Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CLAUDIO RODRIGUES ALVES ESCOLA, DOCÊNCIA E INFÂNCIA: questões de gênero nas práticas pedagógicas nos primeiros anos do ensino fundamental ARARAQUARA – S.P. 2024 CLAUDIO RODRIGUES ALVES ESCOLA, DOCÊNCIA E INFÂNCIA: questões de gênero nas práticas pedagógicas nos primeiros anos do ensino fundamental Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Desenvolvimento, sexualidade e diversidade na formação de professores Orientador: Prof. Dr. Rinaldo Correr ARARAQUARA - SP 2024 A474e ALVES, CLAUDIO RODRIGUES ESCOLA, DOCÊNCIA E INFÂNCIA : questões de gênero nas práticas pedagógicas nos primeiros anos do ensino fundamental / CLAUDIO RODRIGUES ALVES. -- Araraquara, 2024 222 p. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Rinaldo Correr 1. Gênero. 2. Sexualidade. 3. Práticas pedagógicas. 4. Docência. 5. Escola. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. CLAUDIO RODRIGUES ALVES ESCOLA, DOCÊNCIA E INFÂNCIA: questões de gênero nas práticas pedagógicas nos primeiros anos do ensino fundamental Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de pesquisa: Desenvolvimento, sexualidade e diversidade na formação de professores. Orientador: Prof. Dr. Rinaldo Correr Data da defesa: 29/04/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Rinaldo Correr Departamento de Educação/ Instituto de Biociências de Rio Claro Membro Titular: Prof. Dr. Vagner Sérgio Custódio Faculdade de Engenharia e Ciências de Rosana Membro Titular: Profa. Dra. Priscila Carla Cardoso CRAS – Secretaria de Assistência Social do Município de Vinhedo - SP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A minha vó Lourdes (in memorian) e vó Julia, por toda baianidade ancestral, sabedoria e luta. A minha mãe Lenice, pela coragem de proporcionar com doçura e valentia os horizontes do conhecimento e solidariedade. Ao meu pai Vitório (in memorian) A minha irmã Claudinha (in memorian), que com sua alegria escandalosa e vitoriosa ficou encantada e partiu cedinho deste mundo virando uma estrela no meu coração. A minha filha Gabi e meu filho João, pela afetividade corajosa de esperançarmos juntos as utopias de um mundo mais solidário e amoroso. AGRADECIMENTOS Início meus agradecimentos com um símbolo Adinkra, Sankofa, que remete a imagem de um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro. Licença Meu Mais Novo! Licença Meu Mais Velho! Licença à Ancestralidade! Agradeço a todas a pessoas, ao que vieram antes, as crianças de agora e aos mais velhos, com todas aprendo a navegar. Agradeço ao sagrado presente em todas tradições. Agradeço a todas as amigas e amigos que me ajudaram a constituir minha subjetividade. Nestes encontros em que saboreamos o gosto de viver, um abraço fraternal jamais caberia em uma lista. Aquelas companheir@s mais próximos e essenciais na dialogicidade deste percurso, Raquel Santana, Lilian Ribeiro, Cristiane Dantas, Letícia Ferreira, Fábio Peixoto, Renata Rikovisk, Regina Thaise, Noeli Nunes, Sandra Dower, Patrícia Teixeira, Bruno de Mesquita, Leandro Mota, Marcelo Araújo, entre tantas outras pessoas queridas. Agradeço a toda minha família, tias, tios, primos e primas espalhados pelas periferias, rincões e arrabaldes deste Brasil, um salve especial para a galera da Zona Leste- SP, Grajaú -ZS, Itaquaquecetuba e Bahia. Recorrendo a musicalidade e sabedoria da saudosa Clementina de Jesus, nossa Rainha Ginga, Rainha Quelé, mulher negra e periférica, que cantarolava “Não vadeia Clementina! Fui feita pra vadiar”, Clementina realizava assim, uma afronta de poética potente, a lógica que desumaniza as pessoas. Desta forma, agradeço a todas a mulheres bravas que não se curvam diante da opressão desta sociedade racista, falocêntrica e cishetenormativa. Agradeço aos movimentos sociais, pelas lutas contra a opressão, por expandir a possibilidade de inserção social e fazer valer os direitos de acesso a uma vida digna em todos os aspectos, entre os quais, ingressar em uma faculdade e ter a oportunidade de fazer um mestrado. Agradeço a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp - Araraquara) pelo acolhimento e oportunidade de ingressar no mestrado, aos que me abriram a porta Prof. Dra. Márcia Cristina Argenti Perez e ao Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro. Aos professores e professoras participantes do programa de pós-graduação em Educação Sexual e as companheiras e companheiros de curso pela generosidade e amorosidade, possibilitando a busca pela práxis necessária. Agradeço a Prof. Dra. Maria Filomena Teixeira do Instituto Politécnico, Coimbra, Portugal, pelo acolhimento e cordialidade. Estendo meus agradecimentos a USP, UNIFESP e UFAL, universidades públicas onde estudei e fiz muitos amigos e amigas. Agradeço as escolas públicas que fazem parte da minha trajetória como profissional da educação seja como professor de Geografia ou como Coordenador Pedagógico. Agradeço ao coletivo Mães Pela Diversidade, que luta pela garantia dos direitos das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, Não- binários (LGBTQIA+). Especialmente a Luciene Angélica Mendes que me apresentou o grupo, compartilhando com as escolas seus conhecimentos. Agradeço a Maria Fernanda Oliveira e a Beatriz Nascimento Gonçalves, pela amizade, cordialidade e profissionalismo, imprescindível para organização e revisão deste trabalho. Agradeço a Cora Noemi Nuñes Monzon, pela delicadeza, amizade e profissionalismo que possibilitou compreender de maneira afetiva a língua espanhola, materializando minha aprovação no exame de proficiência. Agradeço amiga Irene Izilda, pela inspiração de que o conhecimento e a luta andam de mão dadas, minha referência nos estudos antirracistas e interseccionais. Agradeço ao amigo Anderson Acioli, Bruna Acioli, Célia Regina, Alexsandro Rodrigues e Cesar Roberto pelas leituras e devolutivas acerca da pesquisa. As minhas amigas companheiras de trabalho na coordenação Joice e Dora pela parceria e incentivo. Agradeço as companheir@s de escrita, diálogos e afetividade nos vários trabalhos acadêmicos deste mestrado em Educação Sexual, envolvidos em muita admiração e ativismo, Marcos Ribeiro, Paula Comparini e Debora Antonon Silvestre, estarão sempre no meu coração. Agradeço meu primo Demostenes (Ball), pelo suporte técnico de informática. Valeu pelos socorros e paciência. Agradeço os profissionais que buscam estabelecer uma REDE DE PROTEÇÃO que visam garantir Direitos Humanos e de aprendizagem das nossas crianças e adolescentes, compostos pelas Unidades Educacionais (UEs); Conselhos Tutelares; CRAS (Centro de Referência da Assistência Social); CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social); CAPS (Centro de Atenção Psicossocial); UBS (Unidade Básica de Saúde); Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (NAAPA) e Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão – CEFAI. Agradeço as famílias, estudantes (crianças e adolescentes), da comunidade escolar. O território é nosso lugar de afeto e transgressão. Agradeço as professoras e professores, à equipe da secretaria, auxiliares técnicos, limpeza, cozinha, segurança, estagiárias e estagiários, vocês são a escola. Agradeço a todos os departamentos e equipes técnicas da UNESP, sempre muito solícitos e cordiais. Agradeço a delicadeza e atenção das professoras Doutoras Dra. Verônica Lima dos Reis e Débora Cristina Fonseca por comprem minha Banca de Defesa como suplentes. Agradeço à Professora Doutora Priscila Carla Cardoso e o Prof. Dr. Vagner Sérgio Custódio por aceitarem compartilhar os seus saberes participando da minha Banca de Defesa, contribuindo de forma imprescindível para este trabalho. Muita gratidão, respeito e carinho ao meu Orientador, um amigo, o Professor Doutor Rinaldo Correr, que nos diálogos e trajetória abriu novos caminhos significados e sentidos para o estudo realizado. Nesta constituição de historicidade, afetos, significados e sentidos, agradeço o sonho partilhado. Os Yanomamis nos ensinam que o sonho mais bonito é aquele que possibilita a compreensão da palavra do outro. “Criança que anda de carrossel. O tablado com seus animais dóceis gira rente ao chão. Alcançou a altura em que melhor se sonha em voar. Começa uma música e aos trancos a criança, girando, distancia-se de sua mãe. A princípio ela tem medo de abandonar a mãe. Mas depois ela se dá conta de como ela própria é fiel. Ela reina como fiel soberano sobre um mundo que lhe pertence. Na tangente árvores e indígenas formam colunas. A mãe aponta de novo em um oriente. Em seguida surge da floresta virgem uma copa que a criança já vira há milênios tal como acaba de vê-la agora, no carrossel. Seu animal lhe é dócil: como um mudo Arion ela desliza sobre seu mudo peixe, um Zeus-touro em madeira sequestra-a como Europa imaculada. Há muito que o eterno retorno de todas as coisas tornou-se sabedoria infantil, e a vida um êxtase primordial do domínio, com a retumbante orquestração no centro como tesouro do trono. A música toca mais devagar, o espaço começa a vacilar e as árvores a se recordar. O carrossel vira um terreno inseguro. E surge a mãe, estaca solidamente cravada no chão sobre a qual a criança que aterriza lança as amarras de seus olhares”. Walter Benjamin (2002, p. 106). RESUMO Discutir e refletir sobre a questões de gênero e sexualidade na infância passa necessariamente pela compreensão das concepções de gênero e instituição escolar. Desta forma, torna-se fulcral ponderar sobre as mudanças dos conceitos e visões de mundo ao longo do processo histórico e na contemporaneidade, considerando assim, as diversidades, idiossincrasias, multiplicidades e pluralidades observadas nos primeiros anos do ensino fundamental. Para embasar os estudos e atingir os objetivos propostos neste trabalho, optou-se por uma revisão bibliográfica, fundamentada em um horizonte interdisciplinar nos estudos da História, Filosofia, Sociologia e Psicologia da Educação com ênfase nos estudos sociais da Infância, Educação Sexual e Formação Docente. Neste sentido, foi fundamental uma descrição crítica analítica de caráter qualitativo, com procedimentos metodológicos da Pesquisa-Trans-Formação, entrevista semiestruturada, coleta de registros e análise de dados, em que participaram duas professoras e crianças entre 6 a 8 anos que estão no ciclo de alfabetização. Mobilizamos, neste sentido, os referenciais teóricos da Psicologia histórico-cultural do Materialismo Histórico Dialético e da Pedagogia Crítica. A obtenção de dados e a articulação das análises ocorreram em diálogo com o referencial teórico e metodológico, compreendendo as especificidades da proposta dos núcleos de significação. A partir das entrevistas realizadas, inferimos e sistematizamos quatro núcleos de significação. A pesquisa se concentrou nos sentidos e significados, apreendidos por meio da palavra de apenas um sujeito, em um horizonte em que as interpretações elaboradas ao longo da pesquisa foram subsidiadas no entrecruzamento das observações advindas dos outros participantes. Analisamos, assim, a escola, a docência e a infância em suas reverberações com as questões de gênero e práticas pedagógicas, observando como, desde os primeiros anos na escola, as ações pedagógicas e o comportamento dos sujeitos podem reproduzir estereótipos, hierarquia de gênero e posturas sexistas. Neste sentido, o estudo propiciou a compreensão dos múltiplos aspectos do cotidiano escolar que passam pelas sutilezas do silenciamento e apagamento de corpos. Tais apontamentos impulsionam novas questões para outras práticas pedagógicas que sejam mais plurais, humanizadas e emancipatórias, que garantam os Direitos Humanos na valorização das identidades, diferenças e diversidade sexual. Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Práticas pedagógicas; Docência; Escola ABSTRACT Discussing and reflecting on issues of gender and sexuality in childhood necessarily involves understanding the concepts of gender and school institutions. In this way, it becomes crucial to consider the changes in concepts and worldviews throughout the historical process and in contemporary times, thus considering the diversities, idiosyncrasies, multiplicities and pluralities observed in the first years of elementary school. To support the studies and achieve the objectives proposed in this work, we opted for a bibliographical review, based on an interdisciplinary horizon in the studies of History, Philosophy, Sociology and Educational Psychology with an emphasis on the social studies of Childhood, Sexual Education and Teacher Training. In this sense, a critical analytical description of a qualitative nature was fundamental, with methodological procedures of Research-Trans-Training, semi-structured interviews, collection of records and data analysis, in which two teachers and children between 6 and 8 years old who are in the cycle of literacy. In this sense, we mobilize the theoretical references of historical-cultural Psychology, Dialectical Historical Materialism and Critical Pedagogy. Obtaining data and articulating analyzes occurred in dialogue with the theoretical and methodological framework, understanding the specificities of the proposal for the meaning cores. From the interviews carried out, we inferred and systematized four cores of meaning. The research focused on the senses and meanings, apprehended through the words of just one subject, in a horizon in which the interpretations elaborated throughout the research were supported by the interweaving of observations coming from the other participants. We therefore analyze school, teaching and childhood in their reverberations with gender issues and pedagogical practices, observing how, from the first years at school, pedagogical actions and the behavior of subjects can reproduce stereotypes, gender hierarchy and sexist stances. In this sense, the study provided an understanding of the multiple aspects of daily school life that involve the subtleties of silencing and erasing bodies. Such notes encourage new questions for other pedagogical practices that are more plural, humanized and emancipatory, which guarantee Human Rights in the valorization of identities, differences and sexual diversity. Keywords: Gender; Sexuality; Pedagogical practices; Teaching; School LISTA DE FIGURAS Figura 1 Ciranda na escola. Desenho realizado por Caíque, 6 anos ............................................ 21 Figura 2 Dia de visita. Desenho realizado por Joana, 6 anos ...................................................... 27 Figura 3 Menna joga bola. Desenho realizado por Bianca, 8 anos .............................................. 41 Figura 4 Desfile de moda. Desenho realizado por Rodrigo, 8 anos ............................................ 57 Figura 5 Brincando na chuva. Desenho realizado por Valéria, 6 anos ........................................ 71 Figura 6 Coração colorido. Desenho realizado por Ana, 6 anos ................................................. 83 Figura 7 Quadro 1 - Cronograma de dias e horários para realização da pesquisa de campo ...... 85 Figura 8 Esconde-esconde. Desenho realizado por Gustavo, 6 anos........................................... 96 Figura 9 Quadro 2 - Informações e elementos considerados apropriados para análise ............. 100 Figura 10 CURRÍCULOS: Povos Indígenas, Educação Antirracista e Povos Migrantes ......... 112 Figura 11 Conceitos Orientadores ............................................................................................. 116 Figura 12 As 17 ODS e os 5 P da Agenda 2030 ........................................................................ 117 Figura 13 ODS - Diálogos, Sujeitos, Diferença e Diversidade na Agenda. 30 ......................... 118 Figura 14 Vista da escola e território, EMEF Esperançar ......................................................... 120 Figura 15 Vista aérea do bairro e adjacências, EMEF Esperançar ............................................ 122 Figura 16 Projetos executados no contraturno. EMEF Esperançar ........................................... 123 Figura 17 Espaços internos e externos da EMEF Esperançar ................................................... 124 Figura 18 Eventos Culturais da EMEF Esperançar ................................................................... 125 Figura 19 Autorretrato produzido pelas crianças ....................................................................... 127 Figura 20 Leitura compartilhada ................................................................................................ 128 Figura 21 Roda de conversa e reflexão acerca das atividades ................................................... 130 Figura 22 Desenhos acerca do brincar, produzido pelas crianças ............................................. 131 Figura 23 O olhar das crianças acerca das brincadeiras (ser menino e ser menina) .................. 132 Figura 24 Quadro 3 - Aglutinação de indicadores em núcleos de significação ......................... 143 Figura 25 Quadro 4 - Núcleos de Significação 1 ....................................................................... 145 Figura 26 Quadro 5 - Núcleos de Significação 2 ....................................................................... 149 Figura 27 Quadro 6 - Núcleos de Significação 3 ....................................................................... 164 Figura 28 Quadro 7 - Núcleos de Significação 4 ....................................................................... 169 Figura 29 Demonstração infográfica dos resultados internúcleos ............................................. 178 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Instrumentos utilizados para obter as informações de acordo com os procedimentos metodológicos estabelecidos pelo estudo ..................................................................................... 91 Tabela 2 Aglutinação de pré-indicadores................................................................................... 136 Tabela 3 Aglutinação de indicadores ......................................................................................... 137 Tabela 4 Aglutinação de indicadores em núcleos de significação ............................................. 138 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANTRA Associação Nacional de Travestis e Transexuais APMF Associação de Pais e Mestres e Funcionários BNCC Base Nacional Comum Curricular CAPS Centro de Atenção Psicossocial CEFAI Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão CEU Centro Educacional Unificado COPED Coordenadoria Pedagógica CRAS Centro de Referência da Assistência Social CREAS Centro de Referência Especializado da Assistência Social DIPED Divisão Pedagógica DRE Diretoria Regionais de Educação. DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EMEF Escolas Municipais de Ensino Fundamental. H. A Hora Atividade IBDSEX Instituto brasileiro de Diversidade Sexual IBTE Instituto Brasileiro Trans de Educação JEIF Jornada Especial Integral de Formação LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LGBTQIAP+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais, Não-binários MPSP Ministério Público de São Paulo NAAPA Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem NEER Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais. NGD Núcleo de Gênero e Diversidade OAB Ordem dos Advogados do Brasil ODS Objetivo de Desenvolvimento Sustentável ONG Organizações Não-Governamentais. ONU Organização das Nações Unidas. PEA Programa Especial de Ação PPP Projeto Político Pedagógico RMESP Rede Municipal de Ensino da Cidade de São Paulo SME Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo STF Supremo Tribunal Federal UBS Unidades Básicas de Saúde. UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESP Universidade Estadual Paulista SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 16 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 21 2 OBJETIVOS ............................................................................................................... 26 2.1 Objetivo Geral ..................................................................................................... 26 2.2 Objetivos Específicos........................................................................................... 26 3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS ................................................................................ 27 4 QUESTÕES DE GÊNERO, INFÂNCIA E ESCOLA ............................................ 41 4.1 Aspectos pedagógicos nos primeiros anos do ensino fundamental ................. 42 4.2 Aspectos conceituais de gênero .......................................................................... 42 4.3 Universo Infantil, intencionalidades e ruptura................................................. 47 4.4 Contexto Institucional e pedagógicos nos primeiros anos do Ensino Fundamental .............................................................................................................. 51 5 SER MENINO E MENINA UMA VISADA HISTÓRICA .................................... 57 5.1 Diálogos atemporais e territoriais para além do binarismo ............................ 57 5.2 Concepções de Gênero ........................................................................................ 58 5.3 Ser Menino e Menina: Um Recorte Histórico .................................................. 63 6 EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS .................. 71 6.1 Educação para as Sexualidades numa Interlocução entre Redes ................... 72 6.2 Direitos Humanos, Escola e Rede de Proteção ................................................. 78 7 METODOLOGIA ...................................................................................................... 83 7.1 Delineamento Metodológico ............................................................................... 83 7.2 Procedimentos éticos ........................................................................................... 86 7.3 Procedimento de Coleta ...................................................................................... 87 7.4 Procedimento de Análise .................................................................................... 91 8 ESTUDOS E DISCUSSÃO ....................................................................................... 96 8.1 Educação para as sexualidades: um olhar sobre as pesquisas desenvolvidas no Brasil ........................................................................................................................... 97 8.1.1 Pesquisas e contribuições e reflexões acerca das práticas pedagógicas nos primeiros anos do ensino fundamental .................................................................... 97 8.1.2 Gênero e sexualidade, análises das produções e contribuições para práticas pedagógicas. .......................................................................................................... 100 8.1.3 Resultados e reflexões sobre a educação sexual e suas contribuições para o ensino fundamental ................................................................................................ 108 8.2 Educação para Sexualidades e as Questões de gênero no Currículo da Cidade de São Paulo ............................................................................................................. 