UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS FELIPE CARDOSO SCANDIUZZI O REEQUILÍBRIO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS FRENTE À PANDEMIA DE COVID-19 E SEUS POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS FRANCA 2021 FELIPE CARDOSO SCANDIUZZI O REEQUILÍBRIO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS FRENTE À PANDEMIA DE COVID-19 E SEUS POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS Trabalho de Conclusão de Curso entregue como pré-requisito para obtenção do Título de Bacharel em Direito do Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Orientador: Prof. Dr. José Carlos de Oliveira. Franca 2021 FELIPE CARDOSO SCANDIUZZI O REEQUILÍBRIO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS FRENTE À PANDEMIA DE COVID-19 E SEUS POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS Trabalho de Conclusão de Curso entregue como pré-requisito para obtenção do Título de Bacharel em Direito do Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, sob orientação do Prof. Dr. José Carlos de Oliveira. BANCA EXAMINADORA Presidente:________________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos de Oliveira 1º Examinador: _____________________________________________________________ 2º Examinador: ______________________________________________________________ Franca, ____ de ____________ de 2021 Dedico este trabalho aos meus pais, Valdirene de Souza Cardoso e José Roberto Scandiuzzi, que sempre foram, e sempre serão, meu apoio e inspiração desta e de futuras jornadas. AGRADECIMENTOS Desde meu primeiro dia na UNESP algo já me dizia que ali seria um lugar em que experimentaria experiências únicas e inéditas, um lugar que transformaria para sempre a maneira como me vejo e como me mostro ao mundo. Ali cheguei tomado de incertezas, medos e ansiedades, não sabia como seria a vida daquele seis de março para frente, mas sabia que para estar naquele lugar, até então desconhecido, havia renunciado a muitas coisas, havia dado o melhor de mim e não permitiria que fosse em vão. Olhando para o agora, já distante ano de 2017, posso enxergar que de fato não o foi. Nesses cinco anos, entrelacei meu caminho com o de pessoas que levarei para sempre na memória e no coração, fortaleci laços que hoje me sustentam mais do que eu jamais poderia imaginar e, principalmente, uma bagagem imensa de momentos engrandecedores e sublimes. De início, gostaria de agradecer o apoio e dedicação do meu orientador, Prof. Dr. José Carlos de Oliveira, que, com muita paciência e sabedoria me ajudou a enxergar a relevância do Direito em momentos de crise. Sempre com muita atenção e dedicação me guiou para as decisões mais acertadas, indicando leituras de qualidade e estando sempre à disposição para dúvidas e questionamentos de maneira amigável e solícita. Com certeza, sob sua orientação pude perceber a importância da ciência jurídica para a evolução da sociedade, fazendo da figura do professor aquilo que realmente é: um exemplo de dignidade e sabedoria. Aos meus pais, que desde sempre incentivaram meus sonhos e batalharam para garantir que eu pudesse correr atrás deles, sempre munidos de amor e atenção. Pai, nunca me permitirei esquecer o seu semblante no dia em que me trouxe até Franca, ali se traduziu um sentimento tão intenso e puro que se torna impossível de transformar em palavras, mas, de maneira sucinta, soaria parecido como uma permissão para ir e voltar sempre que precisasse pois teria em você a segurança para conquistar o que eu quisesse. Sempre terei muito orgulho de poder chamá-lo de pai e saber que nessa pequena palavra carrego um universo inteiro. Não fosse o bastante, tenho a sorte de ter uma mulher inigualável para chamar de mãe, que me ensinou o significado da persistência e me mostrou na prática o que significa ser forte. Mãe, obrigado por se fazer presente até mesmo distante, que nunca permitiu que nada me faltasse e sempre foi o meu lugar de acolhida nos momentos mais difíceis, acompanhada das frases mais reconfortantes e ao mesmo tempo cômicas. Se hoje estou conquistando um sonho, é graças a você, que me fez quem sou e me entregou ao mundo para que pudesse batalhar minhas batalhas. Em seguida, devo meus ais profundos agradecimentos à minha avó Maria Helena, que por mais que não poderá lê-los, está cravada eternamente na minha história. Foi ela quem desde meus primeiros anos me ensinou os valores mais bonitos e justos que uma pessoa deve carregar, nunca me esquecerei de suas broncas, mas, principalmente, sempre levarei no coração cada gesto de carinho que tinha dentro de si um mundo inteiro de ternura e amor. Vó, muito obrigado por ser a guerreira que é, por ter construído uma história tão linda e ser um exemplo de fé e perseverança. Para completar o quarteto que me deu todo o apoio que precisei para estar aqui hoje, quero agradecer à minha namorada, Maria Júlia, que esteve comigo durante todos os anos da graduação, nunca me negou apoio e incentivos, sempre com paciência e compreensão comigo nos momentos em que eu precisava me ausentar para me dedicar aos estudos. No começo não foi fácil, estávamos cheios de inseguranças e temores, mas juntos construímos algo sólido e recheado de apoio e confiança. Obrigado por sempre ser minha companheira e apoio para todos os momentos. Passados os agradecimentos à família que eu ganhei, gostaria de agradecer à família que a UNESP me deu, Aluisio, Bruna, Débora, Emily, Fabiana, Luísa e Rayra, ou melhor, Senador, Gratidão, Zen, Emilen, Fabi, Unicórnio e Pipoca. Sem vocês esses cinco anos teriam sido bem mais difíceis, a nossa parceria foi fundamental para tornar os desafios do curso bem mais leves. Agora fica a saudade das histórias que vivemos juntos e dos momentos de risada e aflição que passamos lado a lado, com certa sensação de que tínhamos muito mais a compartilhar, mas infelizmente não pudemos desfrutar juntos desse último ano de graduação em razão de forças maiores. Se eu pudesse desejar alguma coisa, seria, sem dúvidas, mais uma terça-feira com vocês na petiscaria, conversando sobre a vida e dando boas risadas. Senador, ou como gosto de chamar, Sena, me lembro do primeiro dia de aula em que estávamos perdidos e começamos a conversar na salinha do CADir, eu mal podia saber que ali seria o início de uma grande amizade, que aquela pessoa seria quem eu compartilharia meus anos de graduação e horas de conversas sobre a vida. Só tenho a te agradecer pela parceria de todos os momentos, você se mostrou muito mais que um amigo, mas um irmão com quem sei que posso contar para os melhores conselhos. Saiba que podemos não ter mais aquela cozinha que foi palco de muitas conversas boas, mas você sempre terá em mim um amigo para todos os momentos. Quem também sempre esteve presente nos momentos de surto e desespero com os compromissos da graduação foi a Gratidão, essa menina que chegou fazendo pose de brava, mas na verdade é um poço de companheirismo e gentileza. Grats, obrigado pela companhia nesses cinco anos, sua presença foi fundamental em diversos momentos, saiba que sempre te levarei no coração e qualquer coisa, sempre que precisar, estarei aqui para responder de volta “artigo quinto parágrafo terceiro!”. Ainda, nessa família francana se faz presente uma dupla inseparável e um tanto quanto improvável: Zen e Pipoca. A dupla mais “causaria” (na falta de outro adjetivo que seja capaz de definir vocês) de Franca e Região, sem vocês a rotina seria bem mais cinza e as histórias mais mornas. Zen, muito obrigado pelas conversas profundas e risadas sem igual, espero que um dia você possa enxergar o tanto que é especial para mim e o tanto que admiro a pessoa que se tornou. Ray, já que para mim é impossível te chamar de Pipoca, devo admitir que as minhas primeiras semanas de UNESP foram um tanto desesperadoras, queria saber se teria a chance de passar mais cinco anos convivendo com essa pessoa tão especial para mim, poder acompanhar de perto a sua evolução e poder fazer parte de tudo isso é como um presente que o destino me oportunizou. Também faziam parte dessa família Emilen e Fabi, que com toda calma traziam harmonia e equilíbrio ao grupo. Emilen, foi uma sorte tremenda poder dividir esse período com você que sempre nos apresentava coisas novas e diferentes, se mostrando uma pessoa muito única e amável. Fabi, apesar de ter chegado um pouco tarde à família, sinto como se você tivesse vindo para completar algo que só podemos notar o quão importante é com a sua presença, muito obrigado por toda calma e serenidade que você transmite a quem está ao seu redor. Essa família, porém, só foi possível graças ao brigadeiro mágico da Unicórnio, que nos costumava nos reunir toda semana para as melhoras conversas, sempre com um espírito cheio de energia, rainha dos jogos e das festinhas unespianas. Dona dos melhores abraços, sempre mimando a todos do grupão, Uni, queria te agradecer por toda a força que me deu e representou durante todos esses anos. Em se falando de amizade, não poderia deixar de agradecer aqueles que sempre incentivaram os meus sonhos e dividiram as angústias do vestibular: João Pedro Azzuz, Vinícius Geraldo, João Victor Lombardi, João Pedro Callil, Pedro Almeida, Marcelo Marques, Ana Minohara, Juliana Boldieri e Gabriele Yoshida. Fico muito feliz em acompanhar o crescimento acadêmico e profissional de cada um de vocês e tenho orgulho em falar que nossa amizade apenas se fortaleceu nesse período. Por fim, meus agradecimentos à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, instituição que me proporcionou não só ensino de qualidade durante cinco anos, mas também muitas experiências que me fizeram evoluir enquanto pessoa. A vivência unespian me fez enxergar um mundo que até então eu não conhecia, me fez amadurecer, me desconstruir e me reconstruir por diversas vezes, apresentou pautas que eu sequer imaginava sua importância. Meu agradecimento a cada professor que tive o prazer de conhecer, que me passaram valores e conhecimentos inestimáveis, me permitindo dizer, de cabeça erguida e peito aberto, que sou unespiano. A despedida é dolorida, e não poderia ser diferente, são tantas memórias e tantos sentimentos vivenciados que seria impossível deixar esse lugar que tanto me fez bem sem o mínimo de nostalgia. Me resta agradecer a Deus pela oportunidade de ter vivido essa experiência e rogar que possa devolver, ainda que uma fração, disso à esse lugar que tanto me fez bem. SCANDIZZI, Felipe Cardoso. O Reequilíbrio dos Contratos de Concessão de Serviços Públicos Frente à Pandemia de Covid-19 e Seus Possíveis Desdobramentos. Orientador: José Carlos de Oliveira. 2021. 