho na contenção dos delitos devido ao aumento nos índices de criminalidade, emerge o positivismo criminológico, traduzido em um conjunto de teses que consideravam o crime como manifestação da personalidade humana e produto de causas biológicas (Jolo, 2013, p. 10). Nesse ínterim, a Escola Positiva do Direito Penal traz, consigo, a tese centralizada na periculosidade do indivíduo infrator - fato este que se refletiria nas medidas relacionadas à interlocução entre o Direito e a Psiquiatria. Se, por um lado, a Escola Clássica teria sido influenciada pela emergência de teorias iluministas do século XVIII, a Escola Positiva, por sua vez, encontra como fonte o advento de correntes biológicas, sociológicas e antropológicas na ciência do final do século XIX (Bitencourt, 2021, p. 121). Ao contrário dos clássicos, os positivistas priorizavam os interesses da sociedade em detrimento do indivíduo delinquente, cuja ressocialização retorna ao segundo plano da discussão (Bitencourt, 2021, p. 121). Fundador da Escola Positivista Biológica e da Antropologia Criminal, Cesare Lombroso, inspirado por teóricos como Charles Darwin e Augusto Comte, conceitua o 31 “criminoso atávico” (Bitencourt, 2021, p. 122), cujo ímpeto pela delinquência decorreria da sua genealogia, o que o rebaixaria a uma “subespécie do homem”. Nesse sentido, o autor constrói uma tipologia de delinquentes, podendo estes serem criminosos natos, por paixão, por loucura, de ocasião, ou, ainda, epiléticos (Bitencourt, 2021, p. 122). A teoria de Lombroso se respalda em estigmas físicos dos indivíduos, como assimetria facial, dentição, orelhas grandes, olhos defeituosos, características sexuais invertidas, tatuagens e irregularidades em dedos (Bitencourt, 2021, p. 122). Em resumo, tem-se que: A delinquência era, pois, para Lombroso, um fenômeno atávico: o delinquente era uma specie generis humani diferente. Tal era a teoria lombrosiana do delinquente nato, que combinou depois com as da “loucura moral” e a “epilepsia larvada”. A origem era atribuída ao descobrimento de uma terceira fossa occipital (“pequena cavidade occipital média”) no crânio de um famoso delinquente, que corresponderia a um terceiro lóbulo, que existe nos mamíferos superiores, mas não no homem. Toda a sua antropologia dedicou-se a buscar caracteres animais nos delinquentes: orelhas em asas, testa “inclinada”, baixa sensibilidade à dor (à qual atribui a grande difusão de tatuagens) etc. (Zaffaroni; Pierangeli, 2010, p. 258). Nesse contexto, surge a ideia de periculosidade, ou perigosidade, que vincula a ideia de que existem indivíduos que, naturalmente, apresentam perigos à sociedade. Desse modo, a teoria da periculosidade é empregada, desde os meados da década de 1940, com sua natureza sancionatória, como uma justificativa para a imposição das medidas de segurança ao louco delinquente, sendo aplicada de maneira indiscriminada para a segregação indeterminada e, até mesmo, perpétua, desses pacientes psiquiátricos (Caetano; Tedesco, 2021, p. 193). Não obstante, dada eclosão da psiquiatria nas vias de higiene pública, à época, o Direito se volta à análise multifocal da natureza do criminoso, a fim de alcançar a compreensão das razões que incitam o motivo por trás da pena – e não somente o crime e a punição (Barros- Brisset, 2011, p. 38). Segundo Mitjavila e Mathes (2012, p. 1379), a psiquiatria forense não obedeceu à evolução dos conhecimentos sobre as enfermidades mentais, de tal modo que tanto médicos quanto os legisladores “não estavam preocupados com as causas e as classificações da doença psíquica, mas sim com as providências legais a serem tomadas de acordo com a integridade mental do indivíduo”. Não obstante, a concepção da própria psiquiatria, como especialidade médica, possibilitou o estabelecimento de uma relação entre a Justiça e os institutos de Saúde Mental através de atividades profissionais especializadas (Rigonatti, 2003 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1379). Nesse sentido, o “louco infrator” é tido como a figura anfibológica que desafia, imediatamente, os entendimentos a título da culpabilidade, de tal forma que os psiquiatras introduzem o conceito de “crime louco”, ou monomania homicida – ficção endossada pela ideia 32 de