Alba Krishna Topan Feldman As muitas plumagens do pássaro vermelho: resistência e assimilação na obra de Zitkala-Ša São José do Rio Preto 2011 � Alba Krishna Topan Feldman As muitas plumagens do pássaro vermelho: resistência e assimilação na obra de Zitkala-Ša Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, do Programa de Pós-Graduação de Letras, Área de Concentração – Teoria da Literatura, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientadora: Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes São José do Rio Preto 2011 � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � Feldman, Alba Krishna Topan. As muitas plumagens do pássaro vermelho : resistência e assimilação na obra de Zitkala-Ša / Alba Krishna Topan Feldman - São José do Rio Preto : [s.n.], 2011. 220 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Giséle Manganelli Fernandes Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Literatura – História e crítica – Teoria, etc. 2. Literatura americana – História e crítica. 3. Escritores indígenas. 4. Mulheres na literatura. 5. Zitkala- Ša, 1876-1938 - Crítica e interpretação. I. Fernandes, Gisele Manganelli. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 821.11(73).09(=87) Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE Campus de São José do Rio Preto - UNESP � � � � � � � Alba Krishna Topan Feldman As muitas plumagens do pássaro vermelho: resistência e assimilação na obra de Zitkala-Ša Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, do Programa de Pós-Graduação de Letras, Área de Concentração – Teoria da Literatura, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Banca Examinadora Profa. Dra. Giséle Manganelli Fernandes UNESP – São José do Rio Preto Orientadora Prof. Dr. Thomas Bonnici UEM – Maringá/PR Prof. Dr. Paulo Sérgio Nolasco dos Santos UFGD – Dourados/MS Profa. Dra. Norma Wimmer UNESP – São José do Rio Preto Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto 2011 AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, à Divindade, seja qual for o nome que receba em todas as diversas culturas que habitam a Terra. Agradeço à infinita paciência, competência e dedicação de minha orientadora, Professora Doutora Gisele Manganelli Fernandes, sem a qual teria me perdido no caminho. Agradeço ao Professor Doutor Thomas Bonnici, incentivador e exemplo, responsável em primeira e última instância pelo fato de este doutorado acontecer. À CAPES, pela bolsa, pelas orientações e todo auxílio. Aos meus amigos de São José do Rio Preto, da UNESP, grandes amigos que me auxiliaram nas grandes dúvidas e dificuldades, especialmente à minha querida Simone e à sua família, pelo apoio e pelo carinho com que fui recebida. À minha família, que agüentou meus maus humores e estresses com uma paciência exemplar, especialmente meus pais, minha irmã Ângela, meu sobrinho Bruno e minha sobrinha Giovana. Ao meu marido, José Feldman, que, mesmo com os estresses e todos os percalços nesses quatro anos de doutorado, nunca deixou de me auxiliar e de me apoiar. Aos amigos que opinaram e acompanharam a gestação e o nascimento desta tese com interesse e carinho, como a minha irmã de coração, Lila. A meus colegas de trabalho de todas as faculdades e universidades em que trabalhei nesse tempo, pela compreensão com as dificuldades de horário e outras. Um agradecimento especial a todos os meus amigos das diversas tribos com as quais entrei em contato nos EUA, especialmente meu avô de coração, Grandpa Sage, minha irmã cherokee Spirit Raven Warrior, vovó Rose, chefe Walking Eagle, e Dennis, valentes guerreiros Cherokee. Também estendo à minha orientadora em Louisville, Gabriela Nuñez, por sua paciência e sua eficiência em orientar minha pesquisa, inclusive em tempos difíceis que passei por lá. Agradeço também ao meu amigo irlandês de nascimento e índio de coração, Andy, e a três amigas com quem tive a honra de compartilhar um pouco de minha vida nos EUA, Connie, Judy e Sharon, e a todas as pessoas maravilhosas da University of Louisville, professores e funcionários, que me auxiliaram em minha jornada. Um avô conversava com o neto sobre sentimentos. Ele fala: - Eu sinto como se tivesse dois lobos lutando em meu coração. Um dos lobos é vingativo, raivoso e violento. O outro é manso, amoroso e compassivo. - E qual lobo vence a luta em seu coração, avô? – perguntou o neto. Ao que o avô respondeu: - Aquele que eu alimentar. (História ouvida de uma avó Dakota em torno da fogueira durante a Sun Dance.) � RESUMO Zitkala-Ša, autora de ascendência indígena norte-americana, atingiu certo sucesso durante o período em que viveu. Naquela época, foi criticada, mesmo por outros indígenas, por suas atitudes consideradas assimiladas. O principal objetivo desta tese é analisar os aspectos que representam resistência e assimilação na obra de Zitkala-Ša, com foco na resistência. Defende-se, neste trabalho, a tese de que as ações, que aparentemente são assimiladas, como o discurso elogioso e o uso da língua inglesa, podem ser lidas como uma agenda de resistência e de sobrevivência do indígena. Zitkala-Ša executou sua resistência por meio da mistura de gêneros e estilos literários, do discurso político e, principalmente, por meio do uso de técnicas indígenas tradicionais, como a manipulação do simbolismo e da metáfora, a arte de contar histórias e seu ajuste à língua inglesa e aos acontecimentos contemporâneos. A recuperação de heróis e seres mitológicos, o registro de cerimônias, a forma de educação e transmissão do conhecimento Dakota e a figura do trickster marcam a instância e a sobrevivência da cultura indígena. Por um longo período ela foi considerada uma indígena assimilada, mas a escrita autobiográfica e as lendas indígenas que Zitkala-Ša recuperou de sua infância são denúncias contra as políticas do governo, como a lei de distribuição de terras e as instituições como os internatos indígenas (boarding schools) e serviram como modelos a escritores indígenas modernos. Palavras-chave: Zitkala-Ša. Resistência. Escrita indígena norteamericana � ABSTRACT Zitkala-Ša, an author of Native American ascendance, achieved some success during the time when she was alive. At that period, she was criticized even by her peers for her actions and writing sometimes considered assimilated. The main objective of this dissertation is to analyze the aspects that represent resistance and assimilation in Zitkala-Ša`s work, focusing on resistance. This dissertation addresses the fact that the actions such as laudatory discourse and the use of the English language, which are seemingly considered assimilated, can be read as a resistant agenda of survival. Zitkala-Ša accomplished this by mixing literary genres, such as fiction, essays, political discourse and the use of Native American traditional techniques, as storytelling, manipulation and adjustment of the English language, the figure of the trickster, the recalling of oral legends and characters, and the insistance on issues related to the Native American culture. For a long period, she was regarded as an assimilated Indian, but her work can also be approached as a sign of resistance to the governmental policies against the Native people, to the assimilationist projects of the boarding schools in particular, and to the Euro-American culture in general. The study of her work is relevant today because she is a role model for current Native writers and for other people who were silenced. Keywords: Zitkala-Ša, Resistance, Native American writing � ÍNDICE DAS FIGURAS Figura 1 – Família Sioux retratada em frente à sua tenda, retratada por Gertrude Kasebier (2007) .........................................................................................................10 Figura 2 – Mapa das tribos ainda existentes nos EUA e sua localização em Nações e tribos...........................................................................................................................11 Figura 3 – Visão parcial de cassino temático dentro de uma reserva indígena, a reserva Moicana .........................................................................................................21 Figura 4 - Chefe Luther Standing Bear em roupa para a comundade branca, e vestido de chefe indígena para suas atuações em Hollywood, onde foi um dos primeiros índios do cinema.........................................................................................................25 Figura 5 - Charles Eastman, juntamente com Carlos Montezuma ............................25 Figura 6 - Carlos Montezuma, que chegou a ser noivo de Zitkala-Ša e trocou com ela intensa correspondência por toda a vida.....................................................................26 Figura 7 - Calendário Kiowa escrito na pele de um búfalo trabalhada, representando os fatos importantes da tribo entre os anos 1833 e 1892 ............................................29 Figura 8 - Wovoka, o homem sagrado dos Paiute, cuja visão iniciou o movimento pacífico da Ghost Dance (Dança Fantasma) .............................................................31 Figura 9 - Ilustração de Angel de Cora para a lenda Iktomi and the Muskrat. A ilustradora humaniza as duas personagens animais: Iktomi, a Aranha, e o Rato Almiscarado. (Zitkala-Ša, 1902) ...............................................................................47 Figura 10 - Outra ilustração de Angel De Cora, agora para a lenda Dance in a Buffalo Skull ............................................................................................................................48 � Figura 11 - Zitkala-Ša em roupas europeias e indígenas...........................................61 Figura 12 - Modelo de cobertor indígena e como ele é utilizado ..............................77 Figuras 13 e 14 - Vestido cerimonial de contas e couro de alce feito entre 1870 e 1900 por mulheres das tribos das planícies.................................................................78 Figura 15 - Tenda indígena (wigwan ou teepee – aberto para o verão) ....................80 Figura 16 - Pintura de Pocahontas...........................................................................108 Figura 17 - Grupo de estudantes reunidos no pátio da Carlisle Indian School ....... 