108f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2021. RESUMO Diante da crise generalizada provocada pelo advento da pandemia do novo Coronavírus, o poder público e os entes privados se veem em um cenário de instabilidades e incertezas, algo indesejável para a saúde de suas finanças e administração. A prestação dos serviços públicos submetidos aos contratos de concessão, enquanto pontos cruciais para o funcionamento da sociedade e atendimento dos direitos básicos do cidadão, não pode ficar refém desse novo cenário e à deriva em um mar de possibilidade e incertezas. Para tais situações, esses contratos trazem em si a possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro, possibilidades para que o poder público e os parceiros privados possam garantir a continuidade da prestação desses serviços da maneira menos onerosa e mais eficiente possível, respeitando aqueles princípios inerentes à administração pública. Considerando isso, o presente estudo tem como objetivo analisar as características dos contratos de concessão de serviços públicos e as possibilidades de reajustes e reequilíbrio econômico-financeiro frente ao cenário pandêmico inaugurado no ano de 2020, bem como os seus possíveis desdobramentos para os próximos anos e as possibilidades e seguranças garantidas pelo ordenamento jurídico pátrio, em especial, o Direito Administrativo, não se atendo apenas aos métodos clássicos de reequilíbrio, mas também métodos alternativos como o uso da arbitragem e do poder de barganha estatal com eficiência e racionalidade. Palavras-chave: Direito Administrativo. Contratos de concessão de serviços públicos. Pandemia. Covid-19. Reequilíbrio econômico-financeiro. ABSTRACT Faced with the generalized crisis caused by the advent of the new Coronavirus pandemic, public authorities and private entities find themselves in a scenario of instability and uncertainty, something undesirable for the health of their finances and administration. The provision of public services subject to concession contracts, as crucial points for the functioning of society and meeting the basic rights of citizens, cannot be held hostage to this new scenario and adrift in a sea of impossibility and uncertainties. For such situations, these contracts bring with them the possibility of economic and financial rebalancing, possibilities for the government and private partners to guarantee the continuity of the provision of these services in the least costly and most efficient manner possible, respecting those principles inherent to administration public. Considering this, this study aims to analyze the characteristics of public service concession contracts and the possibilities of adjustments and economic-financial rebalancing in view of the pandemic scenario inaugurated in 2020, as well as its possible consequences for the coming years and the possibilities and security guaranteed by the national legal system, in particular, Administrative Law, not only adhering to the classic methods of rebalancing, but also alternative methods such as the use of arbitration and state bargaining power efficiently and rationally. Keywords: Administrative Law. Public service concession contracts. Covid-19 Pandemic. Economic-financial rebalancing. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 1 A CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS: UMA ANÁLISE CONCEITUAL ...... 15 1.1 AS MODALIDADES DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS ........................... 22 1.1.1 As concessões comuns .................................................................................................... 23 1.1.2 As concessões especiais .................................................................................................. 26 1.2 A MUTABILIDADE DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS E SUAS CAUSAS ............................................................................................... 32 1.2.1 A alteração unilateral do contrato ............................................................................... 35 1.2.2 O fato do príncipe .......................................................................................................... 37 1.2.3 Fato da administração ................................................................................................... 39 1.2.4 Teoria da imprevisão ..................................................................................................... 40 1.3 O EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS .................................................................................................... 43 1.3.1 O reajuste tarifário ........................................................................................................ 49 1.3.2 A revisão ordinária e a extraordinária ........................................................................ 50 1.3.3 A prorrogação do prazo de concessão e a alteração de encargos contratuais como mecanismos internos de reequilíbrio econômico-financeiro ............................................... 52 1.3.4 O aporte de recursos públicos como mecanismo externo de reposição do equilíbrio econômico-financeiro.............................................................................................................. 55 1.3.5 Ferramentas para o reequilíbrio: a taxa interna de retorno e o fluxo de caixa marginal ................................................................................................................................... 56 2 OS IMPACTOS JURÍDICOS DA PANDEMIA DE COVID-19 .................................... 58 2.1 INICIATIVAS DO PODER PÚBLICO PARA O CONTINGENCIAMENTO DE PERDAS ................................................................................................................................... 66 2.2 OS PRESTADORES DE SERVIÇOS E PARCEIROS PRIVADOS FRENTE À PANDEMIA ............................................................................................................................. 74 2.3 ESTUDO DAS SEQUELAS ESPERADAS ...................................................................... 79 3 ALTERNATIVAS LEGAIS PARA O REEQUILÍBRIO ECONÔMICO- FINANCEIRO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS ... 83 3.1 A EFICIÊNCIA E RACIONALIDADE NECESSÁRIA AOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS ........................................................................... 84 3.2 A ARBITRAGEM COMO DISPOSITIVO DE SEGURANÇA E CELERIDADE .......... 88 3.3 MEDIDAS TRIBUTÁRIAS COMO FERRAMENTA À RECOMPOSIÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO......................................................................... 94 3.4 AS MEDIDAS CLÁSSICAS DE RECOMPOSIÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO- FINANCEIRO COMBINADAS COM MEDIDAS ATÍPICAS .............................................. 96 4 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 101 12 INTRODUÇÃO O último ano da década de 2010 trouxe consigo o que seria o início da maior pandemia desde a Gripe Espanhola, que marcou os anos de 1918 a 1920. Desta vez, em decorrência da doença conhecida como Covid-19, provocada pelo novo coronavírus, o Sars- Cov-2. Tal situação mundial tem afetado as mais diversas frentes. Não foi diferente no Brasil, em que a pandemia gerou, desde uma crise sanitária, até crises econômicas e jurídicas. Nessa toada, ao se tratar de uma problemática generalizada, o Estado, invariavelmente, assume o papel de interventor e, por vezes, protagonista ao exercer, entre outras atribuições, as funções decorrentes da Administração Pública. Nesse aspecto, tem-se a questão da continuidade de prestação dos serviços públicos, que interfere de maneira significativa no combate à pandemia e no bem-estar da população em geral. Isto é, os serviços públicos são responsáveis pelo funcionamento dos mais diversos setores, tais como a saúde, o saneamento básico, a logística de fornecimento de produtos básicos e transporte de pessoas e mercadorias, além de ser fundamental para a manutenção econômica do Estado e influir diretamente na renda dos cidadãos. Não à toa, a Constituição Federal impôs, em seu art. 175, ao Poder Público, a responsabilidade de manter a prestação de serviços públicos, seja direta ou sob o regime de concessão. Necessário, portanto, o estudo acerca do arcabouço legislativo até então presente em nosso ordenamento, como, por exemplo, a Lei nº 8.987/1995, que tange quanto ao regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, bem como a Lei nº 8.666/1993, que institui normas para licitação e contratos da administração pública, e a Lei nº 11.079/2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parcerias público-privadas, estas que são sólidas o bastante para garantir a continuidade da prestação dos serviços públicos concedidos a parceiros privados. Igualmente, como a jurisprudência passará a entender, suficientes para aplicar tais leis em virtude da saúde dos contratos já estabelecidos. A possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro deve ser um ponto de gravitação fundamental nesse debate, posto que inerente aos contratos aqui debatidos. No entanto, necessário compreender qual a extensão e possibilidades de reequilíbrio, quando o contrato pode ser revisto ou reajustado e qual a diferença desses institutos. Trata-se, portanto, da melhor compreensão do que se tem à disposição para garantir a lisura da prestação desses serviços. 13 Portanto, diante do quadro de instabilidade e insegurança que marca a execução dos contratos de concessão de serviços públicos no cenário pandêmico atual, é necessário analisar as figuras já existentes e as possibilidades presentes no ordenamento jurídico pátrio com o intuito de garantir equilíbrio para a administração pública e continuidade dos serviços públicos. Nessa toada, a análise das garantias e possibilidades jurídicas para condução dos contratos de concessão de serviços públicos a um equilíbrio econômico-financeiro se faz essencial no contexto pandêmico e pós-pandêmico, posto que estão em risco, além da continuidade da prestação de serviços públicos, a saúde econômica do ente público e do parceiro privado e a satisfação e bem-estar do público em geral. As medidas sanitárias impostas pelos administradores públicos, em razão das medidas preventivas contra a infecção pelo Sars-Cov-2, invariavelmente impõem uma série de exigências aos prestadores de serviços, tais como o limite reduzido de lotação em locais fechados, disposição de equipamentos de segurança aos funcionários e ao público e horário reduzido de funcionamento. Assim, quando se trata de uma concessão de serviço público, o ator privado encarregado da prestação, em tese, opera dentro de um orçamento fixado em licitação e, para manter sua saúde econômica, não pode extrapolar esse orçamento. Assim, com novos encargos a ele impostos, esses inerentes à natureza dos contratos administrativos, aumenta-se os gastos com a manutenção e prestação em si dos serviços. Dessa maneira, entender o procedimento de contratação e a organicidade da relação entre concessionária e concedente, os direitos e deveres atribuídos a cada parte, além dos possíveis movimentos a serem feitos nesse campo minado, é de suma importância para uma resposta eficaz do Poder Público quando do enfrentamento de uma crise. O equilíbrio econômico-financeiro é um dos maiores atrativos para o particular que contrata com a Administração Pública, uma vez que por meio desse fica garantido, como expressa o termo, uma razão de proporcionalidade entre os encargos do concessionário e a retribuição que lhe assistirá. Tão fundamental para o particular que, em geral, a doutrina majoritária o coloca sob a luz dos direitos do concessionário, enquanto a Lei nº 8.987/1995 o coloca no capítulo referente à política tarifária, estando também presente na Constituição Federal, art. 37, XXI. Outrossim, a adoção da teoria da imprevisão pelo Poder Judiciário deve ser estudada com intuito de compreender quais as possíveis medidas a serem tomadas pelas partes do contrato. 