Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes FERNANDO BUENO CATELAN IMPROVISAÇÃO TEATRAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: um ato político emancipatório São Paulo 2018 FERNANDO BUENO CATELAN IMPROVISAÇÃO TEATRAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: um ato político emancipatório Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Mestrado Profissional em Artes – PROF-ARTES do Instituto de Artes, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes, área de concentração: Ensino de Artes, na Linha de Pesquisa Abordagens teórico-metodológicas das práticas docentes. Orientadora: Profa. Dra. Carminda Mendes André São Paulo 2018 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) C358i Catelan, Fernando Bueno, 1978-. Improvisação teatral na Educação de Jovens e Adultos: um ato político emancipatório / Fernando Bueno Catelan. – São Paulo, 2018. 150 f. : il. color. Orientadora: Profª. Drª. Carminda Mendes André. Dissertação (Mestrado Profissional em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Representação teatral. 2. Improvisação (Representação teatral). 3. Educação e Estado. 4. Arte – Aspectos políticos. I. André, Carminda Mendes. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.028 FERNANDO BUENO CATELAN IMPROVISAÇÃO TEATRAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: um ato político emancipatório Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Arte no Curso de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em Artes – PROF-ARTES, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, com a Área de Concentração em Ensino de Artes, pela seguinte banca examinadora: _____________________________________________________ Profa. Dra. Carminda Mendes André Instituto de Artes/UNESP/São Paulo – Orientadora _____________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Carvalho de Figueiredo Escola de Belas Artes/UFMG/Belo Horizonte _____________________________________________________ Prof. Dr. Samir Signeu Porto Oliveira Escola de Comunicações e Artes/USP/São Paulo São Paulo, 05 de junho de 2018. À Nanete Azevedo, minha mãe nas artes. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Marcio Catelan e Aparecida Eliana Bueno Catelan, toda gratidão que possa existir no mundo, por me darem a oportunidade de ser o homem que sou hoje. À minha querida orientadora Carminda Mendes André, minha mestra emancipadora, que me conduziu nesse caminho com delicadeza, segurança e sabedoria. Aos mestres com carinho, a quem sou grato por terem me proporcionado momentos de aprendizados significativos e dos quais nunca esquecerei: Dra. Rejane Galvão Coutinho; Dra. Valéria Peixoto de Alencar; Dr. Giuliano Tierno de Siqueira; Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli; Dr. Gerardo Viana Junior; Dra. Regiane Cayre; Dr. Gustavo Côrtes; Dr. Jorge das Graças Veloso; Dr. Sérgio Figueiredo; Dra. Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva; Dra. Ana Luiza Ruschel Nunes; Dr. João Cardoso Palma Filho; Dra. Lisete Regina Gomes Arelaro; Dr. Samir Signeu Porto Oliveira; Dr. Ricardo Carvalho de Figueiredo. Aos/Às meus/minhas companheiros/as de jornada: Ângela Consiglio Moreira da Silva; Elisângela de Freitas Mathias; Luís Alberto de Souza; Joab da Silva Barboza; Nívea Bandeira Xavier; Pedra Homem (Magno Santana Matos); Raquel Teixeira de Souza; e Rodrigo Garcia Lopez Ria, por todo apoio que propiciou que chegássemos, unidos, ao final deste percurso. Aos meus irmãos Marcelo Bueno Catelan e Thiago Bueno Catelan, por estarem sempre ao meu lado me apoiando. À minha querida avó Iracema Prestes de Oliveira, por todo amor que recebo dela. À minha tia Elaine Cristina Bueno, pelo incentivo e pelo apoio. À minha prima Mylena Cristina Bueno Leão, pela disposição em me ajudar quando sempre preciso de seus conhecimentos linguísticos. À Vivian Catarina Dias, pela ajuda com a organização deste trabalho. Ao Alessandro Sayama Junior, por partilhar todos os momentos desta jornada comigo, sendo compreensivo e parceiro. A todos/as educandos/as da EJA que participaram das práticas desta pesquisa, sem os/as quais não seria possível de ser realizada. Em extensão, agradeço às gestões e educadores/as das escolas: EMEB Arlindo Miguel Teixeira; EMEB Professora Janete Mally Betti Simões; EM Olegário José de Godoy, por permitirem e apoiarem as práticas teatrais propostas dentro do ambiente escolar. À UDESC, na figura do coordenado geral do programa do mestrado profissional em artes Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira, por apoiar todos/as alunos/as e garantir que esse projeto continue. A todos/as funcionários/as do Instituto de Artes da UNESP, pela gentileza em tratar a nós, alunos/as, com muita atenção e respeito, especialmente à Coordenadora local do programa PROF-ARTES Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho e ao Monitor Lucas Araújo Batista. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela concessão da bolsa durante todo o período de realização deste Mestrado. Essa jornada só pôde acontecer graças a essas pessoas que, junto comigo, sonharam esse sonho possível. Encho-me de alegria por saber que pude contar com vocês. Obrigado! O sonho é sonho porque, realisticamente, ancorado no presente, aponta o futuro, que só se constitui na e pela transformação do presente. Paulo Freire RESUMO Nesse trabalho, apresentamos reflexões teóricas e práticas sobre Improvisação Teatral na Educação de Jovens e Adultos. Investigamos aspectos políticos inerentes à educação e ao teatro tendo como fundamento teórico os trabalhos pedagógicos de Paulo Freire (2015a), que estabelecem relação direta entre as intencionalidades políticas e as práticas educativas a serem observadas para que a aprendizagem não seja opressora, mas sim libertadora; os estudos filosóficos de Jacques Rancière (2011), ao apresentar a política como uma interação coletiva em que todos/as se sintam como iguais e possam se manifestar, sendo o reconhecimento da igualdade das inteligência fator determinante para que haja emancipação; e as propostas teatrais de Augusto Boal (2013), que evidenciam que todo teatro é político, a partir das quais ele desenvolve o Teatro do Oprimido, deixando clara a sua atuação criadora em favor de uma ação política transformadora. Desenvolvemos nossa pesquisa em três escolas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da rede municipal pública de São Bernardo do Campo. Exercitamos, com quatro turmas diferentes, vivências de improvisação teatral a fim de observar como experiências teatrais podem contribuir no processo de ensino e aprendizagem dos/as educandos/as, no mesmo sentido daquilo que os autores que estudamos consideram a ação política, ou seja, como fator determinante para a emancipação e libertação. As metodologias que propusemos nas experiências práticas foram: Jogos Teatrais desenvolvidos por Viola Spolin (2015); exercícios de improvisação Sistema Impro, proposto por Keith Johnstone (MUNIZ, 2015); e técnicas de Teatro do Oprimido criadas por Augusto Boal (2007). Palavras-chave: Improvisação. Teatro. Política. Emancipação. EJA. ABSTRACT In this dissertation, we present theoretical and practical reflections on Theatrical Improvisation in Youth and Adult Education. We investigate inherent political aspects in education and theater. In this regard, we analyze the pedagogical works of Paulo Freire (2015a), which establish a direct relation between the political intentions and educational practices to be observed so that the learning is not oppressive, but liberating; the philosophical studies of Jacques Rancière (2011), in presenting politics as a collective interaction in which all feel equal and thus can manifest themselves, being the recognition of the equality of intelligences a determinant factor to achieve emancipation; and the theatrical proposals of Augusto Boal (2013), which show that every theater is political and develops the Theater of the Oppressed, making clear its creative activity in favor of a transformative political action. Our practical research was developed in three schools of Youth and Adult Education (EJA), of the public municipal network of São Bernardo do Campo. With four different classes, we performed theatrical improvisation experiences with the purpose of observing how theatrical experiences can contribute to the teaching and learning process of the students, in the same sense that the studied authors understand political action as a determining factor for the emancipation and liberation. The methodologies proposed in the practical experiences were: the Theatrical Games developed by Viola Spolin (2015); Impro improvisation exercises Impro System, proposed by Keith Johnstone (MUNIZ, 2015); and the Theater of the Oppressed techniques created by Augusto Boal (2007). Keywords: Improvisation. Theater. Politics. Emancipation. EJA. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Cartaz do MOBRAL ................................................................................ 47 Figura 2 – Algumas Publicações da EJA em SBC, de 2010 a 2016 ......................... 52 Figura 3 – Fachada do prédio da EMEB Arlindo Miguel ........................................... 55 Figura 4 – Visão aérea da localização territorial da EMEB Arlindo Miguel................ 56 Figura 5 – Visão aérea do prédio da EMEB Arlindo Miguel ...................................... 57 Figura 6 – Educandos/as da 1ª experiência, EMEB Arlindo Miguel .......................... 58 Figura 7 – Tabela e gráfico das presenças na EMEB Arlindo Miguel ....................... 60 Figura 8 – Gráfico das atividades desenvolvidas na EMEB Arlindo Miguel .............. 62 Figura 9 – Primeiro prédio da EMEB Janete Mally ................................................... 63 Figura 10 – Visão aérea da localização territorial da EMEB Janete Mally ................ 64 Figura 11 – Tabela e gráfico das presenças na EMEB Janete Mally ........................ 67 Figura 12 – Educandos/as da 2ª experiência, EMEB Janete Mally .......................... 68 Figura 13 – Gráfico das atividades desenvolvidas na EMEB Janete Mally ............... 69 Figura 14 – Fachada do prédio da EM Olegário José .............................................. 70 Figura 15 – Visão aérea da localização territorial da EM Olegário José ................... 71 Figura 16 – Educandos/as da 3ª experiência, EM Olegário José ............................. 73 Figura 17 – Educandos/as da 4ª experiência, turma do PEAT ................................. 74 Figura 18 – Tabela e gráfico das presenças na turma do PEAT .............................. 75 Figura 19 – Gráfico das atividades desenvolvidas como a turma do PEAT .............. 77 Figura 20 – Apresentação das estatuas para a plateia, EM Olegário José ............... 91 Figura 21 – Exercício de confiança “João Bobo”, EMEB Arlindo Miguel ................... 92 Figura 22 – Exercícios de fisicalização, EMEB Janete Mally .................................... 93 Figura 23 – Exercícios de fisicalização, EM Olegário José....................................... 94 Figura 24 – Exercícios de blablação, EMEB Arlindo Miguel ..................................... 95 Figura 25 – Exercícios de fisicalização, EMEB Arlindo Miguel ................................. 96 Figura 26 – Exercício de Impro, turma do PEAT .................................................... 100 Figura 27 – Exercício de Impro, EMEB Janete Mally ............................................. 102 Figura 28 – Exercício “Hipnotismo” do arsenal do TO, EMEB Janete Mally ........... 106 Figura 29 – Árvore do Teatro do Oprimido ............................................................. 