110 Figura 18 - Henry Pratt, fundador e diretor da Carlisle Industrial School .............. 117 Figuras 19, 20, 21 e 22 - Parte do projeto assimlacionista, estas são figuras de crianças indígenas que estudaram nas boarding schools. São chamadas de fotos de antes e depois Grupo Apache quando chegou à Carlilsle School em 1887 e depois do processo de assimilação............................................................................................120 Figura 23 - Foto de camisa de um guerreiro indígena, feita provavelmente de couro de gamo e com belo trabalho em contas, datando do final do século XIX ..............135 Figura 24 - Touro Sentado .......................................................................................139 Figura 25 e 26 - Fotografias do massacre de Wounded Knee. Á direita, Blackfooot, o chefe Sioux do grupo exterminado...........................................................................181 Figura 27 - Pintura feita por um dos dançarinos da Dança do Sol, representando cerimônia e sua simbologia de ligação entre o céu e a terra....................................184 Figura 28 - Hanson e Zitkala-Ša..............................................................................190 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................................. 16 2.1 CONHECENDO O PÁSSARO VERMELHO: SOBRE A AUTORA...................... 16 2.2 ESTUDOS DE OBRAS DOS INDÍGENAS.............................................................. 17 2.3 A ESCRITA INDÍGENA ........................................................................................... 27 2.4 O TRICKSTER............................................................................................................ 40 2.5 ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA ........................................................................ 51 3 ANÁLISE DAS OBRAS.............................................................................................. 54 3.1 O ESTADO DA QUESTÃO ...................................................................................... 54 3.2 A (IMPOSSÍVEL) CLASSIFICAÇÃO DE ZITKALA-ŠA ......................................... 61 3.3 AMERICAN INDIAN STORIES.................................................................................. 69 3.4 OLD INDIAN LEGENDS – RECONSTRUINDO O MODO NARRATIVO INDÍGENA....................................................................................................................... 149 3.5 DREAMS AND THUNDER AND THE SUN DANCE OPERA .................................. 171 3.5.1 The Sun Dance Opera ............................................................................................ 183 4 UM PÁSSARO COM MUITAS PLUMAGENS: AS ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA EM ZITKALA-ŠA.............................................................................. 194 4.1 TROPOS, GÊNEROS E CULTURA INDÍGENA..................................................... 194 4.2 O TRICKSTER EM AÇÃO......................................................................................... 202 5 CONCLUSÕES .......................................................................................................................212 6 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 214 � Figura 1- Foto de uma família Oyate (Sioux) em frente à sua tenda (também conhecida como Teepee ou Wigwam). Por Gertrude Kasebier. Foto tirada em torno de 1900 (impressa em livro em 2007 Figura 2 - Mapa das principais tribos e nações ainda presentes nos EUA. � 1 INTRODUÇÃO Esta tese surge da paixão pela literatura indígena desde o mestrado. Ela tem uma configuração um pouco diferente das demais teses, porque não é fruto apenas da pesquisa acadêmica no doutorado em São José do Rio Preto e em Louisville, mas também fruto de uma imersão e experiência pessoal no objeto de estudo através de um doutorado sanduíche nos EUA. Ali participamos de vários eventos envolvendo a cultura indígena, especialmente uma Dança do Sol, que enriqueceram e confirmaram muitas das informações acadêmicas adquiridas no decorrer de nossa pesquisa. Na atualidade, os estudos literários estenderam seu escopo para assuntos que vão muito além do texto em si: linhas críticas como a Crítica Feminina, os Estudos Culturais, os Estudos Pós-Coloniais, que, de alguma forma, serão abordados nesta tese, abriram novas perspectivas sobre a teia de linguagem e significados presentes em uma obra e seus efeitos, tanto na construção como na reavaliação de conceitos das culturas, da noção de poder e, notadamente, do comportamento humano. Em consequência, manifestações artísticas de grupos diversos passaram a ser discutidas e, assim, tornou-se necessária uma revisão do cânone literário. Com isso, escritores que estiveram esquecidos durante anos, passaram a ser (re) lidos e (re) avaliados e textos de autores como Zitkala-Ša foram retomados. O objetivo desta tese é analisar a escrita de Zitkala-Ša, com enfoque nos mecanismos linguísticos e nos aspectos que apresentam a resistência como combate às visões e classificações assimilacionistas em sua obra. O campo de análise abordado incluirá obras da autora indígena norte-americana Gertrude Simmons Bonnin, que publicou seu material literário sob o nome de Zitkala-Ša (que significa Pássaro Vermelho na língua Dakota1). A análise abrangerá os contos autobiográficos e outros contos de American Indian Stories (2003), as lendas indígenas recontadas sob o nome de Old Indian Legends (1901), o libreto da ópera que a autora compôs em conjunto com o ������������������������������������������������� 1 Gibbon (2003) afirmou que o grupo de tribos ficou conhecido como Sioux, ou uma palavra parecida no século XVII, quando os Ojibwa disseram aos franceses que esta era a maneira pela qual eles eram chamados. A palavra deriva do na-towe-ssiwa,que significa “povo de uma tribo estrangeira”. A Enciclopedia of American History (MINTZ, 2007) afirma que o nome vem da tribo Ottawa na-towe-sswak, que significa “inimigo”. Os Sioux chamam a si mesmos de Lakota ou Dakota, dependendo do dialeto, que significa “aliados”, ou Oyate, “o povo”. Enquanto os linguístas traçam suas origens no Sudoeste dos EUA, alguns dos Lakotas ou Dakotas de hoje dizem que sua terra originária são as Black Hills, ou Montanhas Negras, onde viveram por milênios. Usaremos o termo Dakota ou Lakota para designarmos, então, a nação indígena à qual Gertrude Bonnin pertencia, muito embora sabemos que muitas vezes são utilizados para referir-se a partes do grupo social maior formado pelos Sioux. � 13 maestro e professor William Hanson, seus contos inéditos publicados pela pesquisadora Jane Hafen no livro Dreams and Thunder: Stories, Poems and the Sun Dance Opera (2001). A análise será conduzida com o auxílio de estudiosos de origem indígena com estudos específicos sobre a escrita indígena norteamericana, como Arnold Krupat (1989 e 1994), e que auxiliarão no estudo do papel do escritor indígena no cânone, enquanto Gerald Vizenor (1998 e 2008) e Franchot Ballinger (1989 e 2004) trarão luz às teorias a respeito dos conceitos de sobrevivência e do trickster2 em diversas obras. Também serão ressaltadas as características de escrita e conceitos de sociedade do povo Dakota, fornecidos principalmente por Kelsey (2008) e pelos registros históricos com informantes Dakota executados pelo sociólogo Walker (1991). Por meio do estudo da resistência como formadora de identidade cultural e do gênero, analisar-se-á a escrita de Zitkala-Ša. Para deixar claras algumas estratégias de resistência utilizadas em sua obra, é necessária uma visão geral das políticas assimilacionistas relacionadas à população indígena dos Estados Unidos no período em que Zitkala-Ša viveu, bem como os efeitos em sua geração. Este estudo visa a abrir o diálogo e discussão sobre o uso da linguagem como estratégia de resistência a partir de instrumentos culturais. Autores brasileiros como José Alencar e Gonçalves Dias falaram sobre o indígena brasileiro, mas apenas recentemente escritoras indígenas, como Eliane Potiguara, têm conseguido fazer ouvir suas vozes. Tem havido também um esforço conjunto por parte de indígenas graduados e da comunidade acadêmica no sentido de recuperar e difundir sua cultura por meio do estudo de sua oratura, ou seja, sua cultura transmitida pela oralidade. Ao invés de ouvir-se sobre o nativo, este trabalho propõe-se ouvir a voz do próprio nativo, que busca, ao mesmo tempo, pertencer à sua época, lidando com problemas atuais, sem deixar de buscar as histórias e lendas de seu povo como forma de afirmação de sua identidade. Esta tese, mesmo tendo como foco a escrita de uma autora de língua inglesa, pode abrir reflexão sobre a escrita indígena brasileira. Zitkala-Ša ainda é desconhecida no Brasil, a começar pelo fato de que não se tem conhecimento de nenhuma tradução publicada nem ao menos de qualquer parte de sua obra ������������������������������������������������� 2 A figura do trickster, ou o embusteiro ou enganador (Coiote, a aranha, o corvo, o coelho, o gaio-azul, variando de tribo para tribo – animal ou ser antropomorfizado) está presente em quase todas as tribos. Trata-se de figura recorrente e essencial aos estudos da escrita e da oralidade indígena. O trickster subverte e quebra as regras, ao mesmo tempo em que suas histórias ensinam e divertem, pelas tolices que a personagem principal pratica. Assim, essa figura fica suspensa num espaço entre a divindade e a total tolice. Trata-se de um ser contraditório, ou de vários seres unidos sob um mesmo rótulo. (GILL e SULLIVAN, 1992) Para estudiosos do pós- colonialismo, o procedimento de ironia, de humor e de apropriação da linguagem para subvertê-la é uma característica do