14 Frise-se que o conteúdo aqui buscado é universal, apesar de se basear nos acontecimentos provocados pela pandemia de Sars-Cov-12, de forma que podem ser aplicados a diversos cenários de anomia social, guardando-se de lição para as próximas gerações. Assim, para a realização da pesquisa foi realizada revisão bibliográfica e o uso de fontes indiretas, bem como a coletânea de entendimentos jurisprudenciais e análise de medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Poder Público neste período. Também realizou-se levantamento por meio da técnica de pesquisa bibliográfica em materiais já publicados a partir do contato direto da bibliografia já tornada pública em relação ao tema, o que oportuna o exame sob novas abordagens, permitindo o reforço paralelo na análise da pesquisa e manipulação de informações (LAKATOS; MARCONI, 2003), sendo analisadas, a título de exemplo, doutrinas, legislação, artigos, dissertações, teses, matérias publicadas em periódicos e sites, além de outras fontes de pesquisas. Com o intuito de acompanhar o entendimento dos tribunais, foi necessária a realização de uma pesquisa de decisões jurisprudenciais no banco de dados do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e Tribunal de Contas da União (TCU). Com a coleta dos entendimentos jurisprudenciais mais recorrentes e com repercussão no meio jurídico foi possível realizar uma síntese e análise do entendimento jurisprudencial. Em suma, fora utilizado o método dedutivo na análise dos dados com o fim de se extrair as particularidades de premissas gerais relacionadas ao fenômeno estudado (FONSECA, 2009), sendo que a área do conhecimento explorada na presente pesquisa foi as ciências sociais aplicadas, em busca da solução de m problema determinado. Igualmente, a pesquisa será descritiva, buscando descrever as características dos institutos abordados e da situação fática vivida. 15 1 A CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS: UMA ANÁLISE CONCEITUAL A atual concepção da república brasileira abrange uma gama de encargos de ordem social e econômica ao Estado. A Constituição Federal de 1988 é marcada por normas programáticas que têm o condão de garantir o mínimo de dignidade à existência dos cidadãos. Esse mínimo existencial garantido ao povo brasileiro é, por sua vez, abrangido pela garantia de desfrutar de uma série de serviços que satisfaçam as necessidades coletivas, de interesse geral. A prestação destes serviços, portanto, deve conter em si a maior segurança possível de continuidade, a qual, em um Estado Democrático de Direito, diante de um contexto de pós liberalismo, se encontra residindo nas mãos do próprio Estado. No caso do direito brasileiro, é a própria constituição quem faz a remissão de quais são esses serviços, observando-se a disposição dada pelos seus artigos 21, incisos X, XI, XII, XV e XXIII e 25, §2º, figurando entre esses, por exemplo, os serviços postais, serviços de gás canalizado, serviços de radiodifusão, entre outros. No entanto, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 715-716), o Estado, por meio do Poder Legislativo, é quem define as respectivas atividades como serviço público ou não, podendo, dentro dos limites constitucionais, qualificar outros serviços a esta posição. Todavia, é necessário o respeito às fronteiras constituídas pelas normas relativas à ordem econômica, garantidoras da livre iniciativa, uma vez que o exercício de serviços dentro desta esfera assiste aos particulares, tendo o Estado a prerrogativa de exercê-los nesta órbita em caráter excepcional. Destaca-se aqui, que ao surgimento das primeiras noções de serviços públicos, costumava-se caracterizá-los por três critérios: o subjetivo, o material e o formal. Assim, o serviço público seria aquele prestado pelo Estado, em que a atividade tivesse por objeto a satisfação das necessidades coletivas, sendo exercido sob o regime de direito público derrogatório e exorbitante do direito comum (DI PIETRO, 2020, p. 132). Entretanto, com o afastamento do Estado dos princípios liberais, passou-se a ampliar o rol de atividades próprias ao Estado, tais como atividades comerciais e industriais que antes eram reservadas à iniciativa privada. Por conseguinte, outro fenômeno se operou no seio da Administração Pública com o aumento de atividades exercidas pelo Estado, este passou a ter a necessidade de delegar a execução de tais serviços a particulares. Diante dessa necessidade, nascem os contratos de concessão de serviços públicos, com o remodelamento dos critérios formal e subjetivo dos serviços públicos, posto que as pessoas jurídicas de direito público não mais seriam as únicas 16 prestadoras desse tipo de atividade, bem como que nem todo serviço público, agora, é prestado sob o regime exclusivo de direito público. Daqui, uma definição mais atualizada de serviços públicos e aceita pela doutrina majoritária: toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público (DI PIETRO, 2020, p. 134). As concessões de serviço público, portanto, são fruto de uma necessidade de a Administração Pública encontrar novas formas de gestão desses serviços, por meio de um remanejo da ideia de especialização e utilização de métodos de gestão privada, com o intuito de aumentar a obtenção de lucros e melhores resultados, bem como dar uma maior flexibilidade e agilidade à administração destas atividades. Essa importância é tamanha que se faz presente no art. 175 da Constituição Federal de 1988 ao ficar cravado que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos” (BRASIL, 1988). Assim, por meio da concessão, o Estado atribui o exercício de um serviço público a determinado particular que, mediante processo licitatório, o aceita para prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, observando-se as condições fixadas neste processo e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público concedente, sempre perante a garantia de um equilíbrio econômico-financeiro estabelecido no momento da contratação, remunerando-se pela exploração do serviço (MELLO, 2015, p. 726), características estas que serão aprofundadas posteriormente. Em um adendo, pode-se dizer que: A concessão nunca se dá por conta e risco exclusivos da concessionária. Mesmo sob o enfoque da doutrina tradicional das áleas da concessão, a Administração Pública assume os riscos extraordinários do empreendimento. Ainda que admitíssemos, teoricamente, a transferência dessas áleas extraordinárias ao concessionário, restariam, nessa hipótese, sob a responsabilidade do concedente, os riscos relacionados às matérias nas quais, por força legal, vigora a responsabilidade solidária entre concessionário e concedente. (PEREZ, 205. p. 205-206). No mais, assevera Bandeira de Mello que: Para que possa ser objeto de concessão é necessário que sua prestação não haja sido reservada exclusivamente ao próprio Poder Público. Esta é, constitucionalmente, a situação do Serviço Postal e do Correio Aéreo Nacional. Isto porque a Constituição, ao arrolar no art. 21 competências da União quanto à prestação de serviços públicos, menciona, nos incisos XI e XII (letras "a" a "f'), diversos serviços. A respeito deles esclarece que a União os explorará diretamente "ou mediante autorização, concessão 17 ou permissão". Diversamente, ao referir, no inciso X, o serviço postal e o correio aéreo nacional, não concedeu tal franquia. Assim, é visível que não quis dar o mesmo tratamento aos vários serviços que considerou. Por força disto, tem-se de considerar que é manifestamente inconstitucional o disposto no art. 1 u, inciso VII, da Lei 9 .07 4, de 7. 7 .199 5, nela inserido pela Lei 9 .648, de 27.5 .1998. Dito inciso inclui os serviços postais entre as atividades passíveis de permissão ou concessão, o que, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, ofende a Lei Maior. (2015, p. 734-735). Embora o entendimento doutrinário predominante seja de que a concessão de serviços públicos tem natureza jurídica de contrato administrativo com peculiaridades próprias, há uma ala doutrinária que entende que, em verdade, a concessão de serviço público trata-se de um ato unilateral do Poder Público, porém, explica a respeitada professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro que: Entendemos que referido negócio jurídico é de natureza contratual, embora sejamos forçados a reconhecer particularidades específicas que o configuram realmente como inserido no âmbito do direito público. A Constituição Federal, no art. 175, parágrafo único, quando faz referência à lei disciplinadora das concessões, refere-se, no inciso I, ao caráter especial de seu contrato, o que parece confirmar a natureza contratual do instituto. A Lei no 8.987/1995, no entanto, pôs fim a eventual controvérsia, consignando expressamente que a concessão, seja qual for a sua modalidade, “será formalizada mediante contrato” (art. 4o). Temos, pois, como fato atualmente indiscutível, a atribuição de contrato administrativo às concessões de serviços públicos. (2019, p.402). Cumpre destacar o que discorre o legislador no art. 2º, inc. II, da Lei 8.987/1995, em que se considera concessão de serviço público “a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado” (BRASIL, 1995). Há também a figura da concessão de serviços públicos para empresas estatais, em que a vantagem reside no fato de que o Estado mantém o controle sobre o concessionário, inclusive na fixação de preços. No entanto, há de se mencionar que todos os riscos do empreendimento correm por conta do poder concedente, uma vez que acionista majoritário da empresa. Há quem defenda que nesse caso não se está diante de um caso de concessão tal qual o estudado aqui, mas sim de um processo de descentralização de serviços públicos (DI PIETRO, 2020, p.327). Seja a concessão outorgada à uma empresa particular, seja a concessão outorgada à uma empresa estatal, a existência de um contrato é essencial ao seu aperfeiçoamento. Por meio deste contrato é transferida a execução do serviço à que se presta ao ente privado, remanescendo com o Poder Público a sua titularidade, podendo este retomar a execução do 18 referido serviço por meio da encampação, conforme previsto no art. 35, inciso II da Lei 8.987/1995. Igualmente, define-se por este instrumento as maneiras de remuneração decorrentes da exploração da atividade outorgada, a possibilidade de reversão dos bens empenhados à prestação dos serviços, as obrigações em geral assumidas pelas partes e, principalmente para o presente estudo, o equilíbrio econômico-financeiro, que regerá o contrato desde sua concepção até o seu fim (BRASIL, 1995). Importante anotar que, em que pese a concessionária seja remunerada pela exploração do serviço a ela outorgada a execução, nada impede que o Poder Concedente a subsidie parcialmente, ou ainda, que ela se utilize de fontes alternativas de receitas, conforme o art. 11 do estatuto retromencionado. Tal previsão vai ao encontro, bem como encontra justificativa, da busca pela modicidade tarifária, uma vez que suaviza a contraprestação do usuário em razão de fonte de receitas alheias à prestação do serviço em si e será regulado pelo equilíbrio econômico-financeiro fixado no contrato. O que não pode ocorrer é a remuneração da concessionária exclusivamente por fontes estranhas à exploração do serviço, posto que no caso não se trataria da figura jurídica da concessão de serviço público, mas sim de uma modalidade contratual diversa (MELLO, 2015, p. 723). Assim, pode-se dizer que as tarifas, tendo natureza de preço público, devem ser fixadas em um montante suficiente e condizente com o serviço prestado e a ela vinculado, evitando o enriquecimento indevido e desproporcional da concessionária em detrimento dos usuários ou extrapolando a equação econômico-financeira primordialmente fixada, além de garantir uma adequada prestação do serviço outorgado (CARVALHO FILHO, 2015, p. 422). Cabe fixar, por ora, a título de introdução, que o referido equilíbrio econômico- financeiro se trata de uma garantia de permanência de uma razão de proporcionalidade, para não se dizer igualdade, dos ônus, encargos e direitos das partes com base no momento em que os ditames contratuais foram fixados, a “linha de equilíbrio que liga a atividade contratada ao encargo financeiro correspondente” (CARVALHO FILHO, 2015, p. 201) no cenário da contratação. Tal garantia ganha notoriedade no estudo dos contratos administrativos em razão da possibilidade de alterações unilaterais por parte do Poder Concedente para a melhor persecução do interesse público, dentro dos limites impostos pelos arts. 58, I, e 65, I, da Lei 8.666/1993. A doutrina trata de fixar esses limites impostos pela lei: 19 a)necessidade de motivação: o art. 65 exige a apresentação das “devidas justificativas”; b)a alteração deve decorrer de fato superveniente à contratação, pois no momento da instauração da licitação a Administração efetivou a delimitação do objeto contratual, o que condicionou a apresentação das propostas pelos licitantes. A alteração poderia servir como burla à licitação, pois o administrador, ao definir equivocadamente o objeto a ser licitado, poderia restringir a participação de interessados. É evidente que, constatado o equívoco do agente na definição do objeto licitado e a necessidade de alteração, deve ser permitida a alteração contratual para se atender o interesse público, sem prejuízo da devida apuração da responsabilidade do agente; c)impossibilidade de descaracterização do objeto contratual (ex.: não se pode alterar um contrato de compra de materiais de escritório para transformá-lo em contrato de obra pública); d)necessidade de preservar o equilíbrio econômico- financeiro do contrato. Efetivada a alteração unilateral do contrato, a Administração tem o dever de efetuar a revisão contratual para reequilibrar a equação econômica do contrato (princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato), na forma do arts. 58, § 2.