107 Figura 30 – Teatro Imagem, EM Olegário José. ..................................................... 109 Figura 31 – Teatro Imagem em cada uma das 4 experiências ............................... 110 Figura 32 – Teatro Jornal: desrespeito aos idosos, EMEB Arlindo Miguel.............. 111 Figura 33 – Teatro Jornal: atendimento do SUS, EMEB Arlindo Miguel ................. 112 Figura 34 – Teatro Jornal: tratamento desigual, EMEB Arlindo Miguel ................... 112 Figura 35 – Teatro Fórum, EMEB Janete Mally ...................................................... 114 Figura 36 – Teatro Fórum, EMEB Arlindo Miguel ................................................... 116 Figura 37 – Teatro Fórum, turma do PEAT ............................................................ 117 Figura 38 – Apresentação do Teatro Fórum, turma do PEAT ................................. 119 Figura 39 – Apresentação do Teatro Fórum, turma do PEAT ................................. 120 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AEE Atendimento Educacional Especializado CAGECPM Ciclo de Auto-Gestão do Conhecimento Presencial e Modular CF/88 Constituição Federal de 1988 CONFINTEA Conferência Internacional de Educação de Adultos CPC Centro Popular de Cultura CRAS Centro de Referência de Assistência Social CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social EJA Educação de Jovens e Adultos EM Escola Municipal EMEB Escola Municipal de Educação Básica LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MCP Movimento de Cultura Popular MO.T.A. Movimento Teatral da Associação de Funcionários Públicos MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização MOVA Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos PEAT Programa de Educação do Adolescente para o Trabalho PPP Projeto Político Pedagógico PROF-ARTES Programa de Mestrado Profissional em Artes PROMAC Programa Municipal de Alfabetização e Cidadania SA Secretaria de Administração e Modernização Administrativa SBC São Bernardo do Campo SE Secretaria de Educação SEA Serviço de Educação de Adultos SEDESC Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania SESI Serviço Social da Industria SP São Paulo TIC’s Tecnologias da Informação e Comunicação TO Teatro do Oprimido UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................... 15 1. SONHO POSSÍVEL: UM ATO POLÍTICO NECESSÁRIO ................................... 19 2. A POLÍTICA: RECONHECENDO A IGUALDADE PARA AGIR .......................... 23 3. EMANCIPAÇÃO: CRER EM SI PARA TRANSFORMAR A SOCIEDADE .......... 30 3.1 Emancipação Intelectual ..................................................................... 33 3.2 Emancipação Social ou Libertação ...................................................... 37 4. EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: PERCURSOS E CONCEPÇÕES ........ 43 4.1 Escola Arlindo Miguel: primeira experiência ......................................... 55 4.2 Escola Janete Mally: segunda experiência ........................................... 63 4.3 Escola Olegário José: terceira e quarta experiências............................ 70 5. IMPROVISAÇÃO TEATRAL: UM ATO POLÍTICO NA EJA ................................ 78 5.1 Jogos Teatrais: a linguagem teatral proposta por Viola Spolin ............... 89 5.2 Impro: a espontaneidade proposta por Keith Johnstone ........................ 98 5.3 Teatro do Oprimido: a abordagem política proposta por Augusto Boal .. 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 124 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 127 ANEXOS ................................................................................................................ 132 Anexo A – Alguns protocolos realizados pelos/as educandos/as ....................... 133 Anexo B – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa......................................... 145 Anexo C – Termo De Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ..................... 148 Anexo D – Termo de Assentimento (menores de idade) .................................... 149 15 APRESENTAÇÃO A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. Eduardo Galeano Eduardo Galeano nos diz que o objetivo da utopia não está em alcançarmos aquilo que buscamos, mas sim em nos fazer caminhar acreditando que chegaremos. Não sei se concordo com esse modo de pensar, de que nunca alcançaremos os sonhos que nos motivam a seguir em frente, todavia, com certeza, é fato que as utopias, os sonhos, nos fazem caminhar. A arte sempre foi o sonho que me fez caminhar. Meus primeiros passos foram dados no ano de 1988, ao dez ano de idade, na então “Casa de Arte 1” na minha cidade natal, São Bernardo do Campo, onde participei, por quatro anos, da oficina de teatro de bonecos, ministrada pela professora Nanete Azevedo, a quem eu considero minha mãe nas artes: com ela eu aprendi a amar todas as artes. Nas aulas, a Nanete misturava todas as linguagens artísticas, trabalhávamos artes plásticas, artes cênicas e música de forma integrada. Lembro-me de quando nos sentávamos em volta de um balde cheio de água e desenrolávamos rolos e rolos de papel higiênico, na época eles eram vermelhos, ao terminar essa parte, metíamos as mãos na água para desmanchar o papel. E depois peneirávamos a mistura em um tecido, retirando ao máximo toda a água, e só depois levávamos ao fogo em uma panela velha. Começávamos a cozer a massa de papel com um pouco de farinha, sem parar de mexer para não queimar. 16 Depois de pronta, iniciávamos a modelagem das cabeças dos mamulengos com a massa de “papier mâché” que acabáramos de preparar e, com o miolo de papelão que sobrava do papel higiênico, apoiávamos a massa que dava o formato do pescoço do boneco. E, claro, sem nunca nos esquecermos de colocar uma tampinha de pinho sol para a massa não mofar, o que nunca adiantava. Todo esse procedimento aprendi que o fazer artístico, não se dá como um passe de mágica, é fruto de muito trabalho, essa dissertação vai na mesma direção, mostrando os caminhos percorridos ao longo da pesquisa. Depois dos bonecos secos, pintados e vestidos, me lembro de ir para trás do biombo, que funcionava como o palco do teatro de mamulengos e, muitas vezes, sozinho na sala, começava a improvisar diversas histórias. Em uma dessas improvisações com a sala vazia, sem que eu percebesse, entrou uma pessoa, que participava de uma oficina de teatro na sala ao lado, e, ao ver o que estava acontecendo, chamou os/as demais alunos/as para assistir à apresentação. Quando termino a improvisação e me levanto de trás do biombo, todos/as começam a aplaudir. Eu, com uma mistura de surpresa e alegria, me senti acolhido pelas palmas! Esse senhor, que me viu improvisar uma peça de teatro de bonecos e chamou seus colegas, trabalhava na Secretaria Municipal que era responsável pelas creches de São Bernardo do Campo. Ele me convidou a apresentar essas histórias em todas as creches da cidade, na época eram quinze. O que aconteceu durante dois anos seguidos. Esse foi meu primeiro contato com as condições de vida da população pobre, pois todas essas creches se localizavam em bairros periféricos bem distantes do centro da cidade, onde eu morava, muitas em condições precárias de acesso, por entre ruas de terra batida. Lembro-me, até hoje, da perua (Kombi) que ia me buscar na “Casa de Arte 1”: Eu no banco de trás, agarrado à minha sacola de bonecos, sozinho com o motorista que me levava até os espaços, me sentia importante, mas quando fazia as apresentações é que realmente entendia a importância do meu trabalho, ele é que era importante. 17 Ao chegar em cada creche eu era tratado como “artista”. Todos vinham perguntar o que eu precisava e como podiam me ajudar. Foram momentos lindos, que marcaram definitivamente a minha leitura de mundo da realidade brasileira, tão desigual e injusta para a maioria da população. Depois, a secretaria de Cultura me convidou para apresentar nas bibliotecas da cidade e, com essas apresentações, ganhei meu primeiro cachê, no valor de doze mil, seiscentos e sessenta e cinco cruzeiros, isso em 1991. No ano seguinte, procurei um curso de interpretação teatral e entrei para o grupo de teatro amador “MO.T.A.”. Nunca mais parei de estudar teatro. Em 1995, meu primo me convidou a dar aulas de teatro para uma comunidade no Jardim Lavínia: aceitei o desafio, pois nunca tinha dado aula antes, essa foi minha primeira experiência como professor de teatro. Desde lá, nunca parei de trabalhar como professor de teatro. Ao longo desses anos, tive a oportunidade de dar aula de teatro nos mais diversos lugares: desde comunidades de bairro a escolas particulares; oficinas livres e cursos regulares. No entanto, até o ano de 2015 nunca tinha trabalhado com a Educação de Jovens e Adultos. Depois de passar no concurso para professor de artes da EJA, da rede municipal de São Bernardo do Campo, me reencontrei com os espaços periféricos da cidade, que fez com que tudo o que eu caminhara até o momento ganhasse um novo sentido e juntou diversos sonhos e trabalhos que foram construídos na minha caminhada. Sempre acreditei num processo educativo que proporcionasse liberdade de se expressar, numa busca de observação de si e do entorno, isso muito influenciado pela linguagem artística na qual sempre estive envolto: o teatro, que possibilita um profundo conhecimento de quem somos, do que sentimos, pensamos e desejamos, para, assim, podermos dialogar com os que estão à nossa volta, em cena e na plateia. E foi na EJA, num contato mais próximo com as propostas pedagógicas de Paulo Freire que ali eram colocadas em prática, que veio o desejo de me aprofundar em questões que sempre me provocaram a pensar no sentido de uma ação educativa transformadora, conforme Freire já antecipara, ao entender que qualquer processo educativo é uma ação política que pode ser transformadora de realidades sociais muitas vezes injustas e desiguais. 18 Nesse sentido, aqui estudamos processos pedagógicos teatrais na Educação de Jovens e Adultos a fim de perceber os aspectos políticos inerentes ao fazer teatral e educativo que podem vir a gerar emancipação e/ou libertação, ao ser reconhecida a igualdade das inteligências de todos/as, o que pode impulsionar a luta contra as opressões que nos afligem. Nossa caminhada se inicia com um Sonho Possível: um ato político necessário, o primeiro capítulo, dado que somente a partir das proposições de Paulo Freire, Jacques Rancière e Augusto Boal nos foi possível tornar realidade essa pesquisa, pois esse sonho não é um sonho de um só. É um sonho sonhado juntos, assim como a história de todas as lutas que almejaram uma sociedade mais justa para todos/as. No segundo capítulo, A Política: reconhecendo a igualdade para agir, apresentamos o entendimento de política que direciona todo o trabalho da pesquisa, e que se vinculará diretamente com a abordagem sobre emancipação, objeto de análise no próximo capítulo. No terceiro capítulo, Emancipação: crer em si para transformar a sociedade, desenvolvemos o entendimento de que só a partir de uma educação emancipadora pode existir transformação. Nesse sentido, as práticas teatrais aqui estudadas buscam levar o reconhecimento da igualdade das inteligências. No quarto capítulo, Educação de Jovens e Adultos: percursos e concepções, pontuamos os caminhos que a trajetória da EJA, no Brasil e no mundo, vem percorrendo ao longo dos últimos anos, para assim observarmos os três espaços escolares estudados na pesquisa, os quais são frutos dessa história. No quinto capítulo, Improvisação Teatral: um ato político na EJA, definições e concepções que estudamos nos capítulos anteriores são experenciadas na prática, por meio de abordagens teatrais que focam na improvisação: como elemento de apresentação da linguagem teatral (Jogos teatrais); impulsionador de expressividade e liberdade de ação (Sistema Impro); pela clareza de abordagem política para a transformação dos sujeitos e da sociedade (Teatro do Oprimido). Após essa breve apresentação, convido a todos/as a sonharmos esse sonho juntos, pois é apenas na ação coletiva que as transformações por um mundo mais justo são possíveis. 