que o sujeito louco é, consequentemente, um sujeito perigoso. Segundo a tese defendida por Foucault (Barros-Brisset, 2011, p. 38), esta parceria formada entre a psiquiatria e o direito, suscitada pelo escopo de motivações e necessidades distintas, “foi a incubadora responsável pela gestação e concepção da noção de indivíduo perigoso” (Foucault, 2004 apud Barros- Brisset, 2011, p. 38), em um processo que haveria de se desenvolver até a contemporaneidade, sendo entrelaçada ao inconsciente da coletividade como uma conclusão óbvia. Não obstante, o tema é alvo de críticas pela literatura jurídica e médica, uma vez que se questiona “o grau e alcance das relações entre doença mental e periculosidade criminal” (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1383). De acordo com Bastos (2007 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1383, grifo próprio): O tema da periculosidade jamais foi discutido seriamente pelos psiquiatras. Periculosidade é uma questão social e jurídica, porém absolutamente fora do campo psicopatológico; O que o psiquiatra pode dizer sobre o examinando restringe-se à sua saúde mental; existem pessoas perigosíssimas sem nenhum problema psiquiátrico, e vice-versa. Nesse sentido, tem Mitjavila e Mathes (2012, p. 1384) que tal noção de “transtorno mental”, e não mais a de loucura, como nos primórdios do desenvolvimento e gênese da psiquiatria, “é o principal fundamento contemporâneo da medicalização do crime e da periculosidade criminal". 2.5.2 Panorama contemporâneo da periculosidade Nesse cenário, a psiquiatria moderna tem, por periculosidade criminal, a potência que o indivíduo tem para voltar à prática delitiva - caracterizando-o, portanto, como alguém perigoso à sociedade, ocasionando a necessidade de uma medida de segurança que a proteja (Palomba, 2016, p. 155). Sob tal viés, a medicina psiquiátrica não atém a noção de periculosidade criminal como unânime no desígnio da previsão de qualquer tipo de crime (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1387). Como doravante mencionado, a periculosidade pode ser computada como real ou presumida, sendo a primeira quando é passível de reconhecimento em Juízo e a segunda quando a demonstração pelo juiz se faz desnecessária (Nucci, 2023, p. 479). Para a interpretação doutrinária, o sujeito que não possui controle sobre seus próprios impulsos torna-se potencialmente nocivo. Desse modo, conforme Araujo e Menezes (2003, p. 235 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1387), o crime é produzido “quando um indivíduo, em 33 resposta a impulsos de ordem biológica, psicológica e social, encontra-se numa situação tal que a execução do delito se lhe afigura como saída inevitável ou necessária”. Logo, não estaria incorreto assumir que, pelo ponto de vista da psiquiatria, a periculosidade é um estado permanente, razão pela qual a medicina se adstringe ao exame da ausência ou presença de fatores que possibilitem ao paciente o controle sobre seus próprios impulsos (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1388). Segundo Cordeiro (2003, p. 5858 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1388), nesse ínterim, incorpora particular relevância a falta integração entre normas ético-sociais e plano de vida sustentado, tornando o sujeito proeminente à reação por impulsos e emoções movidos pelo princípio do prazer imediato. A perspectiva médica é avalizada pelos modelos etiológicos da psiquiatria contemporânea que dão enfoque à coparticipação dos fatores biológicos e psicoafetivos na constituição de “personalidades criminalmente perigosas” (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1388). Diante da inerente falta de consenso quanto ao fator fundamental da periculosidade, obtém-se de autores como Serafim (2003 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1388) a existência de três classificações distintas de critérios, quais sejam, os biológicos, psicológicos e sociais – de tal maneira que tópicos socioculturais e políticos fulguram como elementos “desencadeantes”, e não apenas etiológicos (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1389). Em observação ao tema, anota o Laplantine (1991 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1389), enquanto