110 8.3 Contexto do Estudo – território ....................................................................... 119 8.4 Tecendo encontros e diálogos ........................................................................... 126 9 SIGNIFICAÇÃO E ZONAS DE SENTIDO ......................................................... 135 9.1 Processos de Aglutinação e Sistematização ..................................................... 135 9.2 Pré-Indicadores ................................................................................................. 135 9.3 Agrupamento dos pré-indicadores em indicadores........................................ 139 10 ANÁLISE DOS NÚCLEOS DE SIGNIFICAÇÃO ............................................. 145 10.1 Núcleos de Significação 1 - Humanidade disposição e condições concretas de trabalho para saberes na prática pedagógica.: “Ter humanidade e disposição, porque a gente carrega, às vezes, 30 mundos diferentes em uma sala de aula. . 145 10.2 Núcleo de Significação 2 - Gênero sexualidade e práticas educativas no Ensino Fundamental para romper os silenciamentos: “Não se discute as relações e as questões de gênero na escola” ................................................................................. 149 10.3 Núcleos de Significação 3 – Mediações entre afetos e percepções no processo de Ensino- aprendizagem: “A passagem de tempo para eles é importante” ........ 163 10.4 Núcleos de Significação 4 - Potencialidades da infância e a necessária curiosidade pelo mundo: instrumentos mediadores na educação para diversidade. “desejo é que tenham sempre está curiosidade pelo mundo e que as famílias e a escola compreendam que cada criança tem um processo, uma história” .......... 169 11 ANÁLISE INTERNÚCLEOS ............................................................................... 178 12 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 187 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 193 APÊNDICES ............................................................................................................... 206 APÊNDICE A - MEMORIAL: A HISTORICIDADE DO SUJEITO, UMA OLHAR DA PROFESSORA CÍNTIA ACERCA DE SUA TRAJETÓRIA ..... 207 APÊNDICE B - PRÉ-INDICADORES ORGANIZADOS EM INDICADORES ADONTANDO OS CRITÉRIOS DESEMELHANÇA, COMPLEMENTARIDADE E CONTRAPOSIÇÃO .......................................... 209 APÊNDICE C - ALUTINAÇÃO DE PRÉ-INDICADORES ORGANIZADOS ADONTANDO OS CRITÉRIOS DE SEMELHANÇA, COMPLEMENTARIDADE E CONTRAPOSIÇÃO .......................................... 212 APÊNDICE D – AUTORIZAÇÃO APRESENTADA A DIRETORIA DA EDUCAÇÃO DO MUNICÍPIO ............................................................................. 222 16 APRESENTAÇÃO Nos constituímos no caminho, assim, compreendo-me aqui em uma dimensão que se confunde entre tempos, o passado, futuro e presente, sem necessidade de uma ordem sistemática. Agradeço imensamente a este momento por me desafiar a uma escrita que revela uma trajetória de muitas utopias, quebra de barreiras, desencontros e muitos encontros. Tive o privilégio de ser criado por mulheres, minha vó era minha mãe, uma matriarca baiana, de origem humilde e muita sabedoria ancestral, minha mãe era mãe e era pai, trabalhou incessantemente para criação e sustento da família, tinha uma irmã que era uma alegria escandalosa, mas partiu cedo, aos 18 anos, virou estrela, ficou encantada. Tinha muitas tias, muitas mulheres simples em tempos de transformação social, do não lugar e da busca por espaço. Também, tive tios, primas e primos, um irmão e uma irmã por parte de pai. Tenho uma filha e um filho que me ensinam muito, ela mulher lésbica feminista nas vivências de outras possibilidades, ele homem heterossexual sem a amaras do falocentrismo, com ambos, tenho aprendido muito. As mulheres sempre estiveram mais presentes em minha vida, nasci na periferia de São Paulo, onde as mulheres também são mais presentes, nas famílias e nas escolas. Nasci no auge da ditadura militar na década de 1970, passei minha adolescência em meio a abertura política, cresci junto da democracia que se instalava e pude conviver entre múltiplas perspectivas. Relacionado ao habitus, ao capital cultural e a necessidade de trabalhar, entrei tardiamente na Universidade, optei pelas humanidades, geografia, filosofia e pedagogia. Minha entrada no mestrado em Educação Sexual está relacionada em todo este contexto, já como professor de geografia, no ensino fundamental e médio na escola pública da cidade de São Paulo. Observei, na prática, as questões silenciosas e violentas relacionadas a raça, classe, gênero e território que grita nas ruas, observei que, apesar de todas as contradições, é na escola que encontramos algum espaço de discussão de maneira um pouco mais segura. Notadamente, a escola sempre foi um ambiente menos hostil que as ruas e interior de muitas famílias, não obstante, muitos exemplos relacionados a preconceitos e discriminações pude presenciar. Entre tantos, dois casos me chamaram a atenção: uma menina lésbica e um menino trans, estudantes do ensino fundamental, acompanhando os desdobramentos em suas vidas no ensino médio, ambos passaram por muitos percalços e obstáculos. A menina lésbica veio a se 17 evadir da escola e o menino trans, conseguiu, depois de muitos desafios, encontrar caminhos que contemplassem suas decisões. Neste ínterim, adentrando o período pandêmico, conheci uma integrante da Associação Mães pela Diversidade, uma organização não-governamental que reúne mães e pais de crianças, adolescentes e adultos LGBTQIA+, na ocasião, foi possível realizar uma formação sobre direitos humanos, diversidade, gênero e orientação sexual na escola, desde então procurei me aprofundar nos estudos sobre o tema. Como coordenador da escola, fui buscar os marcos legais sobre os temas e conhecer os documentos vigentes na rede de Ensino da Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo. Nesta rede de Ensino existe um núcleo de Gênero e Diversidade (NGD), que articula as relações de gênero, sexualidades e diversidade com foco na consecução da Educação Integral, da Equidade e da Educação Inclusiva. Desta forma, compreender as questões de gênero e sexualidade na escola, integrado às práticas pedagógicas, em conjunto com estudantes, famílias e comunidade escolar, pode ajudar a construir possibilidades e propostas mais autênticas e inclusivas ao longo do percurso, transcendendo e ampliando o espaço de intervenção dos profissionais de educação da escola e estabelecendo uma ponte que ao dialogar com um currículo bem estruturado, possa proporcionar o desenvolvimento de um Projeto Político Pedagógico (PPP) que, ao passar pelas discussões sobre igualdade de gênero e respeito à diferença humana, mobilize reflexões que além de sexual é também racial, social , econômica, filosófica, histórica e geográfica, abarcando deste modo, várias nuances da nossa cultura. Neste aspecto, o conceito de interseccionalidade utilizado há décadas pelo movimento negro feminista e cunhado pela intelectual Kimberlé Crenshaw é fundamental para compreender as muitas formas de opressão, marginalização, exclusão e silenciamento que respondem as estruturas de poder como o machismo, o patriarcado e o racismo que atravessam e atingem na encruzilhada aqueles que são considerados o outro do outro. Nesta chave, procuro escurecer minha escrita, objetivando, na práxis, um exercício de ‘escrevivência’, para utilizar um termo da Conceição Evaristo, evidenciando um exercício de luta contra os eixos de opressão relacionadas ao gênero, sexualidade, raça, etnia, nacionalidade, capacidades entre outras pluralidades identitárias, segue-se a importância dos movimentos feministas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, indígenas e classe trabalhadora. Neste sentido, 18 é fundamental falar em diferenças, nas múltiplas formas de existir, compreendendo que com esta lente buscamos a equidade. Vivemos um tempo de conflitos que emergiram de condições sempre existentes, mas que estavam latentes em nossa sociedade, comportamentos conservadores e historicamente excludentes. Após os anos de autoritarismo, conhecemos em 1988 uma nova constituição que abriu novos horizontes de direitos políticos, apesar das inúmeras conquistas a efetivação dos princípios da igualdade e da não discriminação, ainda está muito distante de se concretizar, especialmente após o avanço da extrema direita no Brasil, que nos últimos anos ganharam voz e poder político em todos os âmbitos da federação. Na escola, tais transformações foram acentuadas nestes tempos pandêmicos e fragmentados. Neste sentido, reafirmar e fortalecer as experiências coletivas em suas organizações pedagógicas são extremante salutares. De acordo com Novoa (2019) frente a estes desafios, a formação docente no contexto relacionado a sexualidade é fundamental, uma vez que a escola tem grande importância na formação dos educandos, como espaço privilegiado para promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de preconceito e discriminação. Assim, estabelecer e fortalecer critérios como o reforço na colaboração e cooperação entre os profissionais da educação, na diversidade de suas metodologias; no desenvolvimento de uma educação transformadora que inclua discutir assuntos relevantes como identidade, preconceito, sexualidade, gênero, homofobia, gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis são reflexões essências neste espaço. O conceito de gênero, por exemplo, exprime inúmeras dimensões com significados culturais assumidos pelo indivíduo, segundo Pelúcio (2014, p. 100) é preciso desnaturalizar, pensando gênero na seguinte chave (. . .) marca fundamental da nossa existência, não é um dado biológico e pronto, mas varia de sociedade, ao longo da história, e só pode ser entendido na sua dimensão política, sim, política porque tem a ver com relações de poder: quem manda, quem obedece, o que é verdade, o que não é. Enfim, para a gente poder entender o gênero em toda sua dimensão social, é preciso relacionar gênero com raça/etnia, classe social, pertencimento de geração, entre outras marcas de diferenciação social. Arroyo (2023) ao fazer uma discussão sobre a importância da escola em debates públicos 19 contemporâneos, discute acerca das interpelações possíveis relacionadas ao reconhecimento de outras vidas existentes e re-existentes que afirmam outras pedagogias, em um aprendizado que busca o valor ético, político e existencial. Sabendo-se membros de famílias, de coletivos sociais, étnico-raciais, de gênero em um sobreviver precário, ameaçado terão de aprender uma interrogação: Que resistências por vida são possíveis? Seus familiares, os coletivos de sua etnia/raça, gênero, classe social resistiram a condenados a um sobreviver precário, incerto, conseguiram re-existir por direito a vida justa? Impasses vividos por tantas crianças, adolescentes, jovens que aprendem de seus coletivos, famílias a lutar por vida, a re-existir em um estado de permanente ameaça de um sobreviver injusto. (Arroyo, 2023, p. 327). Toda esta dimensão política e cultural que percorre a existência, penetram as subjetividades das pessoas ao longo da vida, meninos e meninas desde cedo são influenciados por leituras e interpretações do mundo que determinam em jogos de linguagem, como o que devem ser e como se comportar. Diante disso, pensar sobre as questões de gênero desde a educação infantil é dar visibilidade para os corpos subalternizados, evidenciando-se assim, reflexões a respeito dos conceitos de infância e gênero, revelando principalmente a invisibilidade das meninas e um espaço privilegiado para os meninos. De acordo com Minella (2006) estas práticas foram moldando ao longo do tempo um processo de sexualização dos papéis sociais. O Universo infantil mudou muito ao longo da história, passamos por diversas transformações nos comportamentos e nas concepções sobre infância, que por sua vez, é um conceito amplo que aparece de diversas formas a depender do tempo histórico, espaço geográfico, classes sociais, etnias e culturas diferentes. No que tange a realidade brasileira, os desafios para a compreensão são múltiplos, basta pensar na dimensão territorial do país e sua grande pluralidade cultural. Instituições como família e escola exercem um papel considerável dentro das engrenagens sociais e políticas, no que tange o aparecimento da infância, desaparecimento, emancipação das crianças ou silenciamento, silêncio latente, silencio conflituoso e violento, porém sempre existente em nossa sociedade. Vale destacar 20 que as questões de gênero e sexualidade, ainda são tratadas de maneira binária, invisibilizando ainda mais os corpos e silenciando outras existências. Ressalto que o mestrado em Educação Sexual pela UNESP, tem contribuído de maneira inequívoca para meu desenvolvimento pessoal e aberto um horizonte de estudos que fortalecem e respaldam novas incursões sobre o tema de maneira mais sistematizada e aprofundada. Neste sentido, avançar em uma maior compreensão sobre as questões de gênero e sexualidade na escola, pode sedimentar um espaço de pensamento e intervenção das discussões sobre igualdade de gênero e respeito à diferença humana, mobilizando novas ações e reflexões, amparadas nos Direitos Humanos e cidadania. 