UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de Bauru PEDRO SCHEREIBER MUNHOZ CENOGRAFIA E ESPAÇOS LIMINARES Bauru - SP 2022 FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN PEDRO SCHEREIBER MUNHOZ CENOGRAFIA E ESPAÇOS LIMINARES Trabalho Final de Graduação entregue no segundo semestre de 2022 como requisito de obtenção do grau de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) da UNESP de Bauru. PROFESSOR ORIENTADOR: Prof. Dr. Alexandre Suárez de Oliveira Bauru - SP 2022 M966c Munhoz, Pedro Schereiber Cenografia e Espaços Liminares / Pedro Schereiber Munhoz. -- Bauru, 2022 45 p. : il., fotos Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientadora: Alexandre Suárez de Oliveira 1. Cenografia e cenários. 2. Filmes de terror. 3. Animação (cinematografia). 4. Semiótica e Cinema. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais Renato e Érika, e ao meu irmão Marcelo, que me deram muito apoio nesta fase, sempre acreditando em mim. Aos meus colegas de casa, Gustavo Bodenmüller, Ariadne Sauer e William Freitas. À minha grande amiga Maria Beatriz, que sempre me inspirou. À meus colegas de banda, João Pedro Sobreira, Gustavo Mantovani e Antônio Rezende por aceitarem o tempo de ensaios que tive que dedicar a esta responsabilidade. Agradeço à minha namorada Aline Naomi Hoshino pela paciência, compreensão e incentivo durante todo este processo. Agradeço a meu professor de direção de arte, Fabrício Mesquita de Aro (in memoriam). À UNESP, ao departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo de Bauru. Ao professor Paulo Masseran e ao meu orientador Prof. Dr. Alexandre Suárez de Oliveira pelo enorme apoio, incentivo e dedicação ao meu trabalho desde o início. Enfim, agradeço a todas as pessoas que fizeram parte dessa etapa decisiva em minha vida. “[...] A boa notícia é que o Inferno é apenas o produto da mórbida imaginação humana. A má notícia é que, qualquer coisa que humanos conseguem imaginar, eles geralmente também conseguem criar.” -Harmony Cobel, “Ruptura” (2022) RESUMO Este trabalho explorou um conceito chamado “Liminaridade” e seu potencial para a cenografia com tema de terror psicológico. Recorrentes em obras fílmicas dessa categoria, Ideias como a familiaridade e a inquietação são usadas como elementos centrais na construção destes ambientes. O “Espaço Liminar” é o lócus do medo e da ambiguidade. Trata-se de um lugar fora da realidade, onde alguém seria colocado contra seu arbítrio, sem a esperança de sair. Este ambiente, caracterizado pela falsa afinidade com o mundano, possui uma natureza frequentemente representada como próxima do onírico. O termo “Liminar”, vem do latim “Limen” e significa Limite. No campo da antropologia, é usado para descrever o estado mental e social de um indivíduo durante um rito de passagem cultural. Foram feitos estudos de caso, nos quais foram observadas características “Liminares”, não somente físicas, mas também na construção do enredo em obras cinematográficas. Esses estudos forneceram ferramentas que possibilitaram a recriação do efeito de liminaridade em uma outra obra, um projeto de animação produzido nesta segunda parte do trabalho. Palavras-chave: Liminaridade, Espaço Liminar, Cenografia, Terror psicológico. ABSTRACT This essay explored a concept known as “Liminality” and its potential for the Scenography of the psychological horror genre. Recurring in works of film of this genre, ideas such as familiarity and uneasiness are central in constructing these environments. The “Liminal Space” is the locus of fear and ambiguity. It is a place outside reality, where one would be placed against their will, with no hope of leaving. Such an environment, characterized by its false affinity with the mundane, has a nature often represented as borderline oniric. The term “Liminal” derives from the Latin word “Limen” which means Threshold. It is used in anthropology to describe an individual's mental and social state during a cultural rite of passage. Case studies were conducted, in which Liminal aspects - physical and plot-related - were observed in cinematographic work. These studies brought forth tools that made possible the recreation of the effect of Liminality in another work, an animation produced in this second part of the project. Keywords: Liminality, Liminal Space, Scenography, Psychological Horror. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 5 2. LIMINARIDADE 7 2.1. Liminaridade na Antropologia. 7 2.2. Liminaridade como linguagem. 9 3. ESPAÇOS LIMINARES 12 4. O VALE DA ESTRANHEZA 14 5. CATEGORIAS DE ESPAÇOS LIMINARES 17 5.1. Espaços Descontextualizados 17 5.2. Espaços Abandonados 18 5.3. Espaços Intermitentes 19 6. ESTUDOS DE CASO 20 7. PROCESSO E MÉTODO 21 7.1. Pipeline 21 7.2. Primeira versão 24 7.3. Segunda Versão 27 8. PRODUÇÃO 28 8.1. TRAMA 30 8.2. CENÁRIO 34 8.2.1. O Faneron 34 8.2.2. O Cenário Liminar 36 9. CONCLUSÃO 39 BIBLIOGRAFIA 40 LISTA DE FIGURAS Figura 01: Bastidores 11 Figura 02: Corredor de “O Iluminado” 13 Figura 03: Diagrama do Vale da Estranheza 14 Figura 04: Face Humana em CG em 2007 16 Figura 05: Face Humana em CG em 2020 16 Figura 06: Estacionamento vazio 17 Figura 07: Cinema abandonado 18 Figura 08: Shopping Center vazio 19 Figura 09: Linha de produção de uma animação 3d 21 Figura 10: Modelo pronto e texturizado 22 Figura 11: Primeira versão de Marla 24 Figura 12: Primeiro Storyboard 25 Figura 13: Conceitualização do interior de uma parede de drywall 26 Figura 14: Segundo Storyboard 27 Figura 15: Técnicas de renderização 29 Figura 16: Marla brinca na poltrona rosé 30 Figura 17: O corredor se distorce inteiro em uma grande espiral infinita 31 Figura 18: O interior fica completamente desconstruído 32 Figura 19: Cena final 32 Figura 20: Marla encontra o robô 33 Figura 21: Marla retorna ao apartamento com ajuda do robô 33 Figura 22: A Relatividade de Escher, 1953 34 Figura 23: Nas bordas da apreensão, um diagrama 35 Figura 24: Vista do carpete com riscas de giz 36 Figura 25: Vista de uma parede com uma porta 37 Figura 26: Conceito final do cenário 37 5 1. INTRODUÇÃO A ambientação no qual o estudo está focado é popularmente conhecida como “Espaço Liminar”. Trata-se de um local que causa duas percepções emocionais contraditórias: A familiaridade, pois os espaços são facilmente reconhecíveis; E o desconforto, pois a aparência geral do ambiente tangencia a normalidade de forma forçada e exagerada, fenômeno similar à hipótese do “Vale da Estranheza”, de