antropólogo, que a modulação dos moldes causais dos transtornos mentais “pressupõem ou se convertem em fundamento de seus correlatos terapêuticos” e – conforme se obedece a tendência de associação entre a periculosidade criminal e os transtornos da personalidade, cujas causas pertencem a um passado remoto intrapsíquico e familiar – é tida como algo inalterável. A segregação e confinamento dos indivíduos diagnosticados com transtornos mentais inferem nas respostas sociais e técnicas em que os universos jurídico-penal e médico convergem a um ponto comum (Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1389). A ênfase, entretanto, é dada aos coeficientes psicológicos, em vista da doutrina penal italiana, simbolizada pela tese de Luigi Garofalo, que atesta ser o criminoso “um doente ou degenerado, o crime um sintoma e a pena um tratamento” (Martins Junior, 2015, p. 1220). Cordeiro defende, ainda, que o vínculo postulado pelo agente e seu respectivo núcleo familiar é fundamental para a constatação da eclosão de elementos criminogênicos, de tal modo que “a violência humana é consequência da perversão dos valores dominantes e do desenvolvimento psicológico provocado por graves perturbações na interação Mãe-Filho-Pai” (Cordeiro, 2003, p. 49 apud Mitjavila; Mathes, 2012, p. 1389). 34 2.6 Aspectos procedimentais do exame de cessação da periculosidade A definição do conceito de periculosidade sobredita é fundamental pois, a partir do procedimento utilizado para verificar a sua cessação, é possível pensar no fim da medida de segurança em vigor, conforme estipula o Art. 97, § 1º, do Código Penal: Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê - lo a tratamento ambulatorial. § 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos (Brasil, [2024a]). Como mencionado, o primeiro exame pericial deve ocorrer em um prazo mínimo de um a três anos, servindo apenas como um marco inicial para a avaliação. A legislação determina, ainda, que, após esse período, o exame deve ser repetido anualmente. Contudo, o juiz da execução pode, a qualquer tempo e após o decurso do prazo mínimo, determinar de ofício a repetição do exame para antecipação, por força do Art. 176 da Lei de Execução Penal (Brasil, [2024c]). Antes disso, a realização do exame só pode ocorrer mediante provocação do Ministério Público ou do interessado, devendo a solicitação e a decisão ser fundamentadas (Nucci, 2023, p. 482). Além disso, a Lei de Execução Penal garante ao paciente o direito de contratar um médico particular de sua confiança para acompanhar o tratamento (Brasil, [2024c]). Caso haja divergências entre as avaliações do médico oficial e do particular, a resolução cabe ao juiz da execução, conforme o Artigo 43, parágrafo único, da LEP (Brasil, [2024c]). Embora a Lei de Execução Penal não mencione explicitamente, considera-se que o médico particular pode atuar como assistente técnico no exame de verificação da cessação da periculosidade (Brasil, [2024c), em respeito ao princípio da ampla defesa, previsto no art. 5º, IV, da Constituição Federal (Brasil, [2024d]). No ramo jurídico, o conceito de periculosidade criminal se difere da periculosidade social, que trata do indivíduo que foi absolvido do crime em função da inimputabilidade e que se encontra sob regime de segurança dada potencialidade fatídica de retornar ao cometimento de crimes - sendo, portanto, “a potência real e presumida da volta à prática de delitos relacionados aos transtornos mentais daquele indivíduo” (Palomba, 2016, p. 155). Em que pese salientar, o Direito Penal destina a aplicação do termo apenas após o cometimento do delito, sendo impraticável ao sujeito que não tenha incorrido em ilicitude. 