º, e 65, § 2.º, da Lei 8.666/1993;29 e)apenas as cláusulas regulamentares (ou de serviço) podem ser alteradas unilateralmente, mas não as cláusulas econômicas (financeiras ou monetárias), conforme previsão contida no art. 58, § 1.º, da Lei 8.666/1993.30 Enquanto as cláusulas regulamentares ou de serviço relacionam-se com o objeto do contrato, as cláusulas econômicas referem-se ao preço, forma de pagamento e aos critérios de reajuste (ex.: a Administração pode alterar o contrato para exigir a construção de 120 casas populares, em vez de 100 casas, inicialmente previstas quando da assinatura do contrato; pode ser alterado contrato de pavimentação de 100 km de determinada rodovia para se estender a pavimentação por mais 10 km). Nesse caso, a alteração da cláusula de execução repercutirá, necessariamente, no custo do contrato, razão pela qual deverá ser realizada a revisão para reequilibrar a equação financeira. A alteração da cláusula econômica, portanto, é uma consequência da alteração primária da cláusula regulamentar, não sendo lícita a alteração unilateral (e direta) do valor do contrato; f)os efeitos econômicos ocasionados pela alteração unilateral das cláusulas regulamentares devem respeitar os percentuais previstos no art. 65, § 1.º, da Lei 8.666/1993: os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, não podem ultrapassar o equivalente a 25% do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso específico de reforma de edifício ou de equipamento, o limite será de 50% para os seus acréscimos. (OLIVEIRA, 2020, p. 241). A limitação imposta pelo art. 65, §1º, da Lei 8.666/1993 causa certa discussão no campo jurídico, posto que parte da doutrina considera que tal limitação percentual não diz respeito aos contratos de concessão, tendo-se em vista que esses possuem características intrínsecas passíveis de justificar o afastamento de referidos limites, tais como sua longa duração, a alta complexidade e as incertezas da relação contratual, não significando, no entanto, uma ausência de limitações, posto que deve o Poder Concedente justificar a necessidade da alteração intentada, bem como preservar o equilíbrio econômico-financeiro da concessão (OLIVEIRA, 2020, p. 241). Por outro lado, quando levado o tema aos tribunais, é possível perceber que o judiciário se atém às formalidades lançadas pela Lei de Licitações (Lei 8.666/1993) e exige o balizamento da alteração pretendida aos percentuais legais: 20 PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TRANSPORTE PÚBLICO COLETIVO. LEGALIDADE DE ATO ADMINISTRATIVO QUE AUTORIZOU O PROLONGAMENTO DE LINHAS INTERMUNICIPAIS ORIGINADAS DA CONCORRÊNCIA PÚBLICA N° 006/2007. SUPERPOSIÇÃO DAS LINHAS DE ÔNIBUS, OBJETO DE CONCESSÃO, COM AQUELAS QUE AS RECORRIDAS SUPOSTAMENTE EXPLORAM. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. NECESSIDADE DE VERIFICAÇÃO PELO STJ DAS LINHAS DE TRANSPORTE EXPLORADAS PELAS RECORRENTES PELO STJ. IMPOSSIBILIDADE. NOVA AVALIAÇÃO DO LAUDO PERICIAL QUE CONCLUIU PELA LEGALIDADE DA ALTERAÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO DE CONCESSÃO. REGULARIDADE NA LICITAÇÃO RECONHECIDA PELO PERITO E PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. EXORBITÂNCIA DE HONORÁRIOS. OCORRÊNCIA. POSSIBILIDADE DE NOVO ARBITRAMENTO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO APENAS PARA REDUZIR OS HONORÁRIOS ARBITRADOS. 1. A discussão envolve a legalidade na alteração unilateral de contrato de concessão pela Administração Pública, visto que somente se atendidos os requisitos previstos na Lei 8.666/93 tais alterações seriam possíveis. In casu o Sodalício a quo, de forma categórica, estabeleceu que a perícia foi conclusiva quanto à legalidade das modificações contratuais, pois serviram para melhor adequação dos objetivos do projeto (art. 65, I, "a", da Lei 8.666/93), bem como respeitaram os limites percentuais previstos em lei (art. 65, § 1º, da Lei 8.666/93). 2. No caso sub examinem infere-se que o Tribunal a quo, com cognição plenária e exauriente, fundamentado em laudo pericial, concluiu que a superposição de linhas de transporte coletivo e o prolongamento dos itinerários foram legais, em conformidade com os requisitos previstos na Lei 8.666/93, destacando que as mudanças contratuais realizadas unilateralmente respeitaram os limites percentuais fixados no codex de regência (25%). 3. O Superior Tribunal de Justiça, em caso análogo, decidiu que rever o posicionamento adotado pela Corte de origem importaria mitigar o óbice da Súmula 7/STJ, visto que o acolhimento da pretensão recursal demandaria reexame do laudo elaborado pelo expert. (AgRg na Pet 7.458/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 1/10/2009, DJe 9/10/2009). (...) (REsp 1477217/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 11/10/2016). (BRASIL, 2016) A possibilidade de alteração unilateral dos contratos de concessão de serviço público é, todavia, uma das várias cláusulas exorbitantes que podem figurar em um contrato de concessão de serviços públicos. Entre elas, encontram-se a possibilidade de rescisão unilateral, fiscalização, aplicação de sanções, ocupação provisória, além da utilização de pessoal e de serviços do contratado quando houver necessidade de apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, além de outras previstas pela legislação, em especial, pela Lei de Licitações nos arts. 58, 78, 79, e 80. Como bem dito até aqui, a garantia do equilíbrio econômico-financeiro cobre as incertezas abrangidas por essas cláusulas exorbitantes. No mais, adiante serão abordados os elementos modificáveis e imodificáveis das concessões de serviços públicos. Igualmente, o Poder concedente pode, conforme discorrem os art. 32 e 34 da Lei de Concessões (Lei nº 8.987/95), decretar a intervenção na empresa concessionária. Referida 21 medida não é revestida de natureza punitiva, mas sim investigatória. No caso, é feita a substituição temporária do gestor da empresa por um interventor designado pelo concedente, objetivando apurar irregularidades e assegurar a continuidade da prestação do serviço público. Ao final da intervenção são propostas as medidas mais convenientes a serem adotadas ao caso fático, não excluindo, no entanto, a hipótese de sanções (DI PIETRO, 2020, p. 334). O prazo é de 30 dias para que seja instaurado procedimento administrativo, observando-se o contraditório, com o intuito de apurar as irregularidades, o qual deve ser concluído no prazo de 180 dias. Por fim, para uma compreensão geral dos aspectos do instituto aqui estudado, é necessário entender a extensão da responsabilidade civil da concessionária e do concedente em decorrência do contrato firmado. Estabelece a Lei de Concessões em seu art. 25, que a concessionária responde “por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade” (BRASIL, 1995). Explica a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2020, p. 332) que a responsabilidade primária por prejuízos causados a terceiros é do contratado, relegando ao Estado apenas a responsabilidade subsidiária somente em relação aos prejuízos decorrentes da má execução do serviço público, podendo, não obstante, haver a caracterização da responsabilidade solidária do Estado em razão da má escolha da concessionária ou omissão no que diz respeito ao dever de fiscalização. Igualmente, por força do art. 37, § 6º da Constituição Federal, a responsabilidade da concessionária é objetiva. Há, no entanto, entendimento doutrinário que sustenta a existência de solidariedade entre o Estado e a concessionária nos casos de concessões de serviços públicos, posto que a prestação destes serviços é caracterizada como relação de consumo, aplicando-se a solidariedade prevista para os acidentes de consumo (TEPEDINO, 2004, p. 216). Por outro lado, a doutrina majoritária entende que a regra consumerista é afastada pela regra especial do art. 25 da Lei de Concessões. Em relação à responsabilidade pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais, o art. 71 da Lei de Licitações dispõe que a concessionária é a responsável por estes, sendo que, em relação aos encargos previdenciários resultantes da execução dos contratos, há responsabilidade solidária entre o Poder Público e o contratado, por força do §2º do mesmo artigo. Ponto interessante reside no que concerne ao §1º do mesmo art. 71, vez que este estabelece que “a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu 22 pagamento (...)” (BRASIL, 1993), não havendo, portanto, a prima face, responsabilidade por parte da Administração nesses casos. Ocorre que o STF, em julgamento da ADC 16/DF, fixou que a regra é que a Administração Pública não possui responsabilidade pelos encargos trabalhistas de suas empresas contratadas, salvo naqueles casos em que há comprovada falta de fiscalização estatal no cumprimento das referidas obrigações. Destaque-se que a Lei 13.429/2017 inseriu o art. 5º-A, § 5º, na Lei 6.019/1974, passando a prever a responsabilidade subsidiária do contratante pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, e o recolhimento das contribuições previdenciárias observando o disposto no art. 31 da Lei 8.212/1991. Sobre o assunto, em sede de repercussão geral, suscitada no RE nº 760.931, o STF fixou a tese de que “o inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não ensejam a transferência automática de responsabilidade pelo pagamento ao Poder Público, seja em caráter solidário ou subsidiário” (BRASIL, 2017). Igualmente, a mesma Corte declarou que “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (BRASIL, 2019). Com isso, é possível criar uma percepção abrangente da extensão dos direitos e deveres, bem como, obrigações e responsabilidades das partes que compõem o contrato de concessão de serviços públicos, de maneira a possibilitar um estudo aprofundado do tema em análise. 1.1 AS MODALIDADES DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS As concessões de serviços públicos são reguladas por diversos diplomas legais, destacando-se a Lei 8.987/1995, que dispõe sobre as concessões de serviços públicos e de obras públicas, além das permissões de serviços públicos, bem como a Lei 9.074/1995, que estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos, e a Lei 11.079/2004, que institui normas sobre as concessões especiais, ou como são conhecidas, Parcerias Público-Privadas (PPPs). A concessão de serviços públicos pode ser entendida como um gênero que pode ser dividido em dois subgêneros, quais sejam, o das concessões comuns, prevista na Lei 8.987/1995 e legislação correlata, e o das concessões especiais, que se submetem à Lei 11.079/2004 e leis específicas promulgadas pelos entes federados (OLIVEIRA, 2020, p. 292). 