Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Marília. Modernidade e Movimento Nova Era: novas perspectivas subjetivas de interação indivíduo-sociedade. Vinicius Ortiz de Camargo Marília, São Paulo, Novembro de 2003. UNESP – Universidade Estadual Paulista Campus de Marília Modernidade e Movimento Nova Era: novas perspectivas subjetivas de interação indivíduo-sociedade. Dissertação apresentada a Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília, para a obtenção do título de mestre em Ciências Sociais. Marília, Outubro de 2003. C172m Camargo,Vinicius Ortiz de. Modernidade e movimento nova era: novas perspectivas subjetivas de interação indivíduo-sociedade / Vinicius Ortiz de Camargo. – Marília, 2003. 131 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2003. Bibliografia: f. 124-129 Orientador: Profº Dr. Antônio Carlos Mazzeo. 1.Esoterismo. 2.Religião. 3. Indivíduo I. Autor. II. Título. CDD 291.13 Termo de Aprovação _______________________________ Antônio Carlos Mazzeo (orientador) _______________________________ Jose Geraldo Alberto Bertoncini Poker _______________________________ Andreas Hofbauer Dados Curriculares Vinicius Ortiz de Camargo Nascimento: 12/09/1976 – Itapetininga-SP Filiação: Flávio Ortiz de Camargo Teresa Serafim Gorreri Ortiz de Camargo 1994-1998 Bacharelado em Ciências Sociais Faculdade de Filosofia e Ciências UNESP – Campus de Marília 2000-2003 Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais, nível de mestrado, na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de Marília. 2001-2002 Professor de História e Sociologia no ensino médio, junto ao Colégio Etapa de Itapetininga-SP. 2002-2003 Professor de História e Geografia no ensino médio e fundamental, junto ao Colégio Adventista de Assis-SP. 2002-2003 Professor de Sociologia do Instituto Superior de Educação (ISER) das Faculdades Integradas Ranchariense (FRAN). 2003-2003 Professor Conferencista de Sociologia junto ao Departamento de História, da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP – Campus de Assis. Este trabalho só pode ser dedicado à Patrícia e à Tereza. Agradecimentos Quando me pergunto sobre o significado deste trabalho percebo que, além de confirmar um processo de amadurecimento intelectual, ele só ganhou existência pelo apoio constante e irrestrito de minha esposa Patrícia, de modo que a ela vai meu profundo agradecimento e minha alegria de poder experimentar uma parceria de sucesso no campo profissional - a única – e afetivo. Também não posso deixar de agradecer à minha família, pais, tios e também sogro, sogra e cunhados e aos meus amigos do peito, Marcelo, Ricardo, Bóris, Felipe, William, André e Alexandre, que sempre me deram o feedback necessário para a valorização de meu trabalho. Neste momento em que o papel político e social do intelectual está obscuro, em que este se sente carente de meios para exercê-lo, o apoio desses familiares e amigos tornou-se a única muleta digna de se usar para continuar a trilhar pelos caminhos da ciência. Agradeço ao professor Antonio Carlos Mazzeo pela gentileza e profissionalismo por aceitar ser meu orientador e a outros professores, Maria Orlanda, Fátima Cabral, José Geraldo Poker – que gentilmente aceitou o convite para compor a banca de defesa – e Andréas, que de uma forma ou de outra me ajudaram a aprender sobre o real funcionamento dos mecanismos institucionais da academia e sobre os obstáculos no caminho da produção de uma dissertação. “A modernidade prometia trazer o tipo de clareza e transparência para a vida humana que só a razão pode oferecer. Isso não aconteceu, e hoje não mais acreditamos que venha a acontecer. Estamos cada vez mais conscientes da irremediável contingência de nossa existência, da inevitável ambivalência de todos as opções, identidades e projetos de vida. (...) a falência do projeto iluminista requer novas modalidades de reflexão, uma “agenda” de problemas a serem discutidos que tome para si e nomeie a angustiante dramaticidade de se viver na ambivalência – algo que se estende à política, à economia, ao desenvolvimento tecnológico e à subjetividade.” (Agnes Heller) Sumário 1 Introdução ...................................................................................... 10 2 Caracterização e origens do movimento Nova Era ....................... 17 2.1 Antecedentes históricos ........................................................................... 17 3 A Nova Era e a “condição pós-moderna” ..................................... 51 3.1 Na trilha do pós-moderno ....................................................................... 56 3.2 Pós-modernidade e religiosidade ............................................................ 81 3.3 O movimento Nova Era e a “condição pós-moderna” ...................... 91 4 A contradição indivíduo-sociedade: possibilidades de transcendência da alienação ........................................................... 99 4.1 A categoria do indivíduo e a reprodução social ................................... 101 4.2 A categoria do indivíduo e a possibilidade de transcendência da alienação .................................................................................................. 110 4.3 A Nova Era e a transcendência da alienação ........................................ 117 5 Considerações Finais ................................................................... 122 Referências Bibliográficas ............................................................................. 124 Bibliografia ........................................................................................................ 127 Resumo e Abstract ......................................................................................... 131 Movimento Nova Era e modernidade: novas perspectivas subjetivas de interação indivíduo-sociedade INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo analisar o movimento Nova Era através de sua relação com a individualidade contemporânea, ao modo como este movimento confere aos sujeitos mecanismos de respostas e modalidades de comportamento que negam ou intensificam o processo de alienação. Para tanto, parte-se da constatação de que o desenvolvimento da sociedade moderna possibilitou o surgimento do indivíduo enquanto uma categoria social, ou seja, no âmbito das relações sociais moderno- capitalistas entrou em cena a noção e a atitude de uma individualidade particularizada, sustentadora de uma autonomia própria e legitimada por práticas sociais que começam a se centrar nas necessidades individuais. Na modernidade a posição social ocupada pelo indivíduo passou a negar a ordem estamental feudal em troca de um modo de vida marcado pela contingência econômica e reformulação dos valores tradicionais por valores que reforçavam um espírito de autodeterminação. As relações sociais passaram a incorporar a orientação individual da realidade, contradizendo toda a ordem estamental anterior marcada por regulações e convenções socialmente fixas, uma ordem com a qual os indivíduos se relacionavam e se identificavam de uma forma mais imediata. Nesse contexto, de acordo com a concepção marxiana da história, torna-se possível o reconhecimento histórico de uma individualidade que, em-si, se diferencia e se especifica diante da sociedade, permitindo ao sujeito, na sua dimensão objetiva e subjetiva, capturar sua mediação com esta. Ë um reconhecimento que afirma as especificidades entre o indivíduo e o processo de sociabilização, descartando e negando uma consideração dualista, de oposição simples entre ambos. Essa possibilidade histórica, considerada enquanto uma capacidade potencial de o sujeito transcender sua alienação perante a sociedade e a si próprio, pode, por isso, ser recuperada a partir da dimensão da subjetividade, com os valores e simbolismos que a permeiam, seus conflitos e suas respostas engendradas diante da processualidade social que a atravessa, a conforma e é conformada por ela. A Nova Era será um fenômeno que, nessas últimas décadas, passará a orientar um número expressivo de subjetividades, oferecendo a estas respostas que procuram rearticular e resignificar as tendências sociais presentes, propondo transformações que, num primeiro momento, negam a cisão e dualidade indivíduo-sociedade. Surgida no fim dos anos 60, a Nova Era será um movimento que funda uma modalidade comportamental pouco afeita às instituições e identidades fixas, se conformando, como aponta Leila Amaral (2000), a partir de um “sincretismo em movimento”. Os agentes desse movimento acabam tomando o paradigma de uma realidade holística, na qual os diversos 'mundos' que a compõe se apresentam inter-relacionados, o mundo mental, espiritual, emocional, tornando-se importantes fontes de comunicação para àqueles indivíduos que pretendem transcender seus egos. Busca-se, com isso, o self, mas um self que, segundo Amaral, se afasta do sentido de uma individualidade auto-suficiente. A procura pelo self é o encontro com o eu superior de cada indivíduo, sua centelha divina, um eu ligado a uma totalidade inesgotável que representa uma manifestação sagrada. Nessa manifestação os sujeitos se desconectam das categorias sociais que o identificam e o rotulam para vivenciarem uma experiência sacralizada. É o indivíduo se 'afogando' no sagrado, uma força ou energia que perpassa todo o universo e que, por isso, não se limita ao poder individual, nem a qualquer grupo, comunidade ou instituição. Essa força ou energia, ou qualquer símbolo que a represente, é sempre buscada porque não é fixa ou finita e, desse modo, a sua manifestação se dá através de uma experienciação subjetiva que estabelece relação com uma totalidade aberta, em potencial, sem regulações que lhe marquem uma identidade fixa. Através dessa atitude, pode-se deparar com uma visão que se distancia dos marcos tanto do individualismo, como do comunitarismo. Apontando para uma totalidade sem fusão, em desconforto com a lógica do poder, e afastando a polêmica, própria de indivíduos racionais em busca de 'universais', os errantes Nova Era tentam chamar atenção, performáticamente, para a indeterminação, ou coexistência do múltiplo, como consubstancial à sua espiritualidade. Uma indeterminação, cuja dinâmica é manter as pessoas cheias de expectativas, não é para acabar, pois apresenta-se, nesse universo, como um valor garantidor do prosseguimento da jornada – isto é, a procura do essencial como um fim em si mesmo. (AMARAL: 2000, p. 211) Tais perspectivas não poderiam ser reconhecidas enquanto uma crítica ao dualismo indivíduo-sociedade e, assim, dentro da lógica da dinâmica processualidade histórica, converter-se-ia em uma forma de combate positiva à alienação do homem moderno? Tal consideração, todavia, requer apreender a dimensão da subjetividade na sua dialeticidade com os marcos estruturais do “capitalismo tardio” (Cf. Jameson, 2000), das relações sociais e de produções co-determinantes da atualidade. Nesse sentido, a questão da alienação - que só pode ser avaliada nessa dinâmica processualidade - e as modalidades de respostas que os sujeitos Nova Era engendram são fundamentadas pelo contexto da alta modernidade ou pós-modernidade, o terreno social na qual se desenrola a dinâmica capitalista. A análise deste terreno parece conferir uma nova objetividade às relações sociais e de produção, revelando uma nova configuração temporal-espacial nas formas de sociabilidade e, por isso mesmo, revelando novas construções representacionais-simbólicas que procuram reorientar as ações individuais. A prática de novas modalidades comportamentais desenvolvidas pelo sujeito Nova Era estão intimamente relacionadas a este terreno social. A medida e a força do impacto dessas modalidades comportamentais, assim como suas possibilidades de transformação desta nova objetividade que as substancializam podem demonstrar os limites e as potencialidades das ações dos sujeitos Nova Era quanto a questão da alienação. A