Masahiro Mori (2012), explicada no tópico 4. A Liminaridade possui definições em múltiplos contextos, desde o sociocultural até o espacial. Em todas as circunstâncias, o termo se refere a um estado intermediário. No sentido cultural, o componente central é a Entidade Liminar, a pessoa em si, enquanto participante de um rito de passagem. O Liminar nesse caso é o estado no qual a pessoa se encontra. No âmbito da arquitetura, um Espaço Liminar é uma área de transição, de ocupação sem permanência, são exemplos: escadarias, corredores, pavilhões, pórticos etc. A origem do uso da terminologia no sentido espacial, porém no contexto do terror se deu de forma espontânea e pouco fundamentada, em um blog pouco conhecido. Entretanto, a repercussão do tema nos anos seguintes, impulsionada pelo crescimento da cultura de “memes” pela internet, trouxe consigo um questionamento quanto a validade deste termo para a temática do terror psicológico. “Exemplos de memes são melodias, idéias, frases de efeito, moda, técnicas de confecção de potes ou arcos. Tal como genes propagam-se no pool genético de um corpo para o outro, via espermatozoides ou óvulos, também propagar-se-iam os memes no pool de memes de um cérebro para o outro através de um processo, o qual, no sentido geral, pode ser chamado imitação.” –DAWKINS (1976) 6 A palavra “Liminaridade”, emprestada do âmbito da Antropologia, foi originalmente utilizada pelos autores Arnold Van Gennep (1960) e Victor Turner (1969) para descrever a situação na qual indivíduos se encontram durante ritos de passagem culturais. “Entidades liminares não estão aqui nem ali, elas estão no meio de, e entre as posições atribuídas e ordenadas por lei, tradição, convenção e cerimônia." (TURNER, 1996, p.97). Esta definição traz em si a ideia de desestruturação, ao passo em que o evento ritualístico força um sujeito para fora de um status, com o intuito de que este possa alcançar um novo reconhecimento e denominação. A liminaridade remete assim a um processo de transformação, é gerado na entidade participante um vácuo a ser preenchido com novo valor. Segundo Turin (2007), “Interdisciplinaridade não é superposição de conceitos, nem justaposição, são relações que nascem das equivalências observadas entre as disciplinas.” Ou seja, a transposição de uma terminologia entre disciplinas requer uma aproximação de ambos os lados, assim como um levantamento das equidades que contemple as particularidades relevantes de ambos. Portanto, primeiramente foi definido o tema original, com base na bibliografia, depois foram apresentados conceitos da semiótica que serão usados para a construção da Liminaridade como linguagem. Em seguida foram analisadas obras cinematográficas que possuem aspectos liminares. Dessas análises serão extraídos requisitos e especificidades contextuais que caracterizam um ambiente como “liminar”. Na parte final do trabalho, as análises foram utilizadas como ferramentas para o desenvolvimento da cenografia de uma animação. No estudo, foram levados em conta ambientes tipicamente familiares a um cidadão médio de uma região urbana. As circunstâncias, por sua vez, foram resultado de alterações específicas a cada ambiente, baseadas na divisão de três categorias de Espaços Liminares sugerida no estudo de Laura Mauro (2019). 7 2. LIMINARIDADE 2.1. Liminaridade na Antropologia. Em Ritos de Passagem (1909), Van Gennep define o “Liminar” como um estado entre fases, sendo a fase inicial a “separação”, e a final a “reagregação”. Neste estágio, o que domina é a ausência de status, pois o indivíduo encontra-se em transformação, deixando de ser reconhecido como era antes do rito, porém não ainda digno do seu próximo título. “O sujeito em ritual de passagem é, no periodo liminar, estruturalmente, se não fisicamente, "invisível". Como membros de sociedades, a maioria de nós vê apenas o que esperamos ver, e o que esperamos ver é aquilo que fomos condicionados a ver quando aprendemos as definições e classificações de nossa cultura.” (TURNER, 1967) Para fins de delimitar o tema, o estudo não focou nos estágios de Separação e Reagregação. O estágio médio, Liminar, do latim “Liminaris” (Limite), está relacionado a começo ou margem. A entidade submetida a um rito de passagem encontra-se, no meio do processo, em um período liminar, na iminência de se tornar algo novo. Frequentemente, segundo Turner (1967), o mesmo nome é utilizado para designar os iniciados em diferentes estágios da vida. “Por exemplo, entre os Ndembu da Zambia o nome mwandi pode significar várias coisas: um ‘garoto em ritos de circuncisão’ ou ‘Um Líder designado passando por seus ritos de instalação’.” (TURNER, 1967) 8 O que fica claro é que a ausência de uma classificação, por mediante dos processos rituais, paradoxalmente, traz em si uma classificação. Turner (1967) explica que o iniciado é transportado para um novo patamar societário, possuem uma realidade física, mas não social, devem ser escondidos, isolados, pelo simples fato de estarem ali em tal estado. Os seres em estado de liminaridade perdem também seu direito à propriedade. Suas roupas, bens pessoais, parentescos, em alguns casos até sua identidade de gênero. Tudo aquilo que demarca uma estrutura com seus conhecidos é removido. Vale dizer que os conceitos introduzidos de Van Gennep e Turner não são utilizados neste trabalho de forma a explorar sua eficácia na descrição dos ritos nas culturas estudadas, mas sim para elucidar suas observações como os primeiros a falar do assunto. Com o passar dos anos, os estudos de ritos foi aprofundado e surgiram questionamentos em relação à natureza generalizadora das ideias de Gennep. Alguns estudiosos, como Max Gluckman(1962) e Juha Pentikäinen (1979) apontam como algumas terminologias de Gennep foram redefinidas e algumas classificações reformuladas. Entretanto, o fato de Gennep ter trazido à tona esta discussão já constitui um avanço no estudo dos ritos, como explica Pentikäinen(1979): “Alguns preferem generalizar, outros analisar. “O progresso da ciência requer ambos os analistas e os universalistas.” Os pontos em comum mais marcantes entre os espaços liminares no âmbito antropológico e como situação espacial são: A confusão e desorientação de não se saber ao certo onde se encontra; a ansiedade de chegar ao próximo estágio ou ambiente; Além do medo da separação e abandono do conforto e status quo. 9 2.2. Liminaridade como linguagem. Para seguir adiante com a proposta deste trabalho, foi