23 As concessões comuns, por sua vez, se dividem em duas espécies, sendo estes, a concessão de serviços públicos propriamente ditos, prevista pelo art. 2ª, inciso II da Lei de Concessões, e as concessões de serviços públicos precedidas de obra pública, prevista no inciso III do mesmo artigo. Tal espécie tem por objeto único a delegação de determinado serviço público, enquanto que esta espécie possui um objeto complexo, por assim dizer, ao ponto em que antes que o concessionário preste o serviço público para que foi contratado, tem a obrigação de realizar uma obra pública (DI PIETRO, 2020, p. 336). De maneira similar, as concessões especiais se dividem em duas espécies, previstas no art. 2ª, §§ 1º e 2º da Lei 11.079/2004, quais sejam, as Parcerias Público-Privadas patrocinadas e as Parcerias Público-Privadas administrativas, respectivamente. As PPPs patrocinadas têm por característica a delegação de serviços ou obras públicas, acarretando a cobrança de uma contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado, além da tarifa cobrada dos usuários. Já as PPPs administrativas envolvem a prestação de serviços, direta ou indiretamente, à administração pública, sendo permitida a espécie para contratações que envolvam execução de obra ou instalação de bens (DI PIETRO, 2020, p. 341). O estudo destas figuras se faz de suma importância posto que necessário o conhecimento de suas características intrínsecas e peculiaridades para um melhor manejo de riscos, perdas e ganhos de cada modalidade, essencial ao cálculo do equilíbrio econômico- financeiro dos contratos de concessão de serviços públicos, como será visto. 1.1.1 As concessões comuns Pode-se dizer que a concessão de serviços públicos propriamente dita é o modelo balizador para as demais modalidades de concessão de serviços públicos, um standard, refere- se à delegação da execução do serviço público tal como exposto até aqui. É um contrato administrativo típico, sendo reconhecido, como exposto, a presença de cláusulas exorbitantes e sujeições do concessionário (OLIVEIRA, 2020, p. 308). Por sua vez, a concessão de serviços públicos precedida da execução de obra pública trata-se de uma modalidade de concessão com duplicidade de objetos, quais sejam o exercício da atividade delegada e a execução de uma obra que a precede. O que ocorre, em verdade, nesta modalidade é que o Estado concede a atividade à concessionária e, para sua adequada prestação, autoriza que esta execute a obra previamente. Merece atenção ao fato de que, embora esteja presente o termo “precedida da execução de obra pública”, a lei define a obra - no mesmo art. 2º, III da Lei 8.987/1995 que 24 conceitua a modalidade - como “(...) a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público” (BRASIL, 1995). Por vista disso, há nítido caráter de precedência da construção, reforma, ampliação e melhoramento em relação ao serviço a ser executado, ocorre que, quanto à conservação, esta dar-se-á concomitantemente ao serviço prestado (CARVALHO FILHO, 2015, p. 392). O art. 23 da Lei de Concessões dispõe um rol de cláusulas essenciais que deve o contrato que a rege, obrigatoriamente, tratar. Na ausência dessas cláusulas, corre-se o risco de outorga de concessões de forma desproporcionalmente favorável ao concessionário em detrimento do poder concedente, como ocorria antes da vigência do atual estatuto, que passou a assegurar a lisura de procedimentos envolvendo os concessionários e a própria prestação do serviço a eles delegados. Isto é, a ausência destas cláusulas, bem como sua inobservância, acarreta a invalidade do contrato havido entre as partes, o que pode ser decretada pela própria Administração ou por provimento do Poder Judiciário. O mencionado dispositivo apresenta um total de quinze cláusulas, essas podem ser separadas em cláusulas relativas ao serviço, cláusulas relativas aos direitos e obrigações, cláusulas de prestação de contas, cláusulas de fiscalização e cláusulas relativas ao fim da concessão (CARVALHO FILHO, 2015, p. 409- 410). De outro modo, importante esclarecer que o prazo anual dos contratos previstos no art. 57 da Lei de Licitações não se aplica à presente modalidade, uma vez que, de acordo com o referido dispositivo, a duração de até um ano dos contratos celebrados pela Administração Pública se dá em razão de que a sua vigência está vinculada à respectiva vigência dos créditos orçamentários. Assim, como na concessão de serviço público comum a remuneração da concessionária se dá, em regra, por meio de tarifa paga pelos usuários, não há vigência de crédito orçamentário que a limite (BRASIL, 1995). Outrossim, a concessionária, via de regra, realiza investimentos de grande vulto para a adequada prestação do serviço público a que foi contratada, dependendo, assim, de um prazo mais dilatado para a amortização de seus investimentos e retorno financeiro pactuado, garantindo, além disso, a segurança da modicidade tarifária (OLIVEIRA, 2020, p. 293). O prazo de duração de uma concessão de serviço público comum leva à uma discussão doutrinária acalorada quanto à viabilidade da prorrogação do contrato. Isto é, alguns defendem que, sob o ponto de vista jurídico, o alargamento do prazo ensejaria em uma vantagem ao concessionário descompassada ao princípio da isonomia, bem como da licitação que orientava um prazo determinado. Igualmente, do ponto de vista econômico tal feito não se justificaria, posto que as tarifas são fixadas por parâmetros que permitem a recuperação dos 25 investimentos realizados ao longo do prazo primordialmente estipulado, sendo que tal prorrogação somente seria possível em acontecendo desvios indesejáveis (JUSTEN FILHO, 2003, p. 269-270). Por outro lado, parte da doutrina entende que, em que pese a prorrogação deva ser encarada como uma medida excepcional, nada impede que seja prevista nos editais de licitação e respectivos contratos (ARAGÃO, 2007, p. 580-582). O que justifica tal medida é a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, vez que o prazo inicialmente estipulado leva em conta a amortização de investimentos e a taxa de retorno do concessionário. Uma consequência a ser debatida nesse caso é a abertura de oportunidade a eventuais interessados para a celebração de novo contrato de concessão. Deve, destarte, ser a prorrogação ser proveniente de decisão justificada, demonstrando a conveniência da prorrogação em detrimento de nova licitação, devendo o respectivo contrato prever os casos em que será possível a prorrogação, de maneira objetiva e razoável. Igualmente, nesses casos, a prorrogação deve ser dada pelo período estritamente necessário para compensar o desequilíbrio contratual enfrentado, não se podendo aplicar prorrogações ad aeternum que deem o caráter de indeterminação ao prazo do contrato (OLIVEIRA, 2020, p. 294). Há ainda a possibilidade de “prorrogação premial” e “prorrogação antecipada”, que devem estar previstas no edital e contrato, este último no caso de ocorrer a inclusão de novos investimentos não previstos no instrumento contratual vigente. Perfazem-se, portanto, cláusulas de prevenção a fatos futuros e previsíveis nos contratos de concessão comuns. Leciona, ainda, Bandeira de Mello (2015) que: o prazo é (tal como a tarifa) um dos elementos que concorrem para determinação do valor da equação econômico-financeira, uma vez que em função dele se estimam a amortização do capital investido pelo concessionário e as possibilidades de lucro que terá. Por isso, tanto como as demais disposições concernentes à prestação do serviço e tal como elas, também o prazo poderá ser modificado pelo concedente, extinguindo a concessão antes da fluência do período de duração inicialmente fixado, ressalvado ao concessionário simplesmente o direito de que lhe seja assegurada a mantença da equação econômico-financeira pactuada. Como ela é expressável por um valor, respeitado este - que tem natureza contratual-, nada há que opor, censurar ou reclamar do Estado. Em suma, aquilo a que o concessionário tem direito é à integralidade de um valor, cuja inteireza se perfaria em certo período: aquele que perceberia se mantida fosse a concessão até a conclusão normal do prazo estatuído. (MELLO, 2015, p. 751). Portanto, o prazo contratual atua como um importante elemento para o equilíbrio contratual, abarcando um amplo diagnóstico de sua saúde financeira. 26 1.1.2 As concessões especiais A concessão especial de serviços públicos, batizada de Parceria Público-Privada é submetida a um regime jurídico diferenciado, conforme descrito pela Lei 11.079/2004. A inserção desse modelo no ordenamento pátrio se deu por inspiração no modelo inglês da Private Finance Iniciative (que remonta a 1987, embora lançada oficialmente em 1992), caracterizada pela remuneração proveniente do próprio Poder Público, em vez de necessariamente vir dos usuários por meio do pagamento de tarifas (MARTY; TROSA; VOISIN, 2006, p. 11-12). Por outro lado, em uma análise à sua inserção no ordenamento pátrio: A "parceria público privada", que foi jucundamente auspiciada pelo partido governista - outrora comprometido com os interesses da classe trabalhadora, e hoje ponta-de-lança das aspirações dos banqueiros -, constitui-se na creme de la creme do neoliberalismo, pelo seu apaixonado desvelo na proteção do grande capital e das empresas financeiras. Nem mesmo o Governo do Sr. Fernando Cardoso, em despeito de sua álacre submissão aos ditames do FMI, ousou patrociná-la, talvez por uma questão de decoro.(MELLO, 2015, p. 797) O que justifica a existência de tal figura, portanto, são fatores como a necessidade de prestação de serviços públicos não autossustentáveis, posto que, após o período de desestatização vivenciado pelo Brasil, foi relegado ao Estado a obrigação de prestar serviços públicos que necessitam de investimentos vultuosos ou marcados em razão da inviabilidade jurídica, ou política de cobrança de tarifas do usuário; a limitação ou esgotamento da capacidade de endividamento público, tendo em mente a limitação imposta pela LC 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que limitou a capacidade de investimentos do Poder Público na prestação direta dos serviços públicos, bem como de criação de infraestrutura adequada. Além do mais, o princípio da subsidiariedade adequada e a necessidade de eficiência do serviço dão predileção à atuação privada em detrimento da atuação estatal (OLIVEIRA, 2020, p. 308). As Parcerias Público-Privadas são agrupadas sob a denominação de “concessões especiais” justamente porque o legislador estabeleceu um regime diferenciado para esse tipo de contratação, introduzindo novas garantias, modificando a repartição de riscos e adicionando, entre outras mudanças, novas formas de remuneração para as concessionárias, objetivando, assim, atrair o capital privado para a consecução do interesse público. Desta feita, a Lei 11.079/2004 estabelece regras específicas para essas modalidades, estas sempre apoiadas e subsidiadas pelas regras da Lei de Concessões, sendo, no entanto, impossível a inversão, isto é, transformação de uma concessão comum em parceria, ou aplicação das regras 27 desta àquela, sob pena de incorrer em infração à constitucionalidade do princípio da obrigatoriedade de licitação (MELLO, 2015, p. 797). A lei de regência das concessões especiais limitou-se, em seu art. 2º, a estabelecer que as Parcerias Público-Privadas tratam-se de contrato administrativo de concessão, dividindo-as nas modalidades conhecidas como patrocinada e administrativa. Cuida, a doutrina, de trazer a definição das PPPs. No sentido amplo do conceito, uma Parceria Público-Privada é aquele ajuste firmado entre o Estado e o particular em busca do interesse público, como concessões, convênios, terceirizações, permissões, contratos de gestão e termos de parceria e, a título