questão, portanto, de o movimento Nova Era contribuir para a alienação ou não, passa pelo crivo das transformações que ele resulta na objetividade das relações sociais e de produção, sejam essas transformações feitas de uma maneira consciente, inconsciente ou inconseqüente. Para dar o devido prosseguimento a tal objetivo, procurou-se dividir o texto em quatro capítulos. O capítulo 1 traça as origens do movimento Nova Era como também suas principais características. O capítulo 2 pretende aprofundar as características do movimento Nova Era a partir do modo particular em que o movimento está inserido na contemporaneidade, procurando suas conexões com as modalidades de respostas dadas pela individualidade nessa realidade e, nesse sentido, levantando a hipótese do significado “socializador ou privativo/solitário” (Cf Mèszàros: 1981) de tais resposta. No capítulo 3, a postura do indivíduo Nova Era será posta em análise através da categoria da alienação. Através dela, o movimento Nova Era e as modalidades de resposta que ele apresenta ao indivíduo será posta em xeque, procurando, com isso, problematizar a categoria da alienação através da análise de um movimento social contemporâneo e, também, problematizar a capacidade de o movimento Nova Era propor respostas aos indivíduos capazes ou não de superar os limites da alienação. I – CARACTERIZAÇÃO E ORIGENS DO MOVIMENTO NOVA ERA. 1.1 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS Segundo Leila Amaral, o movimento Nova Era surge de “um cruzamento de idéias” que vinha se desenvolvendo desde o século XIX, na Europa e Estados Unidos, representados pelo Transcendentalismo, o Espiritualismo, a Teosofia, a New Thought e a Christian Science. Todas essas manifestações religiosas incorporavam, umas mais, outras menos, as concepções da religiosidade oriental. Reafirmavam, também, o misticismo, sem desprezar o pensamento ocidental moderno e suas religiões mais antigas. A autora sugere que, nesse cruzamento de idéias, não se poderia ignorar a importante influência do movimento romântico. A idéia romântica de finito perpassado pelo infinito, de um universo incomensurável considerado divino, de uma totalidade que engloba todos os seres, na qual o indivíduo deveria ir atrás, buscando se encontrar com a sua essência divina, mesmo que essa busca, em torno de tal infinitude, nunca termine. Essa busca deveria se dar através da intuição, da percepção e dos sentimentos, resgatando também antigos caminhos de civilizações, ou melhor, de comunidades, já que estas são vistas como uma fonte de comunhão dos objetivos românticos e, por isso, uma negação “(...) às relações de competição, conflito, utilidade, consentimento contratual e individualismo despersonalizado nas cidades”.(AMARAL: 2000, p. 27) Embora com uma forte influência de um conjunto de idéias provenientes do século XIX, o aparecimento do movimento Nova Era, pelo menos com essa denominação, data, segundo alguns estudiosos do fenômeno, do final da década de 60 e início da década de 70. É quando a terminologia que simboliza esse movimento, a Nova Era, passa a ser referida com maior freqüência por um público crescente. Tal terminologia significaria: (...) uma cosmologia astrológica : refere-se a uma mudança – ocasionada pela chamada precessão dos equinócios – no aparente trajeto do sistema solar em relação ao zodíaco ( uma espécie de faixa com 12 subdivisões projetada na abobada celeste), ao longo do qual parecem mover-se os astros, perfazendo determinados ciclos. (...) A nova era que agora se inicia é a Era de Aquário, trazendo ou anunciando profundas alterações para os homens em sua maneira de pensar, sentir, agir relacionar-se uns com os outros, com a natureza e com a esfera do sobrenatural. De uma forma geral, essas transformações são entendidas no sentido de um reequilíbrio entre pólos – corpo/mente, espírito/matéria, masculino/feminino, ciência/tradição, etc – até então opostos e em conflito. (Magnani: 2000, p. 9-10) A este primeiro significado também vão se incorporar certas teorias científicas desenvolvidas pela física quântica e a psicologia, orientações terapêutico-religiosas provenientes de antigas comunidades indígenas, a preocupação ecológica e a literatura de auto-ajuda. A toda essa combinatória de elementos diversos pode-se constatar, também, a grande influência que o movimento Nova Era herdou da contracultura. Surgido nos anos 60, o movimento da contracultura ajudou a quebrar a hegemonia do discurso científico, aumentando o fluxo de relações entre ocidente e oriente, abrindo espaço para que outros discursos encontrassem ressonâncias no campo do pensamento e possibilitando o surgimento de “(...) inúmeros projetos espiritualistas valorizando uma transformação, em primeiro lugar, do próprio homem”.(EGYDIO: 1995, p. 29) Entre esses projetos, pode-se destacar um que deu origem ao Movimento do Potencial Humano, um movimento surgido na década de 60 nos Estados Unidos e que, a partir da década de 70, se voltou para um público cada vez maior. Anterior a Nova Era, o Movimento do Potencial Humano desenvolveu a combinação de religiões orientais com a psicologia e a medicina alternativa. Na região de Esalem, Califórnia, ele significou: (...) uma convergência da comunidade metafísica do oculto com a cultura da droga e experiências místicas e psíquicas, bem como a interação da psicologia humanista, introduzida por Maslow, com a Gestalt Therapy, da qual Friotz Perls foi um dos principais difusores, e a bioenergética, desenvolvida por Wilhelm Reich, para promover a 'revolução pessoal' e alcançar um nível de consciência intensificada, através de experiências com drogas, sexo e arte – as duas últimas com entradas e contatos com intelectuais da Escola de Frankfurt. Desse encontro começa-se a desenvolver pesquisas e experiências dedicadas ao desenvolvimento pessoal, com ênfase na auto-realização, na importância do 'aqui-agora', no papel do corpo, no crescimento psíquico e na dinâmica de grupo. (AMARAL: 2000, p. 23) Outra importante instituição, a Comunidade Findhorn, na Escócia - cujos ideais repousavam na interpretação de que todo homem possui dentro de si um eu interior, uma essência que o liga diretamente a incomensurabilidade divina, e que não importa o caminho escolhido para se chegar a este ser desde que se deixe como guia nosso eu interior – vai ser um contato importante que tornará o Movimento do Potencial Humano um órgão de destaque na expansão e fortalecimento do movimento Nova Era nos Estados Unidos e em outros países durante os anos 70. Durante esse período, alguns ideais do movimento Nova Era vão acabar sendo reafirmados com o lançamento do livro O Tao da Física de Fritjoff Capra, um teórico da física que vai propor certas semelhanças entre as últimas teorias desenvolvidas pela Física e os discursos provenientes do misticismo oriental, ambos detentores de uma visão sistêmica do universo na qual a razão e o irracional, a consciência e a inconsciência, o micro e o macro, são partes que não devem ser opostas, pois, de alguma forma, elas estão interligadas formando um todo. Mais para o fim dos anos 70, Marylin Ferguson, uma jornalista americana, escreve o livro A Conspiração Aquariana, associando neste certas características muito peculiares ao movimento Nova Era, como o fato desse movimento se organizar em forma de rede, com ênfase na redistribuição do poder. Segundo ela, a conspiração aquariana: (...) é uma rede poderosa, embora sem liderança que está trabalhando no sentido de provocar uma mudança radical nos Estados Unidos. Seus membros romperam com alguns elementos chaves do pensamento ocidental, e até mesmo podem ter rompido com a continuidade da História. (FERGUSON, p. 23: sem data). Esses dois livros tornaram-se best-sellers e contribuíram, como aponta Magnani (2000), para que o Movimento Nova Era deixasse de ser visto apenas como “excentricidades de hippies”, uma vez que seus membros passaram a ser compostos pelos mais diferentes tipos de integrantes, chegando até a possuir personalidades ligadas a comunidade científica, ao jornalismo, etc. Já no Brasil, Magnani diz que o Movimento Nova Era começa a aparecer no fim dos anos 70. Segundo esse autor, o Tropicalismo, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, abrindo espaço para uma postura identificada com a estética libertária e dionisíaca da contracultura, já trazia ao público, no começo dos anos 70, temas ligados a uma visão holística do mundo, contudo: (...) foi Raul Seixas quem explorou explicitamente em suas composições aspectos mais místicos, chegando inclusive a participar, juntamente com o então parceiro Paulo Coelho, de sociedades iniciáticas inspiradas na doutrina do famoso esoterista inglês se-á cosmopolita e ganhará proporções de mercado.” (MAGNANI:2000, p. 23) Nesse período, Anthony D'Andrea, destaca o importante papel de divulgação de um programa da Rádio Imprensa FM, no Rio de Janeiro. O programa se chamava O Eremita: (...) era um programa eclético de cultura 'espiritualista-esotérica', com a 'proposta de integrar ciência, filosofia e religião.' Com música new age e rituais especiais de encerramento, o Eremita baseava-se em duas ou três entrevistas diárias, conduzidas por Kaanda ou assistentes (mais as perguntas anotadas dos ouvintes), de membros convidados, representantes dos mais diversos sistemas, práticas e instituições alternativas: paracientíficos, esoteristas, orientalistas, espiritualistas, xamânicos, mágico-ocultistas etc. (D'ANDREAS: 2000, p. 11) Com duração de duas horas, em horário nobre, o escritor e bruxo Paulo Coelho participava sempre do programa, o que lhe possibilitou, segundo D'Andrea, um importante ponto de difusão de seu nome e de lançamento de seu primeiro livro, O Diário de Um Mago. Estouro de vendas, mais de 23 milhões de livros vendidos em diversos países, quarenta por cento só no Brasil, Paulo Coelho não pode deixar de ser entendido enquanto um ícone para a expansão das idéias da Nova Era no Brasil. Nos anos 90, não só no Brasil, mas também em outros países, o mercado de produtos voltados para a Nova Era terá um crescimento vertiginoso, aumentando significativamente o número de publicações sobre o tema como também o número de locais próprios para o desenvolvimento de atividades e consumo de produtos. Segundo Magnani, tal fato possibilita observar na cidade de São Paulo, por exemplo, um “circuito neo-esotérico” através das regularidades espaciais na distribuição dos locais próprios da Nova Era, podendo averiguar elementos que a configuram como “mais um estilo de vida”: (...) sejam quais forem as motivações, filiações filosóficas e propósitos, todos esses estabelecimentos de um ponto de vista operacional e de implantação na paisagem urbana, constituem uma oferta regular e visível de produtos e serviços. Formam, assim, um circuito (...) ao longo do qual os usuários, adeptos e freqüentadores ocasionais constroem seus trajetos e fazem suas escolhas. (MAGNANI: 2000, p. 33) Adaptados a um tipo de organização descentralizada e fluída, a prática Nova Era vai favorecer, de acordo com Carozzi (1999), a disseminação do próprio movimento. Sem as amarras de ter que optar por este ou aquele discurso, esta ou aquela comunidade, e sem uma autoridade centralizada, os adeptos da Nova Era podem transitar dentro do campo heterogêneo desta, ora como discípulos, ora como oradores, todos consumidores de uma rede de serviços. 