discurso do subalterno, que age como um embusteiro, ou trickster, a fim de ter sua voz ouvida. Dessa forma, ele passa a ser também um símbolo de resistência (SOUZA, 1994). � 14 em nosso país. Por esse motivo, todas as traduções de textos originalmente em inglês, sejam eles científicos ou literários, são de responsabilidade da autora desta tese. Não há escritos publicados em língua portuguesa sobre a autora, a não ser artigos da autora da presente tese. No entanto, sua obra tem sido recuperada nos estudos literários de crítica feminina internacional, por uma diversidade de razões, tais como sua luta em defesa dos direitos das mulheres e do povo indígena. Por outro lado, a beleza de suas histórias e o equilíbrio metódico entre suavidade e dureza em sua linguagem, o uso de metáforas e a exploração de elementos indígenas em seus escritos têm possibilitado até mesmo a utilização de suas obras em escolas primárias norte-americanas, o que ressalta também a sua importância como educadora. Zitkala-Ša enfrentou as dificuldades apresentadas a uma escritora na sociedade da época em que escreveu suas obras, isto é, no final do século XIX e início do século XX. Suas dificuldades, além de sua condição de gênero, também se apresentam por sua etnia indígena, povo praticamente mantido em cativeiro nas reservas nos Estados Unidos durante o período em que Zitkala-Ša viveu. Ela chegou a fazer sucesso em seu tempo, algo espantoso para alguém do sexo feminino e, além disso, indígena. Porém, foi criticada até mesmo por sua raça, em razão de sua postura, considerada muitas vezes assimilada. Se, por um lado, a autora escrevia de modo veemente para jornais e revistas em defesa de seus irmãos nas reservas, por outro, convivia com a alta sociedade política norte-americana. Estudiosos como Wexler (2000) e Senier (2001) acentuam a assimilação de Zitkala-Ša, por sua participação política e pela manutenção de estereótipos indígenas. Outros autores, como Hafen (1997) e Lukens (1991) apontavam-na como dividida entre a assimilação dos conhecimentos e dos maneirismos do homem branco e a recuperação da tradição e da cultura indígenas, exemplificadas com citações como: “Mesmo a natureza parecia não ter lugar para mim. Eu não era uma menina baixa nem alta, nem uma índia selvagem, nem domada.” (ZITKALA-ŠA, 2003, contracapa)3 No entanto, a autora caiu no esquecimento nos anos posteriores à sua morte. A presente tese visa contribuir para divulgar sua obra ao público brasileiro, analisando seu posicionamento de revolta (resistência) e assimilação, englobando elementos de Crítica Pós- Colonial, Feminina, de Crítica Literária Indígena. 4 ������������������������������������������������� 3 “Even nature seemed to have no place for me. I was neither a wee girl nor a tall one, neither a wild indian nor a tame one” 4 A crítica literária indígena é uma linha de análise literária articulada por autores de origem indígena como Vinnie Deloria, Arnold Krupat e Gerald Vizenor. Os críticos que adotam esta linha se utilizam de instrumentos de análise já existentes, como a desconstrução de Jacques Derrida e conceitos dos estudos pós-coloniais, � 15 As principais hipóteses de trabalho são que a aparente assimilação apresentada pela obra de Zitkala-Ša representa ainda mais uma forma de resistência, apropriando-se do discurso, dos estereótipos e do modus operandi dominante para subvertê-lo. Postula-se, nesta tese, que algumas das ferramentas utilizadas para essa agenda de sobrevivência (survivance), na concepção de Gerald Vizenor (2008) seriam a figura do trickster, a insistência no uso de instrumentos de educação e cultura indígena norteamericana em geral e da tradição Dakota em particular. Também se sustenta que sua obra, especialmente a considerada “infantil” (as lendas indígenas recontadas), traz dentro de sua aparente neutralidade uma tentativa de recuperação da cultura do povo indígena, e não apenas isso, mas uma forma de conscientizar os não indígenas do preconceito e das injustiças praticadas contra os povos indígenas em uma crítica às políticas assimilacionistas em vigor no final do século XIX e início do século XX. Para tanto, será estudada a vida da autora em seu contexto cultural e histórico, de modo a se construir uma compreensão dos mecanismos de assimilação e resistência vividos pelos indígenas norte-americanos em sua época. ��������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� elementos de historiografia, acrescidos de teorias culturais e tribais específicas para a compreensão de textos literários de origem indígena. � 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 CONHECENDO O PÁSSARO VERMELHO: SOBRE A AUTORA Zitkala-Ša, nascida Gertrude Simmons (1876 – 1938), em uma reserva indígena Yankton Dakota, viveu os primeiros anos de vida junto a sua mãe, Ellen Simmons (cujo nome indígena é Tatè Iyohinwin – Aquela que Busca pelo Vento). Não há muitas referências sobre o pai de Gertrude, apenas que poderia ter sido um homem branco chamado Felker. Gertrude foi criada em relativa paz na reserva Yankton até oito anos de idade, quando foi levada por missionários para uma escola indígena (boarding school)5. Os anos no internato Quaker em Indiana deixaram marcas profundas na pequena Gertrude, pela “rotina de ferro”, a frieza, as surras e coações. Após três anos de internato e quatro anos de incerteza e sofrimento ao lado da mãe, Gertrude decide voltar ao Oeste e continuar seus estudos como musicista no Earlham College. Em seguida, ensinou na Carlisle School, famoso internato e escola indígena dirigida por Richard Henry Pratt, outro marco em sua vida. Enquanto isso estudou violino no Boston Conservatory of Music, chegando a se apresentar na Europa. Iniciou seus estudos no Earlhan College, sendo uma das únicas mulheres indígenas a irem além da educação básica oferecida nas boarding schools. Alguns destes acontecimentos estão registrados em sua obra de escrita autobiográfica denominada American Indian Stories, publicada em capítulos na Atlantic Monthly Magazine em 1901, e depois reunidos em um livro em 1921. Ela também publicou lendas Dakota que ouviu quando criança, ainda na reserva, em um volume publicado em livro em 1901, com ilustrações da escritora e ilustradora da tribo Winnebago, chamada Angel De Cora, que também trabalhou como professora na Carlisle School. Depois de uma tumultuada relação e um noivado desfeito com o ativista indígena Carlos Montezuma (figura 6), da tribo Yavapai, nação Apache, ela se casa com Raymond Bonnin, filho de um francês e de uma índia Yankton, da mesma tribo de Zitkala-Ša, ativista político e agente indígena (funcionário contratado pelo governo, geralmente indígena, para auxiliar na administração das reservas). Raymond Bonnin trabalhou em diversas reservas, incluindo a reserva Ute. ������������������������������������������������� 5 Escolas criadas para a educação mínima dos indígenas por grupos religiosos ou militares e mantidas pelo governo. As boarding schools faziam parte de um projeto assimilacionista maior, que será discutido no momento da análise da obra da autora. � 17 Depois que seus textos foram publicados em periódicos famosos como o Atlantic Monthly e a Harper’s Magazine em 1900 e 1901, e foram reunidos e publicados na forma de livros, reeditados em 1921, Zitkala-Ša permaneceu mais ou menos 14 anos sem publicar outro livro, ou mesmo qualquer obra que pudesse ser classificada como ficção. Nesse período, Gertrude trabalhou como professora em diversas reservas, inclusive a reserva Ute na qual seu marido Raymond trabalhava como agente, antes de ir para Washington DC. Lá, ambos trabalharam como lobistas pelos direitos indígenas. Zitkala-Ša também se relacionou com o movimento feminista nascente, além de escrever artigos e ensaios para jornais e revistas e auxiliar na criação de mais de uma associação de luta pelos direitos indígenas. Seus artigos, ensaios, entrevistas e discursos publicados mostravam-na como uma autora produtiva. Enquanto trabalhava como professora, ativista política e escritora, Zitkala-Ša utilizou sua experiência como musicista para compor a única opera escrita por um autor indígena sobre um tema indígena, a Sun Dance Opera, juntamente com um jovem professor de música, William F. Hanson. A obra será analisada em um item específico (3.4.1) e baseia-se em um antigo ritual realizado pelos povos Dakota, Shoshone e Ute, banido por lei na época em que foi escrita. Esta ópera foi apresentada por um curto período na Broadway, com uma orquestra e cantores profissionais, pouco antes da morte de Zitkala-Ša, em 1938. Depois de sua morte, sua escrita caiu em anos de esquecimento. 