de exemplo, já no sentido restrito, tratam-se de PPP tão somente as parcerias previstas na Lei 11.079/2014 (OLIVEIRA, 2020, p. 308). Por definição temos que: a parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão que tem por objeto (a) a execução de serviço público, precedida ou não de obra pública, remunerada mediante tarifa paga pelo usuário e contraprestação pecuniária do parceiro público, ou (b) a prestação de serviço de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, com ou sem execução de obra e fornecimento e instalação de bens, mediante contraprestação do parceiro público. (DI PIETRO, 2020, p. 340) Ou ainda: o acordo firmado entre a Administração Pública e pessoa do setor privado com o objetivo de implantação ou gestão de serviços públicos, com eventual execução de obras ou fornecimento de bens, mediante financiamento do contratado, contraprestação pecuniária do Poder Público e compartilhamento dos riscos e dos ganhos entre os pactuantes. (CARVALHO FILHO, 2015. p. 447). Portanto, há uma diferença marcante entre o modelo das Parcerias Público-Privadas e as concessões comuns, a qual reside na necessária contraprestação do parceiro público ao parceiro privado como forma de remuneração. Tal contraprestação, por sua vez, é o parâmetro utilizado pela legislação para separar em dois modelos diferentes as concessões especiais, quais sejam, a Parceria Público-Privada patrocinada e a Parceria Público-Privada administrativa (art. 2º, §§ 1º e 2º, respectivamente). Conforme descrito anteriormente, a PPP privada consiste na concessão de determinado serviço ou obra pública de que trata a Lei de Concessões quando, além da tarifa cobrada dos usuários pela prestação do serviço, houver contraprestação pecuniária do Poder Público ao parceiro privado. Por seu turno, a Parceria Público Privada administrativa tange quanto ao contrato de prestação de serviços em que é usuária direta, ou indireta a Administração Pública, mesmo que abarque fornecimento ou instalação de bens ou execução de obras de 28 obra pública, sendo, por outro lado, vedada a celebração de concessão que tenha por único objeto essas prestações. Todavia, a PPP administrativa pode visar a execução de serviços públicos ou de serviços administrativos prestados diretamente ao Estado, posto que previsto que a Administração Pública seria usuária direta ou indireta dos serviços delegados. Destaque-se que serviços administrativos são ligados àquelas atividades privadas prestadas ao Estado por entidades selecionadas por meio de licitação, invertendo, de certa maneira, a lógica da concessão de serviços públicos, posto que, nesse caso, a Administração Pública é a beneficiária direta e a coletividade, a beneficiária indireta (OLIVEIRA, 2020, p. 310). Partindo desse ponto, parte da doutrina divide a PPP administrativa em outros dois subgrupos, quais sejam, a PPP administrativa de serviços públicos e a PPP administrativa de serviços administrativos. O professor Bandeira de Mello (2015) tece críticas à modalidade ao ponto em que se evidencia que o verdadeiro propósito da introdução das PPPs no ordenamento brasileiro é o desejo de prestigiar ao máximo o partidarismo neoliberal, atribuindo à particulares a gestão de atividades públicas: se é a Administração, e não o público, quem remunera o parceiro privado, aqui se vê novamente uma contradição entre o que é aduzido para justificar a instituição das PPPs - a alegada carência de recursos - e a disposição normativa de fazer com que a Administração assuma dispêndios que poderiam ser poupados com o uso da modalidade comum de concessão. (MELLO, 2015, p. 800). Igualmente, vale destacar que, conforme previsto no art. 10, § 3.º, da Lei 11.079/2004 na modalidade patrocinada, a Administração Pública pode se responsabilizar por até 70% da remuneração do parceiro privado, sendo que, para o contrato que extrapole esse valor, é necessária autorização legislativa. Isso significa que é juridicamente possível o alcance de qualquer percentual de contraprestação proveniente do Poder Público, desde que inferior a 100%, sob pena de recair na contratação de uma PPP em modalidade administrativa. No entanto, “este não é um modo de acudir à carência de recursos públicos; antes, pressupõe que existam disponíveis e implica permissão legal para que sejam despendidos: exatamente a antítese das justificativas apontadas para exaltar este novo instituto” (MELLO, 2015, p. 799). Além disso, salienta-se que para qualquer uma das modalidades de concessão especial, o art. 6º da Lei 11.079/2004 dispõe de um rol exemplificativo de formas de contraprestação ao parceiro privado, como ordem bancária, cessão de créditos de direitos não tributários, outorga de direitos em face da Administração Pública e outorga de direitos sobre bens públicos dominicais. Não obstante, o § 1.º do mesmo artigo permite, a previsão de remuneração 29 variável vinculada ao desempenho do parceiro privado, conforme metas e padrões de qualidade e predisposição previamente acordados em contrato. Igualmente, afirma o §2ª deste artigo que é admitida a estipulação contratual que prevê o aporte de recursos públicos em favor do parceiro privado com a finalidade de realização de obras e aquisição de bens reversíveis, nos termos do art. 18, X e XI, da Lei de Concessões, desde que autorizado no edital da respectiva licitação, ou em lei, para contratos celebrados até 8 de agosto de 2012. Neste último caso, quando da extinção do contrato, o parceiro privado não receberá a indenização pelas parcelas daqueles investimentos vinculados a bens reversíveis que ainda não tenham sido amortizados ou depreciados, se tais investimentos houverem sido efetuados com valores originários do referido aporte de recursos. A título de complementação, a contraprestação da Administração Pública ao parceiro privado é disponibilizada somente quando da disponibilização do serviço objeto do contrato, sendo facultado aos termos do respectivo contrato contemplar o pagamento da contraprestação relativa à parcela já fruível do serviço, nos termos do art. 7º e seu §1º, da Lei de licitação e contratação de parceria público-privada, respectivamente. Vale dizer que há valor mínimo a ser observado em um contrato de concessão especial, diferentemente do que ocorre na concessão comum, sendo vedada a PPP quando o valor do contrato seja inferior a R $10.000,00. Tal valor é oriundo da proposta apresentada pelo parceiro privado quando da licitação, estimando-se aí os custos, os riscos e as receitas necessárias à execução do contrato. Parte da doutrina defende que esse valor representa o montante mínimo a ser investido pelo parceiro privado, porém, outra parte, como os professores Floriano de Azevedo Marques e Diógenes Gasparini, são partidários do posicionamento de que o valor mínimo corresponde ao montante a ser pago para o parceiro privado ao longo do contrato de PPP (SUNDFELD, 2005, p. 304). Por outro lado, parte da doutrina argumenta, ainda, que essa imposição de valor mínimo às Parcerias Público-Privadas não pode ser interpretada em caráter nacional, isto é, aplicada aos Estados e Municípios, mas tão somente à União, posto que nesse caso feriria o princípio federativo exposto no art. 18 da Constituição Federal, devendo cada ente federativo ter autonomia para fixar os respectivos valores mínimos (OLIVEIRA, 2020, p. 315). Outra distinção entre as PPPs e a concessão comum se encontra no prazo contratual. Como exposto anteriormente, em razão de não estar vinculada a uma dotação orçamentária, a concessão de serviço público comum não tem prazo limitado de vigência, cabendo ao contrato defini-lo. No entanto, as concessões especiais operam de maneira diversa, a legislação (art. 2.º, § 4.º, II, e art. 5.º, I, da Lei 11.079/2004) estabelece um prazo mínimo de 5 anos e máximo 30 de 35 anos para esse tipo de contrato de concessão. A justificativa para o alargamento dos prazos de vigência destes contratos vai ao encontro da justificativa para os contratos de concessão comum, lançando base na necessidade de tempo razoável para a amortização dos investimentos e diluição dos pagamentos, devendo o Poder Público concedente atuar com responsabilidade fiscal, tomando medidas como: a) apresentação de estudo técnico, aprovado pela autoridade competente e que respeite a LC 101/2000 (LRF); b) elaboração de estimativa do impacto orçamentário-financeiro nos exercícios respectivos ao prazo do contrato; c) declaração do ordenador da despesa atestando a compatibilidade do contrato com a lei de diretrizes orçamentárias e com a lei orçamentária anual; d) “estimativa do fluxo de recursos públicos suficientes para o cumprimento, durante a vigência do contrato e por exercício financeiro, das obrigações contraídas pela Administração Pública”; e) previsão do objeto contratual no Plano Plurianual; f) realização de consulta pública em relação às minutas do edital e do contrato; g) licença ambiental e adequação às exigências ambientais (art. 10 da Lei 11.079/2004). (OLIVEIRA, 2020, p. 316). Outro ponto que merece atenção, quando do estudo das concessões especiais, é a repartição dos riscos, vez que, ao contrário do que ocorre com as concessões comuns, em que o risco é suportado pela concessionária, salvo em casos de riscos extraordinários e imprevisíveis, aqui não há uma repartição abstrata de riscos (DI PIETRO, 2019. p. 194). Pelo contrário, é o contrato de parceria que repartirá objetivamente os riscos a serem arcados por cada uma das partes, de acordo com a interpretação do art. 4º, VI e 5º, III, da Lei 11.079/2004. Esclareça-se, porém, que a repartição de riscos não é necessariamente equânime entre as partes, mas sim objetiva, bem como, em nada altera aquela responsabilidade inerente à prestação do serviço público, conforme disposta no art. 37, § 6º da Constituição Federal, portanto, a repartição de riscos é de eficácia interna ao contrato, um fator importante para a fixação da remuneração do parceiro privado e, consequentemente, da equação econômico- financeira que acompanhará a vigência do contrato, sem, contudo, acarretar responsabilidade solidária perante terceiros. Tanto o professor Bandeira de Mello, como a professora Di Pietro, no entanto, enxergam uma limitação para a distribuição de riscos, quais sejam os riscos oriundos do fato príncipe e fato da administração (figuras que ganharão maior análise à frente), posto que, caso contrário, feriria de morte o princípio constitucional da Responsabilidade do Estado, ou seja: Nas duas hipóteses, é inaceitável a repartição dos prejuízos, porque não se pode imputar ao contratado o ônus de arcar com prejuízos provocados pelo contratante. No caso de fato do príncipe, a responsabilidade do Estado encontra fundamento na regra contida no art. 37, § 6º, da Constituição, que não pode ser afastada por lei 31 ordinária. No caso de fato da Administração, trata-se de responsabilidade contratual por inadimplemento, não podendo o parceiro privado arcar com os prejuízos, nem mesmo para dividi-los com o parceiro público. Trata-se de mera aplicação do princípio geral de direito, consagrado no art. 186 do Código Civil, segundo o qual aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo. (DI PIETRO, 2019, p. 195). A repartição objetiva dos riscos é figura fundamental ao equilíbrio econômico- financeiro desses contratos, posto que já no edital de licitação os riscos são fixados a cada parte, devendo, assim, o proponente precificar sua proposta em razão deles. Igualmente, a garantia do equilíbrio econômico-financeiro nas PPPs, apesar de não previsto na Lei 11.079/2004, decorre da aplicação dos princípios da equidade, razoabilidade, continuidade e indisponibilidade do interesse público (DI PIETRO, 2019, p. 195). Sob outra perspectiva, há também a previsão, pelo art. 5º, IX da respectiva lei, do compartilhamento, com o parceiro