1.2 – CARACTERIZAÇÃO DO MOVIMENTO NOVA ERA. Essa forma de organização fará do movimento um grande defensor da circulação e da fluidez, resultando, tal defesa, em: (...) um elemento central da ética Nova Era. Através do vocabulário do 'fluir' e a 'transformação', a circulação torna-se positiva, em todos os campos de sua generalizada aplicação. O valor da circulação expressa-se na concepção terapêutica segundo a qual 'a circulação da energia' é postulada como condição de saúde, enquanto que os 'bloqueios' são considerados como causa da doença. (CAROZZI: 1999, p. 19) É através desse tipo de organização que, segundo Viotti, o movimento Nova Era pode ser caracterizado: (...) como uma grande mobilização de pequenos grupos, dispersos em diversos locais, mas unidos no mesmo pensamento e objetivo, que forma uma grande rede de ação. O movimento Nova Era abrange centenas de entidades, instituições e grupos, sem que todos necessitem entrar em contato, ou mesmo se conhecerem. (VIOTTI: 1995, sem p.) Segundo o autor: Essa mega-sede é descrita por Merilyn Fergson: 'Enquanto a maioria de nossas instituições vêm fechando, surge uma versão contemporânea da velha relação tribal ou familiar; a rede, um instrumento para o próximo passo na evolução humana. (...) Este modelo sistemático de organização social presta-se a uma melhor adaptação biológica, é mais eficiente e mais ´consciente` do que as estruturas hierárquicas da civilização moderna. A rede é moldável, flexível. Para todos os eleitos, cada membro é o centro da rede. As redes são cooperativas, não competitivas. São como as raízes da grama: auto-geradoras, auto-organizadoras, por vezes até auto-destruidoras. Representam um processo, uma jornada, não uma estrutura organizada.(...) As redes são a estratégia através da qual pequenos grupos podem transformar uma sociedade inteira. (VIOTTI: 1995, sem p.) Num estudo sobre essa forma organizacional, principalmente em seu a a um de nós. Essa centelha ligaria a consciência do indivíduo social a outras formas de consciência, como a consciência planetária e cósmica. Tal fato, segundo a autora redefiniria a própria noção de autonomia. “Ser socialmente autônomo é agora ser divino e estar ligado a uma totalidade divina”.(CAROZZI: 1999, p. 160). A essa sobrenaturalização do aspecto autonômico, passa-se a questionar não mais apenas as hierarquias terrenas, como também as hierarquias divinas e, assim: (...) o universo sobrenatural povoa-se de seres pequenos, maleáveis e que não exercem autoridade de nenhum tipo sobre os homens, mas que se limitam a acudí-los quando são chamados: fadas, gnomos e anjos constituem o universo sobrenatural do homem autônomo. (CAROZZI: 1999, p. 161) Participante do 17º ENCA – “Encontro Nacional de Comunidades Alternativas Aquarianas” – Leila Amaral vai encontrar a mesma interação, fluida e anti-hierárquica, entre os participantes do encontro com a entidade sobrenatural arbacon. Durante o encontro, arbacon apareceu em diversas ocasiões e locais, da qual proferiu algumas mensagens aconselhando os homens a seguirem o princípio equilibrado e harmonioso da natureza, “(...) perpassada pelo poder divino, (...)'destruindo' tudo o que não expressa a sua 'verdadeira natureza interior' para rejuvenescer-se sem cessar”. (AMARAL: 2000, p. 153) Essa mensagem colocaria em destaque a: (...) dimensão corrompida do homem, que deve ser corrigida seguindo-se o caminho da natureza, num “sentido de respeito a natureza perpassada pelo poder divino; subordinação ao divino universo que incluiria a própria humanidade como espécie, da qual o indivíduo é apenas uma realidade particular; uma imanência imperfeita.”(AMARAL: 2000, p. 153) Apesar do reconhecimento de sua imanência imperfeita, a subordinação desse indivíduo ao “divino universo”, não traz, como já apontou Carozzi, uma hierarquização de seu mundo terreno com o mundo sobrenatural, pois se a este o homem deve se integrar é porque ele é visto como um co-participador da criação. Assim diz abarcon: Nós [Espíritos da natureza, porta-vozes do divino] somos apenas um Espírito, somos apenas uma voz, cabe à responsabilidade de vocês, à sua educação espiritual e, acima de tudo, à ação de sua educação espiritual para a construção de um novo mundo. (AMARAL: 2000, p. 155) De forma que o reconhecimento da “imanência imperfeita do homem”, representada nas mensagens de arbacon, não significa propriamente a subordinação humana a uma hierarquia divina, mas “(...) parece contrapor-se, assim, ao mito racionalista da 'imanência radical e completa' do indivíduo absolutamente destacado por ele mesmo, tomado como origem e certeza”.(AMARAL: 2000, p. 154) Segundo Amaral, arbacon parece sugerir a necessidade da ajuda dos homens para que o plano da criação divina se realize em toda a sua plenitude. Em outras palavras, Deus precisa da ação dos homens, do espírito humano potencializado por sua educação espiritual, para poder fazer sentir as suas próprias forças. (AMARAL: 2000, p. 156) A co-criação entre o homem e o divino é, portanto, necessária e, dessa forma, tem-se no movimento Nova Era a ênfase na passagem livre entre mundo do aquém e mundo do além, com um vínculo entre homem e divindade que suprime qualquer instituição ou qualquer outro elemento como fonte mediadora. Assim, não existe o padre nem a Igreja, nem o médium ou um santo específico no qual o sujeito Nova Era deva se orientar para alcançar uma consciência cósmica. Através de seu eu interior, de sua centelha divina, este sujeito pode caminhar autonomamente em direção ao mundo do além, passando, sim, por uma série de orientações, de discursos, mas sem a obrigatoriedade de se fixar em nenhum deles ou de criar um espaço sagrado específico de passagem para o além. Por isso, a busca pelo sagrado cabe ao indivíduo, não se encerra nele, mas cabe a ele ir ao encontro trilhando seu próprio caminho, através de seu eu interior. Com base nessas características atribuídas ao sujeito da Nova Era, Carozzi afirma que esse movimento acaba se sobrenaturalizando, deixando de lado a sua dimensão social, pois a sua defesa de autonomia individual é a defesa da autonomia do indivíduo. (...) em relação com qualquer um e todos os aspectos de sua socialização, autonomia individual em relação com qualquer influência ou modelo externo, autonomia individual absoluta como forma de encontrar o Deus dentro, a centelha divina, o Eu superior, o guia interior. (CAROZZI: 1999, p. 164) Nos debates, em palestras, workshops e em outras modalidades de encontro, os convidados especiais nunca se atribuem como agentes responsáveis pelas mudanças provocadas em seus ouvintes, eles dizem ser somente facilitadores e não guias, pois o caminho quem faz é o próprio indivíduo a partir de seu eu interior. Nesse sentido, o fato de muitos participarem dos mesmos encontros, pactuarem orientações e condutas parecidas, não deve ser interpretado como sendo conseqüência de um processo de sociabilização, devido às imitações e relações entre pessoas, por exemplo. Isso seria impreciso e estaria restrito a uma esfera, a social, que não é a única de acordo os agentes Nova Era, pois: (...) como os terremotos, as enchentes ou as tempestades, a Nova Era é 'alguma coisa' que 'se produz' 'a nível planetário' sem mediarem as relações e imitações entre as pessoas. Concomitantemente, as coincidências em práticas e crenças que se produzem dentro da rede Nova Era, quando não naturalizadas como o produto de 'alguma coisa' que germina no interior dos indivíduos, resultam sobrenaturalizadas. (CAROZZI: 1999, p. 168) Assim, paradoxalmente, toda a modalidade de transformação social defendida pelo movimento acaba negando a função social do agente transformador, a função social das relações travadas entre seus membros no sentido da direção e orientação para a transformação da realidade. Não se declaram parte de um movimento social ou cultural, o qual significaria que foram influenciados, que se uniram aos outros, que seguiram um modelo, (...) Os ativistas da Nova Era definem- na como uma conspiração, como um sentimento que germina, cresce, brota naturalmente dos corações ou sobrenaturalmente de uma energia que vibra em uníssono, nunca como um movimento social nem como resultado da interação de indivíduos e grupos. (CAROZZI: 1999, p. 164-165) Todavia, essa sacralização do movimento, sua sobrenaturalização, não o impede, necessariamente, de propor transformações no âmbito da individualidade capazes de impor um novo conjunto de relações entre o indivíduo e a sociedade. E nesse novo conjunto podemos já notar um certo desconforto no trânsito de categorias sociológicas para a interpretação do mundo. Não há um abandono absoluto delas, mas a sua flexibilização para a incorporação de novos elementos que não são próprios, e muitas vezes são opostos, às categorias mais representativas da esfera social. Nesse sentido, os sujeitos da Nova Era vão muitas vezes procurar (re) interpretar o mundo e seu lugar nele menos por esferas como a da política, da economia e da sociologia, e mais por uma experiência sensível, através de um desejo que não se esgota e que não pode ser explicado pela razão, podendo ser entendido e sentido através de seu vivenciar, levando em consideração uma outra forma de temporalidade, a temporalidade mítica. A defesa de uma temporalidade mítica faz com que o movimento Nova Era rompa com a temporalidade linear cientificista, sustentando, através da imaginação simbólica, um mundo mítico que (re) apresenta o divino, o misterioso, ambos detentores de uma concepção de mundo. Segundo Egydio: Dentro dessa linha, a percepção é usada em detrimento da razão- kantiana, tanto a percepção imediata (as sensações imediatas) como a percepção indireta, aquela que busca um sentido para o não concreto, para o não perceptível imediato, um sentido não baseado numa temporalidade linear que atua sobre as causas 'secretas', 'ocultas'(o cosmos, Deus) e não as definem.(...) Cria-se assim uma nova alternativa para o sujeito que pode sair da finitude da ciência racionalista kantiana abarcando um edifício de representações míticas pelo misticismo, cuja característica principal é uma nova individualização do sujeito (o crescimento individual pelo sujeito, no seu íntimo). (EGYDIO: 1995,p. 30) Juntamente com a tentativa de uma nova individualização pelo sujeito, o referencial holístico aparece como uma importante fonte de orientação a este, pois suas representações acerca do mundo e dos homens vão sustentar o caminhar pela trilha da percepção, dando a esta uma conotação mais que individualista, uma conotação que enfatiza mais a integração do que a separação. Através do imaginário holístico, o sujeito Nova Era procura uma linguagem cósmica para interpretar seus relacionamentos, e essa linguagem constitui-se num experenciar os homens, o planeta e o universo como seres energeticamente interligados, muito longe das classificações racionais e dualistas, das categorias societárias de identidades, mas ao encontro de um contato místico com o que racionalmente não se pode explicar, o misteriun tremendus. Assim diz o médico Di Biase, utilizando-se do referencial holístico: Pessoas são um todo biopsicossocial dinâmico, integrado com a natureza e o cosmo, e não somente células e órgãos trabalhando juntos. Um todo, cuja dinâmica global auto-organizadora gera propriedades novas, refletindo no microcosmo do organismo a ordem macrocósmica do organismo universal. (DI BIASE: 1995, p. 12) Sendo um neurocirurgião/neurologista, com formação científica sólida, Di Biase utiliza a visão holística em sua profissão e em sua vida, uma visão que, segundo ele, começou a vir durante a revolução cultural dos anos de 1960, com a incorporação de filosofias orientais, como Tai Chi Chuan, meditação, o Tão Chinês, com algumas constatações da física quântica, através de Fritjof Capra, David Bohm, Karl Pribam, etc. Com base nesses saberes, Di Biase pode afirmar o seguinte: Percebi com o tempo que conhecimentos dispersos nas mais diversas áreas científicas revelam convergências com os mais antigos pensamentos da humanidade, permitindo perceber o universo como uma mente cósmica, uma memória holográfica universal da qual nossas consciências são partes integrantes, como se através de nós o universo tentasse compreender-se a si mesmo. Acredito que hoje participamos ativamente dessa consciência cósmica, que é o próprio universo auto-organizando-se, em um jogo infinito de interações dinâmicas, e tomando consciência de si mesmo. (DI BIASE: 1995, p. 13) (...) como um aviso de que a integração harmônica, por algum motivo, foi rompida. A noção de doença é compreendida pelos terapeutas não-médicos através de seu aspecto positivo – de 'sinal' de rompimento do equilíbrio característico do 'Ser integral'-, na medida em que é um orientador visível de um processo ainda não perceptível. Nessa concepção, o paciente é, ao mesmo tempo, o agente responsável e transformador desse processo, tanto da instauração da doença como de sua recuperação. (TAVARES apud CAROZZI: 1999, p. 115) Tais idéias e práticas se encaixam nas experiências Nova Era de cura, em que a busca do verdadeiro Eu, para a plena potencialização do “auto-desenvolvimento” e “auto-realização” individual, se articula com o imaginário holístico acima referido. Observando a proposta de cura xamânica, uma modalidade de cura muito difundida dentro da Nova Era, Amaral afirma que suas técnicas pretendem proporcionar (...) uma viagem para o reino da 'energia primal' – nível do mínimo indizível, comum a tudo o que existe no universo. Quando a visualização é realizada apropriadamente, espera-se que o paciente e o curador entrem em contato com o 'self superior', definido como não-matéria, como a menor unidade do indivíduo, isto é, como ondas de luz e energia que podem ser emitidas ou absorvidas, à maneira dos quantum.”