21 1 INTRODUÇÃO Figura 1 Ciranda na escola. Desenho realizado por Caíque, 6 anos Nota. Fonte: Acervo do autor. Escrever requer uma certa solitude, mas este exercício ocorre em diálogos constantes com outras pessoas, pesquisas, livros e vivências. Talvez a grande beleza da escrita é nos refazermos constantemente em busca de novos sentidos para a existência. Clarice Lispector e Hilda Hilst consideravam a escrita um ato doloroso, mas extremamente necessário. Nesta jornada de aprender e compreender os fenômenos estudados, encontro-me com o processo de ‘escrevivência’ do qual fala Conceição Evaristo, escrevendo do individual ao coletivo a partir do lugar e das vivências. 22 Para a geógrafa Damiani (2007), é fundamental incorporar as relações com o espaço/lugar, na materialização das conexões de todas as ordens, compreendendo os encadeamentos afetivos em que os sujeitos se constituem. É nesta chave que nos últimos dez anos tenho vivenciado nas escolas onde trabalho e nas pesquisas mais recentes, um hiato persistente entre formação, currículo e práticas pedagógicas. No que tange as questões de gênero e sexualidade, articular estes estudos no processo de ensino- aprendizagem, apresenta-se como um caminho fundamental para combater preconceitos e discriminações. A sexualidade é um aspecto que acompanha o indivíduo durante toda sua vida. Sobre esse ponto, Maia (2008) observa que a sexualidade percorre todas as manifestações humanas. Dessa afirmação segue-se a importância política e existencial destes estudos em uma perspectiva plural, desde os primeiros anos da educação básica. Neste contexto, surgem questões sobre como promover reflexões e práticas no ambiente escolar, promovendo espaços sistematizados em que aos estudos acerca do gênero e sexualidade sejam reconhecidos como um direito de aprendizagem fundamental para o desenvolvimento afetivo, social, físico e cognitivo dos estudantes. Na esteira destas discussões segue outras, por exemplo, como romper estereótipos e promover a valorização das diferenças em meio as muitas formas de expressão. Tentar responder a estas questões é um esforço que visa valorizar uma pedagogia crítica e libertária que possibilite novas formas de ensino-aprendizado ao questionar com mais contundência os preconceitos e as discriminações, na perspectiva de estabelecer uma escola mais democrática, plural e cidadã. Sobre gênero, sexualidades e direitos humanos, avançamos em muitos documentos, marcos legais, currículos e legislações. Os Objetivos de Desenvolvimentos Sustentáveis (ODS), são um exemplo importante sobre orientações e compromissos, uma interlocução em redes que envolve diálogos entre a educação, a saúde e a justiça, saberes que possam garantir e subsidiar as discussões sobre Educação Sexual na escola. O desafio é como em meio a uma sociedade conservadora, estas questões, relacionadas aos direitos ainda não reverberam substancialmente na escola, promovendo silenciamentos e apagamentos de outras formas de existência. 23 Notadamente, é fundamental conscientizar as famílias, estudantes e profissionais da educação, para a construção de práticas pedagógicas que ao dialogar com os currículos, possam estabelecer objetivos comuns a serem trilhados entre todos os envolvidos na comunidade escolar. Toda uma dimensão, histórica, política e cultural percorre a existência, penetram as subjetividades das pessoas ao longo da vida. Assim, meninos e meninas, desde cedo, são influenciados por leituras e interpretações do mundo que determinam os jogos de linguagem, de ser e como se comportar. Segundo Ribeiro (2013), todos os tabus, preconceitos e comportamentos que compõe nossa cultura sexual vem sendo gestados desde colônia até os nossos dias, salienta também que, já nas primeiras décadas do século XX o Brasil conheceu alguns períodos de grande expressão na Educação Sexual, marcadas por estudos e intensa produção de livros e artigos sobre educação sexual, movimento que de acordo com o autor, viria a ser igualado apenas aos anos de 1990 à 2012, ocorre que estamos presenciando um período de grande retrocesso, percebido especialmente nos últimos 10 anos. Saul e Silva (2009), lembram que desde o legado de Paulo Freire, objetiva-se políticas de currículo e formação de educadores para uma escola pública popular e democrática. Neste processo, Gemignani (2012) reforça que passamos desde então, por inúmeras propostas, desafios e novas metodologias de ensino-aprendizagem que buscaram alcançar uma formação mais abrangente do sujeito em seus mais variados aspectos, no entanto, percebemos que ainda hoje, muitos obstáculos se impõem no cotidiano das escolas. Neste sentido, ao ser investigado um conceito em seus posicionamentos teóricos, procura- se transcender a esfera do senso comum. No âmbito escolar, no universo infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental, muitas questões, como hierarquia de gênero e posturas sexistas, são observadas nos fazeres cotidianos. Considerar o prisma da interseccionalidade no contexto escolar, pode contribuir para a compreensão da realidade institucional escolar e promover práticas que sejam mais plurais, humanizadas e emancipatórias. Intelectuais do movimento negro feminista como Gonzales (1984), Crenshaw (2002), Carneiro (2011), Collins (2015), Evaristo (2017), Davis (2018), Akotirene (2019), Kilomba (2020), compreendem a interseccionalidade como um eixo de opressão que se sobrepondo ao outro se cruzam e se potencializam. Duarte, Oliveira e Inácio (2021) trazem uma explicação extraída do 24 pensamento de Kimberlé Crenshaw, nos lembrando que o conceito de interseccionalidade foi cunhado por esta intelectual estadunidense. De forma didática e objetiva, utiliza uma metáfora da intersecção, fazendo uma analogia sobre vários eixos de poder, sendo eles, raça, gênero, classe, sexualidade, nacionalidade e território, entre outros, que constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através destas avenidas que as dinâmicas de opressão se movem. Essas vias são por vezes, definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes. Em outras palavras, o racismo, é distinto do patriarcado, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas frequentemente, se sobrepõe e se cruzam, criando intersecções complexas, nas quais dois ou mais eixos se entrecruzam e se potencializam. (Duarte, Oliveira e Inácio, 2021, p. 163). Vale destacar que, criar um conceito compreende o liame entre a necessidade de revelar o problema e a exposição em seus desvelamentos. O conceito de gênero passa por significados e expectativas que buscam definir o sexo atribuindo diferenças entre masculino e o feminino. No entanto, o conceito tem um espectro muito mais alargado do que as atribuições binárias. Assim, quando pensamos o conceito de gênero em sua diversidade e interseccionalidades imergimos em aspectos de imbricações, multiplicidades, pluralidades e emergimos assim no tempo histórico e no espaço geográfico, dialogando com classe, raça, etnia, entre as inúmeras questões sociais e culturais. O presente trabalho busca ressaltar a importância política e ontológica de se estudar as questões de gênero e sexualidade em uma perspectiva plural, essencial para compreendermos que tais manifestações atravessam todas as fases da vida dos indivíduos. Nestes aspectos pensar a igualdade de gênero nas escolas desde o Ensino básico fornece elementos imprescindíveis nesta jornada estreitamente ligada aos Direitos Humanos e aos Direitos de Aprendizagem, tratando a educação sexual desde os primeiros anos da vida escolar, com temas relacionados ao gênero incluídos nos projetos políticos pedagógicos a fim de garantir que estes objetivos sejam alcançados De acordo com Damiani (2002), apesar dos afetos, desejos e gostos estarem submetidos a necessidades, programações e satisfações que definem a base das novas alienações, ainda assim o 25 cotidiano amplia as possibilidades de compreensão das relações entre indivíduos e grupos, incluindo a subjetividade, as emoções, os hábitos e os comportamentos. 26 2 OBJETIVOS 2.1 Objetivo Geral Neste contexto, o estudo proposto tem como objetivo refletir sobre as intencionalidades docentes e os sentidos produzidos acerca do processo de ensino-aprendizagem de temáticas relacionadas à questão de gênero. Visando identificar, compreender e analisar as práticas educativas dos(as) profissionais nestes primeiros anos do Ciclo de Alfabetização 2.2 Objetivos Específicos • Caracterizar os processos acerca das questões de gênero no espaço escolar • Analisar as reverberações acerca das questões de gênero e sexualidade nas práticas pedagógica; • Refletir acerca de uma educação emancipadora que garanta os Direitos humanos e o Direitos de aprendizagem das crianças e adolescentes. 