público, de ganhos econômicos em razão da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado. Isso se justifica ao ponto em que o poder público tem a faculdade de ofertar garantias ao financiador do projeto (§ 2º do mesmo art. 5º), de tal modo que reduza os riscos do empreendimento e possibilite maiores ganhos econômicos. Não obstante, o parceiro privado tem o dever de prestar garantias de execução compatíveis com os ônus e riscos envolvidos ao poder público. Para as Parcerias Público- Privadas patrocinadas, o valor não pode ultrapassar o valor da obra (conforme aplicação subsidiária do art. 18, XV, da Lei 8.987/1995). Em contrapartida, para as Parcerias Público- Privadas administrativas, o valor não poderá ser superior a 10% do valor do contrato, mas, sempre que haja a entrega de bens pelo parceiro público, o valor destes deve ser acrescido ao montante da garantia (de acordo com a aplicação subsidiária do art. 56, §§ 3º e 5º da Lei 8.666/1993). Além dos pontos aqui traçados, o art. 5º da Lei 11.079/2004 prevê um rol de cláusulas especiais dos contratos de Parceria Público-Privados que se diferem daquelas observadas no contrato de concessão comum, quais sejam: I – o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação; II – as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas; III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária; IV – as formas de remuneração e de atualização dos valores contratuais; V – os mecanismos para a preservação da atualidade da prestação dos serviços; VI – os fatos que caracterizem a inadimplência pecuniária do parceiro público, os modos e o prazo de regularização 32 e, quando houver, a forma de acionamento da garantia; VII – os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado; VIII – a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução suficientes e compatíveis com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites dos §§ 3.º e 5.º do art. 56 da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, e, no que se refere às concessões patrocinadas, o disposto no inciso XV do art. 18 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; IX – o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado; X – a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas; XI – o cronograma e os marcos para o repasse ao parceiro privado das parcelas do aporte de recursos, na fase de investimentos do projeto e/ou após a disponibilização dos serviços, sempre que verificada a hipótese do § 2.º do art. 6.º desta Lei (incluído pela Lei nº 12.766, de 2012). (BRASIL, 2004a). Ainda, adicionalmente, podem prever: I - os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle ou a administração temporária da sociedade de propósito específico aos seus financiadores e garantidores com quem não mantenha vínculo societário direto, com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 ; (Redação dada pela Lei nº 13.097, de 2015) II – a possibilidade de emissão de empenho em nome dos financiadores do projeto em relação às obrigações pecuniárias da Administração Pública; III – a legitimidade dos financiadores do projeto para receber indenizações por extinção antecipada do contrato, bem como pagamentos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de parcerias público-privadas. (BRASIL, 2004a). Por fim, vale mencionar que é exigência legal (art. 9ª da Lei. 11.079/2004) que, antes da celebração do contrato, deve ser constituída sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria, não deixando qualquer margem de controvérsia quanto ao caráter obrigatório da criação da mencionada sociedade de propósitos específicos. 1.2 A MUTABILIDADE DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS E SUAS CAUSAS Visto os aspectos centrais dos contratos de concessão de serviços públicos, em suas várias espécies, é possível notar que uma figura é constante na abordagem do tema: o equilíbrio econômico-financeiro. Todavia, essa figura só é existente e constante nos contratos administrativos desta espécie em razão de uma outra característica contratual, qual seja, a mutabilidade. Isso ocorre pois: 33 a estruturação dos contratos de concessão contemporâneos apresenta: a) engenharia econômica e financeira bastante complexa; b) o enfoque desses negócios se transmuda de bilateral para multilateral; c) a participação dos operadores econômicos é ativa na própria concepção e modelagem do negócio, tornando-os menos herméticos e unilaterais; d) a alocação de riscos se configura como um elemento central para contratos desta natureza, em especial no que se refere ao equilíbrio econômico-financeiro; e) o foco no resultado muda completamente a forma como se estrutura o negócio; f) o progresso tecnológico impõe novas formas de executar os serviços públicos e as atividades, apontando na direção de uma indispensável associação com os operadores econômicos não apenas pelas restrições orçamentárias, mas também pela expertise técnica própria do setor privado; g) a velocidade das mutações é substancialmente distinta daquela que pairava à época das concessões oitocentistas, quando a mutabilidade estava atrelada quase que integralmente ao poder estatal de alteração unilateral do contrato; h) o contrato de concessão ostenta uma dimensão regulatória e multidisciplinar, em especial, com o contributo da Análise Econômica do Direito. (GARCIA, 2019, p. 27-28). Um aspecto comum a todas essas características é a presença intrínseca de persecução do interesse público, o qual não é rígido, estático ou inerte, mas sim, sofre reflexos e reflete nas esferas econômica e política, além de estar interligada aos avanços tecnológicos e procedimentais atinentes ao contrato. Por assim dizer: Nos contratos administrativos e nos contratos em geral de que participa a Administração, não existe a mesma autonomia da vontade do lado da Administração Pública; ela tem que buscar sempre que possível a equivalência material, já que não tem a livre disponibilidade do interesse público. Além disso, é mais difícil fazer, no momento do contrato, uma previsão adequada do equilíbrio, uma vez que os acordos administrativos em geral envolvem muitos riscos decorrentes de várias circunstâncias, como a longa duração, o volume grande de gastos públicos, a natureza da atividade, que exige muitas vezes mão de obra especializada, a complexidade da execução etc. O próprio interesse público que à Administração compete defender não é estável, exigindo eventuais alterações do contrato para ampliar ou reduzir o seu objeto ou incorporar novas técnicas de execução. (DI PIETRO, 2020, p. 314) Pode-se definir a mutação como a mudança que impacta o equilíbrio inicialmente composto no contrato de concessão, podendo ocorrer por variadas causas e, assumindo diferentes formas jurídicas, desencadear efeitos plurais que não necessariamente obedecem a critérios uniformes e predispostos (GARCIA, 2019, p. 142-143). Em um esforço de sistematizar a causa e consequência desses eventos de mutabilidade, a doutrina os sistematiza em três áleas além da força maior, quais sejam: a álea ordinária ou empresarial, a álea administrativa e a álea econômica (DI PIETRO, 2020, p. 314-315). Em que pese esse sistema não esgotar as causas de modificação, faz necessário o seu estudo para compreender as ferramentas legais, jurisprudenciais e doutrinárias para a recomposição dos contratos em estudo em virtude do fenômeno a que se pretende estudar: o reequilíbrio dos contratos de concessão em razão do advento da pandemia de Covid-19. Isto é, em qual álea esse fenômeno se encontra? Seria a pandemia, por si só, uma causa de 34 modificação dos contratos de concessão de serviços públicos? Como é possível contorná-las? Para compreender isso melhor, é necessária uma análise das áleas ou riscos que o particular assume quando da contratação com a Administração Pública. Aqueles fatores atinentes à flutuação do mercado, comum a qualquer tipo de negócio, são abrangidos pela álea empresarial ou ordinária. A doutrina entende que por ela deve arcar o particular, não devendo o poder concedente prestar socorro nesses casos. Como colocado anteriormente, nos contratos de concessão simples é o concessionário atua em seu nome e por sua conta e risco e nas concessões especiais este é distribuído de maneira dinâmica entre as partes, devendo, portanto, ser respeitados tais dizeres, posto que previsíveis no momento da contratação. Pode-se compreender, portanto, que: Os riscos que o concessionário deve suportar sozinho abran gem, além dos prejuízos que lhe resultem por atuar canhestramente, com ineficiência ou imperícia, aqueloutros derivados de eventual estimativa inexata quanto à captação ou manutenção da clientela de possíveis usuários, bem como, no caso de fontes alternativas de receita, os que advenham de uma frustrada expectativa no que concerne aos proveitos extraíveis de tais negócios. É dizer: não lhe caberia alimentar a pretensão de eximir-se aos riscos que todo empresário corre ao arrojar-se em empreendimentos econômicos, pois seu amparo não pode ir além do resguardo, já de si peculiar, conferido pelas proteções anteriormente mencionadas e cuja existência só é justificável por estar em causa vínculo no qual se substancia um interesse público. (MELLO, 2015, p. 766-767). Desse modo, é possível dizer que as alterações previsíveis, ou ordinárias, sofridas em sede de um contrato de concessão não podem ficar a encargo do poder concedente, posto que já computada na precificação do contrato e, por conseguinte, no equilíbrio econômico- financeiro primordialmente ajustado, não imprimindo, portanto, mutabilidade alguma ao contrato. Igualmente, há fatores que são clara e fortemente relacionados no contrato de concessão, a exemplo dos riscos da concessionária ou as áleas negociais explicitamente assumidas por esta. Tal fato advém da característica de que, neste tipo contratual, há um compartilhamento de riscos, existindo fatores cuja ocorrência não é hábil a justificar a pretensão do reequilíbrio (MARQUES NETO, p. 195, 2003). A álea administrativa, por sua vez, decorre de comportamentos adotados pela Administração Pública, seja por ação ou omissão, que venham a interferir na execução do objeto do contrato. Esse tipo de risco é subdividido em três modalidades de acordo com o papel que a Administração exerce quando da execução do ato e o resultado para o equilíbrio contratual. Assim, tem-se a alteração unilateral, o fato príncipe e o fato da administração (DI 35 PIETRO, 2020, p. 315). Nesses casos, a administração, por força do art. 65, § 6º da Lei de licitações, fica obrigada a restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro ajustado ao contrato. Por último, aquelas circunstâncias externas ao contrato, alheias à vontade das partes, imprevisíveis, excepcionais e inevitáveis, que ensejam desequilíbrio desmedido ao contrato, são abarcadas pela álea econômica. Nesse caso, o descompasso gerado pelo evento inevitável e imprevisível é tão grande que abre espaço à aplicação da teoria da imprevisão, incumbindo à Administração Pública a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. As duas áleas que comportam o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão são agrupadas pela doutrina na superclasse da álea extraordinária e, portanto, causadoras da mutabilidade dos contratos aqui estudados, merecendo mecanismos legislativos para a contenção de danos. Serão, de tal maneira, analisadas mais profundamente para a melhor compreensão de suas delimitações e aplicabilidade ao vivenciado pela Administração Pública em decorrência do caos sanitário proporcionado pela pandemia provocada pelo “SARS-CoV-2”. Merece destaque, ainda, o caso fortuito e a força-maior que, embora não haja consenso em relação à definição destas, a ampla doutrina as liga ao acontecimento de fatos imprevisíveis e inevitáveis, sendo o caso fortuito decorrente de um evento humano que, reunindo os ditos atributos, cria ao contratante um óbice intransponível à execução do contrato, ao passo que a força maior é fruto de um evento da natureza com as mesmas características. Tais figuras são invocáveis como causas justificativas da inexecução do contrato quando a parte em mora não houver concorrido com culpa para tal. No entanto, se a parte já se encontrava em mora antes da ocorrência desses fatos, não pode se eximir da responsabilidade, salvo se restar comprovado que o dano ocorreria mesmo que estivesse cumprido com sua obrigação (MEIRELLES, 2010, p. 322). São, portanto, excludentes de culpabilidade pela inexecução. 