2.2 ESTUDOS DE OBRAS DOS INDÍGENAS Os índios foram omitidos da história. Há a discussão sobre quais formas literárias diferentes de resistência à assimilação foram tomadas, tais como a etnografia, a narrativa oral, e as diferentes formas de retórica, como silêncio cauteloso ou estética indígena, que não são, em última instância, investidos na representação cultural. “Se os autores indígenas norte-americanos buscam modos alternativos de representação, os leitores precisarão de novos métodos de reivindicar o tribalismo como resistência”. Isto ocorre porque a literatura está cheia de conflitos e, desta forma, o mesmo texto permitirá uma leitura de resistência e outra assimilacionista, e que a primeira ocorrerá em algum local emudecido e aparentemente desconhecido. (SENIER, 2001, p. 194)6 ������������������������������������������������� 6 Indians had been omitted from history. The argument about what different literary forms the resistance to assimilation had taken, such as ethnography, oral narrative, and different rhetorical forms, like cagey silence or indigenous aesthetic, which are not ultimately invested in cultural representation. “If American Indian authors seek alternative modes of representation, readers will need new methods to call out tribalism as resistance.” It happens because literature is full of conflicts and so, the same text will allow a resistance and an assimilationist reading, the first one being in some muted and apparently unknown place. (SENIER, 2001, p. 194) � 18 Como se observa na citação, obras de escritores indígenas norte-americanos (e aqui incluem-se os indígenas canadenses) são extremamente complexas em sua análise, necessitando não apenas dos instrumentos conhecidos, mas de outras abordagens que levarão em conta aspectos específicos dessa escrita e das condições sociais, psicológicas, culturais e históricas nas quais foram produzidas. É importante, por exemplo, ao se ler a produção de escritores indígenas norte- americanos, levar-se em consideração o problema da representação do povo indígena: é preciso evitar prender-se à historicização – o discurso antropológico, que se esquece dos valores literários – mas há o problema de evitar-se a historicização – que se prende ao conteúdo do texto, enquanto as complexas interfaces do povo indígena, sua realidade, são esquecidas. Ashcroft (2002) afirma que uma das estratégias do escritor de etnias não brancas em sua resistência é transformar os instrumentos do dominante contra ele mesmo através da criatividade e da hibridez. A criatividade revela a representação e molda a identidade, evitando os mesmos erros cometidos pelo dominante, ao mesmo tempo em que transforma a resistência em algo mais efetivo: [...] A natureza transformadora da identidade cultural leva diretamente à transformação daquelas estratégias pelas quais ela é representada. Tais estratégias foram invariavelmente as mesmas utilizadas pelo colonizador para posicionar o colonizado como marginal e inferior, mas sua apropriação foi onipresente na luta dos colonizados para adquirirem poder. Isto sugere que a “resistência” pode ser realmente efetiva, ou seja, pode evitar simplesmente a substituição de uma tirania por outra, apenas quando cria ao invés de apenas defender. A escrita pós-colonial articula no ato de juntar, que toma a língua do dominante e a usa para expressar os assuntos mais profundos da experiência social pós-colonial. (ASCHROFT, 2002, p. 5)7 Neste mesmo item vamos ver as formas de desautorização da escrita de autores indígenas na língua inglesa que, segundo a citação acima, podem ser considerados como resistência, mesmo que diversos estudiosos da teoria literária, entre outros profissionais da academia, pensem de forma diferente. ������������������������������������������������� ��But the transformative nature of cultural identity leads directly to the transformation of those strategies by which it is represented. These strategies have invariably been the very ones used by the colonizer to position the colonized as marginal and inferior, but their appropriation has been ubiquitous in the struggle by colonized people to empower themselves. This suggests that ´resistance´ can be truly effective, that is, can avoid simply replacing one tyranny with another, only when it creates rather than simply defends. Post-colonial writing hinges on the act of engagement which takes the dominant language and uses it to express the most deeply felt issues of post-colonial social experience.� � 19 Vizenor (1998) afirma que muitos críticos da literatura indígena norte-americana enfrentam o problema da análise de um “outro”, possivelmente iletrado, a partir da perspectiva de um “nós” dominante, letrado e autorizado a fazer essas análises. Este ato de falar em nome daqueles que não podem falar é comum na história do contato entre europeus e não europeus, e pode ser exemplificado na transcrição de muitos relatos autobiográficos na língua inglesa, filtrado pelos pontos de vista culturais daqueles que têm o poder da escrita. Entre os muitos exemplos dessa escrita, pode-se citar Black Elk Speaks (1979, originalmente escrito em 1930), no qual John G. Neihardt narra a história e os conhecimentos de Alce Negro, homem sagrado dos Dakota. Gerald Vizenor, crítico e escritor de ascendência indígena, criou o termo survivance (sobrevivência), que engloba temas de resistência ativa e continuada, representada nas literaturas indígenas, contra políticas abertamente genocidas. A teoria de sobrevivência defendida por Vizenor no geral de sua obra, é um dos elementos mais importantes para o estudo das obras de indígenas norte-americanos, pois ele estuda “as brechas”, os silêncios e as afirmações em algum lugar mudos no texto, num jogo de ausência e presença do nativo, que é colocado como raça extinta (visão antropológica) ou em vias de extinção trágica (visão romantizada). Os próprios substantivos “nativo” e “índio” mostram referências a outros seres, reafirmando a ausência do indígena, uma vez que o nome nativo pode ser aplicado a todos os que nascem em um lugar, e o nome índio é uma referência a outro grupo étnico. Além do mais, um nome apenas não pode englobar todas as diferentes etnias e culturas que existiam nas Américas quando os europeus chegaram. Assim, os próprios nomes já pressupõem a ausência dos seres aos quais se referem. Porém, o varionative, termo cunhado por Vizenor (1998), busca afirmar a diversa gama de grupos sociais que o termo nativo omite, reafirmando sua presença, mesmo em face de sua ausência decretada. Isto ocorre, segundo Vizenor (1998, 2008), principalmente na atitude do trickster, figura que merecerá um estudo especial neste mesmo capítulo. Há também pouca atenção às diferenças culturais nas análises das histórias contadas oralmente e transcritas por terceiras pessoas, biógrafos que geralmente são antropólogos ou historiadores. Há uma tripla desconfiança com relação a biografias orais transcritas por historiadores, sociólogos e antropólogos sobre a vida de indígenas norteamericanos: estes textos não são considerados obras literárias, pois são escritos por cientistas; são suspeitos como textos indígenas “originais”, uma vez que são transcritos do discurso oral, que podem ter sido e, geralmente o são, modificados por seus transcritores. Ainda há a dificuldade em serem aceitos como registros sociais, antropológicos ou históricos do povo nativo, pois, nesse � 20 ponto, há uma desconfiança da autoridade dos informantes, geralmente indígenas assimilados. Os poucos que aceitam falar sobre sua cultura e sua vida, mesmo pessoas de autoridade, podem omitir ou distorcer informações importantes para proteção de sua cultura, ou simplesmente por desconhecer certos aspectos. De acordo com Vizenor (1998), há duas formas de representar o índio. Uma delas consiste no discurso do índio como herói trágico e romantizado, a ausência mística de uma raça evanescente em um Éden perdido e longínquo – figura disseminada pela literatura romântica e exemplificada por Chingachcook, da obra O último dos moicanos (publicada em 1826), de James Fenimore Cooper. A outra é o discurso etnológico e antropológico, em que há porta-vozes para falarem em nome do “primitivo” devido à sua suposta incapacidade de autoexpressão. Sob esta ótica, o ceticismo e a distância do observador garantem a crença em uma raça já extinta ou, pelo menos, em uma cultura extinta. Assim, a ausência do nativo permite que alguém fale em seu nome, explicando suas ações e pensamentos. Esta última estratégia também foi apontada por Trinh (1989) como forma de silenciar os “incautos” e “selvagens” do Terceiro Mundo em geral, principalmente as mulheres. Para Trinh (1989), a expressão “Terceiro Mundo” estende-se para além das fronteiras geográficas e assume matizes que envolvem etnia e gênero. Para ela, pode existir o Terceiro Mundo no centro do chamado Primeiro Mundo, ou mundo civilizado. Complementando seu pensamento, mulheres de etnia não branca, que são escritoras, estão triplamente comprometidas por seu gênero, sua etnia e também por participarem em um terreno de criação dominado pelo homem branco. Partindo dessa ideia, podem-se considerar os indígenas norte-americanos como membros do Terceiro Mundo em seu próprio país, os EUA, considerado pertencente ao Primeiro Mundo do ponto de vista econômico. Ao indígena norte-americano em geral, assim como ocorre em diversos outros países das Américas, não há senão a possibilidade de viver nas reservas, ou fora delas, mas quase sempre em situação de subserviência, com empregos num nível equivalente ao dos imigrantes ilegais.8 No momento, uma ou outra reserva descobre o “filão de ouro” do consumismo norte-americano por meio de cassinos, que são verdadeiros parques temáticos indígenas – uma vitrine irreal, ou por outros investimentos que têm dado muito dinheiro a poucas tribos ou indivíduos (figura 3). Ao restante da população indígena é guardada a vida sofrida das reservas pobres e superpovoadas, os trabalhos mais pesados e aviltantes nas cidades, o alcoolismo, a violência em índices alarmantes e o suicídio ������������������������������������������������� 8 Os indígenas que moravam fora das reservas que conhecemos nos EUA trabalham em construção civil como ajudantes de pedreiros, ou no trabalho de limpeza pesada. Apesar de termos visitado cassinos e outros locais pertencentes aos indígenas (inclusive dentro da reserva indígena), não vimos indígenas trabalhando ali. � 21 de jovens, problemas contemporâneos e graves que não serão abordados aqui por não fazerem parte do objeto desta tese, mas com os quais nos deparamos com muita frequência na nossa convivência com os indígenas nos EUA. Muito embora este seja o resultado de um processo iniciado desde a colonização e verificado até hoje, focalizar-se-á neste trabalho o final do século XIX e o início do século XX. Figura 3 – Visão parcial de cassino temático dentro de uma reserva indígena, a reserva Moicana. Fotografia de nossa autoria. Vizenor descreve como o indígena norte-americano era representado pelos veículos de imprensa no século XIX: “A representação do nativo vem por dois caminhos – o do misticismo, em que a presença do self é presumida, mas não provada, e pelo caminho do ceticismo moldado pelo discurso antropológico, portanto também sem linguagem” (VIZENOR, 1998, p. 20) 9 . Os veículos de comunicação