19 1 SONHO POSSÍVEL: UM ATO POLÍTICO NECESSÁRIO O sonho é estratégico: um ato político necessário. uma forma de estar sendo, que homens e mulheres têm. A luta de classes é um motor da história. O sonho também. Thiago de Mello O sonho não apenas como fragmento do passado, mas também como motor para o futuro é o que provoca a esperança de que o mundo possa ser melhor na perspectiva dessa pesquisa. O sonho consiste em poder ver as pessoas emancipadas, plenamente conscientes de suas potências e inteligências. Mas esse sonho não pode ser solitário, porque somente torna-se possível em conjunto, como dizia Raul Seixas: “Sonho que se sonha só / É só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade” (Música: Prelúdio, 1991). Sonhar também representa um ato político, como diria o patrono da educação brasileira: “Umas das tarefas políticas que devemos assumir é viabilizar os sonhos que parecem impossíveis” (FREIRE, 1991, p. 126 apud STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2016, p. 380). Somos daqueles que entendem que sonhar com um mundo mais justo é algo essencial para qualquer profissional que atue na Educação de Jovens e Adultos (EJA). E o desejo de uma transformação da sociedade, muitas vezes injusta e na qual a maioria dos/as educandos/as estão inseridos, é o que motiva essa pesquisa. Diante dos inúmeros aspectos da realidade da EJA que podem ser escolhidos como ponto de partida para uma investigação, optamos pelos possíveis caminhos para superar a postura acanhada, o medo de se manifestar, de se posicionar e de dar sua opinião, observada entre os/as educandos/as de EJA (mas não exclusiva dos/as 20 educandos/as da EJA), gerada, nesse caso, em grande parte pela interrupção do percurso escolar. Em nossas observações em sala de aula, esse fato tem demostrado que há uma precária consciência política que os leva a ignorar a responsabilidade do Estado em assegurar uma educação que garanta o acesso e a permanência de todos/as, uma vez que não reconhecem como fundante nem a história de vida de seus antepassados e nem os impactos da colonização e das ideologias da elite dominante que ainda prevalecem. Nessa perspectiva, os trabalhos de Paulo Freire, em especial a Pedagogia do Oprimido (2015a), dão exemplos de sistemas sociais que perpetuam a opressão dos grupos sociais menos favorecidos cujos dispositivos barram a superação da pobreza e da participação política, o que leva o indivíduo ao não reconhecimento de seu valor pessoal e histórico. A aposta de Freire incide num processo educativo no qual os sujeitos se conscientizem das injustiças e produzam as mudanças necessárias para se libertar. Seguindo as propostas pedagógicas de Freire (2015a), propusemos intervenções por meio de práticas teatrais que possibilitassem a emancipação dos/as educandos/as, para que reconhecessem a igualdade das inteligências (RANCIÈRE, 2011). Logo, a política se torna o ponto de partida de nosso trabalho. A definição de política que aqui utilizamos é o entendimento que Jacques Rancière (1996; 2014) desenvolve sobre “a política”, ao observar que ela se faz com a participação de todos/as e quando eles/as passam a se entender como iguais. Nesse panorama, somente depois do reconhecimento da igualdade das inteligências é que os cidadãos se sentem livres para manifestar seus pensamentos e sentimentos. Dessa forma, como a política também consiste no motor das propostas pedagógicas de Freire e nos trabalhos teatrais de Boal, após delimitar a definição de política de Rancière (2014), estabelecemos um diálogo constante entre esses três pilares teóricos de nossa pesquisa. Outro conceito importante para a pesquisa versa sobre o entendimento de emancipação, intrinsicamente ligado ao entendimento de política. 21 A emancipação será aqui entendida sob duas dimensões. A primeira, o conceito de “emancipação intelectual” apresentado por Rancière (2011), ao sublinhar que o primeiro momento da emancipação é o reconhecimento da igualdade das inteligências; a segunda, por Freire (2015a) a apontar que a libertação do sistema de opressão apenas é possível por meio da conscientização, que se dá num movimento coletivo de “emancipação social”. Definidas as noções de política e emancipação, nos debruçaremos no ambiente em que as práticas foram realizadas na Educação de Jovens e Adultos, na trajetória das lutas históricas por manutenção e ampliação da oferta da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, o que nos ajudará a entender o percurso histórico que influenciou as concepções da rede municipal de São Bernardo do Campo, onde realizamos a pesquisa. A concepção de educação contida nas diretrizes curriculares da EJA desse município (PREFEITURA DE SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2012) reconhece que a educação não acontece apenas em um momento da vida, e sim ao longo da vida1 e sem direcionar o acesso à educação apenas a crianças e adolescentes. Por isso as práticas que propusemos foram realizadas em três escolas de São Bernardo do Campo: EMEB Arlindo Miguel Teixeira (primeira experiência); EMEB Professora Janete Mally Betti Simões, (segunda experiência); e EM Olegário José de Godoy (terceira e quarta experiências), a partir das quais objetivamos abranger as diversas formas de atendimento da EJA no município. Cada uma dessas experiências nos permitiu olhar as diversas possibilidades de abordagem da linguagem teatral na EJA. E, uma vez que não há única maneira de abordá-la, nesses encontros cada experiência se mostrou única, particular. As adaptações ao longo do percurso só foram possíveis pela escolha da metodologia de pesquisa utilizada: a Pesquisa-ação (THIOLLENT, 2011), que prevê a interação entre o pesquisador e as pessoas implicadas na situação investigada, 1 Esse conceito “educação ao longo da vida” entende que a educação não se restringe a um determinado período da vida, mas deve ser observada como algo permanente, e sua incorporação à EJA tem como referência a Educação de Jovens e Adultos de países que não apresentam índices de analfabetismo ou interrupção na trajetória escolar, mas que mesmo assim o ensino para jovens e adultos acontece sob a perspectiva de que a educação acontece ao longo da vida. 22 buscando solucionar o problema por meio de intervenções que ampliem o conhecimento do pesquisador e dos grupos envolvidos na pesquisa. Desse modo, nossa pesquisa sofreu alterações de abordagens ao longo de seu processo, o que, segundo Thiollent (2011, p. 86), no contexto das práticas educacionais, visa transformar e emancipar. Por isso a ideia de reciclar é fundamental para se conhecer e agir de modo racional com a pesquisa. Nossas abordagens teatrais desenvolvidas na pesquisa prática focaram as técnicas de improvisação teatral e foram revistas ao longo de cada experiência, a partir de três metodologias: Jogos Teatrais de Viola Spolin, que possibilitou a aproximação com a linguagem teatral; o Sistema Impro, que muito contribuiu ao estimular a espontaneidade nas improvisações; e o Teatro do Oprimido, que lida diretamente com questões políticas e de conscientização. Ao longo de todo o processo de pesquisa prática foram gerados diversos dados que nos serviram como fontes para análise: fotos, vídeos, diário de bordo, depoimentos, entrevistas e protocolos (registro em forma de texto ou desenho). Cabe destacar: “O que vem a ser protocolo? É, antes de mais nada, registro. [...] Esse documento, que não tem que obedecer à rigidez formal de uma ata ou de um relatório, é o ideal para que se tenha a noção de continuidade de processo” (KOUDELA, 1992, p. 94-95). Os protocolos foram realizados de duas formas: 1 – um/uma dos/as educandos/as ficava responsável de trazer para o próximo encontro o registro da aula que tinha acabado de participar; 2 – em alguns encontros destinávamos um momento para que todos/as pudessem confeccionar protocolos de como tinham sido as aulas até o momento. Cumprindo com o combinado que fizemos com os/as educandos/as, substituímos ao longo do trabalho seus nomes por pseudônimos a fim de preservamos o anonimato. Todo o processo de pesquisa que apresentamos nesse trabalho decorre da necessidade de criação e recriação de possíveis abordagens da linguagem teatral para a transformação das opressões, numa maneira mais justa de se viver com a liberdade, sendo ela verdadeiramente real, não camuflada. 23 2 A POLÍTICA: RECONHECENDO A IGUALDADE PARA AGIR Os que pretendem separar o teatro da política pretendem conduzir-nos ao erro. Augusto Boal Há múltiplas definições sobre política e diversos pensadores já discorreram acerca de seu conceito e sentido. Por esse motivo é importante aqui definirmos qual o tipo de concepção política adotamos em nossa pesquisa. Pelo fato de estudarmos a EJA por meio de práticas teatrais, duas abordagens políticas são instantaneamente evocadas: Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (2015a), e Teatro do Oprimido, de Augusto Boal (2013). Assim, temos clareza de que nossa ação é política, a ponto de defendermos que fazemos “Teatro Político” na escola, uma vez que Boal (2013, p. 13) afirma: “todo teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas”. No entanto, como não falamos de processos de montagem teatral em sala de aula e, sim de oficinas e aulas de teatro, não utilizaremos o termo “Teatro Político”, o que poderia levar à suposição de que nos referimos ao “Teatro da Militância” (GARCIA, 2004). Contudo, ainda permanece a pergunta: o que estamos chamando de política? A palavra política tem sua origem na Grécia “πολιτική (poliItiké)”, e significa arte de governar a cidade (polis) pelo Estado (Política in: NASCENTES, 1955, p. 409). Nicola Abbagnano (2012, p. 900-905) apresenta alguns significados que a filosofia destina à política. Um deles é o trabalhado na Ética, de Aristóteles, que a define como a ciência mais importante, devendo ser o bem mais supremo, cuja função reside em descrever a forma de Estado ideal e determinar a melhor forma de Estado possível, dependendo das circunstâncias. 24 Passando por diversos filósofos ao longo da história ocidental o conceito de política esteve ligado à organização do Estado no intuito de promover a justiça. Mais recentemente, a filósofa Hannah Arendt considerou que a vida humana se caracteriza pela práxis: é na vida ativa que chegamos à dimensão política da vida, no coletivo da vida na polis. O que amplia a dimensão de gestão do Estado para a ação e reflexão das atividades humanas na interação coletiva, sem perder de vista os princípios éticos que garantem a condição de sobrevivência da espécie humana. Ao pesquisarmos mais sobre o tema, nos deparamos com a definição de política do filósofo Rancière, desenvolvida em três de seus livros2, nos quais o assunto é tratado com exemplos e definições que nos ajudam a responder essa pergunta simples, mas de resposta complexa. Rancière (2014, p. 69) define três conceitos, que se relacionam e se distinguem, para entender política: a política3, a polícia e o político. Segundo o autor, a política é a igualdade, guiada pelo reconhecimento de que cada ser humano é igual ao outro. Nesse sentido, a política representa uma característica humana, a qual, segundo Aristóteles, está relacionada ao uso da palavra: [...] a distinção da phoné [voz] animal e do logos [palavra] humano, o poder do logos de projetar no círculo da comunidade o sentido do útil (sumpheron) e do nocivo (bladeron) e de abrir, desse modo, o reconhecimento comum do justo e do injusto (RANCIÈRE, 2014, p. 26). Devemos aqui ampliar o uso doado à palavra política, sendo esta a manifestação do pensamento (expresso pela fala e/ou corporalmente), pois, desse modo, ao reconhecer que somos iguais em inteligência, nos encontramos livres de sentimentos de inferioridade, o que muitos/as educandos/as da EJA apresentam ao se julgarem “burros” e por isso não participam nem se posicionam politicamente. Portanto, a política se inicia pelo reconhecimento da igualdade das inteligências, alcançando um processo de emancipação, de se expressar: 2 O mestre ignorante (2011); O desentendimento – política e filosofia (1996); Nas margens do político (2014). 