1.2.1 A alteração unilateral do contrato Embora já analisada em partes anteriormente, a prerrogativa do Poder Público de alteração unilateral dos contratos administrativos, também conhecida por ius variandi, ou pouvoir de modification unilatérale, foi importada pelo Brasil, posto que se deu a partir de uma evolução jurisprudencial francesa consolidada no Conselho de Estado daquele país, no entanto, como não poderia deixar de ser, ganhou no Brasil um alcance mais genérico do que o 36 estruturado no Direito francês, estendendo a possibilidade de sua aplicação a todos os contratos administrativos, “o que decorreu da circunstância da Teoria Geral do Contrato Administrativo ter sido elaborada a partir do entendimento da doutrina brasileira que fez intenso uso das fontes jurisprudenciais do Conselho de Estado e doutrinais do Direito francês” (GARCIA, 2019, p. 143). Ocorre, porém, que o ius variandi não tem a extensão que aparenta em uma primeira vista, posto que quando da sua aplicação, o Poder Público não pode infringir ou desconhecer da variação do interesse público e, obviamente, do tão falado equilíbrio econômico-financeiro (ARAÚJO, 1987, p. 130-131 apud DI PIETRO, 2020, p. 316). Tais limites são encontrados na Lei de Licitações, nos artigos 58, I, e 65, §6º, respectivamente. O limite que o Poder Público encontra na variação do interesse público é que a exteriorização final da alteração contratual, ainda que seja unilateral, provenha de um procedimento organizativo e dinâmico, isto é, oposto ao ato administrativo puramente hermético, fechado e inflexível. Esse procedimento deve garantir o interesse público puro e simples, viabilizando a prévia participação da outra parte contratual, a fim de que exerça seu direito de manifestação, além de terceiros interessados na execução do contrato, vindo a resultar, por fim, em uma motivação que seja legítima e transparente, tanto de fato quanto de direito (GARCIA, 2019, p. 151-152). Trata-se de um poder público irrenunciável e exterior ao contrato, ainda que incida sobre ele, uma medida específica e voltada diretamente para modificar determinado aspecto do contrato, encontrando, no entanto, determinadas barreiras (GARCIA, 2019, p. 146-147). Em decorrência dessas barreiras, afirma a doutrina que existem nos contratos administrativos de concessão de serviços públicos elementos modificáveis e imodificáveis. De prêmio, pode-se falar em cláusulas regulamentares ou de serviços, provenientes dos cahiers des charges do direito administrativo francês, e cláusulas contratuais, econômicas ou financeiras. As primeiras são aquelas que disciplinam o modo e a forma de prestação do serviço objeto do contrato, prescrevendo a melhor maneira de atender os seus objetivos e o interesse público, podendo emanar de leis, decretos ou do próprio contrato, já as segundas são aquelas que correspondem à equação econômico-financeira contida no contrato (ARAGÃO, 2013, p. 37). As cláusulas regulamentares, devido a sua natureza dinâmica, podem ser modificadas unilateralmente, podendo o Estado emitir regulamentos sobre o serviço concedido, mas não sobre aspectos internos da concessionária. A Administração pode inserir as cláusulas que regerão a prestação do serviço no próprio contrato, tratando de modificá-las conforme as 37 necessidades do interesse público, ou, se não optar por assim fazê-lo, inserir no contrato uma cláusula genérica na qual o concessionário se compromete a observar os regulamentos presentes e futuros por ela emitidos que dizem respeito ao serviço. Há, ainda, a possibilidade de a Administração delegar a elaboração dos regulamentos ao concessionário, aprovando-as ou não, previamente (ARAGÃO, 2019, p. 38). Por outro lado, as cláusulas contratuais, econômicas ou financeiras, como expostas, são aquelas que dizem respeito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato em si, tal como ocorre com a fixação das tarifas. Embora possam ser modificadas, não se pode alterar a proporção existente entre obrigações e bonificações. Portanto, o imodificável, aqui é o equilíbrio econômico-financeiro, ou, em outras palavras: Sem embargo do que foi dito, as tarifas não têm, nem poderiam ter, de modo algum, natureza contratual, imutável. O contratual - e que, por isso, não pode ser unilateralmente modificado pelo Poder Público - é o valor resultante do equilíbrio econômico-financeiro, de que a tarifa é uma expressão, entre outras. Donde, ao concedente é lícito alterar, como convenha, a grandeza dela, contanto que, ao fazê- lo, mantenha incólume a igualdade matemática substancial já estabelecida e da qual o valor da tarifa se constitui em um dos termos, conquanto não necessariamente no único deles. (MELLO, 2015, p. 761). 1.2.2 O fato do príncipe Outra contribuição do Direito Administrativo francês, a teoria do fato do príncipe, ou fait du prince, busca identificar o impacto que atividades estatais - sob titulação jurídica diversa da contratual e de cunho geral - provocam na execução dos contratos administrativos. Explica Bandeira de Mello (2015) que: O fato do príncipe não é um comportamento ilegítimo. Outrossim, não representa o uso de competências extraídas da qualidade jurídica de contratante, mas também não se constitui em inadimplência ou falta contratual. É o menejo de uma competência pública cuja utilização repercute diretamente sobre o contrato, onerando, destarte, o particular. Seria o caso, e .g., da decisão oficial de alterar o salário-mínimo, afetando, assim, decisivamente, o custo dos serviços de limpeza dos edifícios públicos contratados com empresas especializadas neste mister. (MELLO, 2015, p. 663-664). No Brasil, a concepção de fato do príncipe foi adotada sem que houvesse grandes críticas, encontrando pontos em comum, como o fato de que se constitui por medidas gerais editadas pelos poderes públicos, logo, medidas exteriores aos contratos de concessão, com existência de um nexo causal entre a medida editada e a perturbação direta do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, ensejando a reposição do equilíbrio 38 previamente exposto no contrato, ou ainda uma indenização, a depender da natureza da medida (GARCIA, 2019, p. 185). No entanto, essa teoria ainda apresenta algumas controvérsias no debate doutrinário brasileiro, alguns doutrinadores, que seguem a linha francesa, defendem que, no direito brasileiro, que adota o regime federativo, “a teoria do fato do príncipe somente se aplica se a autoridade responsável pelo fato do príncipe for da mesma esfera de governo em que se celebrou o contrato (União, Estados e Municípios); se for de outra esfera, aplica-se a teoria da imprevisão” (DI PIETRO, 2020, p. 317). Outros autores interpretam que: (...) a teoria do fato do príncipe, tal como prevista no direito brasileiro, tem pouca relação com a figura existente na França. Na sua essência (mantida no Brasil), a teoria do fato do príncipe consagra o direito de indenização a um particular em vista da prática de ato lícito e regular imputável ao Estado. O ponto nuclear da teoria do fato do príncipe reside em que a lesão patrimonial derivada de um ato estatal válido, lícito e perfeito é objeto de indenização. (JUSTEN FILHO, 2014, p. 548-549). A Lei 8.666/1993, em seu art. 65, § 5º, parece ter dado sustentação a este posicionamento, vez que, sem proceder com qualquer distinção da origem da medida geral, ao dispor que a elevação de carga tributária, independente da origem da medida que o faça, é hábil a ensejar a revisão dos preços do contrato. Não obstante, a jurisprudência pátria não é segura ao delimitar a extensão da aplicação do fato príncipe, por vezes o tratando de maneira parecida à teoria da imprevisão. Em 1981, no RHC nº 59.052-CE, o Supremo Tribunal Federal deu azo ao entendimento de que seria configurado o fato do príncipe sobre um contrato estadual ainda que o ato normativo fosse emanado da Administração Federal (GARCIA, 2019, p. 189). Já, o Tribunal de Contas da União, em 2015, adotou posição diversa desta, exigindo, para a aplicação da referida teoria, que a autoridade responsável pela medida fosse da mesma esfera que do próprio contraente: A doutrina define “fato do príncipe” como medidas de ordem geral que repercutem no contrato, mas que não estão com ele diretamente relacionadas, provocando desequilíbrio econômico-financeiro em detrimento do contratado. Entretanto, no direito brasileiro, a teoria do fato do príncipe somente se aplica se a autoridade responsável pela medida de ordem geral for da mesma esfera federativa daquela que celebrou o contrato [DIPIETRO, M. S. Z. Direito Administrativo. 9. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 284]. Não é o caso da hipótese dos autos, na qual, segundo a recorrente, a alteração contratual teria sido motivada por mudança na política urbana do município de Santos. Dessa forma, seria necessário aplicar a teoria da imprevisão.(BRASIL, 2015) Destaca-se que o objetivo do ato normativo geral e abstrato emanado do Poder Público não é direcionado a uma situação concreta, mas sim uma medida que tenha por alvo o 39 interesse público, sendo ela, portanto, exógena ao contrato. Assim, ao ponto em que é reconhecido o impacto da medida governamental no contrato em si, se faz necessária a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. Ou seja, o agravo patrimonial experimentado pela concessionária não a exime de executar as obrigações contraídas junto ao Poder Público, mas sim, confere a ela o direito de obter a reparação do prejuízo sofrido (MELLO, 2015, p. 664). 1.2.3 Fato da administração Quando a Administração Pública adota determinada conduta, seja omissa ou comissiva, como parte contratual e vem a assumir comportamento que viole direito do contratado de maneira que dificulte ou torne impossível a execução do contrato resta caracterizado o fato da administração (DI PIETRO, 2020, p. 317). Há quem critique a adoção dessa expressão para justificar o inadimplemento da entidade estatal frente à obrigação assumida contratualmente, sob a alegação de que: Ao se valer da expressão “fato da administração”, busca-se afastar a ideia da consumação de um ato ilícito. Logo, o inadimplemento seria tratado juridicamente como uma ocorrência não derivada da vontade humana, sendo destituído de cunho de reprobabilidade. É evidente que essa construção não é compatível com o Estado Democrático de Direito. O que se pode admitir é a existência de casos de impossibilidade de identificação de um agente público especificamente culpado pelo inadimplemento. Assim se passara, por exemplo, quando uma lei posterior não contiver previsão orçamentária para a continuidade da execução de um contrato. No entanto, a ausência de adimplemento por parte da Administração Pública às obrigações assumidas configura ato ilícito contratual, do que deriva o dever de a parte culpada indenizar a parte inocente pelas perdas e danos sofridas. (JUSTEN FILHO, 2014, p.553). Pode-se dizer que o fato da administração equipara-se à força maior e, tal qual, é hábil a produzir igualmente os efeitos de excludente de responsabilidade do particular em razão da inexecução do ajuste, o que, n