27 3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS Figura 2 Dia de visita. Desenho realizado por Joana, 6 anos Nota. Fonte: Acervo do autor. O presente estudo buscou, dentro dos limites espaços temporais estabelecidos, capturar os processos e práticas pedagógicas acerca das questões de gênero e sexualidade nos primeiros anos do ensino fundamental, em função dos objetivos deste estudo mobilizamos as contribuições de referencial teórico da psicologia histórico-cultural, somadas a sociologia da Infância e a pedagogia crítica. No que diz respeito à importância das questões relacionadas as práticas pedagógicas e ao aprimoramento da aprendizagem pelas crianças, as propostas curriculares estão intrínsecas nas relações concretas, e a escuta da voz dos autores envolvidos, no caso os estudantes e professoras 28 do Ensino Fundamental são elementares. Paulo Freire salienta que não existe docente sem discente, mas destaca também que ensinar exige rigorosidade metódica entre todos os envolvidos, neste ponto o autor observa que (. . .) nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinado, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos. (Freire, 2021, p. 26). O processo de formação e aprendizagem ocorre simultaneamente, e surge de todos os lados, neste processo, o professor sempre aprenderá ao ensinar, e nesta sua peculiaridade, volta-se continuamente para a didática, práxis fundamental e elementar para o desenvolvimento do trabalho do ensinar e do aprender. Uma pedagogia da práxis compreende uma relação estreita com uma ação transformadora, uma relação dialética entre teoria e prática. Ainda com relação a categoria da práxis, Vázquez (2007, p. 237) compreende que A práxis se apresenta como uma atividade material, transformadora e adequada a fins. Fora dela, fica a atividade teórica que não se materializa, na medida em que é atividade espiritual pura. Mas, entretanto, não há práxis como atividade puramente material, isto é, sem a produção de fins e conhecimentos que caracteriza a atividade teórica. Isso significa que o problema de determinar o que é práxis requer delimitar mais profundamente as relações entre teoria e prática A educação pensada por Freire (2021) é essencialmente humanizadora e, por isso, necessariamente dialética, recorre a todo o momento a uma provocação e problematização da realidade, de tal forma que o professor em processo contínuo de formação deve passar pelos currículos, sem perder a dimensão que enxergue os estudantes e a si mesmo como seres humanos múltiplos de intencionalidade e possibilidades de reflexão, sem as quais, perde-se o diálogo, e desumaniza-se as relações. “A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para 29 transformá- lo. Sem ela é impossível a superação da contradição opressor-oprimido”. (Freire, 2023, p. 52). Neste contexto, a pedagogia freireana, ao considerar mediações sociais realizadas a partir dos lugares sociais dos sujeitos em suas circunstâncias espaço temporais, dialoga diretamente com a teoria histórico-cultural de desenvolvimento humano, para Vigotski (2010) as mediações sociais são medulares na gênese social do indivíduo. Os sujeitos desta pesquisa são professoras e crianças do Ensino fundamental, segue um esmero em considerar tanto as questões de gênero, quanto a relação entre adultos e crianças em uma perspectiva histórica cultural. Neste sentido, importa conhecermos o universo da criança e considerar seus afetos e subjetividades em uma relação em que o objeto e o método de investigação devam estar articulados. Mello (2007) lembra-nos acerca das discussões sobre o processo de construção da infância nos últimos dois séculos. Desta forma quando consideramos que atualmente cada vez mais as crianças passam parte considerável do seu dia na escola, especialmente as que estão matriculadas na Educação Básica, salta a importância de refletir sobre tais questões. Levando em consideração as inúmeras variáveis que, às vezes, se encontra no interior do mesmo espaço cultural, e a diferenciações entre o mundo adulto e infância produzidos especialmente na modernidade ocidental que estabeleceu uma ideia universal da infância, Sarmento aponta que As diversas imagens sociais da infância frequentemente sobrepõem e confundem o mesmo plano de interpretação prática dos mundos das crianças e na prescrição de comportamentos e normas de atuação. Não são compartimentos simbólicos estanques, mas dispositivos de interpretação que se revelam, finalmente, no plano da justificação dos adultos com as crianças. A busca de um conhecimento que se desgarre das imagens constituídas e historicamente sedimentadas não pode deixar de ser operada senão a partir de um trabalho de desconstrução dos seus fundamentos, essa perscrutação da sombra que um conhecimento empenhado no resgate da infância é chamado fazer. (Sarmento, 2007, p. 33). Neste aspecto, Freire (2023, p. 144), ao ser indagado a respeito da curiosidade e a criatividade da criança, responde que 30 As crianças começam a vida como seres curiosos. Elas fazem perguntas constantemente. Depois elas vão para escola e as escolas começam a matar lentamente sua capacidade de ser curiosa. Um maravilhoso capitulo da vida da criança, iniciado na infância, é encerrado. Seu fim começa assim que ela pisa na sala de aula, especialmente se a criança é considerada “minoria”. Hoje em dia, a questão que enfrentamos é como usar a curiosidade como um instrumento fundamental no processo de aprendizagem. Inegavelmente, muitos trabalhos, estudos e práticas que buscam quebrar a hierarquia de gênero tem sido desenvolvido pelos profissionais da educação nas escolas. Hegel (1997) em uma famosa passagem do livro Princípios da Filosofia do Direito dizia que “a coruja de Minerva levanta voo ao cair do crepúsculo” em uma analogia possível, compreendo que os acontecimentos nem sempre são percebidos na superfície da história. O símbolo de origem africana de nome Sankofa é um dos Adinkras que também valorizam o passado, representado por um pássaro que ao olhar para traz, nos ensina o valor de aprender com o passado olhando para o presente na construção de um futuro melhor. Utilizando a sabedoria destas duas tradições, podemos mergulhar em muitos trabalhos, reflexões e ações que vem sendo construídos nas escolas, na academia e em movimentos sociais. Estudos que demandam de um tempo para emergir como práticas políticas, pedagógicas e constituição de direitos. Assim, mesmo que, muitas vezes não vejamos, tais movimentos existem. Destarte, destacamos neste trabalho a importância das pesquisas, livros e estudos que retroalimentam a engrenagem entre teorias e práticas. Para este estudo, a categoria historicidade é fundamental, especialmente quando mobiliza aspectos relacionados ao movimento dialético de mediação e consciência “Tal categoria nos permite olhar para a realidade e pensá-la em movimento e, mais do que isso, apreender seu movimento” (Aguiar & Ozella, 2013, p. 304). Os sujeitos se constituem e são constituídos, nos complexos espaços das relações sociais, no modo pensar, agir e sentir na interação historicidade e consciência. Novamente, nota-se a importância das experiências anteriores, daqueles que vieram antes e da interação entre os sujeitos. Vigotski (2009, p. 65) tendo em vista a historicidade, as relações sociais e a consciência, aponta que 31 O homem não se serve apenas da experiência herdada fisicamente. Toda nossa vida, o trabalho, o comportamento baseiam-se na utilização muito ampla da experiência das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência que não se transmite de pais para filhos através do nascimento. Convencionaremos chamá-la de experiência histórica. Junto disso deve se situar a experiência social, a de outras pessoas, que constitui um importante componente do comportamento do homem. A categoria historicidade é constitutiva do método materialista dialético e da Psicologia histórico-cultural empregadas neste trabalho, pois permite pensar a realidade em movimento. Ainda nos detendo nas categorias que foram essenciais para a perspectiva adotada, destacamos a categoria mediação, essencial para romper as dicotomias, permitindo pensar a subjetividade para além do imediato e do aparente, operando como centro organizador das relações. Desta forma, intrinsicamente ligada a historicidade, encontra-se a mediação, que (. . .) nos permite romper as dicotomias interno/externo, objetivo/subjetivo, significado/sentido, assim como nos afastar das visões naturalizantes, baseadas numa concepção de homem fundada na existência de uma essência metafísica. Por outro lado, nos possibilita uma análise das determinações inseridas num processo dialético, portanto não causal, linear e imediato, mas no qual as determinações são entendidas como elementos constitutivos do sujeito, como mediações (Aguiar & Ozella, 2013, p. 301). A categoria mediação também nos possibilita entender, outras categorias fundamentais para este estudo, como pensamento e linguagem e as noções de significado e sentido. Notamos como apesar de diferentes um elemento constitui o outro mantendo sua singularidade. Aguiar & Ozella (2013, p. 303), reflete sobre este aspecto considerando que Dessa forma, para que se possa compreender o pensamento, entendido aqui como sempre emocionado, temos que analisar seu processo, que se expressa na palavra com significado, e, ao apreender o significado da palavra, vamos entendendo o movimento do pensamento. Temos assim que a relação pensamento/linguagem não pode ser outra que não de uma 32 relação de mediação, na qual ao mesmo tempo que um elemento não se confunde com o outro, não pode ser compreendido sem o outro, onde um constitui o outro. Por sua vez, pensar na relação pensamento/linguagem, passa, necessariamente, por duas categorias centrais para as análises deste trabalho, as categorias de significado e sentido, “(. . .) apesar de serem diferentes, de não perderem sua singularidade (fato que nos leva a discuti-las separadamente), não podem ser compreendidas descoladas uma da outra, pois uma não é sem a outra.” (Aguiar & Ozella, 2013, p. 301). O tema ‘pensamento e linguagem’ aparece em primeiro plano ao longo da obra de Vigotski (2009, p. 10), compreendendo que o pensamento é um processo mediado que se realiza no significado da palavra, “ele é ao mesmo tempo linguagem e pensamento porque é uma unidade do pensamento verbalizado”. Os significados são estáveis e se referem aos conteúdos instituídos, fixos e compartilhados pelos sujeitos, apropriados a partir de suas próprias subjetividades. Aguiar & Ozella (2013) considera os significados como ponto de partida para compreensão do sujeito. De acordo com Aranha (2015, p. 57) Os significados podem ser compreendidos como generalização ou conceito, como produções históricas e sociais que permitem a comunicação e a socialização das experiencias, compartilhadas socialmente. Neste sentido, os significados são ais estáveis e dicionarizados que os sentidos e dizem respeito a conteúdos instituídos e mais fixos. No entanto o próprio significado está em constante evolução no movimento de comunicação entre os indivíduos. Com relação aos sentidos, podemos dizer que esta categoria, aproxima-se mais da subjetividade, pois expressa com mais precisão os aspectos relacionados aos processos cognitivos, afetivos e biológicos. Aguiar & Ozella (2013, p. 305) ressalta que o sentido se relaciona com a necessidade que mobiliza o sujeito, para os autores o sentido é muito mais amplo que o significado “A categoria sentida destaca a singularidade historicamente construída.” Nesta medição entre sentido e significado, em que uma categoria não é nada sem a outra, Vigotski (2009, p. 465) reflete a correlação entre elas 33 Assim o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. Como se sabe, em contextos a palavra muda facilmente de sentido. O significado, ao contrário é um ponto imóvel e imutável que permanece estável as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos (. . .) o significado é apenas uma pedra no edifício do sentido. Ao longo deste trabalho a dimensão da subjetividade e afetividade se constituiu como fator de grande importância acerca da percepção das relações que se desenvolvem na escola. Vale ressaltar que a dimensão afetiva é fundamental na constituição dos sentidos e por conseguinte da subjetividade, Vigotski (2009, p. 15-16) menciona que Quando falamos do pensamento e da linguagem com outros aspectos da vida e da consciência, a primeira questão a surgir é a relação entre o intelecto e o afeto (. . .) quem separou, desde o início o pensamento do afeto fechou definitivamente para si mesmo o caminho para explicação do próprio pensamento. Como já foi mencionado, falar de sentido é falar de subjetividade, para Gonzáles Rey (2004, p. 53) “A categoria de sentido favorece uma representação da subjetividade que permite entender a psique não como resposta, nem como reflexo do objetivo, e sim com uma produção de um sujeito que se organiza unicamente em suas condições de vida social, mas que não é o efeito linear de nenhuma dessa condições”. O universo das crianças e adolescentes são múltiplos, pois tem um espectro de preocupações demasiado extenso. Dentre tantos desafios, temos uma sociedade desigual que produz exclusões, que silenciam os sujeitos e invisibilizam as diferenças e as diversidades. Destacamos assim, que em nossa contemporaneidade, as questões educacionais tem como um dos grandes compromissos, a consolidação de uma Educação para as Sexualidades que rompa com as desigualdades e as hierarquias impostas pela educação sexista. 