do século XIX descreviam os indígenas norte-americanos de duas maneiras bem distintas: “o bom selvagem”, cuja ausência devia ser lamentada por ������������������������������������������������� 9 “The representation of the Native comes through either way – mysticism, wherein the presence of the self is assumed, but not proved, and through the way of skepticism molded by the anthropological discourse, therefore also without language.” (VIZENOR, 1998, p. 20). � 22 estarem extintos, ou os “selvagens sanguinários e assassinos”, que precisavam ser destruídos, pois eram obstáculos ao caminho do crescimento social, político e do progresso. De qualquer forma, havia uma curiosidade geral em torno de suas figuras, alimentada ainda mais pelas descrições dos soldados vivendo nas regiões habitadas por indígenas, e por repórteres que seguiam o exército para descreverem suas “proezas”. Havia também, um terceiro estereótipo, o do mestiço – “mixed-blood”, ou “half-blood” (esta última expressão combatida por sua conotação preconceituosa - “meio-sangue”, pressupondo o poder de uma parte do sangue e a anulação da outra). Ao mestiço era vedada a participação em qualquer dos dois mundos: o mundo dos brancos ou o mundo dos indígenas, pois não era bem visto por ambos. Além disso, as teorias secundárias ao darwinismo descreviam o hibridismo físico como degeneração das raças. O mestiço deveria, então, assumir um de dois papéis destinados a ele: o “pobre coitado” à margem de todas as sociedades, abandonado e maltratado, mostrado no romance Cogewea, de Mourning Dove (1927), ou o “degenerado”, aquele que, por ser resultado da hibridez, gerava ódio pelas duas raças originais e tomava atitudes repreensíveis pelos dois grupos sociais – literalmente, a degeneração e a corrupção de ambas as raças. Uma personagem representativa desse tipo de nativo é “Injun Joe”, do romance Tom Sawyer, escrito por Mark Twain (1987). Os periódicos que publicavam as abordagens citadas acima eram a única fonte de informação para a maioria da população norte-americana (VIZENOR, 1998). Durante os anos que se seguiram aos primeiros contatos entre os europeus, seus descendentes e o povo indígena vivendo nos Estados Unidos na época, houve guerras, tratados quebrados, doenças trazidas pelos europeus, além das remoções forçadas, que levaram tribos inteiras à destruição em reservas, sob condições subumanas e políticas de aculturação, como as boarding schools. Para os sobreviventes aos maus tratos nas reservas e às guerras que ocorriam quando os indígenas faziam qualquer reivindicação, havia uma tentativa de “assimilação”, que consistia em transformar o indígena em participante da sociedade eurodescendente na posição de subalterno. Essas políticas assimilacionistas trabalhavam intensamente na tentativa de destruição da cultura nativa, seja pela força, por meio de decretos e proibições, seja pela educação (ou aculturação) forçada das crianças. A educação estava a cargo de grupos religiosos ou militares. As ações assimilacionistas podem ser descritas como um grupo de atitudes, leis e projetos destinados a um fim específico, mas que acabavam por se ligar entre si e provocaram sérios problemas à população indígena. Entre elas, podem ser citadas: � 23 - As boarding schools, livremente traduzidas como internatos, que podem ser consideradas o projeto mais ambicioso de “civilizar os selvagens”. Sua criação ocorreu em 1870, financiada pelo governo: Em 1870, o Congresso autorizou uma verba anual de U$100,000 "para o apoio de escolas industriais ou de outro tipo entre as tribos que não as possuíssem..." As instalações envolvidas eram dirigidas por diversas sociedades missionárias e igrejas, que em 1869 receberam autoridade completa para agirem em nome do governo, escolhendo agentes indígenas e contratando o pessoal empregado nas reservas. A participação nessas escolas da missão era obrigatória por lei em muitas reservas para todas as crianças entre 6 e 16 anos. (JAIMES, 1992 p.380)10 Porém, mesmo com a presença das escolas missionárias dentro das reservas, além dos costumes “pagãos” continuarem nas casas, presentes nas diversas interações entre a tribo, possibilitando a sobrevivência da cultura de alguma forma por meio da convivência social e da educação em torno das fogueiras, as crianças fugiam das escolas e negavam-se a participar das aulas dadas pelos missionários. Em 1875, Richard Henry Pratt, na época um coronel do exército, e mais tarde general, construiu a primeira boarding school longe das reservas, de onde as crianças não poderiam escapar. A primeira e mais famosa escola em seu projeto é a Carlisle Indian Industrial School, dirigida sob suas regras militaristas. A escola foi projetada em 1872, inaugurada em 1875, e considerada o maior exemplo da “civilização dos pequenos selvagens”. Crianças das mais diversas tribos e procedências, educadas nas boarding schools, assim como os médicos Carlos Montezuma (Apache Yavapai – figura 6) e Charles Eastman (Santee Sioux – figura 5) eram apresentados à sociedade como os resultados bem sucedidos do projeto. Já o chefe Standing Bear (Urso em Pé – figura 4) e Gertrude Bonnin (Zitkala-Ša), também uma vez apresentados como exemplos de sucesso por suas atividades exercidas em meio à sociedade eurodescendente, deixaram que suas atitudes insistentes de questionamento e desafio às políticas do governo em favor do indígena evitassem sua exposição como “animais domados”. Especialmente sobre Gertrude, suas ações como fundadora e participante de diversas associações em nome do povo indígena e sua carreira em Washington eram provas muito mais incisivas de sua característica de “criança ingrata e rebelde”, que sua escrita ficcional e autobiográfica supostamente “domadas”. ������������������������������������������������� 10 In 1870, the Congress authorized an annual appropriation of $100,000 "for the support of industrial and other schools among tribes otherwise not provided for..." The facilities involved were run by various churches and missionary societies which, in 1869, had been provided with overall authority to act in behalf of the government, appointing all Indian agents and hiring all personnel employed on the reservations. Attendance at these mission schools was made mandatory by regulation on many reservations for all native children aged six through sixteen. (JAIMES, 1992 p.380) � 24 As boarding schools eram os locais mais efetivos para a tentativa de aculturação do povo indígena, uma vez que as crianças eram trazidas de diversas tribos, de forma que não podiam usar a linguagem de suas tribos de origem. Além da dificuldade de comunicação pelo fato de existirem diversas línguas indígenas juntas, havia a proibição do uso das línguas maternas, sob pena de grandes surras. O inglês era a única língua permitida. Além disso, as crianças tinham de abandonar outras ações culturais que viessem de suas tradições. As punições não raro provocavam a morte: surras, castigos e maus tratos em geral, além de doenças para as quais os índios tinham pouca imunidade, como a catapora e diversos tipos de gripe. As crianças sobreviventes das escolas criaram um trauma que não permitia sua readaptação à vida tribal e elas tampouco conseguiam adaptar-se ao mundo dos eurodescendentes. Muitos dos alunos dos internatos tiveram traumas insolúveis, que os levaram à morte. Outros colocaram seu período de sofrimento nas boarding schools em romances e contos autobiográficos, como Luther Standing Bear (figura 4), Charles Eastman (figura 5) e Zitkala- Ša. A maioria dessas crianças aprendeu a ler e escrever, entre outros comportamentos dos brancos, mas não conseguiram ser aceitos nem na cultura do branco, nem conseguiram voltar à sua cultura original, depois de perderem os anos de suas vidas em que deveriam estar se preparando e deveriam passar pelos rituais de entrada na vida adulta (menarca, educação para as artes e agricultura para as mulheres e iniciação à caça para homens). As crianças que voltavam, muitas vezes se envergonhavam de suas culturas originais, destratando os mais velhos e tudo o que eles significavam. “The School Days of an Indian Girl”, de American Indian Stories (ZITKALA-ŠA, 2003), é um dos registros da violência sofrida pela pequena narradora. Este pode ser o self autobiográfico da pequena Gertrude Simmons, mas também pode ser de qualquer uma das milhares de crianças e adolescentes que vivenciaram a educação das boarding schools. � 25 Figura 4 - Chefe Luther Standing Bear em roupa para a comunidade branca e vestido de chefe indígena para suas atuações em Hollywood. Foi aluno do primeiro grupo educado pela Carlisle School. � Figura 5 - Charles Eastman, juntamente com Carlos Montezuma (figura 6), ambos médicos e educados em primeira instância nas boarding schools foram os principais garotos-propaganda do sucesso desse sistema. Nas fotos, ele aparece com roupas ocidentais e também com roupas indígenas cerimoniais. � 26 Figura 6 - Carlos Montezuma, que chegou a ser noivo de Zitkala-Ša e trocou com ela intensa correspondência por toda a vida, foi um dos maiores defensores da assimilação. Também foi aluno e professor da Carlisle, onde conheceu a autora, e amigo pessoal de Pratt. Os dois se separaram por discordâncias sobre os rumos da política e da educação com relação aos indígenas. Sua família foi morta pelo exército e ele fora criado por um homem branco desde os dez anos. Não conseguimos encontrar, como os outros autores, fotos de Montezuma caracterizado por roupas indígenas, provavelmente por sua postura política assimilacionista. Outras políticas assimilacionistas foram as seguintes: - O Indian Act, de 1885, foi uma lei primeiramente instituída para o povo indígena canadense pelo governo daquele país proibindo qualquer manifestação religiosa ou cultural fora do Cristianismo entre os indígenas (esta proibição incluía cerimônias, rituais, danças e cantos) nas reservas ou em qualquer outro lugar, sob pena de severa intervenção do exército. Esta lei foi também adotada pelo