necessário estabelecer a Liminaridade como linguagem. É possível estabelecer a natureza do fenômeno, enquanto construção social, com a identificação dos estímulos que o evocam. Para tal, algumas ideias podem ser organizadas através da semiótica fenomenológica, em especial pelos estudos de Charles Peirce, Lúcia Santaella e Roti Turin. A semiótica remete ao modo como se pensa, na forma como é organizado o pensamento e na busca por um grau de realidade através das linguagens. Uma Linguagem, segundo Turin(2007) “É a faculdade que temos de representar” e é efetuada pela substituição de conceitos via assimilação de códigos. A relação triádica de Peirce é constituída por Signo, Objeto e Interpretante. Os signos “Defino um Signo como qualquer coisa que, de um lado, é assim determinada por um Objeto e, de outro, assim determina uma idéia na mente de uma pessoa, esta última determinação, que denomino o Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente determinada por aquele Objeto. Um signo, assim, tem uma relação triádica com seu Objeto e com seu Interpretante” (Peirce 8.343). Dessa forma, é possível afirmar que uma representação (Signo) remete a um Objeto, que causa um Interpretante. Essa classificação apresenta uma dependência circular, de forma que todas seus constituintes são em sua própria excelência Signos. O resultado é um processo chamado Semiose, no qual um Signo pode sempre se transformar em outro de forma inconclusiva. 10 Um instrumento de classificação estipulado por Peirce, com base nas relações cenopitagóricas e na concepção triádica é o das três tricotomias do Signo em relação, respectivamente: A si mesmo; ao Objeto e; ao seu interpretante; Em relação ao Objeto, existem três categorias: O Ícone, o Índice e o Símbolo. No caso dos Espaços Liminares, por exemplo, uma pessoa, ao ver uma imagem de um interior, entende que aquele local possui três dimensões, características arquitetônicas e que teve sua imagem capturada ou produzida em certo momento, por alguém, de um ponto de vista específico. A imagem, enquanto Signo representa um local (Objeto) de forma Icônica. Entretanto não deve haver uma resolução satisfatória, isto é, não se sabe ao certo qual é a função do local, quais são as dimensões, se há mais alguém por lá. As características contextuais não permitem que o observador alcance, sem dificuldade, um entendimento pleno sobre o ambiente, ou seja, um Interpretante final. A gama de possibilidades gerada por estas lacunas, por assim dizer, no conhecimento sobre o local, são as principais causas do estranhamento. O local enquanto signo simbólico, pode remeter a qualquer interpretação que leve em conta o repertório do observador, assim como a cultura do mesmo. Nas imagens de Espaços Liminares, alguns elementos importantes são os Signos Indiciais representantes da presença de pessoas e o contexto relacionado à sua ausência, embora não a explicando. Este tipo de Signo Icônico é denominado Ícone Degenerado ou não genuíno, de forma que estabelece uma referência não existencial ou quasi-Existencial. São exemplos: Marcas de móveis, cadeiras vazias, papeis espalhados, marcas de quadros removidos. Analogamente, fumaça seria um índice de fogo, mas não haver fogo, isto é, nem de fato existir este, como causa da fumaça, seria um índice não genuíno. “A categoria de existência é nominada na semiótica de Peirce com o nome de secundidade. Peirce divide o índice em dois tipos: genuíno e não genuíno (ou degenerado). Se a secundidade é uma relação existencial, o índice é genuíno. Se a secundidade é uma referência, o índice é degenerado. Um índice genuíno e seu objeto devem ser existentes individuais, sejam eles coisas ou fatos “ (CP 2.283 apud MONTEIRO). 11 Para este estudo serão consideradas imagens de Espaços considerados liminares que retratam ambientes interiores. Para qualificar um espaço interior como Liminar é necessário levar em conta: O meio; O contexto no qual ele se insere e; O espaço em si. O meio, é encontrado, na maioria das vezes, como imagens e vídeos filmados ou gerados por computador e compartilhados de formas variadas. O contexto parte do meio de comunicação e é fornecido pelos Signos não genuínos presentes em cena. O espaço deve apresentar Signos que o qualifiquem como interior, assim como a identificação da função do espaço. Um elemento comum entre muitas imagens identificadas como liminares é a iluminação artificial, tipicamente por luzes fluorescentes, mas às vezes também do flash de câmeras ou lanternas. Geralmente também não se mostra iluminação natural, ou qualquer tipo de forma da natureza como vegetação. (Figura 1) Figura 1. “Bastidores” Fonte: https://museemagazine.com/features/2020/11/1/the-cult-following-of-liminal-space 12 3. ESPAÇOS LIMINARES Em 2016, no Tumblr, em um site de microblogs, um usuário postou um texto intitulado “Lugares onde a realidade é levemente alterada” (Places where reality is a bit altered). Na postagem, os usuários listam lugares com características similares e buscam estabelecer uma ligação entre eles, assim como uma explicação para a sensação de estranhamento que eles causam. Um dos usuários denomina este tipo de ambiente, ”Espaço Liminar”, pois tipicamente são espaços de passagem entre dois lugares, e sua existência é subordinada aos ambientes anterior e posterior. O usuário argumenta que o estranhamento ocorre devido ao fato de que um indivíduo não ocuparia normalmente estes lugares por um período longo de tempo ou viria a pensar neles como suas próprias entidades. Alguns exemplos seriam: Lojas de departamento, igrejas de cidades interioranas, lojas de conveniência, hospitais, armazéns, estacionamentos, playgrounds, pistas de boliche, escadarias, corredores de serviço etc. De início, pode parecer não haver nenhuma ligação entre esses locais. No estado no qual se encontram, são espaços meramente reconhecíveis. Os ambientes citados, podem incitar uma memória visual ao leitor, ou seja, são Signos que remetem a Objetos conhecidos. Entretanto, a alteração do contexto, incide diretamente na dimensão emocional da percepção. Nos anos subsequentes a discussão repercutiu e culminou em um fenômeno na internet, transformando o conceito de Espaço Liminar em um elemento da cultura popular e lendas urbanas. Recentemente, o termo começou a ser mais aceito e utilizado para descrever tipos de ambientes recorrentes em filmes e animações. É possível encontrar locais com essas particularidades até mesmo em obras mais antigas como é o caso do longa metragem “O Iluminado” de 1980, baseado no livro de Stephen King, que se passa majoritariamente em um grande hotel vazio, (Figura 2). Um local inofensivo à primeira vista, porém que progressivamente desenvolve uma inquietação, à proporção em que os personagens passam por suas tramas pessoais e arcos narrativos. 