3 Quando nos referirmos ao conceito de política definido por Rancière: “a política”, ele será grafado em itálico, conforme consta nos livros do autor. 25 A política não é o exercício do poder. A política deve ser definida por si mesma, como um modo de agir específico, que é levado a cabo por um sujeito que lhe é próprio e que depende de uma racionalidade que lhe é próprio. É a relação política que permite pensar o sujeito político e não o inverso (RANCIÈRE, 2014, p. 137, grifos do autor). Segundo Rancière (2011), apenas quando há o reconhecimento da igualdade das inteligências – num processo de emancipação intelectual –, é que se estabelecem as relações políticas. Uma vez que, para o autor, a política ocorre no momento em que verificamos que temos igualdade de inteligência para entender o que o outro fala ou como age, o que, consequentemente, nos dará liberdade de poder agir ao manifestarmos a nossa inteligência. Rancière (1996, p. 37) ilustra essa definição com uma parábola romana antiga, que se passa aos pés do Monte Aventino: “Em 1829, Pierre-Simon Ballanche publica na Revue de Paris uma série de artigos sob o título de ‘Fórmula geral da história de todos os povos aplicada à história do povo romano’”, nos quais os patrícios, ao falar aos plebeus, foram surpreendidos com a manifestação do povo, pois aqueles acreditavam que o povo não falava porque não pensava e, por sua vez, não dispunha da capacidade de compreender o que diziam. Dessa forma, os patrícios não consideravam a possibilidade de igualdade de inteligências entre eles, julgando que não eram iguais aos plebeus, motivo pelo qual os plebeus não podiam participar da vida política. A posição dos patrícios intransigentes é simples: não há por que discutir com os plebeus, pela simples razão de que estes não falam. E não falam porque são seres sem nome, privados de logos, quer dizer de inscrição simbólica na pólis. Vivem uma vida puramente individual, que não transmite nada, a não ser a própria vida, reduzida a sua faculdade reprodutiva. Aquele que não tem nome não pode falar (RANCIÈRE, 1996, p. 37, grifos do autor). Porém, os plebeus se atreveram a falar! E naquele momento, num ato político, demonstraram que possuíam inteligência igual à de seu opressor, manifestando-se e deixando claro que entenderam o que havia sido dito pelos patrícios, o que os levou a ousar se posicionar como iguais. 26 Essa reação dos plebeus em dialogar com os patrícios apresenta um processo de emancipação, pois os plebeus, para que agissem politicamente, primeiramente tiveram de reconhecer que dispunham de inteligência igual à dos que estavam falando e colocar-se como iguais a eles. Portanto, tinham o direito de manifestar o que pensavam: “Aventino é o início de nossa história – a do conhecimento de si, que faz de plebeus de ontem e de proletários de hoje homens capazes de tudo que pode um homem” (RANCIÈRE, 2011, p. 139). Em oposição à política, Rancière define a polícia, como um processo do governo que hierarquiza cargos e funções, organiza homens e mulheres em comunidade: a polícia objetiva a ordem e, se necessário, o uso da força para mantê- la. Portanto, segundo o autor, o político, sendo poder político exercido pelo governo, estaria no encontro dissonante entre a política e a polícia. Esse processo político é heterogêneo, uma vez que, a fim de manter a lei, a polícia nega a igualdade, o que causa dano à igualdade. Já a política pressupõe a igualdade e a liberdade de os sujeitos se manifestarem, o que carrega em si um sentido anárquico. O político é, nesse sentido, o confronto da polícia com a política. Desse modo, também as improvisações teatrais, como ato de se expressar espontaneamente, podem possibilitar o reconhecimento da igualdade das inteligências e dessa forma a manifestação de que a fala e o gesto se tornem um ato político do ser livre. Segundo a artista brasileira Denise Stoklos4: “Todo teatro é político, se não é de esquerda é de direita”. Nessa perspectiva, se falamos de política torna-se necessário evidenciar quais as nossas intenções, é preciso nos posicionarmos, porque a neutralidade não existe. As posições políticas norteadoras de nossa pesquisa são baseadas em Freire e Boal, no que se refere ao fato de que existe um sistema opressor que mantém as desigualdades no intuito de preservar os privilégios que sustentam os opressores. Freire, assim como Rancière, identifica que o poder político ou “o político” se utiliza da polícia para neutralizar o reconhecimento das inteligências e a reivindicação de mudanças por parte da população, uma vez que a estrutura “dependente é 4 Fala proferida no 25 de novembro de 2002, durante a aula aberta - Solos do Brasil, com Denise Stoklos, no Teatro João Caetano, na cidade de São Paulo. 27 demasiado débil para suportar a mais mínima presença das massas populares em atitude contestadora. Daí a frequente violência com que respondem aos primeiros sintomas de reivindicação popular” (FREIRE, 2015b, p. 116). Analisando essa concepção do que é a política nos deparamos, na EJA, com a negação do reconhecimento das igualdades das inteligências por parte dos/as educandos/as. Isso se deve à falta de consciência crítica dos processos políticos que levaram o Estado a negar seus direitos ao acesso e à permanência na educação quando eram crianças e/ou adolescentes. Vejamos que a Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 2013, p. 34), em seu Art. 205, define a responsabilidade da garantia à educação como dever do Estado: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família”; e, no Art. 206, inciso I, garante a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. O “Estado” ao qual nos referimos nessa pesquisa representa o tratamento que a Constituição de 1988 dá a esse termo, referindo-se às três instâncias de governo (federal, estadual e municipal) e aos três poderes (executivo, legislativo e judiciário). Assim, quando a CF/88 expressa que a educação é dever do Estado, estamos nos referindo às ações de governo para garantir o direito de todos/as à educação. Após a reabertura democrática na década de 1980, da qual a CF/88 é fruto, tivemos, ano após ano, a ampliação no número de vagas nas escolas, o que garantiu o acesso de crianças e adolescentes à escola, mas não a permanência. De acordo com dados do Censo da Educação Básica de 2015, há 1.665.333 crianças e adolescentes evadidos das escolas (MEC, 2016). E estudos desses dados apontam que os motivos do abandono escolar estão relacionados a “repetência e do desinteresse do jovem pelos estudos, motivados pela baixa qualidade do ensino e por um currículo, especialmente no ensino médio, enciclopédico e com pouca flexibilidade para escolhas” (AGÊNCIA BRASIL, 2016). Os jovens que procuram a EJA para terminar seus estudos, na maioria dos casos, estão desiludidos com as escolas estaduais (no caso do município de São Bernardo do Campo em que o ensino fundamental II e médio é oferecido pelo governo do Estado de São Paulo), ou são encaminhados para a EJA pelas próprias escolas estaduais, por serem considerados mais velhos, chegando, em alguns casos, à 28 transferência compulsória. Esses jovens, por sua vez, querem concluir, o mais rápido possível, seus estudos. Antes da década de 1980 não havia garantia do acesso escolar a todas as crianças e adolescentes, o que deixou muitos adultos em “idade escolar”5 sem serem alfabetizados e/ou concluírem o ensino fundamental II e médio. Dessa forma, o sentimento de fracasso escolar demonstrado por muitos/as educando/as (o que às vezes é entendido como uma “incapacidade pessoal”) é o que faz com que muitos deles não compreendam a dimensão política da responsabilidade (dever) do Estado quando este não garante o acesso (no caso dos adultos) e a permanência (no caso dos jovens) na escola na “idade certa”. É comum entre os/as educandos/as da EJA que se considerem como os únicos responsáveis por não conseguirem estudar, de tal modo que pensam que não possuem inteligência: “A interrupção da trajetória escolar produz nos alunos da EJA, muitas vezes, um comportamento bastante introvertido e o medo de se posicionar, de dar sua opinião” (BRASIL, 2002, p. 115). E é a partir de condições desse tipo, ou seja, na qual os/as educandos/as não se sentem à vontade para se manifestar por meio de sua própria fala, que Boal (2009a, p. 173-174) identifica os oprimidos com os “cidadãos aos quais se subtraiu o direito à palavra, ao diálogo, ao seu território, à sua livre expressão, à sua liberdade de escolha”. Freire, a partir dessa concepção de superação da opressão, propõe uma educação de ação política dada pela conscientização, pois é apenas “quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘convivência’ com o regime opressor” (FREIRE, 2015a, p. 72, grifo nosso). 5 Quando nos referimos à expressão “idade certa”, consideramos as expectativas do Estado na realização dos estudos escolares. Porém, não concordamos com essa expressão, uma vez que não existe uma idade certa para estudar. A educação é permanente para o ser humano e acontece ao longo da vida, sendo escolarizada ou não. No entanto, mantivemos essa escrita para facilitar o entendimento do leitor e estar de acordo com os órgãos governamentais que se utilizam dessa ideia. 29 Nesse sentido, entendemos que a política se inicia no reconhecimento da igualdade das inteligências (RANCIÈRE, 2011), num movimento de começar a acreditar em si mesmo. Porém, apenas essa ação não indica condição para a emancipação, pois é necessária uma ação política coletiva: Mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se esse sentimento não é um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade recente para ajudar os outros a se libertarem através da transformação global da sociedade, então você só está exercitando uma atitude individualista no sentido do empowerment ou da liberdade. [...] Apesar de se sentirem e se perceberem, no final do semestre, como alunos de primeira qualidade, alunos mais críticos, cientistas e pessoas melhores, esta sensação de liberdade ainda não é suficiente para a transformação da sociedade (FREIRE, 2011, p. 185, grifos do autor). A assertiva de Freire se assemelha à ilustração de Rancière (1996, p. 36-37), quando se utiliza da parábola do Monte Aventino, na qual, após reconhecerem a igualdade de inteligências, os plebeus agiram politicamente para intervir manifestando suas inteligências. No mesmo sentido, as práticas teatrais aqui propostas consistem numa ação de intervenção política. 