35 No tocante à análise pericial realizada para avaliação do paciente infrator, na atualidade, observa-se que a concessão do laudo favorável à cessação da periculosidade é uma raridade no cotidiano da execução de medidas de segurança, de forma que os exames, em maioria, atestam de maneira genérica e imprecisa pela manutenção do status quo, ou sequer são realizados (Soares Filho, Bueno; 2016, p. 2105). Enquanto a periculosidade criminal é verificada a partir do exame criminológico, que visa cumprir o disposto no Art. 5º da Lei 7.210 de 1984, que subscreve, a periculosidade social é atestada pelo exame de verificação de cessação, sobre o qual o presente trabalho há de se debruçar a respeito (Palomba, 2016, p. 156). O exame criminológico é utilizado com a finalidade de classificação do criminoso e para possível progressão da pena, ao passo que o exame de cessação da periculosidade é um requisito primordial para determinar o prazo da medida de segurança em vigor (Palomba, 2016, p. 156). De acordo com Palomba (2016, p. 157), a técnica desempenhada para a elaboração do exame criminológico é equivalente à dispensada em laudos e pareceres psiquiátricos, cujo escopo pode se restringir à “verificação do grau de emendabilidade” e “aproveitamento dos benefícios recebidos durante o cumprimento da pena”. Para tal, deve-se basear em preceitos da vida egressa do infrator, considerando aspectos como o início da criminalidade, a reincidência criminosa, a criminalidade interlocal, o grau de aproveitamento das atividades úteis oferecidas e, até mesmo, a disciplina carcerária (Palomba, 2016, p. 157). Ademais, ao longo do exame, o perito deve avaliar a vida afetiva do detento, seus princípios morais, planos futuros, capacidade pragmática e a autoavaliação crítica sobre o delito (Palomba, 2016, p. 157). À luz desses fatores, faz-se possível o exame sobre as condições de promover-se o regime prisional (Palomba, 2016, p. 157), o que é aplicável aos casos de semi-imputabilidade ora descritos. A descrição dos fatores relativos ao exame criminológico, ainda que referente à pena, é relevante porque esses tópicos são refletidos naqueles analisados pelo exame de verificação de cessação de periculosidade, ao qual se destina as medidas de segurança. Realizado por peritos oficiais, à rigor técnico, a interrupção da periculosidade é dada pela análise do periciando em enfoque à possibilidade de reincidência, considerando seis passos fundamentais, sendo estes a observação da curva vital do indivíduo; a morfologia do crime praticado; o ajuste à vida frenocomial; os possíveis distúrbios psiquiátricos e intercorrências durante a execução da medida de segurança; o estado psíquico atual; e o meio que irá receber o indivíduo (Palomba, 2016, p. 158). A curva vital apresenta indicadores de periculosidade, como a falta de aplicação escolar, interrupções no aprendizado, e reincidência rápida. A morfologia do crime inclui 36 agravantes legais e a prática de crimes brutais. Além disso, a vida frenocomial - ou seja, relativa à internação - revela indicadores como a necessidade de medidas restritivas e mau comportamento. Nesse aspecto, as intercorrências psiquiátricas, como surtos e crises de irascibilidade, também são pertinentes. Por fim, o exame psiquiátrico atual pode indicar humor explosivo e falta de remorso. Tais indicadores, dentre os trinta e cinco empregados pela psiquiatria forense, são essenciais para traçar o perfil do examinando, embora o contexto social em que o indivíduo será reintegrado deva ser considerado (Palomba, 2016, p. 159). 2.7 Controvérsias jurídicas na aplicação das medidas de segurança no Brasil A duração da medida de segurança torna o tema controverso - sobretudo quando analisado à luz da reforma antimanicomial instituída, no âmbito civil, no final do século XX e começo do século XXI. Como há de ser dissertado, a Lei nº 10.216 de 2001, promulgada com o intuito de promover respaldo à proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais no país, é omissa em sua implicação nos dispositivos do Código Penal, de tal modo que a Reforma Psiquiátrica não solucionou impasses tangentes à ordem asilar no âmbito punitivo. Nesse sentido, é imperioso frisar que existe um distanciamento dogmático entre o tratamento dado aos imputáveis e aos inimputáveis. Ao passo que a aplicação de uma pena privativa de liberdade é limitada ao prazo de 40 anos, por determinação do Art. 75, § 1º, do Código Penal (Brasil, [2024a]), em redação dada pela Lei nº 13.964 de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, a medida de segurança perdura até a constatação da cessação da periculosidade ante descrita, sendo, portanto, indeterminada. O fato é concorrente aos princípios da legalidade e duração razoável do processo, previstos na Constituição