13 É válido questionar se essas ambientações foram escolhidas pelos produtores cinematográficos e diretores de arte devido a suas características sinistras ou se estas cenografias são coletivamente reconhecidas como estranhas por estarem inseridas em obras de terror. Entretanto, como irá explicar o presente estudo, a essência da liminaridade é contextual, portanto, não vale apenas estudar aspectos físicos dos ambientes, pois o contexto abrange também a memória emocional e a relação entre o observador e o espaço. Figura 2. Corredor de ‘O Iluminado’ Fonte: https://stephenking.fandom.com/wiki/Overlook_Hotel Em filmes gravados com cenários, é necessária, na linha de produção, a presença de um profissional que projete os mesmos. A construção de um cenário leva em conta o resultado do agrupamento de elementos com funções visuais e estruturais específicas. Analogamente, um filme gravado in loco requer um olhar artístico que seja sensível a tais funções visuais presentes nos locais escolhidos. No caso do Hotel Overlook do filme O Iluminado, alguns fatores inerentes ao próprio espaço é que trazem em si o elemento de terror. Os corredores longos e labirínticos, repletos de portas, cada uma com um quarto, uma possibilidade de encontrar alguém, embora seja do conhecimento do hóspede ou espectador que o local esteja vazio. Essa disparidade de pensamentos remete ao fenômeno conhecido como Dissonância Cognitiva (FESTINGER, 1956). 14 4. O VALE DA ESTRANHEZA Uma hipótese que se aproxima bastante do tema é a do Vale da Estranheza. Proposta pelo professor Masahiro Mori (1970), a ideia busca explicar uma ideia paradoxal de que ao aumentar a familiaridade de um objeto muito conhecido, em algum momento haverá um ponto no qual sua afinidade com o observador irá diminuir, em vez de aumentar. Inicialmente o conceito foi usado como instrução para projetistas de robôs antropomórficos, com o objetivo de evitar designs robóticos com uma resposta negativa ou aversão. Para ilustrar a hipótese e organizar o pensamento, foi elaborado um gráfico (Figura 3). Nele, estão representados dois eixos, um de afinidade e outro de semelhança com a forma humana. Figura 3: Diagrama do Vale da Estranheza Fonte https://web.ics.purdue.edu/~drkelly/MoriTheUncannyValley1970.pdf (Tradução própria) https://web.ics.purdue.edu/~drkelly/MoriTheUncannyValley1970.pdf 15 O fenômeno que dá nome à hipótese acontece quando a familiaridade passa a trabalhar contra a afinidade. Nesse ponto encontram-se robôs muito mais sofisticados, androides com peles sintéticas, construções humanas em computação gráfica,, próteses cirúrgicas. É desconfortável ver essas imagens pois fica claro que algo está errado. “Algumas mãos prostéticas buscam simular veias, músculos, tendões, unhas e impressões digitais, e suas cores lembram a pigmentação humana. [...] Então se apertarmos a mão, nos surpreendemos com a falta de tecidos moles e pela temperatura fria. Neste caso, não há mais um senso de familiaridade. É estranho. Em termos matemáticos, a estranheza pode ser representada pela familiaridade negativa, então a mão prostética está no fundo do vale. Então neste caso, a aparência é bem humana, mas a familiaridade é negativa, este é o Vale da Estranheza.” (MacDorman, 2005) No caso da Computação Gráfica, a reconstrução de rostos digitais exige um destaque especial. A face humana é um das formas mais difíceis de se replicar em CG de forma que fique imperceptível sua natureza falsa (Figuras 4 e 5). Isso ocorre pois as pessoas estão muito acostumadas a verem rostos todos os dias. Desde o nascimento, seres humanos já são condicionados a verem e reconhecerem rostos. Estabelecendo em sua memória todas as formas, texturas, cores e particularidades que fazem cada rosto único. É um desafio muito complexo criar uma face, pois a partir do momento em que o objeto simulador estabelece uma semelhança com o objeto real, já se adentra no território da estranheza. Tal grau de familiaridade faz com que as menores incongruências em uma imagem digital fiquem potencializadas. Até o ponto em que esses erros começam a se aproximar de pequenas imperfeições naturais do humano: Os ruídos nos cabelos, micro pelos superficiais, a diferença de reflexão da luz (Rugosidade) de acordo com a maneira como os poros se esticam ou contraem, a disperção sub superficial da luz na pele, revelando capilaridades sanguíneas. 16 Neste momento a curva do gráfico de Mori já começa a subir novamente e se aproximar da forma humana ideal. Com a recuperação da afinidade, elimina-se a sensação negativa gerada pelo Vale da Estranheza. Figura 4: Face Humana em CG em 2007 Fonte: https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Memes/MassEffect Figura 5: Face Humana em CG em 2020 Fonte: https://ianspriggs.com/portfolio/pamela2 https://ianspriggs.com/portfolio/pamela2 17 5. CATEGORIAS DE ESPAÇOS LIMINARES A tese de Laura Mauro (2019) apresenta uma classificação de espaços liminares em três categorias ou arquétipos: A divisão leva em consideração a definição de liminaridade, não restritamente como aspecto funcional do ambiente, ou seja, se este desempenha o papel de ligar dois locais. Em vez disso, o conceito é usado em seu estudo para ressaltar o efeito que a ambientação causa e a similaridade com as experiências liminares identificadas no estágio médio de ritos de passagem culturais (ambiguidade e desorientação). 