30 3 EMANCIPAÇÃO: CRER EM SI PARA TRANSFORMAR A SOCIEDADE Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo. Jorge Larrosa e Walter Kohan Atualmente, a palavra emancipação vem sendo bastante utilizada. Todavia, o que se quer dizer quando se emprega esta palavra? Se recorrermos ao dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2010, p. 767), veremos que um de seus significados consiste em deixar de ficar sob a tutela de outrem, de tornar-se independente. Uma pessoa emancipada perante a lei é aquela que atinge a maioridade. Ainda segundo o Dicionário Aurélio, emancipado é definido como ficar independente e assumir a responsabilidade de seus atos. Mas o que se quer dizer quando a palavra emancipação é utilizada no contexto da educação? Rancière e Freire utilizam esse termo para sinalizar o objetivo ao qual a educação se propõe. Porém, observamos que o primeiro autor se refere à emancipação intelectual; o segundo, à emancipação social. Seriam essas definições semelhantes? Seriam consequência uma da outra? Será que ao utilizarem a palavra emancipação ambos os autores se referem à libertação? 31 Em entrevista, Rancière (in: VERMEREN; CORNU, BENVENUTO, 2003) apresenta a diferença da abordagem de emancipação em Joseph Jacotot e Paulo Freire, as quais não se opõem totalmente, porque têm algo em comum: [...] Jacotot opôs a esse projeto uma espécie de resposta “anarquista”, que consistia em dizer que a igualdade não se institucionaliza, que ela é uma decisão puramente individual e uma relação individual. Isso, sem dúvida, separa Jacotot das perspectivas de emancipação social que estão implicadas em métodos como o de P. Freire. Isso posto, se a emancipação intelectual não tem visada social, a emancipação social sempre funcionou, quanto a ela, a partir da emancipação intelectual. Foi o que tentei demonstrar na Noite dos proletariados: que um movimento de emancipação social é bem o produto de movimentos que visam, antes de qualquer outra coisa, a emancipação intelectual e individual. Há, pois, uma distância entre as intenções da emancipação intelectual jacotista e movimentos como o de Paulo Freire. Mas há algo em comum, no processo de emancipação intelectual, como vetor de movimentos de emancipação política que rompem com uma lógica social, uma lógica de instituição (RANCIÈRE in: VERMEREN; CORNU, BENVENUTO, 2003, p. 199, grifo dos autores). Antes de apresentarmos as intersecções entre emancipação intelectual e social, adentremos na raiz da palavra emancipação. A professora Graciela Frigerio (2005) apresenta, em sua palestra na Conferência6 “Educar y hacer escuela para la inclusión social y la emancipación”, a origem, da palavra emancipação é a associada a um gesto corporal pela ausência de vocabulário para expressar seu significado. Frigerio retoma os escritos de Vico7, nos quais consta o significado da palavra emancipação. Na antiguidade, como faltavam vocabulários para diversas palavras, recorriam- se aos gestos quando se queria dizer algo. Por exemplo, o ato de tomar posse de algo, pegar para si, era representado pelo gesto de colocar a mão “manús capio” sobre tal. Tanto na Idade Média como na Roma antiga o ato de pôr as mãos sobre a terra, 6 Palestra realizada em 2005, em Santa Fé, na Argentina. Transcrição da palestra disponível em: Acesso em 23 abr 2017. Disponível em: Acesso em: 25 out. 2016. 7 Filósofo napolitano do final do século XVII e início do século XVIII. 32 ou sobre um servo, representava ter propriedade, ser dono do que estava sob suas mãos. [1072] Retomaram as mancipações com as quais o vassalo punha a mão entre as do seu senhor, para significar lealdade e sujeição. [...] E, com a mancipação, voltou a divisão das coisas mancipi e nec mancipi, porque os corpos feudais são nec mancipi ou bem inalienáveis do vassalo, e são mancipi do senhor (VICO, 2015, p. 405, grifos do autor). Mancipi eram, portanto, os servos que pediam aos senhores proteção e terra para trabalhar e se tornavam propriedade do suserano. Para ser nec mancipi (não propriedade) era necessário um gesto, um esforço de quem quisesse se emancipar, não sendo algo dado mas conquistado. Segundo Frigerio, consistia num ato de emancipar o pensamento e num movimento coletivo. Este movimiento de emancipación al que aludo desde nuestra perspectiva implica o conlleva incluir ciertas viejas palabras: libertad e igualdad, es más hay algunos autores que dicen que solamente en el esfuerzo del movimiento emancipatorio que hacemos construyendo el colectivo a medida que queremos emanciparnos, que ese tiempo sería el único tiempo propiamente humano, no es que no fuéramos hombres pero seriamos realmente hombres, solamente hombres, propiamente hombres en el momento en que el movimiento por la emancipación va internándose en el colectivo que vamos constituyendo. [...] Emancipar es entonces afirmar la vida, es sacar a la vida, salirse nosotros de las condiciones que paralizan o inhiben toda discusión a acerca de la vida, la emancipación de la vida conlleva, exige, va de la mano con la emancipación del pensamiento, ambas son una y la misma cosa, vivir y pensar implican estar en un proceso de emancipación permanente y es exactamente esto, lo que voy a sostener lo que daría sentido a la vida, emanciparse es entonces resistirse al presente, cuando ese presente se ofrece como un estado de cosas que no instalan la justicia, que cualquier buena conciencia reconoce como necesaria no solo para sí sino para todos (FRIGERIO, 2005, s/p)8. 8 Este movimento de emancipação a que me refiro, da nossa perspectiva envolve ou acarreta incluir certas palavras antigas: liberdade e igualdade, e mais, há alguns autores que dizem que é no esforço do movimento emancipatório que fazemos construindo o coletivo, na medida que desejamos nos emancipar, o único tempo propriamente humano em que não erámos homens; mas seríamos homens; somente homens; homens de fato, no momento em que o movimento para a emancipação entra no coletivo que construímos. [...] Emancipar é então afirmar a vida, é trazer à vida, saímos das condições que paralisam ou que inibem qualquer discussão sobre a vida, a emancipação da vida implica, demanda, anda de mãos dadas com a emancipação do pensamento, tanto são uma e a mesma coisa, viver e pensar implicam estar em um processo permanente de emancipação e é exatamente isso, o que vou sustentar que dá 33 O que Rancière pretende, ao apresentar o pensamento de Jacotot sobre emancipação intelectual, é semelhante ao que Frigerio indica com a emancipação do pensamento. Ambos os entendimentos, portanto, andam de mãos dadas e, se encaminham a emancipação social como um ato coletivo de libertação, como defende Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (2015a, p. 71). 3.1 EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL No livro “O mestre Ignorante” Rancière (2011) apresenta o trabalho pedagógico de Joseph Jacotot, que, no século XIX, propôs ensinar aquilo que ele mesmo ignorava, defendendo que todos/as são iguais em inteligência, questionando a estrutura educacional que vive de hierarquias, em que o “mestre explicador”, superior em conhecimento, transmite o que sabe aos/as seus/as alunos/as. Lembremos que Freire se referira a esse tipo de ensino como “educação bancária”, porque ele associa o ensino tradicional a um mero depósito de conhecimentos, previamente selecionados, na cabeça dos/as alunos/a, além de associar esse tipo de abordagem pedagógica aos interesses do capitalismo, por isso a alusão ao sistema bancário. Por sua vez, Jacotot considera que apenas a emancipação intelectual possibilite a redução das desigualdades. Após seu exílio, o revolucionário francês Jacotot começa a lecionar, mesmo sendo totalmente ignorante no idioma de seus alunos, o holandês. Para tentar ensinar, pede para que os alunos leiam uma edição bilíngue, que acabava de ser lançada em Bruxelas, do “Telêmaco”, e que lhe apresentem um texto em francês do que tinham lido. Jacotot foi surpreendido ao se deparar com textos em francês bem escritos. sentido à vida, emancipar é, então, resistir ao presente, quando este é oferecido como um estado de coisas que não instalam a justiça, que qualquer boa consciência reconhece como necessária não só para si mas para todos” (tradução nossa). 34 Naquele momento, ele se questionou sobre a possibilidade de aprendizagem dos alunos sem a necessidade de um “mestre explicador”. Em sua experiência como professor nos Países Baixos, Joseph Jacotot observou em seus alunos a capacidade de aprenderem por si só, sem a ajuda de um explicador: “Até ali, ele havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos: que a grande tarefa do mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos, para elevá-los gradativamente à sua própria ciência” (RANCIÈRE, 2011, p. 19). A figura de um explicador se impõe no sistema educacional tradicional como a única forma de se ensinar. Entretanto, uma das aprendizagens mais complexas na vida é realizada sem essa figura: [...] das diversas aprendizagens intelectuais, o que todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar – a língua materna. Fala-se a eles, e fala-se em torno deles. Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam por acaso e recomeçam por método, e, em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução, são capazes, quase todos – qualquer que seja seu sexo, condição social e cor de pele – de compreender e de falar a língua de seus pais (RANCIÈRE, 2011, p. 22). Segundo Jacotot, o ir à escola tira a autonomia do aluno de aprender com a capacidade de sua inteligência. A figura do explicador diz indiretamente que apenas é possível aprender algo se alguém puder explicar, reforçando a ideia de que há “uma inteligência inferior e uma inteligência superior” (RANCIÈRE, 2011, p. 24). O processo de aprendizagem que se vale da figura do explicador gera um processo de luto no aluno, ao perceber que “compreender significa, para ele, compreender que nada compreenderá, a menos que lhe expliquem. Não é mais à férula que ele se submete, mas à hierarquia do mundo das inteligências” (RANCIÈRE, 2011, p. 25). Jacotot concluiu que os alunos “haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre” (RANCIÈRE, 2011, p. 31); e que no ato de aprender está em jogo a 35 inteligência – que em um processo de embrutecimento9 uma inteligência está subordinada a outra – e a vontade de aprender, o que Freire irá chamar de curiosidade: No ensino esqueceram-se das perguntas, tanto o professor como o aluno esqueceram-nas, e no meu entender todo conhecimento começa pela pergunta. Começa pelo que você, Paulo, chama de curiosidade. Mas a curiosidade é uma pergunta! Tenho a impressão (e não sei se você concorda comigo) de que hoje o ensino, o saber, é resposta e não pergunta. PAULO: Exato, concordo contigo inteiramente! E isso que eu chamo de ‘castração da curiosidade’. O que está acontecendo é um movimento unilinear, vai de cá pra lá e acabou, não há volta, e nem sequer há uma demanda; o educador, de modo geral, já traz a resposta sem lhe terem perguntado nada! (FREIRE; FAUNDEZ, 2011, p. 67, grifo dos autores). Portanto, segundo Jacotot, é importante a figura do mestre no ato de ensinar, mas de um mestre que seja capaz de ensinar o que ele próprio ignora, dessa forma não haverá a hierarquização dos saberes, e sim um encontro de duas inteligências e vontades que se coincidem. Nesse novo método de ensino proposto por Jacotot é essencial que o aluno seja emancipado (livre e independente). Ao mestre cabe ser consciente do poder do espírito humano sendo, ele próprio, emancipado: “Para emancipar a outrem, é preciso que se tenha emancipado a si próprio” (RANCIÈRE, 2011, p. 57), e assim fazer o aluno acreditar que ele também é capaz: “pode-se ensinar o que se ignora, desde que se emancipe o aluno; isso é, que se force o aluno a usar sua própria inteligência” (RANCIÈRE, 2011, p. 34, grifo do autor). O “‘método Jacotot’ não é melhor, é diferente” (RANCIÈRE, 2011, p. 49), por isso o que está em jogo não é a forma de abordar o processo de aprendizagem, o que se leva em conta é o princípio da emancipação. Para Rancière, a igualdade das inteligências é tanto uma crença, pelo fato que não pode ser verificada cientificamente, quanto a desigualdade das inteligências, que também não pode. Sendo assim, acreditar na igualdade é uma escolha e essa escolha demostra o tratamento que se quer dar à aprendizagem: “Nosso problema, contudo, não é 9 Reduzir ou dificultar os poderes moral ou intelectual de uma pessoa. 