34 As desigualdades precisam ser desnaturalizadas, a escola dever oferecer espaços para a fala significativa do sujeito, valorizando as várias formas de ser criança e adolescente. Neste contexto educacional, pensar os sujeitos é também pensar e enfatizar o caráter social e o processo histórico das relações de gênero na sociedade e dentro da escola. Verificamos que no cotidiano escolar o sujeito se constitui no curso do contraditório na relação entre sua subjetividade e a sociedade. Gonzáles Rey (2003, p. 235) considera que O sujeito em sua processualidade reflexiva intervém como momento constituinte de si mesmo e dos espaços sociais em que atua, a partir dos quais pode afetar outros. O sujeito representa um momento de subjetivação dentro dos espaços sociais em que atua e, simultaneamente é constituído dentro desses espaços na própria processualidade que caracteriza sua ação dentro deles, a qual está comprometida direta ou indiretamente com inúmeros sistemas de relação. Percebe-se como, historicamente, nas interações sociedade-sujeito se constituem as definições de masculino e feminino, acerca dos papeis estabelecidos para os homens e mulheres, definindo conceitos e comportamentos que passam a fazer parte do imaginário das pessoas, fortalecendo uma visão de mundo em detrimento de todas as outras, que formuladas em discursos hegemônicos, estabelecem “instituições definidoras: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória”. (Butler, 2017, p. 10). Para Blutler (2017, p. 79), a heterossexualidade compulsória e o falocentrismo são compreendidos como regimes de poder/discurso. Com relação a instituição de uma heterossexualidade compulsória a filosofa aponta uma naturalização que regula o gênero em uma relação binaria que atende aos objetivos reprodutivos Numa linguagem difusamente masculinista, uma linguagem falocêntrica, as mulheres constituem o irrepresentável. Em outras palavras, as mulheres representam o sexo que não pode ser pensado, uma ausência e opacidade linguísticas. Numa linguagem que repousa na significação unívoca, o sexo feminino constitui aquilo que não se pode restringir nem designar. 35 Notadamente sem este olhar crítico, as lacunas tendem a se alargar. Neste sentido, a presente pesquisa compreende uma abordagem reflexiva sobre as práticas pedagógicas no Ensino Fundamental, na intencionalidade de ampliar os olhares acerca dos estudantes e comunidade escolar, uma vez que a Educação Sexual em específico e a Educação de modo geral, mesmo que não formalmente, acontece na interação entre os sujeitos e os múltiplos espaços. Neste contexto os meios de comunicação é um outro espaço fulcral que contribui para o imaginário das questões relacionadas ao gênero. Toda esta gama de complexidade, ganha neste contexto, um tratamento de uma didática multidimensional que dialoga firmemente com uma práxis social autorreflexiva e necessária no processo de ensino-aprendizagem. De acordo com Candau (1983) este processo de ensino- aprendizagem requer uma profunda compreensão e articulações mais consistentes entre as dimensões humana, técnica e político-social, uma vez que, de forma direta ou indireta, está sempre presente no relacionamento humano. De acordo com Marques e Teixeira (2012, p. 17), as mídias fazem circular em seus meios, dispositivos culturais que criam obstáculos para uma melhor compreensão da sexualidade e das questões de gênero, os autores citam algumas características que criam efeitos nefastos no imaginário das pessoas (. . .) os níveis de verdade das mensagens; a confusão entre ficção e realidade; a deturpação e efabulação do quotidiano; a desadequação de alguns conteúdos televisivos, filmes e websites para crianças; a influência dos media nos pensamentos e nas crenças; as mensagens irrealistas sobre género, amor, parentalidade e casamento; o recurso a estereótipos e preconceitos relativos a determinados grupos sociais; o papel das famílias e demais pessoas adultas na elucidação e escolha dos conteúdos destinados às crianças e jovens; a importância da tomada de decisão; a prevalência de normas heterossexuais; os riscos das redes sociais virtuais; a relevância dos modelos positivos de relacionamento e sexualidade; o reconhecimento da importância das reações cívicas aos estereótipos sexuais “naturalizados” no espaço público. Compreende-se assim, uma articulação profícua entre o campo educacional no qual estamos inseridos e a pesquisa que foi desenvolvida. Notoriamente, mesmo considerando outros 36 espaços, é na comunidade que estão os principais atores sociais envolvidos neste contexto, são eles os principais agentes de transformação, precisamos ouvir as vozes nos diferentes territórios, lugar em que os sujeitos constituem sua subjetividade. As escolas que transcende os muros possibilita a escuta das crianças e adolescentes entre todos os sujeitos envolvidos. Para Milton Santos (2008) é no território, lugar cotidiano que dialeticamente nos eixos das sucessões se funde as relações de afeto, coexistência e a noções espaço/temporais. No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (Santos, 2008, p. 322). Neste horizonte, na expectativa de dinamizar as discussões e reflexões sobre a estrutura organizacional, as normas e o cotidiano escolar, torna-se imprescindível que instâncias como Conselho de Classe, Conselho escolar, Associação de Pais e Mestres (APM,) Grêmio Estudantil, seja incentivado desde a Educação Básica, como por exemplo, a criação de espaços como Conselho Mirim, onde as crianças possam se expressar, discutir, refletir sobre suas percepções e desejos. Compreendermos que a articulação destas questões, requer um olhar cuidadoso sobre os interesses dos estudantes e suas questões mais latentes, dialogando na construção de práticas pedagógicas democraticamente pensadas com currículos que possam estabelecer uma aproximação estreita entre teoria e prática, contemplando as discussões que abordam a violência baseada no gênero como uma violação de direitos humanos, construindo assim, uma dialética de enfrentamento, que consiga expandir as possibilidades de uma participação efetiva e realmente protagonista dos estudantes desde os primeiros anos da Educação Básica. Busca-se, assim, uma práxis em que o professor consiga transformar a si mesmo e contribua também para transformação qualitativa do ensino-aprendizagem que amplie a 37 consciência da realidade objetiva, apropriando-se da realidade social dos estudantes, da escola e da comunidade. Nas escolas o Projeto Político Pedagógico (PPP), é um documento que reúne os objetivos, metas e diretrizes de uma unidade educacional, de maneira que pode proporcionar caminhos transformadores no processo educativo, contemplando os saberes científicos e sociais rumo à diversidade e respeito às diferenças. Neste horizonte imerso em um contexto educacional, quando pensamos na infância, sabemos da grande responsabilidade não só com o desenvolvimento das crianças, mas com a “continuidade do mundo". (Arendt, 2005, p. 235). Todos estes processos estão imersos em um sistema global, que nos dizeres de Santos (2008), apresenta sua tripla engrenagem, ora como fábula, ora como perversidade, ora como possibilidade. A educação, atinge, mas também é afetada pelo mundo, é uma relação mediada, por isso nunca acabada e resolvida, assim, esta relação deve ser sempre repensada de maneira contínua em um mundo em constante transformação. Hoje atingida de maneira mais direta pela pandemia e pelas tecnologias, a escola continua sendo um lugar de convergência por onde passam todas as potencialidades e crises do mundo contemporâneo. Em meio a pluralidade cultural, social e econômica do país em suas múltiplas faces territoriais, Azanha (2004) lembra que a escola de hoje, não é um mero retrocesso da escola de ontem, pois, está imersa uma miríade de acontecimentos, crise, mudanças sociais, políticas e econômicas. Foucault (1984) ao fazer uma análise quanto as instituições, apontava que a crise está presente nos interstícios das instituições modernas. Foi nesta chave, que o autor buscou compreender a escola permeada pelas discussões em torno de uma crise-reforma que se retroalimenta ao constituir as configurações das práticas educacionais. Compreendemos, assim, que se quisermos uma educação melhor, teremos que construí-la juntos, sabendo de antemão dos possíveis deslizamentos e deslocamentos necessários. A monocultura escolar, que ainda persiste em muitos espaços, e que não leva em consideração as pluralidades e diversidades do mundo das crianças e adolescentes, precisam se abrir para uma concepção multiculturalista, quebrando barreiras, estigmas e estereótipos, incrustadas nas interior das instituições de ensino, reveladas em suas várias facetas. De acordo com Resende (2013, p. 35) “essas diferenças acabam se transformando e transvestindo de forma a se constituírem em um bloco justificador de discriminações. Conceitos de normalidade e anormalidade, do que é comum e diferente, mistura enquanto os estereótipos, 38 desejáveis, adquirem uma supremacia quase absoluta”. Neste cenário de disputas é imperioso evidenciar que Os espaços culturais tem se constituído em frequentes focos de luta, de diferenças e disputas de poder absolutamente desiguais não em sua essência, isto é, não se voltando as diferenças absolutas, mas aquelas relativas a certos aspectos ou certas combinações de alguns deles, como, por exemplo, o político, o racial, o religioso, de gênero, de classe social, entre outros. (Resende, 2013, p. 35). Neste contexto, esta pesquisa buscou uma compreensão das mudanças conceituais relacionadas às reflexões e ações das abordagens de gênero nas escolas, reconhecendo a diferença em meio a uma pluralidade que garanta os direitos constitucionais na luta por mais espaços democráticos que promovam as equidades e a integridade dos sujeitos Compreendemos e reiteramos nesta pesquisa, o espaço educacional como um lugar de transformação social e diversidade social, diálogos e ações horizontais no acolhimento a todas formas de expressão e existência. Nesta perspectiva, Longaray (2014, p. 11) salienta que: A escola é um espaço de aprendizagens, de conhecimentos, de interações, mas, para muitas pessoas, ela tem se tornado local de recusa, de exclusão, de rejeição, de tristeza, porque nela muitas subjetividades são marginalizadas, reprimidas e ignoradas, tais como as homossexualidades, as bissexualidades, e principalmente as travestilidades e as transexualidades. Assim, é fundamental avançar em direção às questões prementes que buscam na construção curricular as garantias necessárias para uma Educação em que as sexualidades e as questões de gênero, sejam inseridas desde os primeiros anos da educação básica. Neste horizonte, busca-se uma compreensão mais significativa dos conceitos sobre gênero e sexualidade na infância, enfatizando para tanto as práticas pedagógicas desenvolvidas nos primeiros anos do ensino fundamental, especialmente nos ciclos de alfabetização. Salientando, neste processo, reflexões quanto às aprendizagens e vivências das crianças. 