5.1. Espaços Descontextualizados Laura Mauro define esta primeira categoria de espaço liminar como “Componentes liminares do espaço doméstico e urbano; Corredores, Saídas de ventilação e outros lugares mundanos e funcionais”; “[...] eles não são inerentemente “infamiliares”, mas assim se tornam, através da descontextualização”. (Figura 6) Figura 6: Estacionamento vazio Fonte: https://www.deviantart.com/thimic/art/Empty-Parking-Garage-174176448 18 5.2. Espaços Abandonados Se a primeira categoria trata de espaços mundanos alterados, esta busca contemplar aqueles que não possuem mais contexto, ao menos não no presente, As influências combinadas da memória, trauma e os limites entre passado e presente são integrais em moldar a nossa percepção de um local abandonado, e em situação precária. Lugares abandonados capturam a imaginação humana pelo conflito entre a óbvia história que o local carrega em si, e o presente momento no qual o observador se depara com o mesmo. Seja pelas marcas de acontecimentos durante o seu período de uso, ou pelas evidências de descaso, negligência ou profanação (Figura 7). Figura 7: Cinema abandonado Fonte: https://www.reddit.com/r/urbanexploration/comments/9cedsr/abandoned_cinema_italy_2018/?utm_source=ifttt Este tipo de espaço é mais comum em obras de terror com o tema apocalíptico ou local amaldiçoado. O que permanece nesses locais, após seu abandono, é reconhecível como uma expressão de compaixão, tem-se uma ideia de como o espaço deveria ter sido, e talvez deveria ainda ser, não teria o Homem por lá passado. Se os espaços contam histórias, os abandonados contam estas em excesso, ao ponto em que a única história que se demonstra imediatamente relevante é a do presente momento. https://www.reddit.com/r/urbanexploration/comments/9cedsr/abandoned_cinema_italy_2018/?utm_source=ifttt 19 5.3. Espaços Intermitentes Esta última categoria abrange “espaços que se tornam liminares por virtude de ritual ou peregrinação”; “[...] a natureza cíclica desses ritos reforça uma Liminaridade permanente sobre os sítios nos quais eles ocorrem.” Mauro (2019). Estes locais tornam-se Liminares por temporariamente adotarem um tom de abandono. A ausência de pessoas pode causar um desconforto no observador, uma sensação de que não se deveria estar lá naquele momento, e muitas vezes é porque realmente não deveria. Ocupar um local fora do horário de funcionamento, salvo para os trabalhadores de tais turnos, é uma circunstância incomum. Todavia é bem possível que uma pessoa qualquer se encontre nessas ocasiões, por exemplo, ao sair de um filme após a meia noite e se deparar com corredores escuros e lojas fechadas de um shopping center (Figura 8), Figura 8: Shopping Center vazio Fonte: https://www.rossjukesphoto.co.uk/photographyblog//bullring-after-dark-the-sequel O que ressalta o efeito da Liminaridade, nos casos aqui citados, é a clara ausência de pessoas nas imagens. Isso sugere que o meio de visualização está ligado ao próprio fenômeno, de forma que o mesmo local talvez não tenha o mesmo efeito caso o observador venha a adentrá-lo fisicamente. https://www.rossjukesphoto.co.uk/photographyblog//bullring-after-dark-the-sequel 20 6. ESTUDOS DE CASO Os Espaços Liminares presentes nas obras analisadas se encontram de formas distintas, porém de alta relevância para o trabalho. No caso de Coraline, é observado um Espaço Liminar emocional, pois a garota está em processo de aceitar sua nova casa. Mas há também características espaciais liminares aplicadas na cenografia, como o fato da casa ter aspecto de abandonada, em contraste com a mesma, no mundo além da porta, ser aconchegante demais. No caso de Alice, a Liminaridade se dá na transição de estágios da vida, da infância para a adolescência. O País das Maravilhas é um Espaço Liminar Onírico, pois se dá durante um sonho de Alice, mas é também físico e mental, na medida em que antagoniza a garota com seu tamanho e com seus habitantes. Em Quero ser John Malkovich, os Espaços Liminares apresentados são representativos da mente humana em processo de aceitação da própria identidade. Craig não aceita ser quem é, nem mesmo quando consegue mudar de corpo, sendo condenado a viver como espectador. Maxine não aceita seu próprio amor por Lotte, até superar seu desejo físico por John. Lotte, por sua vez, não aceita seu próprio corpo, até o momento em que deixa de desejar ser John para ficar com Maxine. Todos os arcos apresentam pontos de virada, transições que, em sua maioria, se passam dentro de Espaços Liminares mentais, na cabeça de John Malkovich. Em conclusão, espaços liminares em filmes podem ser físicos, emocionais, oníricos, podem simbolizar conflitos internos e externos da vida dos personagens. O que torna eles Liminares é a relação estabelecida de familiaridade com o observador em sua própria jornada de transição. A qual muitas vezes não é clara para ele. Espaços Liminares são ótimos instrumentos para o meio cinematográfico pois se alinham com os arcos narrativos, na forma como apresentam uma mudança de estado que reflete a vivência dos personagens. 21 7. PROCESSO E MÉTODO 7.1. Pipeline A ideia deste trabalho é a produção de uma animação em computação gráfica. Esse meio foi escolhido pois permite a criação de geometrias digitais com textura e luz de forma rápida. Uma animação requer planejamento, eficiência e deve seguir uma sequência de etapas, um processo que raramente acaba sendo linear, mas necessário (Figura 9). Figura 9: Linha de produção de uma animação 3d https://www.reddit.com/r/coolguides/comments/n4htvv/3d_animation_pipeline/ 22 A primeira etapa é a criação de um roteiro, um documento que contém uma descrição do que está em cena, falas, ações e transições de uma cena para outra. Com o roteiro pronto, ou pelo menos o contorno do enredo, é possivel prosseguir para o Storyboard, que consiste em sequências de desenhos simples de momentos chave da história. Durante essas duas etapas já é possível ter uma noção da personalidade e estilo das personagens. Com isso é iniciado o estágio de Concept ou conceitualização da aparência dos protagonistas. No caso da computação gráfica, isso é o ponto de partida para a modelagem. Modelar algo em 3d consiste no uso de ferramentas de manipulação de malhas de vértices ou também NURBS (Non Uniform Rational Basis Spline) para gerar formas específicas. Com a modelagem pronta, o modelo é texturizado, ou seja, ferramentas de criação de materiais, baseados em programas chamados shaders são usadas para dar a aparência das geometrias em reação à incidência da luz (Figura 10). Figura 10: Modelo pronto e texturizado Fonte: De autoria própria Com o modelo pronto e texturizado é possível fazer o Rigging, processo que consiste em usar Bones (“ferramentas especiais que carergam coordenadas quaternionicas ) para modificar a geometria modelada. Para que os Bones afetem a malha, o artista deve programar modificadores de Armature ou Skinning, que convertem o movimento dos Bones em deslocamentos de malha. Isso é feito para 23 que um animador possa trabalhar com ela de forma eficiente. Outra etapa de Rigging é conhecida como Shapekeys ou Blendshapes, que basicamente é a programação e armazenamento de