Federal de 1988, como apreende-se dos incisos II, LIV, LXV e LXXVIII do Art. 5º, segundo os quais ninguém dever ser obrigado a fazer algo ou deixá-lo de fazer, se não em virtude da lei; ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem que haja o devido processo legal; a prisão ilegal e irregular deve ser relaxada pela autoridade judiciária; e, sobretudo, a todos são assegurados a razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (Brasil, [2024d]). Entretanto, faz-se necessário destacar, com exclusividade, o inciso XLVII deste mesmo dispositivo, vez que ele ordena que não haverá, no ordenamento jurídico brasileiro, penas de caráter perpétuo (Brasil, [2024d]). Em sede de censo demográfico promovido no ano de 2011 pela antropóloga Débora Diniz, a fim de categorizar os índices referentes à custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil, foi constatada a existência de “606 indivíduos internados há mais tempo do que a pena máxima 37 em abstrato para a infração cometida” (Diniz, 2013, p. 14), número equivalente a, aproximadamente, um quinto da população em medida de segurança no país da época. Ademais, a pesquisadora tomou ciência de dezoito sujeitos internados em hospitais de custódia por mais de trinta anos, tempo que a legislação penal adotava como prazo máximo para as penas privativas de liberdade antes das alterações previstas pelo “Pacote Anticrime” (Diniz, 2013, p. 14). Ademais, integra o debate das controvérsias jurídicas, neste ínterim, as implicações do exame de cessação de periculosidade, enquanto requisito para desinternação do agente. Isso porque, conforme exposto, embora exista literatura médica referencial aos critérios considerados para elaboração deste laudo pericial, sua formulação carece de endossamento jurídico. Nesse sentido, entende-se que não há padronização clara e eficaz daquilo que deve ser levado à consideração da autoridade judiciária para decisão favorável, ou não, à liberação do interno. Além disso, como ora pontuado, a concessão de relatórios médicos indicativos da cessação da periculosidade são excepcionais no ordenamento jurídico (Soares Filho, Bueno; 2016, p. 2105), o que desperta controvérsia quanto à efetividade dos dispositivos legais que condicionam tal requisito ao fim da medida de segurança. Não obstante, a fundamentação desse critério em um conceito vetusto, de raízes deterministas, contribui para a postulação de indagações quanto à validade desse instrumento na contemporaneidade. Nesse sentido, verifica-se a aplicabilidade dos parâmetros supramencionados a fim de exemplificar os óbices elencadas. Para isso, extraiu-se, de decisões em 2ª instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, as seguintes jurisprudências - que, por sua vez, demonstram, como a periculosidade é interpretada pelo Juízo no mantimento das medidas de segurança em internação junto aos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do estado. No escopo do acórdão obtido em sede de Agravo de Execução Penal, julgado pela 9ª Câmara de Direito Criminal, referente ao processo de nº 0003533-74.2024.8.26.0050, é possível notar a conclusão pela não cessação da periculosidade do réu em função de observância de comportamento de baixa tolerância a frustrações, como aduz o laudo pericial multidisciplinar. Essa questão, por si só, é tida como fundamento para determinação da prorrogação da medida de segurança, ao passo que o exame clínico é interpretado como omisso quanto aos fatos que corroboram em tese contrária no que diz respeito à cessação da periculosidade do indivíduo, aplicando-se o princípio de “in dubio pro societate”. Trata-se da seguinte ementa: 38 Execução Penal – Prorrogação de medida de segurança de internação – Pretendida desinternação condicional do internado – Inadmissibilidade – Periculosidade atestada por Peritos e Direção da Unidade Prisional – Medida de segurança mantida Na hipótese de o exame multidisciplinar, elaborado com base no art. 175 da LEP, concluir pela não cessação da periculosidade do internado, descabe cogitar-se de desinternação condicional do agente, justificando-se a prorrogação da internação, inclusive sopesando-se as finalidades da medida de segurança e o princípio in dubio pro societate, que