(AMARAL: 2000, p. 65-6) O contato com este 'self superior' (o eu interior) se dá através de uma viagem, sem grandes dificuldades do mundo do aquém para o mundo do além, demonstrando-se a porosidade entre eles e a possibilidade de o sujeito comunicar-se com o indizível, conferindo-lhe uma percepção da realidade para além dos códigos sociais prevalecentes. É quando o ego, a personalidade influenciada pelos padrões sócio-culturais, deixa de predominar, revelando-se para o sujeito um outro tipo de relação, uma relação que, segundo Amaral, fundaria uma “ontologia da comunicação”, quando o indivíduo mergulha no indizível e, ao retornar, tem a possibilidade de refazer os vínculos, relacionar-se de forma diferente com o mundo. Para a autora: O modelo xamânico parece sugerir uma 'ontologia da comunicação', uma re-significação da ontologia da relação quando articulada com a linguajem quântica e espiritual, aguçando a visão Nova Era de cura como um processo de transformação constante que pode ter efeitos no indivíduo e no ambiente mais amplo. O aspecto introspectivo da visualização, um exame de consciência auto-reflexivo, fica relativizado pelo a priori da comunicação para além dos limites de espaço e tempo.(AMARAL: 2000, p. 67) A comunicação com algo indizível, se não pode ser explicada racionalmente, pode, pelo menos, resultar numa transformação da personalidade individual, agora muito menos presa aos códigos sociais reinantes e perpassada por um sentimento universalista, em que as questões relativas aos homens e a natureza podem ser reformuladas, e os velhos vínculos também. Assim, do ritual xamânico, poderia ser retirado os seguintes significados: (...) ser outra coisa que ser simplesmente um membro, um representante de uma categoria ou classe “e” a busca para situar- se no 'espaço do tornar-se' outra coisa ou pelo menos 'tornar-se melhor' do que se é.” (AMARAL: 2000, p. 90) A comunicação espiritual sugerida nesse ritual parece requerer dos sujeitos uma linguagem que, segundo Amaral, ofereceria a possibilidade destes agirem localmente – na medida em que as técnicas terapêuticas funcionam como meios (rituais) para o processo incessante do indivíduo 'tornar-se melhor', dentro da sociedade existente e através de seus relacionamentos concretos e face a face – 'pensando globalmente'- isto é, pensando o 'estar junto'antes do 'estar com'. (Cf. AMARAL: 2000, p.96) O ritual xamânico dá, portanto, um outro significado ao processo de cura. Esta diz respeito a uma transformação individual capaz de estabelecer uma comunhão entre os homens e destes com uma totalidade maior, resignificando sua vida cotidiana e suas relações. Nesse processo de resignificação, o indivíduo passa por uma desprogramação dos rótulos sociais, a ponto de se encontrar nu e, então, reencontrar o seu verdadeiro eu interior (o self). Nesse ambiente, “(...) torna-se possível imaginar o refazer dos vínculos. Ensaia-se, enfim, pelo ritual, um novo modo de o indivíduo se relacionar com o mundo”.(AMARAL: 2000, p. 69) Participando de um Workshop em Lancaster (UK), The Healing Circle, Leila Amaral observa que o processo ritual de cura, empreendido através da utilização de técnicas xamânicas, de técnicas baseadas no expressivismo psicológico, entre outras, possibilitava uma atmosfera de encontro, onde as pessoas, numa relação face-a-face, despiam de todas as suas identidades sociais, não sendo considerado importante o que era dito, mas como era dito. A análise dos conteúdos não importava, mas sim, o modo como eles eram expressos. Os sentidos, a percepção e a emoção predominavam no ritual, e, como tal, eram os campos no qual se processava a cura, uma harmonização com o eu interior e com o holos, o todo, “(...) produzindo alguma coisa que excede ao pensamento (pensado): o desejo de tornar-se melhor, ser outra coisa que ser, ou transformar-se, para utilizar uma categoria new age”.(AMARAL: 2000, p. 93) Ë importante salientar que os processos de cura, dentro das práticas terapêuticas da Nova Era, não negligenciam as descobertas e soluções trazidas pela ciência médica ocidental. Elas acabam sendo incorporadas, pois são vistas como recursos importantes para o processo de cura. Elas somam-se às técnicas antigas do budismo, hinduísmo e dos indígenas, juntamente com as últimas descobertas da Biologia, Física e Psicologia. Contudo, a crítica que se faz a elas pelos terapeutas alternativos diz respeito a sua limitação ao corpo biológico do indivíduo, descartando os outros corpos, como o emocional, o mental e o libidinal. Estes devem ser vistos como interligados ao corpo biológico. A corporeidade do indivíduo passa, portanto, a ser vista de modo mais complexo. Nele a saúde e a doença ganham outro significado, “(...) elas são vistas como partes de uma mesma coisa e não como parâmetros opostos de uma representação idealizada da saúde como fato orgânico.” (CAROZZI: 1999, p. 87) Nesse sentido, “(...) a doença não constitui necessariamente um mal, devendo, ao contrário, ser entendida como um sintoma, um sinal importante do funcionamento do aparelho biopsíquico e emocional.” (CAROZZI: 1999, p. 88) Nessa perspectiva, o corpo passa ser visto como um local de saúde e prazer, um “(...) corpo-linguagem que questiona o antigo corpo- instrumento para valorizar culturalmente as imagens fantásticas, as emoções e os desejos”.(CAROZZI: 1999, p. 85) Pode-se notar, até aqui, que o processo ritual de cura vai transcender os limites da dor biológica e da crise psicológica para refundar um novo patamar de percepção a respeito do indivíduo e do mundo. Ë interessante observar que esse novo patamar se pauta por uma constante experimentação, nunca chegando a um fim, a uma finalização da busca individual. A ação de buscar deve continuar, sua riqueza e capacidade transformadora estariam nesse contínuo, pois para o indivíduo da Nova Era seu sentido de vida deve ser balizado pelo constante tornar-se. Como no ritual xamânico, abrir-se para uma realidade maior significa nunca encontrá-la definitivamente, já que ela é simbolizada como fazendo parte de uma totalidade caracterizada pela infinitude. Não existe, nesse caso, um ponto final. Por isso as identidades fixas e as instituições acabam se tornando obstáculos. Perceptivos de que fazem parte de uma realidade maior, de que fazem parte dela, carregando ela dentro de si - seu eu interior - mas sem perder sua individualidade, esses sujeitos sentem-se, durantes os rituais, participantes (...) de uma força de criação sem lugar fixo ou determinado, mas sempre disponível como potencialidade ou virtualidade.(...) Enfim, é possível sugerir que, apesar do discurso e da intenção manifesta no meio Nova Era para alcançar um 'holismo' radical, do nível corporal ao nível cósmico, sua prática ritual parece enfatizar que esse 'holismo Nova Era' tem a ver mais com uma concepção de totalidade como mistura, espaço aberto para improvisos e desvios, para o contingente e o provisório, do que para a idéia de uma totalidade sistêmica ou hierárquica. (AMARAL: 2000, p. 103) Nesse sentido, é possível entender o fato de o movimento Nova Era comportar diversas modalidade religiosas, sem se fixar em nenhuma delas. Recorrem a crenças do passado, às manifestações religiosas tradicionais, reorganizando-as através de experiências novas que, tão logo alcançadas, não se fixam e cedem espaço a novas experimentações. A perspectiva do sagrado, nesse caso, se dá através de um constante buscar e de uma constante experimentação. Assim, ele não pode se fixar, no trânsito é que se pode encontrá-lo, não há um local definido para encontrá-lo. Ele se manifestará nas buscas, nos rituais, nos encontros, na residência, no escritório ou na rua. Ë um sagrado sem lugar. O sagrado é então criado e recriado no 'improviso', na contingência dos encontros, a partir de uma 'estrutura sem substância' - o myisterious tremendum – que só se torna presente, (...) através de uma relação de 'co-criação'contínua. (AMARAL se fixar, mas que continua sendo um ideal de comunidade, um ideal de comunidade aberta. Um ideal de “comunidade não essencialista” na qual se estabelece entre os indivíduos um tipo de relação que não se pauta pela questão de uma identidade comum, mas que se afirma por um “(...)'desejo da semelhança' – isto é, a coexistência não dualista entre o único e o diferente – desses participantes entre si, com outros mundos, outras tradições, próximas ou distantes, sem a eles se igualar ou deles se separar.” (AMARAL: 2000, p. 109) Dessa forma a busca pelo self, (o eu interior), levaria consigo o desejo de semelhança, separando-se, por isso, do ego, visto como um fator de identidade social estanque, carregado de rótulos da sociedade moderna e que acobertaria a visualização pelo indivíduo de seu lado mais essencial. O ego estaria no pólo das identidades fixas, das categorias sócio culturais substantivas, enquanto o self estaria no pólo da abertura, do alargamento, do enriquecimento, do desenvolvimento, das aproximações e das semelhanças. (AMARAL: 2000, p. 109) Segundo Amaral, o constante buscar-caminhar do indivíduo Nova Era cria a necessidade de um mercado de bens simbólicos sempre disponível, acessível a este indivíduo ávido por novas formas de experiências. A organização do consumo moderno acaba sendo, assim, um eficaz meio de atualização para o movimento Nova Era. Sua flexibilidade e capacidade de concentrar recursos eficientemente num mesmo local, atendendo aos diferentes gostos e necessidade, faz desse mercado um meio sem o qual o sujeito da Nova Era poderia ficar limitado. A autora sugere que as grandes feiras, como o Mind Body International festival, em Londres, do qual ela participou, representam um ponto importante de encontro dos sujeitos da Nova Era, onde uma “(...) concepção moral e espiritual não racionalizada” se conjuga com uma “organização formal e racional” (AMARAL: 2000, p.123), o mercado de bens. Todavia, essa ligação, segundo Amaral, torna-se uma necessidade do próprio movimento Nova Era, já que este se pauta pela busca incessante de um sagrado sem lugar, portanto, um sagrado disponível em várias formas, representado em tudo e em todos. Por isso, num espaço como o das feiras, se cria a possibilidade de se vivenciar o sagrado de varias maneiras, procurando evitar que isto crie um ar de fragmentação ou, simplesmente, uma mistura caótica desprovida de qualquer sentido. Existe um sentido que permeia a experimentação dos vários bens disponíveis na feira. Esse sentido aceita a fragmentação proveniente do modo de organização e consumo da feira, mas o aceita na medida em que lhe configura como um espaço próprio para a busca de uma totalidade aberta, em que o sagrado está disperso, não se fixando, não se findando em nada. A ansiedade que poderia ser provocada por tal representação, que poderia ser afirmada por um consumo de diversos bens que não se esgotaria nunca, é relativizada na medida em que, como sugere a autora, se estabelece entre os visitantes da feira, uma moralidade da semelhança, na qual o mais importante é perceber naquele espaço a “(...)'onipresença de forças criativas' (forças de vida ou pleno potencial de vida e criação, isto é, do sagrado) no mundo natural e humano”. (AMARAL: 2000, p. 130) O espaço mercantil da feira torna-se, portanto, uma fonte de partilha de uma moralidade que não está preocupada com as diferenças de identidades e de conteúdo entre os diversos bens à venda, pois tal diferença é traduzida por uma variedade e diversidade que levam em cada uma delas o sagrado, permitindo ao indivíduo a experimentação deste para alcançar seu eu interior. Amaral observa que na Mind Body International festival um “(...)'tom de celebração' era característico, (...) tendo no sentimento de 'devoção compartilhada' o seu significado maior”.