36 provar que todas as inteligências são iguais. É ver o que se pode fazer a partir dessa suposição. E, para isso, basta-nos que essa opinião seja possível, isto é, que nenhuma verdade contrária seja demonstrada” (RANCIÈRE, 2011, p. 72). Crer na igualdade das inteligências é ponto de partida para um processo emancipatório na educação, uma vez que “O que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência” (RANCIÈRE, 2011, p. 65). E, como já falamos, a política é um processo que depende do reconhecimento de que todos somos iguais em inteligência, pois a falta de participação política está ligada à crença na inferioridade que faz com que os indivíduos não se sintam à vontade para se manifestar: “A desigualdade das inteligências explica a desigualdade das manifestações intelectuais” (RANCIÈRE, 2011, p. 77). Rancière (in: VERMEREN; CORNU, BENVENUTO, 2003, p. 199) afirma que a emancipação intelectual, defendida por Jacotot, não tem uma intenção social, mas pode conduzir à emancipação política que rompe com a lógica social. Jacotot, por sua vez, não acreditava em uma sociedade emancipada, pois considerava que a organização hierarquizada da sociedade jamais pudesse ser emancipatória. Não pode haver um partido dos emancipados, uma assembleia ou uma sociedade emancipada. Mas todo homem pode, a cada instante, emancipar-se e emancipar a um outro, anunciar a outros esse benefício e aumentar o número de homens que se reconhecem como tais e não mais fazem de conta que são superiores inferiores. Uma sociedade, um povo, um Estado serão sempre desrazoáveis. Mas pode-se multiplicar o número de homens que farão uso, na condição de indivíduos, da razão e dominarão, na condição de cidadãos, a arte de desrazoar o mais razoavelmente possível (RANCIÈRE, 2011, p. 140, grifo do autor). A descrença de Jacotot está na forma pela qual a sociedade se organiza. Porém, ele sempre entendeu o caráter social de suas propostas, as quais dispunham de uma função de emancipação ou libertação dos menos favorecidos. Propostas que se aproximam muito das de Freire, portanto não se contrapondo a elas: 37 É, pois, preciso anunciar o Ensino Universal a todos. Antes de tudo, aos pobres, sem qualquer dúvida: eles não têm outro meio de se instruírem, não podem pagar explicadores particulares, nem passar longos anos nos bancos escolares. Acima de tudo, é sobre eles que pesa mais fortemente o preconceito da desigualdade das inteligências. São eles que devem ser reerguidos de sua posição de humilhação. O Ensino Universal é o método dos pobres (RANCIÈRE, 2011, p. 147, grifo do autor). Por mais que em uma primeira leitura não haja aproximação entre as propostas de Jacotot e as de Freire, é necessário lembrarmos que quase cem anos os separam e, guardadas as devidas particularidades entre a Europa do século XIX e a América Latina do século XX, a mesma preocupação com a exclusão dos pobres da educação os aflige. Jacotot acreditava no indivíduo como motor da transformação, fruto do crescente pensamento cientificista de sua época; Freire considerava a ação coletiva como possibilidade da transformação social, fruto da crença na resistência popular frente os regimes militares ditatoriais em países da América do Sul. 3.2 EMANCIPAÇÃO SOCIAL OU LIBERTAÇÃO A “Emancipação Social”, como Rancière (in: VERMEREN; CORNU, BENVENUTO, 2003, p. 199) denomina as propostas pedagógicas de Freire, se refere à busca por uma educação conscientizadora da condição de opressão e sua intenção de superação dessa condição por meio da libertação. A ação cultural para a liberdade representa, segundo Freire (2016, p. 147-148), uma possibilidade de mudança para o povo oprimido; assim a educação transformadora que ele propõe é um conhecimento, embasado cientificamente, da realidade, processo conquistado por meio da conscientização. 38 A conscientização é mais que uma simples tomada de consciência, pressupondo ao mesmo tempo a superação ‘da falsa consciência’, ou seja, de um estado de consciência semi-intransitiva ou transitivo- ingênua e uma melhor inserção crítica da pessoa conscientizada numa realidade desmitificada. Por isso a conscientização é um projeto impossível de ser realizado pela direita, que é, por natureza, incapaz de ser utópica, não podendo, portanto, praticar uma forma de ação cultural que levaria à conscientização. Não pode haver conscientização das pessoas sem uma denúncia radical das estruturas desumanizadoras, unida à proclamação de uma realidade nova que os homens podem criar (FREIRE, 2016, p. 146). Freire, em diversos de seus livros, busca compreender as relações histórico- culturais, no intuito de se posicionar politicamente diante das injustiças sociais e das relações de opressão introjetadas na sociedade por meio dessas relações. Dentre elas, destaca-se a cultura do silêncio, como condição necessária para a dominação, construída ao longo dos anos e que perpetua a condição de submissão de uma sociedade dependente. Só é possível compreender a cultura do silêncio ao considera-la como totalidade que faz dela parte de um conjunto mais amplo. Neste conjunto maior, também devemos reconhecer a cultura ou as culturas que determinam o caminho da cultura do silêncio. Não queremos dizer que a cultura do silêncio seja uma entidade, criada pela ‘metrópole’ em laboratórios especializados e depois levada ao Terceiro Mundo. Também é verdade que a cultura do silêncio nasça por geração espontânea. Na realidade, ela nasce da relação do Terceiro Mundo e a metrópole. ‘Não é o dominador que constrói uma cultura e a impõe aos dominados. Essa cultura é o resultado de relações estruturais entre os dominados e o dominador’ (FREIRE, 2016, p. 110). A sociedade silenciosa se constitui pela relação de dependência criada entre dominado e dominador. Ou seja, só há dominador porque alguém assume o papel de dominado. Freire considera que as relações de opressão apresentadas no Brasil, e na maioria dos países latino-americanos, se construíram historicamente a partir das relações entre a metrópole e a colônia. 39 As sociedades latino-americanas se apresentam como sociedades fechadas dede o tempo de sua conquista pelos espanhóis e portugueses, quando a cultura do silêncio tomou forma. Com exceção de Cuba pós-revolucionária, essas sociedades são ainda hoje sociedades fechadas; são sociedades dependentes, cujos polos de decisão, das quais elas são o objeto, apenas mudaram em diferentes momentos históricos: Portugal, Espanha, Inglaterra ou Estados Unidos (FREIRE, 2016, p. 113-114). Essa condição de colônia, segundo Freire (2016), permite que a metrópole continue explorando os países dominados, mantendo o controle econômico, de modo a conservar a condição extrativista de produtos primários, exportando-os a países que agreguem tecnologia na manufatura e que os retornem às colônias para serem vendidos. Essa é a chave que relaciona a manutenção da baixa escolaridade nas sociedades fechadas: se o povo se escolarizar, as relações de exploração e de dependência podem ser invertidas, porque a promoção de conhecimento permite gerar tecnologia para que haja independência econômica da metrópole. Por esse motivo, nos diversos cenários de golpes de Estado (FREIRE, 2016, p. 112-113) que vivemos na América Latina, a educação é uma das primeiras áreas a sofrer cortes orçamentários e interrupção de programas. As elites de uma sociedade dependente assumem o ideário da sociedade dominadora, não permitindo que haja avanços em seus países: “As elites desejam manter o status quo, permitindo que apenas transformações superficiais, para impedir qualquer mudança real em seu poder de prescrição” (FREIRE, 2016, p. 117, grifo do autor). Freire destaca que a cultura do silêncio não representa uma construção imposta pela metrópole: é dialética em relação à dependência cultural. As relações entre dominador e os dominados refletem o contexto social maior, mesmo em seu aspecto pessoal. Tais relações supõem que os dominados assimilam os mitos culturais do dominador. Da mesma maneira, a sociedade dependente absorve os valores e o estilo de vida da sociedade metropolitana, uma vez que a estrutura desta última molda a sociedade dependente. O resultado disso é o dualismo e a ambiguidade da sociedade dependente, o fato de que ela é e não é ela mesma, assim como a ambivalência que caracteriza sua longa experiência de dependência, numa atitude em que é atraída pela sociedade metropolitana e, ao mesmo tempo, a rejeita (FREIRE, 2016, p. 111). 40 Essa dependência, que impõe silêncio às elites diante da metrópole, é que faz calar o povo. Isso reflete uma compreensão nos níveis de consciência que Freire (2014a, p. 81) definiu como “Intransitividade da consciência”, na qual o povo, oprimido, internaliza o pensamento de que é menos e que deve aceitar essa condição. O desprezo de si é outra característica dos oprimidos que provém da interiorização da opinião que os opressores deles. De tanto ouvirem dizer que não servem para nada, que não sabem nada nem são capazes de aprender nada, que são doentes, preguiçosos e improdutivos, acabam por se convencer de sua própria inaptidão (FREIRE, 2016, p. 106). Esse pensamento não permite que o sujeito se conscientize de sua condição de opressão e tente mudar sua condição. Freire considerava possível superar a consciência ingênua por meio da conscientização de uma prática educativa libertadora. Logo, apresentou três níveis de consciência, que podem ser entendidas para a superação da opressão: “intransitiva”; “transitiva ingênua” e “transitiva crítica” (Consciência in: STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2016, p. 86-88). Ao esclarecer a educação popular, por meio do diálogo e da conscientização que denuncia as estruturas injustas, há um aumento de consciência que pode gerar uma ação cultural para a liberdade – o que também podemos chamar de emancipação. No entanto, esses níveis de consciência não se apresentam em relação a uma visão biológica dos sujeitos, mas sim, como apresentamos anteriormente, numa condição forjada por uma cultura dominante que impede o acesso ao conhecimento, mantendo o povo alienado e oprimido; e tampouco são apresentadas como uma cadeia evolutiva na qual todos precisam passar de uma para a outra. A consciência intransitiva “se caracteriza pela quase centralização dos interesses do homem em torno de formas mais vegetativas de vida” (FREIRE, 2014a, p. 81). O autor empresta a palavra “intransitiva” da gramática, em que é utilizada para identificar o verbo cuja ação não transita. Sendo assim, esse nível de consciência se apresenta de modo a se conformar com a realidade e aceitar sem questionar as condições de vida que estão dadas. 