rege o processo de execução penal (São Paulo, 2024a, p. 2). Da mesma maneira, a decisão em Agravo de Execução Penal, proferida pela 11ª Câmara de Direito Criminal, nos autos do processo nº 0009556-36.2024.8.26.0050, determina o restabelecimento da internação em HCTP sem menção aos motivos que justifiquem o reconhecimento da periculosidade do agente. É citado que os peritos atestam que as expectativas do condenado eram de retorno ao convívio familiar “de modo digno e honesto, com metas viáveis a sua situação atual” (São Paulo, 2024b, p. 3). Ainda, a decisão aduz que apesar da sugestão à desinternação progressiva do sentenciado pelo laudo, “não houve demonstração inequívoca da cessação da periculosidade” (São Paulo, 2024b, p. 3). Segue a ementa referente ao acórdão em debate: Agravo em execução penal. Recurso ministerial provido. Pleito de reestabelecimento da internação. Laudo pericial que indica persistência da periculosidade do agravado. Sugestão de transferência à Hospital de Custódia e Tratamento Progressivo. Conclusão que não vincula a atividade jurisdicional. Necessidade de observância do princípio in dubio pro societate. Decisão cassada (São Paulo, 2024b, p. 2). Por fim, nos autos do processo nº 0006307-77.2024.8.26.0050, em decisão de Agravo em Execução Penal, julgada pela 4ª Câmara de Direito Criminal, definiu-se a aplicação nítida de fundamentos endossadores para a certificação da periculosidade do condenado. Diferentemente das outras jurisprudências elencadas, neste Acórdão, a determinação pela manutenção da medida de segurança é respaldada pela pontuação de diagnóstico de esquizofrenia inespecífica, além de “vínculos afetivos fragilizados e respaldo familiar inconsistente” para oferecimento do amparo necessário após desinternação (São Paulo, 2024c, p. 6). Refere-se à decisão de seguinte ementa: AGRAVO EM EXECUÇÃO - MEDIDA DE SEGURANÇA - Insurgência ministerial que visa à cassação da decisão que determinou a desinternação progressiva do sentenciado - Necessidade - Laudo psiquiátrico que atestou a não cessação da periculosidade do agravado, portador de esquizofrenia inespecífica - Laudo que, a despeito de atestar a periculosidade do sentenciado, sugere a desinternação progressiva - Magistrado que não está adstrito a laudos periciais - Princípios do in dubio pro societate e do livre convencimento motivado - Necessidade de manutenção da medida de segurança de internação anteriormente vigente - Recurso ministerial provido (São Paulo, 2024c, p. 2). 39 A situação é alarmante pois, ante o panorama legislativo exposto, fica claro que o contingente em medidas de segurança não tem seus direitos fundamentais protegidos pela legislação penal, existindo à margem do sistema punitivo tupiniquim. Neste âmago, é necessário compreender o panorama histórico que possibilitou a superveniência dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico às críticas incitadas pelo movimento antimanicomial e promovidas pela Reforma Psiquiátrica no arcabouço jurídico, a fim de que seja possível delinear medidas alternativas ao tratamento penal dado os inimputáveis. 40 3 CONTEXTO NACIONAL: DE “MANICÔMIOS JUDICIAIS” AOS HCTPS Para a ideal compreensão do contexto histórico que valida a concepção dos institutos manicomiais, e, sequencialmente, dos manicômios judiciários, é necessário retomar as acepções sociais acerca da loucura em si. Nesse cenário, é do entendimento dogmático que as pessoas em sofrimento mental são alvos recorrentes de marginalização. Se até o século XVIII, os “loucos” viviam em comunidades, e sua condição era interpretada sob perspectivas mitológicas ou físicas, com o advento do século XVIII, a loucura passou a ser entendida como uma patologia, o que começou a justificar a exclusão daqueles considerados insanos, à medida que a ideia de isolamento se tornou hegemônica (Couto; Nogueira, 2020, p. 49). De acordo com Foucault, no início do século XIX, originam-se os asilos, prisões e manicômios, em uma espécie de conjunto institucional destinado à correção daqueles que a sociedade denotava como “anormais” (Soares Filho; Bueno, 2016, p. 2102). Para Foucault (2005 apud Moreira, 2021, p. 28), o hospital psiquiátrico é o local no qual o médico assume a posição de poder na