posições específicas de vértices da malha geométrica em uma função, gerando um parâmetro de entrada que permite a animação de, por exemplo, expressões faciais ou correções rápidas na malha. Com todas as etapas anteriores completas, é possível progredir com a animação em si. A linha do tempo da maioria dos programas de computação gráfica, é medida em frames, ou quadros, uma animação típica dos anos 2000 tem uma taxa de quadros de 30 fps (frames por segundo). Para gerar um animação são usadas ferramentas de transformação para mover, rotacionar e dimensionar os Bones nos eixos X, Y e Z, ao longo da linha do tempo. Como a animação costuma ser a etapa mais demorada da produção, é necessário evitar retrabalho. para isso são feitas animações simplificadas, chamadas animatics, que servem de ponte entre o storyboard e a animação final. Após a apresentação de uma animatic é comum que seja repensado o design da animação, alterações e retrabalho fazem parte da produção de um material de qualidade. Estúdios de animação costumam dividir as equipes de criação para aumentar a produtividade da linha de produção, com isso, enquanto uma equipe faz as personagens, outra cuida da produção do cenário. A cenografia geralmente é produzida em sincronia com a modelagem das personagens. Em produções caseiras, a ordem dessas produções não é de grande consequência, mas somente com a conclusão de ambas, é possível gerar os padrões de iluminação finais, e depois, por fim, a renderização de cada cena. A animação deste trabalho foi realizada integralmente no programa Blender, por ser um software de código aberto, o que reduziria os custos de produção. O processo de criação começou simultaneamente com o roteiro e com desenhos conceituais e modelagem dos ambientes e da personagem. Duas versões foram escritas para essa história, na primeira foram feitos apenas storyboards, na segunda a produção alcançou o estágio de animatic, com ainda algumas alterações. 24 7.2. Primeira versão Em sua primeira versão a história seria sobre o sentimento de perda e a construção do ambiente pela sobreposição e comparação de memórias daquele local Figura 12. Memórias reerguem emoções diferentes em momentos diferentes e influenciam muito na nossa apreensão de um local. A personagem, Marla nesta versão representaria a dor que sua dona sente por tê-la perdido (Figura 11). Essa dor personificada, sempre presente, ficaria perambulando por um espaço infinito e incompreensível, arranhando as paredes e chorando por ajuda. O espaço, por sua vez, seria o limiar entre um estado de vida e morte. Embora o animal de estimação esteja morto, sua memória vive e fere a dona psicologicamente, o arco narrativo propôe que o amor entre a dona e a gata irá eventualmente ajudá-la a superar a dor da perda. Figura 11: Primeira versão de Marla Fonte: De autoria própria 25 Figura 12: primeiro storyboard Fonte: De autoria própria 26 A morte da personagem procede o inicio da história e apenas se revelaria ao final. A gatinha teria há sete anos atrás entrado por um vão na parede (Figura 13) e sufocado. A escolha de usar paredes como signos simbolicos da liminaridade funcionaria melhor localizando a história em países onde a parede de drywall é utilizada de forma extensiva, como é o caso dos Estados Unidos. Figura 13: Conceitualização do interior de uma parede de drywall Fonte: De autoria própria É bem comum que gatos entrem no vão entre as placas de madeira para se esconder, buscar aquecimento ou durante uma caçada. Embora esse espaço geralmente seja preenchido com algum material de isolamento, podem haver lacunas que facilmente abrigariam um felino. Infelizmente nem todos os gatos que se perdem em paredes conseguem sair, ocasionando muitas vezes na morte do animal. “Gatos Secos (Como são conhecidos oficialmente), podem ser encontrados em museus nas áreas rurais da Inglaterra. Frequentemente não descobertos por centenas de anos após suas mortes, ficam preservados e mumificados naturalmente pela ausência de oxigênio nos telhados, paredes, pisos de igrejas, residências e prédios onde acabaram enterrados. Ainda hoje, proprietários ainda encontram um “gato seco” ao reformar uma casa antiga. (GOUKASSIAN, 2019) 27 A história nessa versão era muito mais complexa, e exigiria, não só uma estrutura de pipeline bem firme, mas também um tempo muito maior de produção. Como o objetivo não é a produção de uma animação final, mas sim de uma proposta de cenografia, optou-se por reescrever o roteiro original, de forma simplificada, dando ênfase ao desenho do espaço. 7.3. Segunda Versão Na segunda versão do roteiro (Figura 14), a personagem não mais estaria morta, nem entraria em uma parede de dry wall. Em vez disso estaria brincando com um novelo de lã, depois o perderia em um corredor. O vento bateria a porta, assustando a gatinha e fazendo-a correr em desespero. A partir de então, ela passaria por varios ambientes desconhecidos até encontrar um fio de lã. seguindo o fio, ela encontraria outro personagem, um robô de limpeza, preso n Por fim ela apertaria o botão “home” e voltaria para casa de carona em cima do robô. Figura 14: segundo storyboard Fonte: De autoria própria 28 8. PRODUÇÃO O Espaço Liminar é um ambiente preternatural, remete a um estágio significativo de mudança, é a situação entre o que deixou de ser e o que virá a ser. Um local de ambiguidade, possibilidades e incertezas. Os estudos realizados forneceram um melhor entendimento sobre a Liminaridade, ao passo em que estabelecem esta como linguagem, permitindo usá-la para contar uma história visualmente. Na segunda parte deste trabalho, foi a intenção produzir uma cenografia que possua uma relação pessoal e íntima com a personagem de uma história, sua jornada e arco narrativo, por meio da linguagem Liminar explorada no presente texto. A ambientação será dotada de familiaridade em relação à protagonista e representará o seu medo, configurando-se como Espaço Liminar Emocional. O local demonstra características mais próximas à primeira categoria de Espaço Liminar de Laura Mauro, Espaços Descontextualizados, pois baseia-se em ambientes domésticos como a casa da personagem e espaços de passagem como corredores, com portas fechadas. A animação foi roterizada pelo autor deste trabalho e acompanha a trajetória da personagem, Marla, uma gatinha filhote que se perde pelos corredores de um complexo residencial, com portas e paredes iguais em todos os lugares. A confusão e o pânico da personagem será representada por distorções físicas no cenário. A linha de produção de uma animação normalmente segue as etapas tradicionais de concept, storyboard, layout, modelagem, rigging, animatic, animação, render e pós produção, mas optou-se por encerrar a linha de produção no estágio de animatic, ou seja, uma produção mais leve, com renderização simples, apenas com os principais movimentos animados. 