governo norte-americano e implementada oficialmente em 1903. - O Dawes act, de 1887 (também chamado de Allotment Act), que estipulava a divisão de 160 acres de terra para cada família indígena dentro da reserva, dividindo-a em pequenas propriedades rurais. Porém, o que aparentemente seria uma bênção, pois as famílias podiam tirar seu próprio sustento da terra, tornou-se uma maldição: este foi um duro golpe no sentimento de comunidade, base da cultura indígena. Isto ocorreu em duas formas, principalmente: a primeira delas foi a extinção das reuniões diárias comunitárias, as quais � 27 incluíam as histórias contadas em torno na fogueira, os trabalhos e caçadas sendo feitos em grupo, com os jovens auxiliando os mais velhos que não possuíam família. Além disso, havia outra mudança substancial para as tribos cuja sobrevivência provinha da caça antes de entrarem na reserva: homens, antes caçadores, tornaram-se fazendeiros e passaram a cultivar a terra, assim fazendo “trabalho de mulher”. Enquanto isso, as mulheres ficavam trancadas na vida doméstica, sem o auxílio das mulheres mais velhas para compartilharem o conhecimento das tradições e usos práticos diários. Pior que isso, a lei permitiu a colonizadores brancos a compra e venda de terras dentro das reservas, muitas vezes conseguidas por uma quantidade ínfima de uísque, levando a todos os tipos de negócios obscuros e roubos de terra, inclusive por estratégias, brechas e burocracia da lei, que fugiam ao conhecimento dos indígenas. Todos estes aspectos vão se sobressair como temas da literatura escrita por indígenas no século XIX em maior ou menor intensidade. No entanto, poucos registros da vida e da cultura indígena foram feitos na época em que Zitkala-Ša viveu, ou antes disso. Registros literários foram ainda mais raros. Tem-se conhecimento de David Cusick, com Sketches of Ancient Story of the Six Nations, em 1827, não escrita por um índio. Há também Son of the Forest, de William Apes (da tribo Pequot), no ano de 1827; Queen of the Woods, em 1899 de Simon Pockagan (Potawatomi). Na época em que surgiram as boarding schools, principalmente a nação Dakota, de posse da escrita, passa a publicar obras esparsas. Neste momento surgem Luther Standing Bear, Charles Eastman, Black Elk, Morning Dove, Zitkala- Ša, entre outros. Apenas uma mulher nativa havia publicado um livro registrado antes de Zitkala-Ša, Sophia Alice Callahan (da nação Creek). O romance se chama Wynema: a Child of the Forest, publicado em 1891. Pauline Johnson, canadense da tribo Mohawk, publicou um volume de poesia e alguns contos esparsos antes de 1900. (LISA, 1996). As características da escrita indígena serão abordadas a seguir. 2.3 A ESCRITA INDÍGENA No século XIX, havia duas formas de se lidar com o problema indígena, de acordo com Cole (1998): enquanto militares como o General Custer optavam pelo confronto e o genocídio direto, outros indivíduos, religiosos ou militares, como o Capitão Henry Pratt e membros de igrejas como os Quakers e os Mórmons, resolviam o dilema de outra forma, transformando os indígenas em euroamericanos por meio de uma educação especificamente � 28 preparada para eles. Porém, diferentemente do que se poderia pensar, esta não era uma política “escondida” ou disfarçada, pois a intenção de se destruir a tradição indígena era clara e bastante discutida, como afirma Norris: “A política de objetivo mais amplo nos EUA era obter o fim funcional das sociedades nativas até meados de 1930. A intenção genocida da política e seu efeito são evidentes.” (NORRIS, 2003, p. 13)11 Os defensores da “assimilação pela educação” pensaram que os índios abraçariam felizes e gratos a cultura europeia assim que vissem todas as vantagens e invenções da “civilização”, destruindo suas sociedades e tradições ao receberem, felizes, o progresso europeizante. Porém, os nativos resistiram. A resistência dos Nativos Americanos à cultura euroamericana tomou muitas formas diferentes, incluindo retornos radicais à cultura nativa americana por algumas das crianças após seu retorno das escolas fora das reservas, a escrita de suas próprias histórias mostrando os nativos americanos sob uma luz diferente da literatura contemporânea escrita por não nativos, e como no caso de Zitkala-Ša, uma profunda ambivalência de estar perdida em algum lugar entre os mundos. (COLE, 1998, p. 3)12 Não apenas na parte da análise textual os críticos deixaram de examinar as diferenças culturais, mas também o fazem em um ponto importante: consideram a literatura indígena inferior por ser de origem oral, e, por isso, indigna de ser considerada literatura, ignorando ou fingindo esquecer que grandes clássicos da literatura universal, como a Odisseia, por exemplo, também tiveram sua origem na oralidade (KRUPAT, 1994). Outro aspecto que não é muito levado em consideração em uma análise de textos indígenas com base em instrumentos críticos ocidentais é a questão da autobiografia como representatividade de uma sociedade: com a individualização do mundo pós-revolução industrial, os estudiosos da autobiografia não compreendem que não estão analisando apenas um indivíduo, mas a intensa sensação de comunidade vivida pelos indígenas, fazendo de escritores como Zitkala-Ša os porta-vozes de sua época e de seu povo, ou seja, eles transcendem o individual para retratar uma época e um grupo social por meio de seu filtro emocional e intelectual. Por outro lado, para os estudiosos dos textos indígenas, os críticos consideram que seus autores já são suficientemente “assimilados” para assumirem uma ������������������������������������������������� 11 “The broader goal policy in the U.S. was to bring about the functional disappearance of indigenous societies by some point in the 1930. The Policy’s genocidal intent and effect is evident.”. 12 The Native Americans’ resistance to the Euro-American culture took many different forms, including radical returns to the Native American culture by some of the children after their release from the off-reservation schools, the writing of their own stories showing the Native Americans in a different light from the current literature written by non-native Americans, and, as in the case of Zitkala-Ša, a profound ambivalence, a feeling of being lost somewhere between the two worlds. � 29 postura de pensamento europeu. Isto significa que não estão construindo textos “autênticos”, ou seja, perdem seu valor antropológico, sem ganhar, de forma alguma, o valor literário. Segundo Heflin (1997), alguns críticos desconsideram a literatura indígena por suas características orais. Porém, aqueles que apenas observam a oralidade esquecem-se de que há outras formas de expressão da história indígena: a produção de pictogramas que existem nas pedras, as confecções de tendas e tecidos (winter tales – as pinturas em peles de búfalo e alce, destinados a registrar momentos importantes da história ou lendas indígenas, com objetivos de preservação e educação – ver figura 7), além das histórias dos clãs por intermédio dos totens. Desta forma, a escrita é considerada algo “superior” e uma “evolução” das formas primitivas praticadas pelos índios, considerados assim como rascunhos da perfeição atingida pela escrita da sociedade eurodescendente. A sociedade indígena é, portanto, também considerada inferior por não possuir formas de escrita como os europeus a conheciam. Figura 7 - Calendário Kiowa escrito na pele de um búfalo trabalhada, representando os fatos importantes da tribo entre os anos 1833 e 1892 e fotografado em 1895 por James Mooney. Trata-se de um exemplo de winter tale Disponível em http://rebelcherokee.labdiva.com/kiowacalndr.html em outubro de 2010. A escrita alfabética é uma novidade para a grande maioria dos povos indígenas: ou seja, eles tomaram conhecimento de sua existência apenas muito tempo depois do contato com os europeus. Em seu livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (2008), Franz Fanon fala da � 30 relação de poder e dominação da etnia branca às etnias não-brancas. Ele falou especialmente da relação negro-branco, porém, suas afirmações servem também à população indígena em geral, e nos faz refletir sobre o poder da escrita e a necessidade da escrita, uma das fontes de domínio branco: Compreendemos agora porque o negro não pode se satisfazer no seu isolamento. Para ele só existe uma porta de saída, que dá no mundo branco. Donde a preocupação permanente em atrair a atenção do branco, esse desejo de ser poderoso como o branco, essa vontade determinada de adquirir as propriedades de revestimento, isto é, parte do ser e do ter que entra na constituição de um ego. Como dizíamos há pouco, é pelo seu interior que o negro vai tentar alcançar o santuário branco. A atitude revela a ação. A retração do ego como procedsso bem sucedido de defesa não é viável para o negro, pois ele precisa da sanção do branco. (FANON, 2008, p. 60) Aplicando esta consideração à escrita indígena, podemos observar que a necessidade dos indígenas em escrever em inglês, além da dominância da escrita e do poder, faz parte da afirmação da identidade indígena, pois o parâmetro de comparação é determinado pela sociedade branca. E muitos indígenas da época em que Zitkala-Ša viveu passaram a vida tentando escrever e comportar-se como os brancos. Mas também não há como fugir da riqueza cultural que carregam consigo. Os escritos indígenas trazem certas características gerais, herdadas de sua tradição oral milenar. Mullen e Bataille (1987, apud COLE, 1998, p. 4) listam algumas dessas características: - Ênfase no evento. - Atenção à sacralidade da linguagem. - Preocupação com a paisagem. - Afirmação dos valores culturais. - Solidariedade tribal. Autores indígenas, como Sequoya (cujo nome de batismo era George Guess), criaram alfabetos na língua indígena (Cherokee, neste caso), como tentativa de preservar sua cultura, e não levá-la aos olhos e ouvidos europeus. Os autores que escreviam em lingua inglesa, segundo Cole (1998), demonstram a dor e o sofrimento que tiveram