(AMARAL: 2000, p. 130) Nessa feira (...) a realidade do indivíduo, como sujeito de seu próprio aprimoramento e espiritualidade, através da liberdade de escolha e do consumo, é incorporada à natureza inesgotável da vida e colocada, assim, em sintonia com um sagrado que se encontra em todo e em qualquer lugar como uma 'totalidade aberta' e em contínua transformação.”(AMARAL: 2000, 135) É interessante observar que seja nos espaços dessas feiras, entre outros encontros, seja nos “circuitos neo-esotéricos” das cidades, como aponta Magnani, ou nas comunidades alternativas que se fundam na zona rural, de acordo com Aico Nogueira (1996), os indivíduos Nova Era são, em sua maioria, provenientes da classe média, “média alta elitizados. (Cf. D'ANDREA: 2000, p. 83) Tal classe, de acordo com D'Andrea, escolarizada, urbanizada e cosmopolita, traduz um sentimento de inquietação diante da 'modernidade tardia', seus membros costumam criticar os sistemas religiosos fechados, como o cristianismo, costumam estudar filosofias orientais e formas paracientíficas em busca de uma complementação para suas individualidades. O mercado consumidor e as 'verdades' da modernidade, a razão e o progresso, não são suficientes para atender às necessidades de suas individualidades que querem se refazer e buscar novos caminhos e novos conhecimentos. O movimento Nova Era parece conferir caminhos alternativos para essas individualidades, apropriando e expressando de uma maneira particular as questões colocadas pela “alta modernidade”. No próximo capítulo, tal questão será aprofundada, pois, ela abre a possibilidade de entender as relações entre individualidade e modernidade. Essas relações parecem ser importantes para interpretar a pertinência do movimento Nova Era - tanto em seu aspecto modernizante e/ou pós-modernizante - como fonte às respostas que o indivíduo busca na sociedade contemporânea. II - A NOVA ERA E A “CONDIÇÃO PÓS-MODERNA” O capítulo anterior permitiu uma caracterização geral do movimento Nova Era. Demonstrou-se, através da análise de alguns autores, os diversos caminhos trilhados pelo indivíduo New Age, a heterogeneidade imanente destes e, por isso mesmo, a sua difícil conceituação. De modo que, até aqui, pode-se apreender, no estudo desse movimento, um conjunto de aspectos, muitas vezes contrários, convivendo em relativa harmonia, mas, na maioria das vezes, dando a impressão de uma caoticidade. Uma questão importante que se coloca nessa altura é a de entender como se articula os aspectos elementares do movimento Nova Era com as transformações por que vem passando a sociedade nas últimas décadas. Uma primeira observação sugere que o caráter de heterogeneidade e caoticidade que parecem demarcar o sentido da busca do sujeito Nova Era se relaciona com uma nova dinâmica social, proveniente de uma nova fase da reprodução capitalista, por muitos caracterizada como pós-moderna. É possível verificar um novo redimensionamento das relações sociais e produtivas capitalistas que vão conferir novas formas de sociabilidades, algumas apontando para caminhos alternativos diante das formas de sociabilidades mais tradicionais, como parece ser o caso da Nova Era. As ações e representações dos sujeitos Nova Era parecem construir relacionamentos que evidenciam uma sintonia considerável com as mudanças provenientes da nova fase de reestruturação capitalista, sem negá-las, se refugiando em perspectivas passadistas, nem as tomando abertamente, sem nenhum tipo de filtragem crítica. De acordo com as análises de David Harvey (1999), essa nova fase vem impor uma nova condição social, pós-moderna, pautada por uma radicalização do efêmero, heterogêneo e do fragmentário, enfatizando o mundo da superficialidade, da sensação e uma negação da busca do eterno e do imutável. A aposta numa “moralidade da semelhança”, ou a busca por “totalidades abertas”, sustentando uma atitude individual pautada pelo eterno tornar-se e, por isso mesmo, afastando qualquer espécie de vínculo mais rigoroso com algum grupo, vão fazer do sujeito Nova Era um sujeito capaz de lidar, de uma forma particular, dentro e até mesmo fora do campo religioso, com o efêmero e o fragmentário. Há uma espécie de resignificação pelo indivíduo New Age de tais elementos característicos da nova fase de reestruturação capitalista. Tal característica do movimento Nova Era é afirmada, num certo sentido, por Amaral: O movimento Nova Era é a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ou rearranjar elementos de tradições já existentes e fazer desses elementos metáforas que expressem performaticamente uma determinada visão, em destaque em um determinado momento, e segundo determinados objetivos. Não mais circunscritos à sua comunidade de origem ou a seus grupos “naturais”, esses elementos religiosos, espirituais e místicos – rituais e mágicos – são recobertos com uma alta diversidade de significados e usados para uma variedade de propósitos. Apresentam-se mais como recursos simbólicos ou de linguagem, com grande grau de flexibilidade e imprevisibilidade, do que como uma doutrina ou como um sistema fechado de significados. Mais que um substantivo que possa definir identidades religiosas bem demarcadas, Nova Era é um adjetivo para práticas espirituais e religiosas diferenciadas e em combinações variadas, independentemente das definições e inserções religiosas de seus praticantes. (AMARAL: 2000, p. 47-48) Também, de acordo com Terrin: A Nova Era é simples e inexoravelmente o produto do pós- moderno: de uma cultura que viu ruir todos os seus mitos, as ideologias, a verdade e os valores. É uma religiosidade amadurecida por meio de um encontro com as formas expressivas e artísticas em nível de non-sense e já se encontra impregnada de “irracional”, de sensações mais do que de idéias, de vontade de crer mais do que convicções, de visões e perspectivas deformadoras e de pluralismos indefinidos mais do que apegos e tradições, às grandes histórias e aos grandes mitos do passado. (TERRIN: 1996, p. 9-10) Nesse sentido, seria interessante uma análise da condição pós- moderna para poder evidenciar até que ponto é possível uma articulação desta com as características do movimento Nova Era. Torna-se importante ressaltar que esse procedimento compartilha com a visão de D'Andrea, segundo a qual, grande parte da bibliografia nacional e internacional sobre a Nova Era “(...) utiliza-se de referências teóricas que se restringem ao corpo especializado das sociologias/antropologias da religião, ignorando teorias gerais clássicas e contemporâneas”.(D'ANDREA: 2000, p.278) Nesse sentido, uma primeira relação da Nova Era com o pós- moderno, principalmente através das análises de David Harvey e Fredric Jameson (1995/97), Rüdiger (1995), Sennet (1988) e Bauman (2000), será possível evidenciar o quanto as características da Nova Era extrapolam o campo da religiosidade contemporânea e ao mesmo tempo a remodelam, dando condições de refletirmos sobre as potencialidades dadas em tal movimento com relação ao processo de “privatização/isolamento”(Cf. MÈSZÀROS, 1981) do indivíduo. 2.1 NA TRILHA DO PÓS-MODERNO Utilizando-se dos estudos de David Harvey sobre Pós- modernidade, pode-se constatar as diversas situações enfrentadas pelo indivíduo nessas duas últimas décadas. Sem entrar no mérito da questão se vivemos ou não uma idade pós-moderna pode-se afirmar, de acordo com Harvey, que a sociabilidade capitalista destas últimas décadas parece apresentar uma “total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico”, além de não tentar “transcendê-lo, opor-se a ele, e se quer definir os elementos 'eternos e mutáveis' que poderiam estar contidos nele”. (HARVEY: 1999, p. 49) De uma forma geral, as forças sociais que produzem esta condição de incerteza na modernidade capitalista, no fim do século XX, são compreendidas pelo autor dentro do quadro das transformações políticas e econômicas deste final de século. Transformações que vão detonar um novo rumo ao processo de acumulação capitalista, o rumo da acumulação flexível. Harvey afirma que este novo rumo, muito embora venha comportar elementos Keynesianos-fordista - e por esse fato sua difícil conceituação - vem quebrar a rigidez de produção da escala fordista, flexibilizando a produção e o consumo de massa padronizado desta era e incentivando uma série de articulações inovadoras entre capital e trabalho. Estas articulações vão apresentar combinações de elementos velhos e novos do sistema produtivo, processos de trabalho antigos adaptados a novas formas de flexibilidade através da sub-contratação, do trabalho temporário, do trabalhador polivalente, etc. Enfim, tal processo de mudança acumulativa do capital acaba resultando numa série de combinações entre elementos novos e velhos das relações de produção, capazes de fazerem-se perceber enquanto uma dinâmica capitalista que apresenta uma nova particularidade. Conferindo às práticas espaciais e temporais uma estreita implicação “em processos de reprodução e de transformação das relações sociais”, Harvey estudará essas relações no âmbito da sociedade capitalista, propondo que as transformações político- econômicas a partir dos anos de 1970, implicou num novo regime de acumulação, a acumulação flexível, que abriu uma nova fase de compressão tempo-espaço nas relações sociais capitalistas. Compressão do tempo-espaço entendido enquanto “(...) processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos”.