41 Num segundo momento, podemos verificar a existência de uma consciência transitiva ingênua que “se caracteriza, entre outros aspectos, pela simplicidade na interpretação dos problemas. [...] Pela impermeabilidade à investigação, a que corresponde um gosto acentuado pelas explicações fabulosas” (FREIRE, 2014a, p. 83). Nesse estado podemos verificar um nível de curiosidade: a consciência é transitiva por necessitar de ação, no entanto, ainda se mantém ingênua ao se conformar com “explicações mágicas” do tipo: “– Deus quis assim”; “Manga com leite faz mal”, que não se aprofundam no conhecimento. A ação cultural de conscientização leva à consciência transitiva crítica, “a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas” (FREIRE, 2014a, p. 84). Podemos observar que para determinados assuntos e situações pode haver uma compreensão ingênua; para outros, é possível uma visão crítica da realidade. A conscientização se dá por meio de uma educação ao longo da vida: estamos sempre aprendendo. E apenas por meio de uma educação crítica, que questione e denuncie as injustiças, será viável uma ação coletiva transformadora das opressões, anunciando que são possíveis as mudanças. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo, o nosso sonho. É a partir deste saber fundamental – mudar é difícil mas é possível – que vamos programar nossa ação político-pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de mão de obra técnica (FREIRE, 2015c, p. 76-77, grifo do autor). 42 Desse modo, a emancipação vislumbrada por Freire (2014b, p. 76-77), também entendida como libertação, não acontecerá apenas em níveis intelectuais, mas na ação e na reflexão: o sujeito, ao se conscientizar da realidade, terá de agir num processo de comprometimento radical com a transformação do mundo. 43 4 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: PERCURSOS E CONCEPÇÕES A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber que não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Paulo Freire A consciência de que somos inacabados, incompletos, inconclusos, é o que diferencia os seres humanos dos outros animais. Os seres humanos vivem em constante busca. Sentem necessidade de ser mais, de saber mais, de amar mais e de fazer mais: O cão e a árvore também são inacabados, mas o homem se sabe inacabado e por isso se educa. [...] é um ser na busca constante de ser mais e, como pode fazer esta autorreflexão, pode descobrir-se um ser inacabado, que está em constante busca. Eis aqui a raiz da educação (FREIRE, 2014b, p. 33-34). E é essa característica que faz com que a educação não possa se restringir a um único período, mas tem de se dar ao longo da vida, por meio de processos formais e informais de educação. No Brasil, a EJA é associada a uma modalidade10 de ensino que se dedica a proporcionar escolarização a pessoas que por vários motivos não estudaram quando 10 A LDB de 1996 define no TÍTULO V os níveis e as modalidades de Educação e Ensino. São níveis: a educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; e educação superior. São modalidades: educação de jovens e adultos, a educação profissional e a educação especial 44 crianças e/ou adolescentes. Mas essa é uma visão limitada da educação de pessoas jovens e adultas. Quem são os estudantes das universidades? São jovens e adultos. E por que não nos referimos a esse ensino com sendo Educação de Jovens e Adultos? Em países onde não se verificam índices de analfabetismo ou de falta de escolarização em jovens e adultos, há também uma educação voltada a jovens e adultos. A educação, nesses países, ocupa posição de destaque para pessoas jovens, adultas e idosas, em cursos de atualização, qualificação, aprendizagem de novas tecnologias e fruição cultural (DI PIERRO In: CATELLI JR, 2017, p. 12). A VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA), organizada pela Unesco, que ocorreu em Belém, no Pará, no final de 2009, defendeu em seu documento oficial, o Marco de Ação de Belém, o fortalecimento do direito à educação ao longo da vida para todos. É importante destacarmos que a educação ao longo da vida não deve ser oferecida apenas na idade adulta, e sim em todas as idades “do berço ao túmulo”, conforme apontado no documento (2010, p. 6). No documento da CONFINTEA IV, os termos “educação ao longo da vida” e “aprendizagem ao longo da vida” são tratados como sinônimos. Todavia, segundo Moacir Gadotti, em seu artigo Educação Popular e Educação ao Longo da Vida (s/d, p. 3), há distinções de tratamento, pois o conceito “educação ao longo da vida” surge pela primeira vez na Inglaterra em 1919 (Lifelong Education, Education for Life) associado à formação profissional dos trabalhadores. É somente em 1972, quando a Unesco lança o livro Aprender a ser (que ficou conhecido como relatório de Faure), que a expressão “educação ao longo da vida” ganha o sentido de educação (formal e informal) durante a vida toda. Porém, na Inglaterra utilizou-se a expressão “Lifelong” (aprendizagem), e na França, “Éducation” (Educação), por esse motivo a CONFINTEA IV se utiliza das duas expressões. No Brasil, a expressão inglesa “Lifelong Learning” foi traduzida como “educação permanente” ou “educação continuada”, e somente a partir dos anos de 1990 a expressão foi traduzida como “educação ao longo da vida” se aproximando do conceito original (DI PIERRO In: CATELLI JR, 2017, p. 18-19). 45 Porém, cabe destacar que, tão importante quanto defender a educação ao longo da vida, é também se atentar ao que se aprende. A escolha da concepção pedagógica pode proporcionar uma aprendizagem transformadora se ela se direcionar por uma abordagem crítica, como as propostas de educação popular de Paulo Freire; ou proporcionar alienação, tratando alunos/as como clientes ou consumidores, como as propostas pedagógicas internacionais pautadas pelo neoliberalismo. No Brasil, há um longo caminho para efetivarmos a ideia de educação ao longo da vida para além da identificação da Educação de Jovens e Adultos que temos hoje, com a associação ao analfabetismo, a baixa escolaridade ou falta de formação profissional. Isso se dá pelos processos históricos que vivemos no Brasil em que pessoas de baixa renda têm seus direitos à educação violados por ausência, dificuldades de acesso às escolas, ou pela má qualidade de ensino, o que promove evasão e desinteresse na continuidade dos estudos. Por isso a EJA é levada a cumprir o papel de garantir esse direito à educação que, em algum momento, foi interrompido. Segundo Maria Clara Di Pierro e Sérgio Haddad, no artigo Escolarização de jovens e adultos (2000), a trajetória da EJA no Brasil começa ainda no período colonial, com a ação educativa missionária dos Jesuítas que, além de evangelizar, ensinavam ofício para o trabalho na colônia aos indígenas e posteriormente aos africanos traficados da África que foram escravizados. Já no Império, a primeira Constituição, de 1824, sob influência do Iluminismos, garante instrução primária a todos os cidadãos, o que não passou de intenção legal, pois nesse período apenas uma pequena parcela da população, a elite, tinha acesso à educação: “chegaríamos em 1890 com um sistema de ensino atendendo apenas 250 mil crianças, em uma população total estimada de 14 milhões. Ao final do Império, 82% da população com idade superior a cinco anos era analfabeta” (DI PIERRO; HADDAD, 2000, p. 109). No final do século XIX o quadro não foi alterado com a Primeira República. A Constituição de 1891 definiu que os adultos analfabetos não podiam votar, o que deixava para as elites escolarizadas as decisões eleitorais. Em 1920, depois de 30 anos de República “72% da população acima de cinco anos permanecia analfabeta” (DI PIERRO; HADDAD, 2000, p. 110). 46 Na constituição de 1940, durante o Estado Novo, é que a EJA será tratada de forma particular. Em 1945, a recém-criada Unesco denunciava as desigualdades entre os países e categorizava como “atrasadas” as nações sem cuidado com a Educação de Jovens e Adultos. Em 1947, é criado o Serviço de Educação de Adultos (SEA) e seguem-se várias campanhas para a erradicação do analfabetismo, o que fez “cair os índices de analfabetismo das pessoas acima de cinco anos de idade para 46% no ano de 1960” (DI PIERRO; HADDAD, 2000, p. 111). Em 1958, no II Congresso Nacional de Educação de Adultos, realizado no Rio de Janeiro, o professor Paulo Freire apresenta suas práticas, propondo uma abordagem metodológica que considere os saberes dos/as educandos/as adultos/as, numa educação “com” e não “para” eles/as, visto que a percepção que até então se tinha dos adultos não escolarizados era a de pessoas imaturas e ignorantes. Em 1963 (adiante apresentaremos mais detalhadamente as contribuições de Freire nesse período), Freire é convidado a coordenar o Programa Nacional de Alfabetização, o qual não chega a ser posto em prática pois é interrompido pelo Golpe civil-militar de 1964, que o levou ao exílio após responder dois inquéritos policial-militar (em Recife e no Rio de Janeiro) que classificaram de subversivo o movimento de educação popular que ele desenvolvia. Interrompidos os avanços para os quais caminhava a Educação de Adultos, surgiram programas de caráter conservador: em 1967, é fundado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL); em 1971, é implantado o Ensino Supletivo. O desinteresse do governo federal era tanto que o Mobral recebia patrocínio da iniciativa privada, que obtinha abatimento do valor doado no Imposto de Renda, numa visão puramente capitalista que buscava atender aos interesses do mercado, como podemos ver no cartaz da época: 47 Figura 1 – Cartaz do MOBRAL Fonte: Cultura Mix.11 Somente após a reabertura democrática em 1985 as propostas pedagógicas, que tinham sido interrompidas com o golpe de 1964, começam a ser retomadas. Na Constituição Cidadã de 1988, a Educação de Jovens e Adultos volta a ser tratada como dever do Estado e se mostra atenta às especificidades desta modalidade: 11 Disponível em: . Acesso em: 08 dez. 2017. 48 Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...] VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando (BRASIL, 2013, p. 35). Em 1989, de volta ao Brasil, Paulo Freire assume a Secretaria de Educação da prefeitura de São Paulo, da então prefeita Luiza Erundina, do Partido do Trabalhadores. Em oposição ao MOBRAL, cria o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), coerente a seus princípios pedagógicos e sua história de vida. Freire sempre teve clareza de que uma ação educativa não pode prescindir da ação política, o que se torna evidente em sua biografia: desde suas práticas na EJA nas Zonas dos Mocambos, em Pernambuco, passando por Angicos, no Rio Grande do Norte, e chegando ao início do Programa Nacional de Alfabetização. Ao encarar a ação política intrínseca à educação, Freire expõe quais posições políticas assume em suas propostas pedagógicas: coloca-se ao lado da defesa dos mais pobres e contra todo tipo de opressão. Sua postura é em defesa da vida humana, o que o situa, necessariamente, em lado oposto daqueles que defendem interesses do capital. Um recorte na vida de Freire, realizado por Ana Maria de Araújo Freire (1996) em “A voz da esposa: a trajetória de Paulo Freire”, mostra com clareza que ele esteve certo em afirmar que educação e política andam juntas. Aos 22 anos de idade iniciara o curso de Direito, porém, não chegaria a advogar, ao perceber que a profissão o colocaria em situações das quais discordaria por questões éticas. Freire direcionou sua vida ao trabalho docente e lecionou no mesmo colégio em que havia estudado. De 1947 a 1954, foi diretor do setor de Educação e Cultura do SESI, onde teve seu primeiro contato com a educação de adultos. 