neste processo de assimilação, mas também a resistência oferecida tanto em nível individual, por meio de suas histórias individuais e de suas lutas como ativistas, como também de forma coletiva. Temos como exemplo a Ghost Dance, movimento que teve um início pacífico entre as diversas nações indígenas e originado da visão de um homem sagrado paiute chamado Wovoka. A � 31 dança trazia ao povo indígena a esperança de dias melhores, espalhando-se como um rastilho de pólvora pelas reservas no final do século XIX. Porém, seu fim foi trágico, não só com a proibição da dança, mas também com o extermínio de centenas de nativos, especialmente indígenas da mesma nação de Zitkala-Ša, os Sioux junto ao riacho Wounded Knee (figura 8). Mais detalhes dessa história serão discutidos na análise de “The Search for Bear Claws”, da coletânea Dreams and Thunder (ZITKALA-ŠA, 2001). Figura 8 - Wovoka, o homem sagrado dos Paiute, cuja visão iniciou o movimento pacífico da Ghost Dance (Dança Fantasma). Sua visão previa que o búfalo voltaria às pradarias e haveria um tempo de paz aos indígenas. Sua visão provocou o surgimento de movimentos indígenas e também uma repressão violenta por parte do exército, causa de diversos massacres. Ao lado, traje especialmente criado para a execução da Dança Fantasma. Final do século XIX. Ambas as imagens disponíveis em http://www.colorado.edu/csilw/arapahoproject/dance/Ghostdance/history.html em setembro de 2010. A oralidade e os contos de inverno são as bases culturais dos indígenas e mantiveram vivas a história do povo e suas crenças. Entre essas manifestações, Heflin (1997) destaca as seguintes: 1 – Contos de grandes valentias/ narrativas míticas. 2 – Contos menos formais e mais detalhados, sobre guerra e caçadas. 3 – Autorreflexão. 4 – Autodefesa. 5 – Narrativas educacionais. 6 – As histórias da busca (e aquisição) do poder. � 32 Heflin (1997) afirma que esta classificação não é necessariamente fixa e que um mesmo conto pode englobar várias destas características. Krupat (1994) também caracteriza os contos autobiográficos como “histórias de valentia”, ou “contos de sonhos e experiências místicas”. De certa forma, Krupat parece sintetizar a classificação mostrada por Heflin acima, uma vez que todas as histórias, sem exceção, são utilizadas como narrativas educativas, de autodefesa e reflexão. De qualquer forma, as histórias indígenas servem para revelar o ser sinedóquico e sua inserção na sociedade. O papel do indígena nas histórias é a coletividade, o sentir-se fazendo parte de um organismo social maior (VIZENOR, 1998). Gunn Allen (1983) reflete sobre as funções e estrutura da literatura tradicional indígena e as diferenças da literatura oral indígena em comparação à literatura ocidental, especialmente europeia: Por exemplo, as tradições dos índios americanos e a tradição ocidental diferem muito nos propósitos aos quais presumivelmente servem. O propósito da literatura indígena americana não é nunca simplesmente a autoexpressão. A “alma particular exposta ao público” é um conceito desconhecido ao pensamento indígena norte- americano. As tribos não celebram a habilidade de sentir emoções, pois eles presumem que todos os seres são capazes disso. A emoção de cada um é particular; sugerir que os outros devem imitá-los é impor-se sobre a integridade pessoal de outros. As tribos buscam – através de música, cerimônia e histórias – incorporar, articular e compartilhar a realidade, o ser íntimo em harmonia e equilíbrio com esta realidade, verbalizar o senso de majestade e mistério reverente de todas as coisas, e atualizar a linguagem, aquelas verdades que dão à humanidade sua maior significação e dignidade. Em um sentido amplo, a literatura cerimonial serve para redirecionar a emoção privada e integrar a energia gerada pela emoção dentro de uma estrutura cósmica. (GUNN ALLEN, 1983, p. 4)13 Porém, como foi visto anteriormente, os etnógrafos erram em não admitir que a autobiografia indígena é poderoso exemplo de educação e a crítica literária do ocidente supervaloriza o indivíduo na relação da narrativa com o herói, ao colocá-lo como protagonista singular e único. De acordo com o comentário de Gunn Allen (1983), o protagonista indígena não está ali apenas para ser o herói de sua história, mas também para elevar sua comunidade e seus antepassados, assim como para ensinar as gerações futuras. Desta maneira, a camada de compreensão oferecida pelos textos de origem indígena é mais profunda que apenas a ������������������������������������������������� 13 For example, American Indian and Western literary traditions differ greatly in the assumed purposes they serve. The purpose of traditional American Indian literature is never simply pure self-expression. The "private soul at any public wall" is a concept alien to American Indian thought. The tribes do not celebrate the individual's ability to feel emotion, for they assume that all people are able to do so. One's emotions are one's own; to suggest that others should imitate them is to impose on the personal integrity to of others. The tribes seek - through song, ceremony, and tales - to embody, articulate, and share reality, private self into harmony and balance with this reality, to verbalize the sense of the majesty and reverent mystery of all things, and to actualize in language, those truths that give to humanity its greatest significance and dignity. To a large extent, ceremonial Literature serves to redirect private emotion and integrate the energy generated by emotion within a cosmic framework. � 33 compreensão da personagem ou do autor e da obra, mas a última funciona como elemento dinâmico, que partiu da necessidade da comunidade em perpetuar seus conhecimentos e valores: a história é recontada no presente como homenagem ao passado, informação para o presente (o conteúdo narrativo em si, a reflexão, a aventura, o divertimento e a educação), e a formação para o futuro (na preparação das novas gerações para a continuidade da tradição). Contudo, o simples fato de serem escritos em inglês e não em suas línguas originais, por serem escritos por descendentes que não são “de sangue puro”, ou por abordarem problemas diários e atuais, a literariedade dos textos indígenas é desafiada. Mas o processo histórico sofrido pelo indígena norte-americano é simplesmente indissociável de sua literatura e de sua identidade: “Quase todos os textos nativos aos quais temos acesso são influenciados pelo processo de colonização. Não obstante, quase todos os textos se utilizam de estratégias e sistemas de valores (por exemplo, a teoria tribal) como forma de criarem uma literatura significativa.” (KELSEY, 2008, p. 8)14 Em outro viés, Vizenor (1998) trabalha com a representação do povo indígena e não apenas de sua escrita, partindo da perspectiva do euroamericano. A ideia principal de seu livro Fugitive Poses (1998) é que o nome “índio” é uma ausência na literatura e nas artes, transformado em tragédia romântica a partir de algumas estratégias de linguagem, inclusive a partir da própria denominação “índio”, tomada emprestada de outro povo. Portanto, o termo “índio” é apresentado por Vizenor como a simulação do outro. Também para Vizenor a comunidade é a base da construção da identidade individual do nativo: As fontes mais notáveis do ser nativo como identidade pessoal, e o senso de presença são visionários; as representações são famílias, comunidades e as políticas das nações. Estas, as associações mais óbvias, são as referências públicas a um senso pessoal de presença no mundo. As mais notáveis conexões, no entanto, podem nem sempre revelar as fontes mais significativas do self nas histórias do destino e sobrevivência dos nativos. (VIZENOR, 1998 p. 18)15 Vizenor também emprega o termo “varionativos” para se referir aos indígenas como um grupo, já que a própria ideia de considerar os indígenas norte-americanos como um grupo coeso é um engano cultural, pois há diversas “nações” indígenas, com heranças culturais ������������������������������������������������� 14 Nearly all Native texts that we have access to are influenced by the process of colonization. Nonetheless, nearly all these texts use strategies and value systems (i.e. tribal theory) as a way of creating meaningful literature”. 15 The foremost sources of the native self as a personal identity, and sense of presence, are visionary; the presentations are families, communities, contrariety, and the politics of nations. These, the most obvious associations, are the public references to a personal sense of presence in the world. The foremost connections, however, may not always reveal the most significant sources of self and identity in the native stories of chance and survivance. � � 34 diversas e bem marcadas. Ele recorre às estratégias de desconstrução de Jacques Derrida para proceder a seus estudos, mas também a ideias e técnicas estilísticas presentes na própria cultura indígena, como a figura do trickster, como símbolo de sobrevivência (survivance). Vizenor ainda afirma que a utilização que os nativos fazem das metáforas, dos próprios nomes indígenas e das figuras dos animais são, além de uma forma de resistência, também uma estratégia para manter sua cultura e uma fonte para suas identidades: “Histórias com animais são mais velhas que a história e melhores que a filosofia,” escreve Paul Shepard em The Others. A História tenta descrever o mundo como se tivesse começado com a escrita e que apenas os humanos importassem, com tentativas filosóficas de abstrair-se a verdade, como se ela fosse definida apenas pelo pensamento discursivo, considerando a experiência do mundo natural sem importância. (VIZENOR, 1998, p. 119)16 A forma de lidar com a questão da divisão entre animais⁄humanos e o domínio do discurso e do pensamento sobre a natureza também se torna uma característica distintiva da escrita indígena norte-americana, uma vez que a linguagem é considerada prerrogativa dos seres humanos. O animal para o indígena é o professor com quem