(HARVEY: 1999, p. 219) De acordo com o autor, com a crise de super-acumulação proveniente das relações produtivas e sociais assentadas num modelo produtivo fordista-keynesiano, cuja característica mais acentuada é a sua rigidez no processo de circulação de capital, abriu-se a possibilidade de se reorientar o processo de circulação do capital para um modo de acumulação flexível. Este acentuava-se num novo patamar de intervenção espaço-temporal caracterizando-se através da maior velocidade dos meios de comunicação e de transportes, em uma “aceleração generalizada dos tempos de giro do capital”. Transportes e um mercado financeiro mais ágeis, a espacialização e fragmentação (...) a volatilidade e efemeridade das modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas (...). No domínio de produção de mercadorias, o efeito primário foi à ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (...) e da descartabilidade (...). A dinâmica de uma sociedade do 'descarte'(...) começou a ficar evidente nos anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (...); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apegos a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser. Foram essas a formas imediatas e tangíveis pelos quais 'o impulso acelerador da sociedade mais ampla' golpeou 'a experiência cotidiana comum do indivíduo'(...). Por intermédio destes mecanismos (...), as pessoas foram forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolência instantânea “. (HARVEY: 1999, p. 258). A condição do uso da imagem e do simulacro emergiu como grandes instrumentos espaço-temporais à aceleração, diversificação e indução de um consumo desenfreado e instantâneo. Nesse ponto, os espetáculos surtiam também muito efeito. Neste contexto, o espaço e o tempo desaparecem “como dimensões materializadas e tangíveis da vida social” e a possibilidade de um indivíduo de personalidade esquizofrênica passa a imperar. Podemos vincular a dimensão esquizofrênica da Pós- modernidade que Jameson destaca (...) com a aceleração dos tempo de giro na produção, na troca e no consumo, que produzem por assim dizer, a perda de um sentido de futuro, exceto e na medida em que o futuro possa ser descontado do presente. A volatilidade e a efemeridade também tornam difícil manter qualquer sentido firme de continuidade. A experiência passada é comprimida em algum presente avassalador. (HARVEY: 1999, p. 262-263) Esse caráter de efemeridade e fragmentação social - que de acordo com Harvey assume atualmente um aspecto mais radical do que em décadas anteriores – vem reafirmar o processo conflituoso atravessado pelo indivíduo, fortalecendo, ao que parece o isolamento que este vem sofrendo ao longo da modernização capitalista. Mais do que nunca, como pode-se notar em Rüdiger: (...) o capitalismo progrediu no sentido da formação de um verdadeiro mercado da personalidade. A concepção mercantil do valor se estendeu às características abstratas das pessoas. O sucesso social passou a depender da capacidade da pessoa explorar sua singularidade. A liberdade se esvaziou de conteúdo político e moral, tornando-se uma questão de saber se distinguir empírica e psicologicamente dos nossos semelhantes. As peculiaridades do indivíduo (o sorriso, o cabelo, a simpatia, o humor, a voz, o sexo, o peso, etc.) não só se tornaram a principal expressão da individualidade, como passaram a ser tratados como categorias econômicas, que, trabalhadas como uma espécie de capital privado, são integradas pessoalmente como valor de troca no mercado. Constata-se uma progressiva atrofia das faculdades antes capazes de favorecer socialmente uma organização autônoma de indivíduos. As pessoas passaram cada vez mais a ter de se contentar com uma espécie de pseudo individualidade, fabricada pelo sistema com vistas a seu consumo pelo mercado. A individualidade noutros termos tende a ser 'reduzida, por modelos estandardizados de comportamento, a uma idéia completamente abstrata que já não tem mais nenhum conteúdo definido'. (RÜDIGER: 1995, 332-333) Segundo Harvey, todo esse processo de fragmentação da personalidade e de compressão espaço-temporal também “desencadeia sentimentos e tendências opostos”: Os próprios capitalistas, inseguros com o processo de volatilização e “financeirização do capital”, passam a empregar meios técnicos para evitar choques no futuro. As empresas subcontratam ou recorrem a práticas flexíveis de admissão para compensar os custos potenciais de desemprego provocado por futuras mudanças no mercado. Mercados futuros em tudo, do milho e do bacon as moedas e dívidas governamentais, associados com a “secularização” de todo tipo de dívida temporária e flutuante, ilustram técnicas de descontar o futuro do presente. Toda espécie de seguro contra a futura volatilidade vai se tornando cada vez mais disponível. (HARVEY: 1999, p. 263) A espacialização traz consigo um sentimento de localidade, um meio de as pessoas buscarem sua identidade – e o próprio capital às vezes oferece isso, na medida em que busca nichos mercadológicos e as especificidades locais mais lucrativas, muito embora traga uma transformação no sentido de localidade original - além de que: Quanto maior a efemeridade tanto maior a necessidade de descobrir ou produzir algum tipo de verdade eterna que nela possa residir. O rivalismo religioso, que se tornou muito mais forte a partir do final cambiante. (HARVEY: 1999, p. 263-264) A busca por segurança, diante de uma compressão espaço- temporal cada vez maior acaba, também, refletindo num comportamento social que privilegia relações intimistas, na qual a questão do sensorial- afetivo torna-se o parâmetro dos encontros individuais. Nesse caso, os contatos pessoais devem prevalecer, gerando a empatia do relacionamento. Nesse tipo de relação, o indivíduo busca no outro uma identidade baseada na semelhança de sentimentos, na capacidade de cada um revelar sua intimidade para com outro, na possibilidade de cada um compartilhar sensações. Mesmo com o processo de automatização dos serviços e a comunicação à distância propiciada pela Internet, é comum verificar na mídia, nos discursos políticos, o predomínio de referências à vida privada de cada personalidade, seus desejos, seu caráter, sua convivência familiar, se é usuário de drogas ou consome álcool excessivamente, sendo estes critérios imprescindíveis para a formação de vínculos entre as pessoas. A intimidade ganha o maior peso no relacionamento entre os indivíduos, como podemos verificar no sucesso de programas como o “Big-brother” da TV Globo. Essas relações intimistas, centralizadas sob o ponto de vista do sentir e não do agir, vão se opor às relações impessoais, próprias de um espaço público onde as decisões de uma coletividade são analisadas no âmbito das ações que negam a prioridade dos sentimentos, das relações pessoais. O repúdio do espaço público traz o afastamento da dimensão social nas relações entre os indivíduos, reforçando vínculos comunitários sob o foco das relações intimistas, cujo objetivo principal é formar uma identidade baseada nas relações pessoais em que os indivíduos procuram antes pertencer do que avaliar socialmente suas ações. A crença hoje predominante é que a aproximação entre as pessoas é um bem moral. A aspiração hoje predominante é de se desenvolver a personalidade individual através de experiências de aproximação de calor humano para com os outros. O mito hoje predominante é que os males da sociedade podem ser todos entendidos como males da impessoalidade, da alienação e da frieza. A soma desses três constitui uma ideologia da intimidade: relacionamentos de qualquer tipo são reais, críveis e autênticos, quanto mais próximos estiverem das preocupações interiores psicológicas de cada pessoa. Esta ideologia transmuta categorias políticas em categorias psicológicas. Essa ideologia da intimidade define o espírito humanitário de uma sociedade sem deuses: o calor humano é nosso deus. A história do surgimento e do declínio da cultura pública faz com que, no mínimo esse espírito humanitário seja posto em questão. (SENNET: 1988, p. 317) Diante de um quadro onde a intimidade ganha um aspecto “tirânico”, encerrando o público enquanto um simples espaço de movimentação individual, o comportamento dos indivíduos acaba reforçando tendências anti-sociais que se articulam com uma visão “tecnologicamente operacional” da sociedade, uma visão balizada pelo sistema produtor de mercadorias que prioriza e possibilita a defesa de uma sociedade do bem estar cuja finalidade é o consumismo. O avanço das relações capitalistas aprofundaram a mercantilização humana, a ponto de o indivíduo virar um “assinante de mercadorias”, estendendo para seu corpo e mente atributos mercantis, fetichistas, se vendendo enquanto imagem e conformando-se a uma atitude operacional que integra os opostos e anula as contradições. (Cf. MARCUSE: 1973) Ao reforçar que o estar bem imediato se conjuga com o consumo de bens e de experienciações que valorizam a intensidade dos sentimentos, a estética capitalista vende para o sujeito um estilo de vida pautada na constante busca de satisfação individual pouco disposta a entender e vivenciar processos de longo prazo, ou a fazer uma crítica sistemática às contradições que vão surgindo dessa busca constante de satisfação. De acordo com Marcuse, os produtos do processo de produção capitalista irão: (...) promover uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida – muito melhor do que antes – e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e de comportamento unidimensionais, no qual as idéias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação, são repelidos e reduzidos a termos desse universo, são redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extensão quantitativa. (MARCUSE: 1973, p. 31) Neste caso, as perspectivas para uma mudança social ficam ofuscadas, principalmente porque a esfera da política e seu espaço de atuação, o espaço público, são emoldurados no espaço do privado, da intimidade e enfraquecidos com o reestruturação/deslocamento do próprio Estado-nação, este cada vez menos resistente aos novos centros transnacionalizados de poder. É o que afirma Zygmunt Bauman ao fazer um debate sobre as transformações por que vem passando a sociedade atual para investigar possíveis caminhos de intervenção nesta, de forma a recuperar aquilo que ele considera como fator imprescindível para o desenvolvimento da sociabilidade, qual seja, a consciência de sua historicidade, ou melhor, a autoconsciência de sua transitoriedade e a participação com responsabilidade na sua construção. De fato, para Bauman, tal perspectiva, se não era concretamente realizada na modernidade, em seu sucedâneo, chamado pós- modernidade, revela-se impraticável. É que na pós-modernidade as relações sociais sofreram um rearranjo diante da reestruturação do mundo que resultou no enfraquecimento de um lócus privilegiado para o desenvolvimento de uma sociabilidade para si. Este lócus, residente da esfera política, era o espaço por excelência do público/privado ou, como diz o autor, a ágora, espaço importante e capaz de situar e mediar as necessidades privadas e públicas de modo a garantir e conciliar o direito de liberdade individual e sua conseqüente necessidade de realização dentro de uma coletividade. A ágora – esse espaço nem privado nem público, porém, mais precisamente público e privado ao mesmo tempo. Espaço onde os problemas particulares se encontram de modo significativo – Isto é, não apenas para extrair prazeres narcísísticos ou buscar alguma terapia através da exibição pública, mas para procurar alavancas controladas e poderosas o bastante para tirar os indivíduos da miséria sofrida em particular; espaço em que as idéias podem nascer e tomar forma como “bem público”, “sociedade justa” ou “valores partilhados” (BAUMAN: 2000, p.11) Tal perspectiva perdeu seu lócus privilegiado diante das novas formas de manifestação do poder e autoridade que se articularam num espaço cada vez mais distante das decisões políticas, estas, ainda fortemente atreladas ao espaço local ou, no máximo, ao espaço internacional do Estado-nação. Essas manifestações de poder e autoridade se dão no âmbito de um espaço transnacionalizado, na qual as fronteiras quase inexistem e as decisões extrapolam os marcos institucionais do fazer político tradicional. Vivemos, diz Castells, numa sociedade de classes sem classes, num 'cassino eletrônico global' na qual o capital e o poder escapam para o hiper-espaço da pura circulação e já não estão incorporados às classes 'capitalista' e 'dirigente'. A política, por outro lado, continua sendo, como antes, um assunto essencialmente local – e uma vez que a linguagem da política é a única em que podemos falar de curas e remédios para a misérias e preocupações comuns, a tendência natural da classe política é buscar explicações e tratamentos numa área próxima ao território doméstico da experiência cotidiana. (BAUMAN: 2000, p. 57) Este papel reduzido e impotente da política se articula a uma necessidade crescente de segurança diante de um mundo em que o futuro e a estabilidade já não estão mais garantidos. Nesse contexto, os políticos acabam se desviando do enfrentamento das causas deste sentimento, pois