hierarquia favorecida por seu conhecimento da etiologia e do tratamento, mesmo que incipiente. Logo, se a loucura seria uma doença - e, consequentemente, objeto de análise da medicina - pregou-se a crença de que o hospital simbolizava o instrumento para cura do enfermo de condições mentais desconexas (Foucault, 1984 apud Moreira, 2021, p. 28). Célebre na condução dos tratamentos nessas alocações, o inglês William Tuke, ao conduzir a direção do Retiro York, defendia a ideia de um manicômio no qual os pacientes, em casa de campo, se distanciassem da agitação urbana em um núcleo familiar artificial, sob a crença de que a cura só poderia alcançada pelo exercício da autodisciplina (Markus, 1993; Bartlett, 1997 apud Moreira, 2021, p. 28). O modelo tukiano incentivou, diretamente, os estudos do francês Philippe Pinel, que, à luz de um viés humanista, aduzia que os pacientes psiquiátricos não deveriam ser rebaixados à condição animalesca; embora mantivesse-os constritos às alocações manicomiais (Moreira, 2021, p. 29). Nesse sentido, tem-se que: O tratamento proposto por Pinel era realmente moral na medida em que atuava sobre o conhecimento e, por conseguinte, sobre o comportamento do paciente. Além disso, era moral porque tinha o objetivo de corrigir os desvios comportamentais que feriam a ética social. Dessa maneira, o médico acabava por adquirir o papel de pedagogo e de autoridade moral: ele repreendia e corrigia o paciente, guiando-o para uma vida mental equilibrada – que é a vida moralmente aceita – tornando-se, assim, um verdadeiro agente da ordem social e moral dominante (Moreira, 2021, p. 29 -30). Nessa toada, no século XVIII, Pinel introduz a ideia de que a loucura estaria intrínseca a um déficit moral, o que consolida a Psiquiatria como um mecanismo de controle social 41 (Couto; Nogueira, 2020, p. 50). Durante esse período, os chamados loucos saem “das prisões, torres e casas de força e vão para os hospitais gerais”, tornando-se assunto para os médicos (Barros-Brisset, 2011, p. 44 apud Couto; Nogueira, 2020, p. 50). Pinel, ainda, ao classificar o doente mental como alguém com um déficit moral intrínseco e permanente, associou definitivamente a loucura à delinquência, consolidando essa relação no plano conceitual (Couto; Nogueira, 2020, p. 50). A delinquência, então, passou a ser vista como uma característica inerente à loucura (Barros-Brisset, 2011, p. 47 apud Couto; Nogueira, 2020, p. 50), o que reforça as ideias hospitalocêntricas e higienistas. A tese sustentada por Pinel tem ampla repercussão no sistema jurídico da época, ocasionando alterações no Código Penal francês de 1810, bem como em outros países da Europa e das Américas (Couto; Nogueira, 2020, p. 50). Nesse contexto, surgem os exames periciais, que reforçam a ligação entre Psiquiatria e Direito no início do século XIX. Em vista do cenário exposto, é possível retomar a discussão à origem dos manicômios judiciais, destinados ao abrigo de delinquentes portadores de patologias mentais. Dos primeiros manicômios judiciais do Brasil, e de suas funções associadas à contenção das pessoas consideradas perigosas para a sociedade devido aos seus diagnósticos, infere-se o caráter punitivo e a falta de tratamento efetivo - recapitulação necessária para a apreensão das críticas que viriam a ser promovidas ao tratamento asilar durante o movimento reformista do final do século XX. 3.1 Surgimento dos manicômios judiciais no Brasil Segundo Carrara (2010, p. 17), os manicômios judiciários são instituições híbridas e contraditórias, cuja complexidade se destaca pela articulação realizada entre “duas das realidades mais deprimentes das sociedades modernas: o asilo de alienados e a prisão - e, de outros dois dos fantasmas mais trágicos que ‘perseguem’ a todos: o criminoso e o louco”. Nesse viés, obtém-se da bibliografia clássica das ciências sociais que tal aparato sobrepõe, sob a vitrine médica das instituições psiquiátricas, “uma prática secular de contenção, moralização e disciplinarização de indivíduos socialmente desviantes” (Carrara, 2010, p. 17), à margem da noção excludente entre o que define uma pena e o que é um tratamento. No Brasil, o manicômio, enquanto estrutura, esteve diretamente relacionado à aplicação de práticas