39 Destarte, nestas circunstâncias em que a instituição escola se apresenta, as questões relacionadas as infâncias são ainda mais desafiadoras, fundamental neste horizonte as contribuições das pesquisas atuais e dos estudos relacionados às práticas pedagógicas que promovam rupturas com os sistemas de opressão, possibilitar novas políticas, ambientes e propostas em que todo os corpos sejam respeitados. Importa destacar, o quanto é fundamental compreender estas questões conceitualmente, infância, gênero, sexualidade, instituição escolar e todas as relações que se desdobram no encontro destes termos e descortinam as dimensões do cotidiano das crianças que adentram as instituições escolares. Em vista disso, Larrosa (1998), considera que "a educação é o modo como as pessoas, as instituições e as sociedades recebem ou respondem à chegada daqueles que nascem”. As questões de gênero e sexualidade são muito complexas e exigem muita dedicação, estudo e sensibilidade, requer também uma postura política e ética sobre as manifestações da sexualidade na infância e de novas práticas pedagógicas que rompam a hierarquia de gênero, a violência simbólica e os silenciamentos. Em consonância com Münchov (2021) a matriz cisgênera, nas relações de poder-saber, coloca os sujeitos na condição de tolerados e silenciados. Os discursos entre feminino e masculino estabelecem posições hierárquicas de gênero e inculca silenciamentos. Para Foucault (1996, p. 17) os discursos também produzem a realidade apoiando-se em instituições que operam sistemas de exclusão “(. . .) pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.” Ao nos colocar nesta jornada, a presente pesquisa nos recolocou em novas plataformas de análises, horizontes e práxis. Perspectivas que exigem a defesa da dignidade humana, nas palavras de Freire (2021, p. 98) em concordância com Marx, requerem uma necessária radicalidade, Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, de comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a transgressão como um direito, mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos lutar e não diante da qual cruzar os braços. 40 Assim, mostrou-se fundamental perceber os desafios, as novas trilhas e interpostos colocados no caminho, intencionando aproximar os profissionais da educação, os estudantes e as famílias na construção que viabilize práticas pedagógicas que dialogam com os currículos e estabeleçamos objetivos comuns a serem trilhados entre todos os envolvidos. Destarte, sendo parte do desenvolvimento humano, a sexualidade na infância está presente desde os primeiros anos de vida, constituindo um compromisso que deve ser inalienável pela defesa dos Direitos Humanos e na garantia dos Direitos de Aprendizagem das crianças. 41 4 QUESTÕES DE GÊNERO, INFÂNCIA E ESCOLA Figura 3 Menina joga bola. Desenho realizado por Bianca, 8 anos Nota. Fonte: Acervo do autor. Esta seção tem como objetivo refletir acerca das questões de gênero, sexualidade e infância na centralidade dos aspectos conceituais. Desta forma, mostra-se fundamental ponderar sobre as mudanças e visões de mundo ao longo do processo histórico, considerando as multiplicidades presentes no universo infantil e na instituição escolar. Neste contexto, buscamos as aproximações entre concepções e práticas pedagógica para uma educação mais crítica e emancipatória que busca romper com comportamentos e manifestações sexistas nas escolas, resguardando os direitos humanos e direitos de aprendizagem 42 em uma perspectiva de garantir o respeito a equidade, a diferença e a diversidade sexual, considerando os corpos de meninas e meninos em suas subjetividades, potencialidades e existência. 4.1 Aspectos pedagógicos nos primeiros anos do ensino fundamental Há quem diga que o século XX foi o século das revoluções, ao estudar sobre a Educação Sexual é possível perceber que também foi o século onde muitos estudos foram aprofundados no campo da sexualidade, gênero e diversidade. O conceito de gênero passa por significados e expectativas que buscam definir o sexo atribuindo diferenças entre masculino e o feminino. No entanto, o conceito tem um espectro muito mais alargado do que as atribuições binárias. Neste sentido, quando investigamos um conceito em seus posicionamentos teóricos, procuramos transcender o senso comum. Vale destacar que criar um conceito compreende o liame entre a necessidade de revelar o problema e a exposição em seus desvelamentos. Portanto, são os conceitos que permitem a contemplação, a reflexão e a comunicação. Segundo, Deleuze e Guattarri (2016), uma vez que o conceito está atrelado e relacionado às causas circunstanciais em que foi produzido, manifesta-se um acontecimento, apreendendo o acontecimento em um constante devir, o que permite uma resistência e uma visada sobre o mundo, uma atuação sobre o vivido. Desta maneira, um conceito remete a outro conceito, revelando faces da mesma realidade, um conceito comporta uma multiplicidade imanente, advindas de outros conceitos. “Os conceitos são centros de vibrações, cada um em si mesmo e uns em relação aos outros. É por isso que tudo ressoa, em lugar de se seguir ou de se corresponder (. . .) os conceitos são totalidades fragmentárias”. (Deleuze & Guattarri, 2016, p. 31). 4.2 Aspectos conceituais de gênero É preciso reaprender a ver o mundo, o filósofo Merleau-Ponty atenta para o fato em que está visada existencial, “(. . .) começa com a consciência daquilo que corrói e faz ruir, mas também renova e sublima nossas significações adquiridas”. (Merleau-Ponty, 2002, p. 48). Desta forma, intervir sobre o mundo é agir contra ilusões, estabelecendo as articulações com o real, exprimindo diante disso conceitos criados na dimensão precisa do objeto, e facultando 43 um afastamento dos conceitos já prontos, inaugurando desta forma novos conceitos que se orientam e se mobilizam em direção a novos objetos, conexões, passagens e sinapses. O conceito de gênero exprime inúmeras dimensões com significados culturais assumidos pelo indivíduo, segundo Pelúcio (2014, p. 100) é preciso desnaturalizar, pensando gênero na seguinte chave Desnaturalizar é pensar o gênero, marca fundamental da nossa existência, não é um dado biológico e pronto, mas varia de sociedade, ao longo da história, e só pode ser entendido na sua dimensão política, sim, política porque tem a ver com relações de poder: quem manda, quem obedece, o que é verdade, o que não é. Enfim, para a gente poder entender o gênero em toda sua dimensão social, é preciso relacionar gênero com raça/etnia, classe social, pertencimento de geração, entre outras marcas de diferenciação social. Ao refletir sobre estas questões de gênero, Butler (2017) faz uma análise significativa relacionada ao seu núcleo de identidade e como são produzidos os discursos acerca dos sujeitos. O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo da produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos, resulta daí que o gênero não está para cultura como o sexo para natureza (. . .) (Butler, 2017, p. 27). Toda esta dimensão política e cultural, percorre a existência e penetram as subjetividades das pessoas ao longo da vida, meninos e meninas desde cedo são influenciados por leituras e interpretações do mundo, estabelecidos por jogos de linguagem, ditando os modos de ser e se comportar. Para Wittgenstein (1979), os jogos de linguagem devem lançar luz sobre as relações de nossa linguagem, para o filósofo as palavras são ferramentas que podem ser utilizadas de modos diversos em atividades que nos engajamos socialmente. Segundo Bakthin (2012), a linguagem é um ato que reestrutura o mundo. Desta forma, ao criar novos jogos de linguagens e novos conceitos para dar conta das atuais demandas, lutas e exigências, torna-se fundamental compreender que, para além de uma palavra 44 que defina, existe uma dimensão fenomenológica, existencial e social, nas quais ocorrem explosões de pluralidades. Lins, Machado e Escoura (2016, p. 10) apresentam o conceito de gênero e os arranjos colocados em prática pela sociedade que influenciam o repertório e as relações cotidianas das crianças Gênero, como compreendemos, é um dispositivo cultural, constituído historicamente, que classifica e posiciona o mundo a partir da relação entre o que se entende como feminino e masculino. É um operador que cria sentido para as diferenças percebidas em nossos corpos e articula pessoas, emoções, práticas e coisas dentro de uma estrutura de poder. Os arranjos de gênero colocados em prática na sociedade exercem uma força sobre toda nossa vida cotidiana. No âmbito escolar e no universo infantil, muitas questões como hierarquia de gênero e posturas sexistas são observadas nos fazeres cotidianos. De acordo com Louro, Neckel e Goellner (2023, p. 29), em um horizonte de constituição da identidade dos sujeitos, entender o gênero passa pelo diálogo com outras interações e marcadores sociais, O sujeito é brasileiro, negro, homem, etc. Nessa perspectiva admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros. Estas práticas e instituições "fabricam" os sujeitos. Busca-se compreender que a justiça, a igreja, as práticas educativas ou de governo, a política, etc. São atravessadas pelos gêneros: essas instâncias, práticas ou espaços sociais são "generificados" — produzem-se, ou "engendram-se", a partir das relações de gênero (mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também, das relações de classe, étnicas, etc.). Nesta perspectiva, Salih (2022, p. 21), destaca a relevância na obra de Blutler, em descrever quais sãos os processos pelos quais as identidades são construídas no interior da linguagem e do discurso, em meio as suas condições de emergência, 45 Uma investigação genealógica da constituição do sujeito supõe que o sexo e gênero são efeitos – e não causas – de instituições, discursos e práticas; em outras palavras, nós como sujeitos, não criamos as instituições, os discursos e as práticas, mas eles nos criam ou causam, ao determinar, nossa sexualidade, nosso gênero. Assim, quando trabalhamos o conceito de gênero em sua diversidade e diferença, imergimos em uma interseccionalidade que nos permite perceber os vários sistemas de opressão que submetem os corpos no tempo histórico e no espaço vivido. Questões como hierarquia de gênero e posturas sexistas são observadas no cotidiano das escolas e nas práticas pedagógicas, entender o contexto institucional neste processo, pode nos ajudar a compreender a realidade da instituição escolar, e a partir daí, possibilitar práticas plurais, humanizadas e emancipatórias. As questões de gênero são complexas e exigem muita dedicação, estudo e sensibilidade, é também um terreno de disputa, portanto é imperativo compreender com eficácia as questões relacionadas a educação para as sexualidades, tal como os profissionais da educação estão preparados técnica, política e teoricamente no que concerne o tema. Refletindo sobre o assunto, Martins (2016, p. 256) pondera que “pensar na educação para sexualidades e gênero requer também pensar como esses profissionais concebem os discursos sobre as sexualidades e sobre gênero e como esses são/serão produzidos e reproduzidos nas instituições educativas”, é necessário criar estratégias para ouvir as crianças e compreender seus discursos. Outrossim, analisar as questões de gênero na escola é dar visibilidade aos corpos subalternizados, permitindo reflexões a respeito dos conceitos de infância e gênero, revelando principalmente a invisibilidade das meninas em um espaço privilegiado para os meninos. Nesta perspectiva de análise, Minella (2006), apontou como tais elementos foram moldando ao longo do tempo um processo de sexualização dos papéis sociais. Ao pesquisarmos sobre os estudos dedicados às crianças, as concepções de infância e infâncias, e os processos que se desdobram, muitas vozes emergem e outras tantas são silenciadas. Este enquadramento, nos leva a refletir acerca daqueles sujeitos mais vulnerabilizados e sufocados. De acordo com Arroyo (2012) alguns corpos são mais marcados social e culturalmente, resultando em corpos ocultados e silenciados. 