já não os alcança, para a criação de: (...) leis de asilo e residência, para perseguir e deportar estrangeiros indesejados, suspeitos de tendências invejosas condenáveis. Podem exercitar-se no combate aos criminosos, ser 'duros com a criminalidade', construir mais prisões, colocar mais policiais nas ruas, tornar mais difícil o perdão aos condenados (...) (BAUMAN: 2000, p. 58) Ao sentimento de insegurança soma-se uma ansiedade proveniente das incertezas. A única certeza, como aponta Bauman, é a de que “a imprecisão dos sinais na estrada da vida e a indefinição dos pontos de orientação existencial já não podem mais ser vistas como uma amolação passageira provavelmente superável com mais informação e instrumentos mais eficazes (...)” (BAUMAN: 2000, p. 26). Tais fatos vêm minar a autoconfiança do indivíduo, ele não procura se lançar na busca de alternativas e, quando as busca, são manifestações que não atingem o ponto nevrálgico do problema, se desviando para os problemas de segurança, já assinalados. Todas essas buscas se encerram em estratégias autônomas refratárias de qualquer vínculo mais duradouro capaz de transformar as preocupações individuais em preocupações sociais, com a conseqüente necessidade de uma intervenção pública para o seu sucesso. Os indivíduos, quando se aglutinam, não é para resolverem seus problemas coletivamente, é apenas uma forma de associação que serve para dar ressonância ao problema, mas cada um tem a responsabilidade solitária para com a sua resolução. E esta resolução dura o mesmo tempo que a sua experiência, pois só esta é possível. É o caminho sensorial em destaque, aquela emoção do ato em si, própria do consumo. O sentimento de insegurança, falta de garantia e incerteza irão, com isso, sofrer um processo de privatização, cujas soluções serão infimamente duradouras. Esse processo parece vir de encontro ao que Jameson denominou como a “lógica cultural do capitalismo tardio”, em que ocorre uma intensa expansão da esfera cultural sobre todos os setores da vida social, guiadas e orientadas pela lógica mercantil, contribuindo para uma capitalização da vida individual e social ao nível até mesmo do inconsciente. Ele afirma ser esta lógica reprodutora de “uma espécie de populismo estético”, diluindo as fronteiras entre a alta cultura e a cultura de massas, apresentando um gosto, “um enorme fascínio justamente por esta paisagem 'degradada' do brega e do ktisch, dos seriados de TV e da cultura do Reader's Digest, dos anúncios e dos motéis dos late shows e dos filmes B hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura”.(JAMESON: 2000, p.28). Jameson ressalta que nessa “dominante cultural pós-moderna” as oposições e as críticas “não mais escandalizam ninguém e não só são recebidas com a maior complacência como são consoantes com a cultura pública ou oficial da sociedade ocidental”(30). Tal condição relaciona-se ao fato de: (...) a produção estética hoje estar integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas a aviões), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posição e uma função estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao experimentalismo (JAMESON: 2000, p. 30). Portanto, as oposições e críticas são conformadas pelo campo da estética da mercadoria, elas se transformam numa novidade, numa nova manifestação, num novo estilo, estão contidas no feminismo, no homossexualismo, ciber punks e seitas, numa infinidade de grupos e organizações. Qual você escolherá e por quanto tempo você permanecerá nelas? O leque de escolhas é muito diversificado e cabe ao indivíduo optar, exercer sua liberdade como um bom consumidor o faz num shopping ou num supermercado. De alguma forma esses grupos não conseguem representar um grave problema para o status quo social. Eles são formas de luta demasiadamente locais, não se vinculam às lutas globais, pelo menos no sentido de engendrar formas de resistências globais que se oponham ao capitalismo global. O sentido de totalidade para uma transformação profunda da ordem, como afirma Jameson, se perde com esses grupos: “Os grupos (...) parecem proporcionar a gratificação de identidade psíquica (do nacionalismo a neoetnicidade). E tendo se tornado imagens, os grupos podem se esquecer de seu próprio passado sangrento, da perseguição e do repúdio, e podem agora ser consumidos: isso marca sua relação com as mídias, que se tornam, digamos assim, seus parlamentos e os espaços de sua 'representação', tanto no sentido político quanto no semiótico”( JAMESON:2000, p.347). O campo decisório da política passa, então, a se constituir num obstáculo ao consenso, pois virou espaço para a consecução de relações intimistas e de formação de grupos que “conquistaram um certo orgulho em sua identidade de serem comandados por aquilo que acaba sendo apenas outros grupos, uma vez que agora tudo em nossa realidade social é uma marca de filiação a um grupo e conota um conjunto específico de pessoas” (JAMESON: 2000, p.348). Os grupos resultariam da esfera das necessidades cotidianas, atuando no imediatismo dessas relações, muito diferente da perspectiva da classe social, uma organização de formação de longo prazo, que se revela na mediação com a totalidade das estruturas sociais e que, por isso mesmo, torna-se mais difícil de ser visualizada e experienciada na imediaticidade. As classes: (...) são demasiado abrangentes para figurar como utopias, como opções que escolhemos e com que nos identificamos de forma fantasmática.(...) Mas os grupos são pequenos o suficiente (...) para permitir investimentos libidinais de um tipo mais narrativo. Além disso, a exterioridade que vem junto com a categoria de 'grupo' como um esqueleto não é a da produção, mas a da instituição, uma categoria que já é (...) mais suspeita e igualmente mais antropomórfica (JAMESON: 2000, p.347 – grifos meus). Talvez, por isso, Jameson derive de tais resultados o fato de que na “lógica cultural pós-moderna” ocorra o aparecimento de um novo tipo de achatamento ou de falta de profundidade no qual os modelos de profundidade antes recorrentes, a essência e a aparência, o latente e o manifesto, a autenticidade e a inaltenticidade, o significante e o significado, são substituídos por modelos superficiais. O fim desses modelos representariam, segundo o autor, o fim do próprio sujeito individual, agora fragmentado, descentrado, desprovido de ego, sem o qual fica difícil a criação de um estilo individual, único. Este, agora derrotado pela “reprodução mecânica”, “engendra a prática quase universal do pastiche”. O pastiche, como a paródia, é o imitar de um estilo único, peculiar ou idiossincrático, é o colocar de uma máscara lingüística, é falar em uma linguagem morta. Mas é uma prática neutralizada de tal imitação, sem nenhum dos motivos inconfessos da paródia, sem o riso e sem a convicção de que, ao lado dessa linguagem anormal que se empresta por um momento, ainda existe uma saudável normalidade lingüística. (JAMESON: 2000, p.44-45). Os grupos, nesse sentido, ficam sem uma distinção particularizada, incapazes de representarem e manifestarem seu ser, sua individualidade enquanto sujeitos históricos. Eles incorporam um modelo representacional superficial, cuja identidade se dá na escala do sentimento de intimidade, da instituição de referências personalistas, sem desempenhar o papel estrutural característico das classes. Assim, (...) o que é mais surpreendente, e talvez o perigo mais imediato do ponto de vista político, é que esses novos modelos representacionais também encerram e excluem qualquer representação do que costumava ser representado – ainda que imperfeitamente – como a 'classe dominante'. Faltam várias características que são necessárias para essa representação, como já vimos: a dissolução de qualquer concepção de produção, ou de infra-estrutura econômica, e sua substituição por uma noção já antropomórfica de uma instituição significam que nenhuma concepção funcional de um grupo dominante, muito menos uma classe, pode ser pensada (JAMESON:2000, p.349). O predomínio de modelos representacionais cada vez mais próximos ao pastiche resulta, conseqüentemente, na imitação de um passado cada vez mais desestoricizado, desubstancializado, transformado na “cópia autêntica de algo que jamais existiu” (JAMESON: 2000, p.45), ou seja, transformado numa espécie de simulacro. Para Jameson, a linguagem do simulacro e do pastiche vai emprestar à realidade presente uma espécie de esmaecimento de nossa historicidade, da possibilidade vivenciada de experimentar a história ativamente. Essa crise da historicidade desencadearia um grave problema para a temporalidade: Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas pretensões e retenções em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar e outra coisa que não um 'amontoado de fragmentos' e em uma prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatório. (JAMESON: 2000, p.52). Quando o sujeito já não consegue definir o passado ou presente, senão através de um “amontoado de fragmentos”, cuja relação significante-significado perde sua linearidade e univocidade, cria-se uma personalidade esquizofrênica. Segundo o autor, tais transformações estão implicadas na mutação de nosso espaço, um espaço em que os homens não conseguem acompanhar sua evolução, uma evolução que gera um hiper-espaço, “uma nova rede global descentrada do terceiro estágio do capital” (JAMESON:2000, p.64). Esse hiper-espaço corresponderia a “uma nova prática coletiva, uma nova modalidade segundo a qual os indivíduos se movem e se congregam, algo como a prática de uma nova e historicamente original hiper-multidão”.(JAMESON: 2000, p.66). O problema, afirma Jameson, é que esse hiper-espaço “conseguiu ultrapassar a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição em um mundo exterior mapeável” (JAMESON:2000, p.70) Por isso, Jameson vê a necessidade urgente de um mapeamento cognitivo capaz de permitir ao individuo a capacidade de representar o conjunto das estruturas sociais como um todo. Seria o movimento Nova Era um movimento capaz de dar subsídios para que o indivíduo faça o mapeamento cognitivo da nova dimensão espacial-temporal da sociedade capitalista? Estaria, ele, pelo menos, apto a dar para as subjetividades uma capacidade simbólica- representacional nesse sentido? Essa é uma questão importante, pois possibilita refletir sobre até que ponto o movimento Nova Era engendra modalidades de respostas individuais que implementam uma forma de sociabilidade inovadora capaz de interferir concretamente na própria objetividade social que a determinou. É perguntar se o movimento Nova Era consegue transpor o campo da religiosidade para o campo da política, resgatando esse lócus histórico importante para a concretização das transformações idealizadas e possíveis. No âmbito da religiosidade, da busca de uma significação, de um sentido existencial atingido através de novas modalidades de representações e simbolismos, o movimento Nova Era parece ser um dos resultados do processo de transformação e readaptação que o campo da religiosidade vem experimentando e, nesse ponto, o movimento compartilha com a sobrenaturalização própria da religiosidade, não concretizando a transformação idealizada, se bem que ainda garantindo um referencial moral até certo ponto problematizador da pós-modernidade. A análise das transformações que o campo da religiosidade vem sofrendo pode revelar as congruências entre este campo e o movimento Nova Era, assim como reforçar as características que tornam o movimento Nova Era um movimento próprio das pós-modernidade, revelando-se, de certa maneira, enquanto um estilo particular encontrado também no campo político, social e cultural. Nesse sentido, com o propósito de apreender o aspecto de transversalidade que o movimento Nova Era parece evidenciar, far-se-á uma breve análise do campo da religiosidade na atualidade. Torna-se importante enfatizar que a análise do campo religioso está circunscrito àquelas regiões que sofrem sistematicamente a nova fase de reestruturação produtiva capitalista. 