higienistas no campo da saúde mental (Arantes; Gonçalves, 2017, p. 2). Segundo Carrara (2010 apud Arantes, Gonçalves; 2017, p. 2): 42 Enquanto o louco é uma vítima de sua condição, o louco criminoso deve haver-se com o caráter mais doloroso do processo de convalescência, todas as dores e humilhações impingidas são justificáveis, tomando como premissa o ato delituoso cometido e a desesperança na crença da correção moral do louco criminoso. A origem dessas instituições no país não apresenta uma data precisa; posto que, no tocante ao longo do período de colonização, registros históricos indicam que os colonizadores europeus já utilizavam técnicas manicomiais no tratamento da população nas Santas Casas de Misericórdia (Gonçalves, 2014 apud Arantes; Gonçalves, 2017, p. 2). Em retrospectiva histórica do tratamento legislativo-penal dado aos pacientes psiquiátricos, retoma-se o Código Criminal do Império do Brazil, promulgado, em 1830, após quatro anos em debate, como a primeira legislação penal de uma nação recém-independente - regida, até então, pelo Livro V das Ordenações Filipinas de 1603 (Pinto, 2010, p. 1). A Lei Criminal, então, se baseava nos princípios supramencionados da doutrina clássica do Direito Penal postulados por Cesare Beccaria, de tal modo que o regimento se findava à igualdade dos homens perante a lei, à proporcionalidade da pena ao delito e a vinculação do crime à previsão normativa (Peres; Nery Filho, 2002, p. 336). Em seu ínterim, a figura do doente mental surgia às linhas do Art. 10º, parágrafo 2º, segundo o qual não seriam julgados os criminosos “loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o crime” (Brasil, 1830). A conceituação de uma loucura lúcida cumpre o contexto histórico, carente das teses que viriam a ser colocadas em discussão por Pinel (Peres; Nery Filho, 2002, p. 337), como ora explicitado pelo trabalho. Nesse sentido, obtém-se que: O juiz de direito era obrigado a formular quesito sobre o estado de loucura do réu, quando lhe for requerido, e o exame deveria ser feito diante do júri, que é quem deveria apreciá -lo para decisão. A circunstância da loucura, ainda que de notoriedade pública, só podia ser tomada em consideração pelo júri (Filgueiras-Jr., 1876, p. 12 apud Peres; Nery Filho, 2002, p. 337). O destino dos “loucos de todos os gêneros” era configurado pelo Art. 12 do Código Criminal, que determinava que os loucos que tivessem cometido crimes deveriam ser recolhidos às casas para eles destinadas, ou entregues às suas famílias, como fosse consignado pelo parecer do Juízo (Brasil, 1830). Salienta-se que, à época, o asilo psiquiátrico ainda não havia sido concebido em seu douto propósito, motivo pelo qual o principal destino desses pacientes eram as próprias prisões ou às Santas Casas (Peres; Nery Filho, 2002, p. 337). Assim sendo, entende- se que o Código reafirmava a manutenção da tradição pela qual os loucos pobres que vagavam 43 pelas ruas oferecendo perigo às pessoas - e, à Polícia Médica, cabia o controle dessa população, ou então, o encaminhamento às cadeias ou à Santa Casa (Peres; Nery Filho, 2002, p. 337). Associada, desde então, à ideia de naturalização do conceito de periculosidade na sociedade civil, a implementação do manicômio como aparato tomou proporções significativas a partir do debate constituído no fim do século XIX e início do século XX sobre crime e transgressão, dado aumento da criminalidade de grandes metrópoles do período, em razão da ascensão da urbanização nesses polos (Carrara, 1998 apud Pacheco, 2011, p. 27). Ainda segundo Carrara (1998, p. 63), o debate é inflamado não apenas pelo intenso aumento populacional, mas, também, pela liberação não planejada da mão-de-obra escrava, mediante os contornos abolicionistas, e à consequente incorporação das massas migratórias - nacionais e estrangeiras (Carrara, 1998, p. 63). Nesse escopo, tem-se, simultaneamente, as consequências sociais embutidas pela industrialização e sua decorrente formação do mercado de trabalho competitivo-capitalistas - elementos que apontam para grandes transformações na estrutura urbana e no estilo de vida da população, culminando na ebulição e agudização dos conflitos sociais da época (Carrara, 1998, p. 63). De acordo com Mattos (