49 Em 1958, no II Congresso Nacional de Educação de Adultos, no Rio de Janeiro, apresentou o relatório: “A Educação de Adultos e as Populações Marginais: o problema dos Mocambos”, no qual, segundo Ana Freire, ele afirmava: [...] que a educação de adultos das Zonas dos Mocambos existentes no Estado de Pernambuco teria de se fundamentar na consciência da realidade da cotidianidade vivida pelos alfabetizandos para jamais reduzir-se num simples conhecer de letras, palavras e frases (FREIRE, Ana. 1996, p. 35). Ainda em Recife, começa a desenvolver uma proposta pedagógica – denominada por muitos de “método” de alfabetização para adultos – na qual a leitura do mundo precede a leitura da palavra, evidenciando que, num processo educacional, a intencionalidade deve ser o despertar da consciência crítica da realidade; não aceitando as coisas como são, de modo “ingênuo”, mas sim na busca de ação transformadora a partir de denúncia e anúncio (FREIRE, 2015b, p. 95). Em 1959, Freire obteve título de Doutor em Filosofia e História da Educação; em 1961, foi nomeado professor efetivo de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Recife; no início da década de 1960, se envolveu com o Movimento de Cultura Popular (MCP) sendo um de seus fundadores em Recife (FREIRE, Ana. 1996, p. 34-40). No MCP valorizava-se a cultura popular por meio de incentivos à participação do povo na sociedade brasileira. Ali Freire criou os “círculos de cultura” (Círculo de Cultura in: STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2016, p. 69), nos quais as pessoas se organizam em roda, sem que ninguém se destaque, e a palavra circula entre todos e o diálogo é estabelecido, possibilitando que educadores/as e educandos/as ensinem- e-aprendam juntos. Em 1962, assume o cargo de Diretor do Serviço de Extensão da Universidade de Recife (GERHARDT, 1996, p. 154), o que permitiu que, em 1963, estabelecesse convênio com o estado do Rio Grande do Norte, que o convidou a organizar e dirigir a campanha de alfabetização de Angicos – cidade do sertão localizada no interior do Rio Grande do Norte. 50 Somente em Angicos foram alfabetizados 300 trabalhadores/as em 45 dias (WEFFORT. in: FREIRE, 2014a, p. 17), o que tornou Freire conhecido nacionalmente e motivou o presidente da República João Goulart, que se impressionara com os resultados, a comparecer à formatura. Em decorrência do projeto de Angicos o ministro da educação Paulo de Tarso Santos convidou para realizar uma campanha nacional de alfabetização (FREIRE, Ana. 1996, p. 40-41). E, em 21 de janeiro de 1964, instituiu-se o Programa Nacional de Alfabetização, pelo Decreto nº 53.465, mediante o uso do “Sistema Paulo Freire” (BRASIL, 1964. In: FREIRE, Ana. 2017, p. 144). O Programa previa “mais de vinte mil Círculos de Cultura em todo o País” (FREIRE, 2014a, p. 158), o que, segundo Ana Freire (1996, p. 41) “tencionava alfabetizar, politizando, 5 milhões de adultos” e ocasionar mudança significativa na política nacional, dando ao povo mais poder de influenciar as eleições em todo o território nacional. Vale destacar que na época apenas os cidadãos alfabetizados podiam votar. Na eleição presidencial de 1960, o número de votantes era de pouco mais de 12 milhões de eleitores.12 No entanto, a partir do Programa Nacional de Alfabetização esse número aumentaria significativamente. Além disso, podemos observar a clara relação entre política e educação nos acontecimentos que sucederam ao dia 01 de abril de 1964, ou seja, a instauração do golpe civil-militar no Brasil. Freire, um dos primeiros a ser perseguidos pelo regime, sofre inquérito policial-militar, no Recife, e é acusado de utilizar método subversivo de alfabetização; em 14 de abril do mesmo ano é extinto o Programa Nacional de Alfabetização através do Decreto nº 53.886 (FREIRE, Ana. 1996, p. 42). Freire, que estava no Recife, é chamado a responder interrogatório militar no Rio de Janeiro, o que o faz solicitar asilo na embaixada da Bolívia, para onde parte em setembro de 1964. Em 1980, após 16 anos de exílio, retornará ao Brasil, devido ao acordo de Anistia firmado em 1979. 12 Disponível em: ; . Acesso em: 02 jan. 2017. 51 As propostas pedagógicas de Freire tanto na época da ditadura quanto hoje, no sistema democrático, são um poderoso instrumento de politização e conscientização do povo. Ou seja, uma pedagogia para a libertação que desestabiliza a ideologia dominante. Uma ideologia que pode gerar ações extremas, como no caso do regime militar de 1964 e em golpes de Estado, nos quais a democracia é deixada de lado em favor de interesses das elites. É importante destacar que, em todas as épocas, aqueles que afirmam ser possível uma educação neutra são justamente os que mais sabem que educação consiste numa ação política, cujo processo educativo de conscientização da realidade do povo ameaça as condições de privilégios dessas elites, promovendo lutas contra as injustiças e as opressões. E, nesse entendimento de que educação é uma ação política, realizamos nossa pesquisa na cidade de São Bernardo do Campo (SP). A partir de 2009, tendo como base as concepções de educação de Freire, a prefeitura iniciou a ampliação13 da EJA no município, baseando-se em princípios de uma educação popular ao longo da vida, com cursos de alfabetização, elevação de escolaridade e ensino profissional (durante o governo do prefeito Luiz Marinho, do Partido do Trabalhadores, que manteve essa concepção até o ano de 2016, quando chegou ao fim o segundo mandato desta gestão). No período, foram produzidas diversas publicações que nos possibilitam entender concepções e práticas em que a EJA da rede municipal, em 2010, é apresentada: a “Revista HAJA EJA”; as “Diretrizes Curriculares da EJA”; e o “Catálogo da Educação Profissional de São Bernardo do Campo”, de 2012; cinco “Práticas Pedagógicas: experiências e vivências em EJA (2013; 2014; 2015 e dois em 2016) e a “Reconstrução dos planos de curso” em 2016. 13 Durante o Regime militar a cidade teve MOBRAL e depois, a partir de 1993 realiza o Programa Municipal de Alfabetização e Cidadania – PROMAC, em parceria com a Universidade Metodista de São Bernardo do Campo. 52 Figura 2 – Algumas Publicações da EJA em SBC, de 2010 a 2016 Fonte: Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo. Pela primeira vez, a cidade assumiu a EJA como parte de sua estrutura de rede, contratando profissionais por concursos públicos e ampliando a oferta com a abertura de oito novas escolas dedicadas exclusivamente à EJA e à Educação Profissional – com cursos nos seguintes eixos tecnológicos: Alimentação; Ambiente e saúde; Confecção; Construção civil; Imagem Pessoal; Tecnologias Digitais da informação e Comunicação; Meio ambiente, Cultura e Sustentabilidade; Produção Moveleira. Também ampliam para todo o município, em escolas já existentes, cursos noturnos com elevação de escolaridade para 1º segmento – Alfabetização e Pós Alfabetização, correspondentes ao ensino fundamental I de 1ª à 4ª séries e 2º segmento, correspondente ao ensino fundamental II em duas possibilidades: turmas de 5º, 6º, 7º e 8º termos cada uma cursada em um semestre; e o formato Ciclo de Auto-gestão do Conhecimento Presencial e Modular (CAGECPM), com estudo de duas a três matérias por semente com um mesmo professor, em módulos que duram um ano e meio; além da parceria estabelecida com o MOVA, que permitiu abertura de salas de aula em diversas comunidades fora das instituições de ensino formais. 53 O currículo foi organizado de modo a valorizar os saberes dos/as educandos/as, eliminando os limites do ensino disciplinar e ampliando eixos de conhecimento de forma que cada professor/a possa trabalhar os conteúdos de suas áreas nos seguistes eixos: Memória e Territorialidade; Meio Ambiente e Saúde; Cultura e Trabalho; Linguagens – oral, escrita, tecnológica, corporal e matemática. Tão importante quanto o crescimento das matrículas na EJA é o como trabalhar com a pluralidade dos sujeitos que dela fazem parte. Considerar quem são esses sujeitos implica pensar sobre as possibilidades de transformar a escola que os atende em uma instituição aberta, que valorize seus interesses, conhecimentos e expectativas, que favoreça a sua participação. Em seu fazer pedagógico é imprescindível ao educador/a, a identificação dos sujeitos envolvidos no processo, sem o conhecimento claro e preciso destes, fica impossível o estabelecimento de uma relação entre teoria e prática pedagógica (PREFEITURA DE SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2012, p. 5). E foi nesse contexto que realizamos quatro experiências práticas de improvisação com educandos/as em três escolas da rede municipal de São Bernardo do Campo. Nosso objetivo consistiu em desenvolver propostas que pudessem ser observadas num processo emancipatório, abordando concepções da política segundo Rancière; numa educação que prezasse a conscientização, conforme Freire; e numa abordagem teatral que nos permitisse discutir o sistema de opressões a partir das propostas do Teatro do Oprimido, de Boal. Aqui, nos referiremos a cada uma das quatro turmas pesquisadas como “experiências”, no sentido de “uma experiência” como John Dewey nos apresenta em seu livro “Arte como Experiência” (2010), partindo da ideia de que cada vivência é singular, marcante, integral, memorável, e a cada novo passo, fluxo, se torna transformadora. Como, aliás, se pretendem as práticas propostas. Nas duas primeiras escolas, realizamos a primeira e segunda experiências em formato de oficina. 54 A primeira experiência, realizada na EMEB Arlindo Miguel Teixeira e a segunda, na EMEB Professora Janete Mally Betti Simões. Nessas escolas, num dia específico da semana, a EJA se organiza para oferecer diversas oficinas (informática, Hip-Hop, aprofundamento em português e matemática, artesanato, teatro e dança de salão dentre outras), nas quais os/as educandos/as podem escolher livremente em qual participar. Embora a maioria das aulas nessas duas escolas tivessem o mesmo tipo de planejamento, o exercício de escuta de cada turma nos levou a práticas distintas, uma vez que as propostas não se mostravam fechadas, impostas. Dessa forma, nosso planejamento diverge do sistema de ensino criticado por Freire (2015a, p. 79-106), a educação bancária, que se volta a um tipo de ensino que prioriza uma educação verticalizada na qual o aluno aprende e o professor ensina. Realizamos a terceira e a quarta experiências na EM Olegário José de Godoy, mas sua organização foi diferente das duas anteriores. Nessa unidade escolar eram ofertados cursos profissionalizantes de imagem pessoal (cabeleireiro, manicure, maquiagem depilação e design de sobrancelhas), elevação de escolaridade na modalidade EJA e realizado o Programa de Educação do Adolescente para o Trabalho (PEAT). Desenvolvemos a terceira experiência com quatro turmas do segundo segmento (fundamental II), dentro das aulas de arte, e nossa abordagem sofreu uma alteração radical, o que influenciou os resultados obtidos, se comparado às duas primeiras escolas pesquisadas. Já a quarta experiência aconteceu com os jovens participantes do PEAT, os quais receberam bem as propostas e o trabalho, resultando em desdobramentos positivos. Vale observar que na EJA/SBC, no início do processo de ensino-aprendizagem com uma turma, são realizados alguns procedimentos pedagógicos denominados de “Caracterização”, em que são identificadas as “Falas Significativas” que vão gerar “Problematização”, dessa forma buscando-se a superação das “Situações-Limites” (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2016, p. 126; 328-330; 375-376) dos/as educando/as, conforme a pedagogia de Freire. A seguir, apresentaremos as características de cada uma das escolas envolvidas na pesquisa e as particularidades das abordagens práticas desenvolvidas. 55 4.1 ESCOLA ARLINDO MIGUEL: PRIMEIRA EXPERIÊNCIA A EMEB Arlindo Miguel Teixeira (anteriormente chamada de “EMEB DO JARDIM LAURA”), a primeira escola onde realizamos a pesquisa, localiza-se na Estrada dos Alvarengas, 7500, Jardim Laura (Bairro Alvarenga), ao lado da Represa Billings. Inaugurada em março de 2000, depois de várias reivindicações e discussões dos moradores do entorno