29 Devido à modalidade de curta metragem, a utilização de algumas técnicas de edição foram necessárias para melhor resumir a história. Em especial, a técnica de montagem, na qual cortes curtos e sucessivos são combinados para dar a impressão de passagem de tempo e de um longo deslocamento. Na fase de renderização, foi utilizado o programa renderizador nativo do Blender, o Eevee, que utiliza uma técnica de rasterização para gerar as imagens. Essa escolha foi feita, em oposição ao método de Raytracing, pois exige uma capacidade computacional muito menor. Isso se alinha com a etapa de animatic, pois é possível realizar o projeto de iluminação e shading sem precisar traçar muitos raios de luz. A rasterização (Figura 15) é usada em videogames há décadas e é a maneira mais rápida de se renderizar um cenário virtual. Figura 15: Técnicas de renderização Fonte: https://www.techpowerup.com/298479/intel-details-its-ray-tracing-architecture-posts-rt-performance-numbers 30 8.1. TRAMA A história começa em um apartamento, à noite. A gatinha Marla está deitada em uma poltrona, brincando com uma bolinha. Ela joga a bola para cima e a pega repetidamente (Figura 16). Sua dona havia saído, deixando-a sozinha, apenas com a companhia de um robô Roomba que fazia a faxina. Figura 16: Marla brinca na poltrona rosé Fonte: De autoria própria A monotonia se quebra quando a dona entra em casa, falando no telefone. Marla se desconcentra e derruba a bolinha. A dona, sem querer, chuta a bola, que bate na parede e pousa sobre o robô de limpeza. A dona estava distraída e deixou a porta aberta, permitindo que o robô saísse do apartamento, levando a bolinha consigo. Marla rapidamente se lança em direção ao seu brinquedo, sem perceber, saindo para o corredor. O robô sai pela porta também, continuando sua rotina de limpeza automática. 31 Marla brinca com sua bolinha fora do apartamento, mas sem querer, joga a bola em uma área escura do corredor. O medo começa a tomar conta da gatinha. De repente, uma corrente de vento faz a porta do apartamento bater com violência. Assustada com o barulho, Marla corre rapidamente para longe do barulho. Ao se recompor ela olha ao seu redor e percebe que está perdida. Como se não bastasse, as paredes parecem se contorcer em uma enorme espiral (Figura 17). Figura 17: O corredor se distorce inteiro em uma grande espiral infinita Fonte: De autoria própria Marla tenta andar para encontrar seu caminho. O medo e o desespero se intensificam e os espaços se distorcem cada vez mais. Os ambientes possuem características comuns, reconhecíveis, porém não há uma topologia compreensível, portas se espalham em orientações e posições impossíveis, as paredes se juntam e formam torres enormes em espaços encobertos por uma atmosfera pesada que parecem não ter fim (Figura 18). 32 Figura 18: O interior fica completamente desconstruído Fonte: De autoria própria Marla chega a um local escuro, com paredes que se cruzam em ângulos agudos e desconfortáveis, onde ela se depara com uma luz verde que pisca em um ritmo constante (Figura 19) . Ao chegar perto para investigar, ela encontra o robô Roomba, que estava com problema e ficava batendo contra uma parede. Marla interrompe o movimento do robô e observa sua interface (Figura 20) Figura 19: Cena final Fonte: De autoria própria 33 Figura 20: Marla encontra o robô Fonte: De autoria própria Ela percebe o símbolo de uma casinha piscando e coloca sua pata sobre ele, acionando a função de retorno à base de carregamento. Marla sobe no corpo do Roomba, que começa a se mover. Momentos depois, Marla aparece na porta de seu apartamento, com o ambiente de volta ao normal, pois o medo se foi (Figura 21). É possível dividir a trama em três atos: Introdução, na qual a personagem e seus objetivos são apresentados; Desenvolvimento, quando Marla é colocada à prova e percorre um mundo desconhecido; e Desfecho, quando ela encontra o robô e retorna, perdendo o medo. Figura 21: Marla retorna ao apartamento com ajuda do robô Fonte: De autoria própria 34 8.2. CENÁRIO 8.2.1. O Faneron A mente nem sempre faz uma leitura perfeita daquilo que vê, é o caso das ilusões opticas, que enganam o cérebro facilmente. O artista Maurits Cornelis Escher, em sua obra Relatividade (Figura 22), trabalhou com uma arquitetura que seria impossível de ser construída, com alterações no horizonte e sentido gravitacional. As linhas arquitetônicas parecem fazer sentido separadamente em alguns pontos da imagem, mas a relação geral entre todas as partes é de completa incongruência. Figura 22: A Relatividade de Escher,1953 Fonte : https://moa.byu.edu/m-c-eschers-relativity/ Essa obra serve de grande inspiração para este trabalho de cenografia, pois pode representar a desordem do subsconsciente de forma espacial. Trata-se de uma proposta de arquitetura que somente deveria ocupar o limiar da experiência humana. Esse Limiar, cunhado por Charles Sanders Peirce, se chama Faneron (CP 1.284) “[...] por faneron, quero dizer o total coletivo de tudo aquilo que é de qualquer forma ou sentido presente à mente, independente de corresponder a algo real ou não”. https://moa.byu.edu/m-c-eschers-relativity/ 35 O diagrama abaixo (Figura 23) foi produzido como experimento, visando dar uma forma aos limites da experiência dos sentidos. Nele, um homem observa com seus sentidos uma cena cotidiana, um mundo visível, tátil e expérienciável. Mas fora de sua apreensão, os espaços são apenas conceitos, memórias e construções abstraídas em formas, sons e cores. Figura 23: Nas bordas da apreensão, um diagrama Fonte: De autoria própria Esses espaços, foram representados com uma imagem recorrente de espaço liminar - similar aos bastidores (Figura 1) - equiparando o Espaço Liminar ao subconsciente, dando uma forma arquitetônica familiar e simples àquilo que escapa ao faneron. 