46 (. . .) Se a infância luta por se afirmar e sair da invisibilidade a que foi relegada, há, entretanto, corpos de crianças mais invisivilizados e inferiorizados, vítimas de preconceitos históricos. As lutas para superar inferiorizações preconceituosas contra sua classe, seu gênero, sua etnia e sua raça são bem mais complexas. (Arroyo, 2012, p. 14). Conh (2013, p. 241), reconhece o desafio da antropologia da infância de compreender os muitos aspectos destas realidades multifacetadas, ressaltando uma miríade de possibilidades de ser criança e como estes sujeitos compreendem a própria infância no lugar em que estão inseridos, Por isso, a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das pesquisas em antropologia que fala de e com crianças – aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos, das políticas públicas a elas voltadas, de ações educacionais etc. e aquela que atenta para o ponto de vista das crianças. Neste diálogo entre sociologia e antropologia da infância, destaca-se a importância de se afastar do adultocentrismo, valorizando os olhares e vozes das crianças, nos seus saberes e fazeres. Ramos (2013, p. 20) ao destacar os novos significados e multiplicidades produzidos pelas crianças, compreende que Entender as crianças nesta nova ordem, como sujeitos ativos na constituição de seus mundos sociais, é tentar compreendê-las como acontecimento, é poder tratá-las na materialização da imprevisibilidade, como seres em permanente movimento. Significa reconhecer na infância múltiplas infâncias e, ao entender a sua pluralidade, compreender que ela não pode ser capturada em sua totalidade. A infância não é um projeto acabado. Neste horizonte em que nem todas as infâncias são consideradas, vivendo em espaços que ainda são carregados de estereótipos e comportamentos sexistas, notamos como a educação para as sexualidades pode contribuir para uma maior sensibilidade social relacionada à noção de pessoa e da corporalidade. 47 4.3 Universo Infantil, intencionalidades e ruptura O Universo infantil mudou muito ao longo da história, passamos por diversas transformações nos comportamentos e nas concepções sobre infância, um conceito amplo que aparece de diversas formas a depender do tempo histórico, espaço geográfico, classes sociais, etnias e culturas diferentes. No que tange a realidade brasileira, os desafios para a compreensão são múltiplos, basta pensar na dimensão territorial do país e sua grande pluralidade cultural. As instituições como família e escola exercem um papel considerável dentro das engrenagens sociais e políticas, seja para o aparecimento da infância, desaparecimento, silenciamento ou emancipação das crianças. Segundo Ariès (1978, p. 10), ao delimitar como primeira fase, uma sociedade mais tradicional e antiga, considerou que (. . .) essa sociedade via mal a criança, e pior ainda o adolescente. A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje. Fiz esta breve referência da obra do historiador Philippe Ariès, abarcando um recorte histórico na dimensão de sua obra, no intuito de trazer um fragmento sobre o estudo que autor desenvolveu mais profundamente, retratando o surgimento da infância e as formas como foram se organizando novas posturas, comportamentos e políticas. Cabe ressaltar, que o próprio autor revisitou sua obra, e que na esteira de seus estudos foram surgindo profícuos elementos para refletir, dialogar, contestar e colaborar com os novos estudos acerca da infância. De modo que, torna-se fecundo o diálogo com outras e outros autores que apresentaram olhares contemporâneos concernente aos estudos conceituais de infância, multiculturalismo gênero e sexualidade. 48 Neste diálogo, a partir de uma outra perspectiva, Postman (2002, p. 113) analisa o desparecimento da Infância na contemporaneidade, e como os papéis entre adultos e criança são confundidos, afirmando que “num extremo, os recém-nascido; no outro, os senis. No meio o que podemos chamar de adulto- criança”. Em torno deste prisma, o autor salienta o papel das mídias eletrônicas, que na época em que havia escrito o livro, ainda estava no campo da televisão, algo que hoje com as redes sociais, tornou-se ainda mais manifesto As evidências do desaparecimento da infância vêm de várias maneiras e de diversas fontes. Há, por exemplo, a evidencia fornecida pelos próprios meios de comunicação, pois eles não só promovem a desmontagem da infância valendo-se da forma e do contexto que lhes são peculiares, mas também refletem esse declínio em seu conteúdo. Há evidencia a ser observada na fusão do gosto e estilo de crianças e adultos assim como nas mutáveis perspectivas de instituições sociais como o direito, as escolas e os esportes. E há evidência do tipo “pesado” – cifras sobre o alcoolismo, uso de drogas, atitude sexual, criminalidade, etc. – que implica uma declinante distinção entre infância e idade adulta (Postman, 2002, p. 134). No Brasil, pesquisadoras e pesquisadores esmiuçaram os estudos sobre a infância. Dentre ao quais estão os escritos coordenados Mary Del Priore (2002), tais estudos recuperam e apontaram as trajetórias próprias do universo infantil no Brasil, no que a historiadora comenta “diferentemente da história da criança feita no estrangeiro, a nossa não se distingue daquela dos adultos. Ela é feita, ao contrário, à sua sombra” (Del Priore, 2002. p. 15). O campo dos estudos sobre infância é muito amplo, pois tem um espectro de preocupações bastante variado. No que tange às pesquisas relacionadas ao gênero e sexualidade na infância, ainda encontramos grandes desafios, dentre os quais romper com uma educação sexista, tema constante nos estudos atuais. Existe na escola espaços elementares para reconfigurar novas formas de resistência e protagonismos, sabemos da importância das lutas em direção de um lugar que supere preconceitos e que promova transformações sociais mais justas e equitativas. Neste aspecto, as concepções de 49 infância em suas pluralidades, direitos e efetiva participação são fundamentais, de acordo com Fernandes As perspectivas participativas, ao considerarem pressupostos como visibilidade, a participação, o empowerment das crianças, defendem dinâmicas de investigação que possam atender à diversidade que caracteriza a categoria social da infância, decorrente de factores como o gênero, a religião, a etnia, a classe social e subgrupo etário. Todos estes indicadores tem implicações nas competências de participação das crianças, mas, ao mesmo tempo, desafiam também os preconceitos acerca das suas competências, defendendo que é essencial desenvolver dinâmicas e intercções com elas que consigam resgatar as suas competências como actores sociais, com voz e acção (Fernandes, 2007, p. 255). No que diz respeito ao gênero e seus papéis a partir da infância, Ramos (2013, p 13), ao refletir sobre a construção social da infância, destaca como a idade e o gênero interferem na vida de menino e meninas “Inscritos nos corpos das crianças, idade e sexo se fazem notoriamente visíveis e se constituem como marcas identitárias que impulsionarão todo um conjunto de investimentos culturais que buscarão fixar e subjetivar as identidades infantis.” Vale lembrar que as expectativas sobre os corpos infantis surgem mesmo antes do nascimento. Felipe e Guizzo (2003, p. 124) destaca este comportamento, ao considerar que Desde muito cedo, até mesmo antes de nascermos, somos investidos de inúmeras expectativas, em função de nosso sexo - meninos ou meninas - e da nossa condição social, dentre tantas outras. Talvez não seja exagero afirmar que nossas identidades (de gênero, sexuais, raciais) vão-se delineando, mesmo antes de nascermos, a partir das inúmeras expectativas que são em nós depositadas. Sob este olhar, é imprescindível ajudar a borrar as fronteiras dos gêneros na escola, combatendo as desigualdades, hierarquias e preconceitos que historicamente foram sendo forjados. Ao fazer um estudo bibliográfico sobre as obras que tratam sobre a condição da infância no país, Minella (2006) realiza uma abordagem bastante elucidativa dos papeis e hierarquias sexuais em 50 vários momentos da história. Ao longo do seu trabalho, a autora opera importantes indagações relacionadas aos estudos e obras que versaram sobre a infância no Brasil, (. . .) quais os aspectos do cotidiano infantil considerados relevantes por esses estudos e o que “dizem” e/ou “deixam de dizer” sobre as hierarquias de gênero? Por que, ao falar sobre meninos e meninas, tais estudos privilegiaram o registro dos papéis sexuais? Em que sentido essa literatura teria privilegiado os meninos, revelando dificuldades em ressaltar a situação das meninas, favorecendo assim (mesmo que involuntariamente) sua invisibilidade? De que modo as desigualdades decorrentes do exercício desigual dos papéis sexuais foram relacionadas a outros tipos de desigualdades sociais como as de classe ou raça? Quais as razões históricas que podem explicar por que a literatura consultada não teria desenvolvido uma atitude crítica frente à rígida sexualização dos papéis e às polarizações? Em que medida os resultados dos estudos analisados podem ser submetidos a uma leitura de gênero? (Minella, 2006, pp. 291-292). Não se espera que a escola venha a solucionar todas as formas de controle e enquadramento das crianças, mas é um espaço fundamental para a transformação. Neste panorama, as crianças rearticulam fronteiras entre os universos masculinos e femininos em busca por novos significados. Na medida em que, “não é apenas a idade que opera na constituição das identidades infantis. Se, por um lado, a idade delimita as experiências geracionais das crianças, por outro, o gênero institui o modo como meninos e meninas vivem suas masculinidades e feminilidades na infância.” (Ramos, 2013, p. 20). A instituição escola vive às voltas com um paradoxo, contradição que se manifesta quando um polo da sociedade erotiza exacerbadamente os corpos infantis nas mídias, impulsionadas pela sociedade de consumo, e em um outro extremo aparece um conservadorismo que censura as práticas pedagógicas que permitem uma educação para as sexualidades. Neste contexto, Felipe e Guizzo (2003, p. 128) apontam que Os corpos vêm sendo instigados a uma crescente erotização, amplamente veiculada através da TV, do cinema, da música, em jornais, revistas, propagandas, outdoors, e, mais recentemente, com o uso da internet, tem sido possível vivenciar novas modalidades de 51 exploração dos corpos e da sexualidade. Tal processo de erotização tem produzido efeitos significativos na construção das identidades de gênero e identidades sexuais das crianças (. . .). As redes sociais e os meios de comunicação produzem discursos e estabelecem tensões, informações que chegam na escola pela percepção, olhares e vozes aprendidas pelas pedagogias midiáticas. Influências que tem se intensificado cada vez mais. Ao ponderar acerca deste campo influente, Pelúcio, (2014, p. 31), argumenta da seguinte forma “Podemos tê-los como aliados, ao invés de apenas demonizá