2.2- PÓS-MODERNIDADE E RELIGIOSIDADE Torna-se relevante, portanto, para os objetivos deste trabalho, entender os mecanismos de respostas engendrados pelos indivíduos no campo da religiosidade. Neste campo, como se dá às resistências e conformidades dos sujeitos diante da pós-modernidade? Um primeiro ponto a ser considerado está na nova dinâmica no campo dos símbolos e simbolismos ligados ao mundo da religiosidade ou a ela relacionados. É que esse campo passa a se orientar cada vez mais a partir de uma opção individualizada na qual se expressa uma “experiência polissêmica, exclusiva ou transeunte de sistemas únicos, conjugados organicamente ou 'bricolados' subjetivamente, vividos como um direito individual de escolha, construção, envolvimento e trânsito” (BRANDÃO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.35) Nesse caso, tanto as classes populares como as eruditas pactuam com esse caminho. As populares, através de uma “personificação dos seres sagrados” e as eruditas através de “um evidente e crescente foco sobre a impessoalização cosmicizante” (BRANDÃO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.35). Parece que, na atualidade, o religioso vem sofrendo um redimensionamento, se orientando cada vez mais para as perspectivas do caminhar individual. É como se a sede do sagrado deixasse de se encerrar numa igreja ou numa única entidade transcendental e passasse a se constituir durante o caminhar do sujeito de fé. Neste caminhar, a busca pelo sagrado se revelaria através das várias verdades que o indivíduo encontra passando por vários sistemas religiosos e por outros campos cuja aura religiosa é possível verificar – graças ao caráter cada vez mais individualizado da fé. Dentro desta perspectiva de fé individualizada, a verdade religiosa pode ser encontrada nos mais variados lugares, por isso a instituição e o tradicionalismo tornam-se pesados demais para o sujeito. Não que ele agora os abandone, mas já não precisa se fixar neles. O que se tem é uma espécie de troca de bens religiosos diretos ou indiretos na busca de uma vivência mística. Seu alvo: conhecer-se até onde for possível, dissolver-se na ordem mística de um cosmos vivo, mas à condição de fazê-lo trabalhando a plenitude de sua própria pessoa, do corpo às possíveis e várias dimensões espirituais de si mesmo. Realizar-se, sendo cada vez mais a expressão mais pura de sua própria plenitude. Para que isto seja possível, o direito de realização individual do sujeito pressupõe o trânsito entre sistemas oficiais e alternativos, religiosos, eclesiásticos, de pequena confraria confessante ou absolutamente solitários. (BRANDÃO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.31). Neste trajeto, os diversos sistemas de crenças e sentidos, de características muitas vezes divergentes, vão se conformar a um “todo holístico e provisoriamente perfeito e acabado” (BRANDÃO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.33) Assim, (...) recorre-se a diferentes sistemas, forma-se uma verdade de conjunto onde cada uma das expressões de religião ou mística representa uma parcela. (...) Pode-se passar por vários sistemas, transitar por muitos deles, sem que eticamente isso apareça (...) como uma espécie de 'trapaça' com o sagrado. É o contrário: se antes, por exemplo, era Hare Krishina, agora o seu momento de purificação já não está mais aí. Não que aquilo fosse falso – como um convertido que recusa a ex-religião – apenas transitou-se por isso e agora se está num estágio superior. (BRANDÃO in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.57) De acordo com Renato Ortiz, esta postura do sujeito de fé se vincula ao próprio modus operandi do mercado capitalista que pressupõe uma diferenciação cada vez maior das religiosidades. Sendo o mercado a instância hegemônica de atuação das relações sociais, “a religião só poderia existir como um politeísmo” (ORTIZ in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.137). Vemos um processo de mercantilização do sagrado que, a meu ver, significaria uma adequação das instâncias religiosas ao funcionamento interno desse sistema. Isso significa que as religiões não têm mais a missão de conquistar a todos; devem, na verdade, vender um produto que seja mais consumido pelos outros”. (ORTIZ in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.138). Neste caso, o autor conclui que no contexto atual já não é mais possível conferir à religião o papel de fundadora de universais e, conseqüentemente, de apresentar uma missão catequizadora. Por isso, talvez seja possível verificar a atenuação e substituição do discurso católico das questões teológicas e dogmáticas mais fundamentais de seu universo para o debate de questões referentes à humanidade de forma geral: direitos humanos, fome, violência, etc. As velhas e novas religiosidades hoje presentes estariam mais preocupadas em 'vender' sentidos para círculos menores, onde é possível estabelecer vínculos comunitários, embora a privatização da religiosidade limite cada vez mais uma comunicação mais efetiva e duradoura entre os indivíduos. Trata-se de inventar elementos comunitários em circuitos pequenos que, em círculos mais amplos, são curto-circuitados pela racionalidade do sistema capitalista. (ORTIZ in: ZICMAN & STEIL: 1997, p.138). Uma conseqüência importante que se pode tirar disto é a de um processo de diminuição e privatização do espaço público, na medida em que a privatização e mercantilização da religiosidade ajudam a diminuir e transmutar os espaços de comunicação, agora ou muito mais gerais e holísticos para demarcar posicionamentos sociais racionalmente claros – uma comunicação que se estabelece através do intuir e da vivência de sentimentos comuns – ou muito restritos às necessidades imediatas de um pequeno grupo ou indivíduo para que se estabeleça algum laço de solidariedade permanente. A questão dos espaços de comunicação se conjuga a uma característica atual de nossa organização social, agora cada vez mais organizada como um “conjunto de não-lugares” (PACE in: ORO & STEIL: 1997, p. 27), compostas por zonas francas em que as identidades e demarcações simbólicas se enfraquecem, quando as diferenças culturais tornam-se tênues, “onde cada um pode consumir alguma coisa que provém do Outro sem preocupar-se demais com métodos de produção do objeto ou do bem simbólico do qual se apropria” (PACE in: ORO & STEIL: 1997, p. 27) Enzo Pace toma esses aspectos da transformação espacial como aspectos característicos do processo de globalização por que vem passando nossa sociedade. Estes aspectos dão forma àquilo que o autor chama de tendência ao “desenraizamento”. Esta tendência, por sua vez, converge para uma outra tendência, característica da globalização, que o autor chama de “crença no relativo”, já que o desenraizamento “ataca justamente as imagens estáveis do mundo, os silos da memória coletiva, os filtros que permitem um indivíduo sentir-se à vontade em sua própria casa” (PACE in: ORO & STEIL: 1997, p. 29) O resultado dessas duas tendências para o indivíduo será a perda de algum tipo de orientação e representação duráveis cuja conseqüência maior “(...) é o aparecimento de uma dupla tendência: ou a abertura a mestiçagem cultural ou o refúgio em universos simbólicos que permitem continuar imaginando unida, coerente e compacta, uma realidade social profundamente diferenciada e fragmentada” (PACE in: ORO & STEIL: 1997, p. 32) No campo religioso, isso se traduzirá no enfraquecimento ou desaparecimento das fronteiras simbólicas entre as diferentes formas religiosas, assim como numa tentativa destas em se transformarem num sistema de comunicação capaz de garantir, no caminhar de cada indivíduo, referências que o orientem de modo significativo. Para tanto, a religião tem que estar: (...) liberada do controle institucional e (deve ser) devolvida à gestão da livre iniciativa individual transformando-se em uma nova fonte de imaginação simbólica (...) ajudando-o ainda a imaginar unido o que na realidade está dividido, diferenciado, às vezes em conflito. (PACE in: ORO & STEIL: 1997, p. 34) No âmbito da globalização, as religiões vão ter que deixar de lado os discursos mais dogmáticos, se preocupando com aqueles problemas de ordem mais global ao mesmo tempo em que procuram sanar as exigências mais imediatas dos sujeitos, sem 'atrapalhar' seu sentido de caminhada e lhe dando uma fonte significativa de orientação. Este é o desafio das religiões para regularem em limites seguros e estáveis seus sistemas de crenças. Atendendo as novas demandas, muitas religiões vão trabalhar com o marketing, adotando uma organização mercantil e, as mais fortes, irão se apropriar de veículos de comunicação, oferecendo à distância modalidades de cura e orientação de condutas para os indivíduos. A TV a cabo nos mostra já diversos canais religiosos, basta apertar o botão do controle remoto e escolher a que melhor lhe convém. As igrejas de grande sucesso descobriram fórmulas que são tiradas da economia e não da teologia: a igreja é um empreendimento, como o líder religioso deve ser um empreendedor em matéria administrativa, para o que conta com um arsenal de soluções pré-testadas, e que em matéria estritamente religiosa repete fórmulas simples e pasteurizadas controladas pela hierarquia e que podem ser ouvidas em qualquer lugar do mundo aonde essas igrejas vão se instalando”(PRANDI in: ORO & STEIL: 1997, p. 69) Assim como o movimento Nova Era, o próprio campo da religiosidade vem sofrendo o impacto das transformações sociais nestas últimas décadas, se pautando por uma forma organizacional cada vez mais próxima da organização mercantil, pelo menos no que se refere ao tratamento dado à individualidade, intensificando o processo já secular de privatização da fé e, o que é mais inovador, flexibilizando os dogmas e pressupostos teológicos que marcavam identidades rígidas e tradicionalmente definidas, transpondo de uma forma direta seu próprio campo para outros, principalmente para o campo mercantil. Talvez, por isso seja mais correto, tal como o título deste item, falar em religiosidade e não em religião. Essa religiosidade pode ser encontrada nos vários complexos sociais, ela já não encerra fronteiras demarcadas. É um modo de ser religioso, naquele sentido de comunicar-se com um sentido maior que necessariamente não entra em conflito com o trabalho, orientação política e relacionamento individual. O sujeito não precisa buscá-la através de normas e dogmas a ele externas, precisando se orientar por uma determinada conduta. O movimento Nova Era parece fazer deste lema uma de suas características fundantes, e o promove de uma maneira intensa e muito desinibida - o que lhe aparece conferir uma particularidade em relação ao campo religioso. Neste aspecto, o movimento Nova Era parece ser um possível resultado do processo de transformação por que vem passando as diversas formas religiosas nas últimas décadas do século XX. Mas, em que pese o fator religioso deste movimento, ele detém características e estabelece modalidades comportamentais que estão muito distantes dos aspectos meramente religiosos, evidenciando-se numa expressão própria da pós-modernidade, uma referência do estilo de ser pós-moderno, embora procurando, numa primeira observação, reformar e/ou transformar os elementos de fragmentação e caoticidade desta realidade. E é na busca por reformar e/ou transformar tais elementos que se torna possível verificar os limites objetivos do movimento Nova Era quanto a questão da alienação. 2.3- O movimento Nova Era e a “condição pós-moderna” As articulações propostas pela Nova Era, evidenciam, num primeiro momento, a condição pós-moderna apontada por Harvey, na medida em que ela não nega, imediatamente, a “compressão espaço- temporal”, definida pelo autor como uma forma de relação do indivíduo com