36 8.2.2. O Cenário Liminar O design do ambiente no qual a história acontece buscou revelar aquilo que está ás bordas da apreensão da personagem, representando o inconsciente e tudo aquilo que está fora de seu controle. A protagonista ficou tanto tempo vivendo no mesmo local que aquilo se tornou o seu mundo, sua zona de conforto. Ao conhecer um espaço novo, sua mente mapeia aquele local com os instrumentos e formas que ela conhece. “A liminaridade como processo, e como evocadora de processos, é buscada pela presença e ausência de um envolvimento sensorial individual com o seu ambiente atual. [...] Nossas memórias da experiência no local são as mantedoras de tal envolvimento, apesar de nossos corpos não estarem mais fisicamente presentes no ambiente.” (Al Shrbaji, 2020) Antes de projetar as superfícies do cenário, foram delineadas algumas diretrizes: Primeiramente, o revestimento foi planejado buscando a homogeneidade, o chão é coberto por um carpete roxo escuro com riscas de giz (Figura 24) e as paredes com um papel listrado decorativo (Figura 25). As listras têm nesse contexto a função de deixar o local repetitivo e genérico, além de reforçar os movimentos de câmera e da personagem. Figura 24: Vista do carpete com riscas de giz Fonte: De autoria própria 37 Figura 25: Vista de uma parede com uma porta Fonte: De autoria própria Além disso, o ambiente deve mudar com a história, mantendo algum resquício de familiaridade com a forma original. Os elementos principais de familiaridade dos estágios iniciais ainda estão presentes: Os padrões listrados, as paredes e as portas, mas a personagem não mais reconhece, de forma geral, seus arredores (Figura 26). Figura 26: Conceito final do cenário Fonte: De autoria própria 38 A iluminação aplicada nos cenários é de tipo prática, realizada por luzes fluorescentes de arandela circular, aplicadas em intervalos regulares. Esse tipo de iluminação é recorrente em diversos espaços liminares encontrados na primeira parte da pesquisa, muitas vezes remetendo a escritórios de planta aberta dos anos 1990 e 2000. A padronização reforça a homogeneidade e o descaso com o sentimento humano, pois em muitos projetos essa técnica é aplicada buscando a iluminação ótima, não a mais confortável, o resultado é um ambiente genérico e impessoal. Espaços Liminares não são necessariamente distorcidos, entretanto, como trata-se de uma Liminaridade emocional atrelada a um arco narrativo, a distorção é colocada como qualidade central da liminaridade, pois contradiz a homogeneidade do ambiente. O espaço ocupado pela personagem é descontextualizado, pois perde a função de um corredor de passagem residencial, e desfigurado, pois as paredes, que antes eram limitadores do espaço, agora estão espalhadas e distorcidas de maneira desordenada. as portas, que antes eram instrumentos de passagem, saídas, agora tornam-se misteriosas. O medo da personagem efetivamente tornou incompreensível o mundo que a cerca. No primeiro ato, foi o intuito criar uma atmosfera aconchegante, com uma poltrona macia, ao lado de uma luminária de chão com temperatura de cor quente. Apesar de gerar conforto, buscou-se também a aplicação de elementos sombrios, como uma janela aberta, pela qual é projetada a sombra de uma árvore, pela luz da lua; Assim como a redução da iluminação no interior a luzes baixas, pontuando grandes áreas de sombra. No segundo ato, destacam-se as portas, elementos recorrentes nos estudos de caso que foram dispersas pelo interior do local, se tornam misteriosas, pois não se sabe o que há do outro lado. Além de ser em si um limiar, a porta é uma lembrança constante de que a personagem está perdida, pois qualquer uma pode ser a correta. 39 9. CONCLUSÃO O meio cinematográfico trabalha a com a imagem representando o espaço e personagens em cena, mas o mais importante a ser representado é a história. E o espaço deve participar em contá-la. Se convém ao enredo trazer uma tragédia, um momento de isolamento, medo, isso pode e deve estar refletido de forma a evocar uma resposta emocional dos espectadores. A Liminaridade, enquanto linguagem, ainda é um conceito difícil de ser definido, pois abrange uma complexa gama de qualificações e uma definição incerta, ainda com os instrumentos da semiótica e com as categorizações de Laura Mauro (2019). Isso ocorre devido à alta subjetividade do tema, e o apelo emocional de se separar o que é ou não um espaço não familiar, ou que traz a sensação de solidão. Por outro lado, o conceito se demonstra extremamente útil. É possível utilizar Espaços Liminares de forma efetiva ao contar uma história, trazendo de antemão elementos visuais estabelecidos como familiares, para depois corrompê-los em espaços liminares de forma objetiva e que fortaleça a ideia de Liminaridade. No trabalho realizado, o apelo à familiaridade não provém da relação dos espectadores com a cenografia, mas sim com a empatia que estes sentem pela personagem em sua jornada, cuja emoção se expressa espacialmente. 40 BIBLIOGRAFIA ALAIS, David et al; A shared mechanism for facial expression in human faces and face pareidolia, 2021 AL SHRBAJI, Sarah, On Walking in Derelict Urban Spaces: Experiencing Liminality in a City, 2020 AUGÉ, Marc, Non-Places: Introduction to an Anthropology of Supermodernity, trans. by John Howe, 2 edn (London: Verso, 1995), p. 52. DAWKINS, Richard, The Selfish Gene, 1976 FESTINGER, Leon. A Theory of Cognitive Dissonance,1956 GENNEP, Arnold Van, Ritos de passagem (1909) tradução dr Mariano Ferreira, Petrópolis, Vozes, 2011 GLUCKMAN, Max, Kinship and marriage among the Lozi of Northern Rhodesia and the Zulu of Natal. African systems of kinship and marriage. Ed. by A. Radcliffe-Brown, D. Forde, s. 1. (1962) GOUKASSIAN, Elena, Another Cat in the Wall, 2019 Acessado em 22/01/2023 LAY, Stephanie, The Uncanny Valley Effect, 2015 MAURO, Laura Into the Uncanny Valley: Liminal Places as the Locus of the Unsettling in Horrific Fiction, 2019 MONTEIRO, Ricardo Rodrigues, A semiótica de Peirce a partir de John Locke e David Hume: O ícone, índice e símbolo, 2018 MORI, Masahiro The Uncanny Valley: The Original Essay by Masahiro Mori, 2012 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2000. PEIRCE, quando sucedido por número entre colchetes são do Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Vols. 1 a 6, editadas por C. Hartshorne e P. Weiss; volumes 7 e 8, editadas por A.W. Burks, Cambridge, 1931 – 1958. O primeiro algarismo é o número do volume e a numeração subsequente, a da página. PENTIKÄINEN, Juha, The symbolism of liminality, 1979 https://www.laphamsquarterly.org/roundtable/another-cat-wall 41 PETERSON, M., & Rhodes, G. (2003). 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