ele aprende por meio de características físicas, de comportamento. Por exemplo, o urso ensina a parar e descansar no seio da terra, por sua característica de hibernar em cavernas, enquanto o esquilo ensina o indígena a preparar-se para o inverno ao guardar seu alimento. No mínimo, os diversos tipos de animais são “outros povos”, como normalmente são chamados, colocando-se como seres que merecem a mesma atenção do Grande Espírito, quanto qualquer ser humano. A própria forma do indígena se referir a outros seres é “povo” (povo em pé – árvores; povo de escamas; quatro pernas; duas pernas; povo de pluma; povo nuvem; povo pedra, povo planta, entre outros). Nada mais lógico, portanto, que nos textos indígenas, especialmente naqueles influenciados pela oralidade e pela tradição, a fronteira entre os seres humanos e os outros seres seja totalmente fluida, tomando as seguintes formas: - Animais com características humanas, mas com traços físicos indistintos de animais – quando possuem a linguagem, o tipo de alimentação humana, entre outras características, mas mantêm orelhas, pelo, ou outros traços que os distinguem de outros animais. Especialmente neste aspecto, cabe uma consideração importante: os nomes indígenas são ������������������������������������������������� 16 Stories with animals are older than history and better than philosophy,” writes Paul Shepard in The Others. “History tries to describe the world as if it began with writing and only humans mattered/ philosophy attempts to abstract truth as if it were defined only by discursive thought and experience of the natural world were unimportant � 35 escolhidos em uma cerimônia chamada “Naming Ceremony”, na qual o medicine man tem a visão das qualidades ou dos espíritos animais que guardarão a criança – daí os nomes indígenas serem quase sempre ligados a nomes de animais – como os famosos Touro Sentado, Cavalo Doido, Alce Negro, podem comprovar. Outra forma de dar o nome é quando ocorre algo de grande importância na vida da criança ou mesmo do adulto, que pode envolver ou não animais. Assim, os nomes também são fluidos, e podem mudar ou ser acrescentados aos nomes originais. Desta forma, nunca fica claro se o contador de histórias está se referindo a pessoas com nome de animais, ou aos próprios animais em muitas das histórias. - Animais que interagem e se comunicam com humanos, têm, no entanto, características distintas de sua espécie, como a sapa que rapta um menino humano e o cria como seu filho até quando seus pais verdadeiros o encontram (transcrita por Zitkala-Sa em Old Indian Legends – 1901). - Comunicação entre os diversos animais e entre os mesmos e os humanos – a convivência entre eles é a base da maioria das histórias indígenas. Estes fatos não são, como nos contos de fadas, motivo de assombro, mas parte do cotidiano dos indígenas – histórias de Coiote, Gralha, Coelho, ou de Iktomi, a aranha, enganando humanos ou outros animais com seus truques são muito comuns em diversas tribos. - Seres humanos com características de animais – força, agilidade, capacidade de voar ou de nadar, entre outras – geralmente adquiridas por concessão do “espírito” do animal e representada por penas, ossos, sementes, pedras, pele ou outros objetos de poder – como na versão do conto em que Iktomi ganha três penas de um ganso e com elas a capacidade de voar (ZITKALA-ŠA, 1901). - Animais como metáforas e símbolos: por meio das características das personagens (como foi dito anteriormente, nem sempre marcadas como animais ou humanos). A personagem vai agir e pensar como os animais dos quais tem o nome, ressaltando, por exemplo, a natureza medrosa de um coelho, a meiguice de uma corça, a força ou o poder de introspecção de um urso. Vizenor expressa da seguinte forma a importância do uso de metáforas, inclusive de animais, para a escrita indígena: Razão natural e sobrevivência nativa são metáforas/ mais do que transferência, ou o traço imaginário de outras experiências. Metáforas são conceitos sistemáticos de ausência, presença, totens e transmoção (…) As metáforas são cruciais para a interpretação da literatura indígena, e as metáforas são comparáveis como traços � 36 nativos, totens e visões xamânicas, ação e consciência de sobrevivência. (VIZENOR, 1998, p. 122) 17 Os animais metafóricos, segundo Vizenor, estão vivos na linguagem e na criação das personagens, portanto são feitos de linguagem e construídos como espaços na narrativa, tornando-se desafios do autor indígena à percepção dos leitores ou ouvintes não indígenas. Ao percorrerem os caminhos da transposição entre realidade e linguagem, os autores indígenas reafirmam sua voz, como se pode observar na seguinte consideração de Vizenor: A linguagem é, então, um ambiente real dos animais criados por autor – os nomes, lembranças, modos, metáforas e presença totêmica dos animais nas assnarrativas. As marcas totêmicas da natureza são redobradas em metáforas e na criação de personagens animais. Uma vez provocado pelo autor, o leitor deve conceber a partir de um maravilhoso arcano animal e das unidades selvagens da criação. Além disso, os animais escritos são endurecidos por um ambiente irônico e pelos estilos literários de sua criação. Os animais das histórias devem sobreviver às reviravoltas dos tropos, às práticas de comparações, de metáforas e metonímias, como necessidades e contingências de uma natureza e presenças criadas por um autor. Os ursos, lobos, cães vira-latas, garças totêmicas e outras criaturas são marcas de transmoção e sobrevivência nativa. Porém, animais de símile, a mera comparação com a emoção e feições humanas são caricaturas na literatura. (VIZENOR, 1998, p.133)18 Este “acordo” entre autores e ouvintes⁄leitores da literatura indígena pode não ser totalmente compreendido sem os contextos míticos, totêmicos, metafóricos e educacionais que acompanham a filosofia de cada tribo, permitindo, assim, diversas leituras e interpretação dos textos, especialmente quando se trata de lendas escritas e publicadas em veículos de comunicação voltados à população eurodescendente. As histórias míticas e tradicionais recontadas por indígenas norte-americanos no final do século XIX e início do século XX, especialmente pelo povo Oyate, entre os quais podem ser citados Standing Bear, Zitkala-Ša, Charles Eastman e Black Elk, foram consideradas, no momento de sua publicação, como ������������������������������������������������� 17 Natural reason and native survivance are metaphors/ more than transference, or the imaginative trace of other experiences, metaphors are the systematic concepts of absence, presence, totems and transmotion. (…) Metaphors are crucial in the interpretation of native literature, and metaphors are comparable as native traces, totems and shamanic visions, action and conscience of survivance. N.T. Transmoção é um termo cunhado por Vizenor para demonstrar uma das características do trickster, a de transferência e sobreposição entre realidade, fábula e mito. 18 Language, then, is one of the real environments of the authored animals – the names, memories, manners, metaphors, and the totemic presence of animals in narratives. The totemic traces of nature are redoubled in metaphors and the creation of animal characters. Once teased by the author, the reader must conceive of a marvelous arcane animal and the wild unities of creation. Still, authored animals are hardened by an ironic environment and by the literary styles of their creation. The animals of stories must survive in turns of tropes, the practices of simile, metaphor, and metonymy, as necessities and contingencies of an authored nature and presence. The metaphorical bears, wolves, mongrels, totemic cranes and other creatures, are traces of native transmotion and survivance. However, simile animals, the mere comparison with human emotion and countenance, are caricatures in literature.� � 37 revisões românticas de um passado perdido, sem que seus contextos, sua riqueza semântica, simbólica e irônica fossem explorados. Porém, a presença dos animais e de suas características de povo, metáfora, ironia e controle da linguagem fazem com Vizenor os coloque na categoria de resistência sob a perspectiva dos autores indígenas: As criaturas na literatura nativa são raramente meras representações dos animais como o são na natureza ou na cultura, como selvagens, domésticos, genéricos, ou de outra forma; porém, há uma presença não nomeada, as marcas de uma natureza familiar, uma motivação cômica, uma razão nativa, e a introspecção dos autores. (VIZENOR, 1998, p.141)19 Para Vizenor (1998), os animais da literatura indígena são, além de criaturas da linguagem, marcas irrefutáveis da presença e da voz indígena (sua sobrevivência), fugindo, portanto, da obrigação de “parecerem índios” e assumir um dos papéis designados na construção do texto nativo: a raça evanescente, o selvagem extinto ou o mestiço trágico. Kelsey argumenta que é importante utilizar uma abordagem teórica apropriada para embasar a literatura produzida pelos indígenas norte-americanos, e que se precisa focalizar o conhecimento tribal, ao levar em consideração “uma estrutura maior que os autores indígenas estão invocando, descrevendo, abordando e reconstruindo em suas escritas e, como tal, como sua (re) instrumentação cultural e linguística sustenta-se em si mesma como uma teoria nativa.” (KELSEY, 2008, p. 10)20 Kelsey (2008) baseia seus estudos no conhecimento tribal, ou seja, nos sistemas de linguagem e pensamentos singulares de cada tribo ou grupos de tribos com bases culturais similares (as nações indígenas). Seus estudos concentram-se no conjunto de conhecimentos e conceitos dos Dakota, nação à qual Zitkala-Ša pertenceu e partem do pressuposto de que alguns instrumentos acadêmicos utilizados no estudo de textos não canônicos são, de certa forma, inadequados ao estudo de textos indígenas, pois realizam sua leitura fora de seus contextos tribais e seus termos culturais definidos. Dessa forma, os textos são vistos apenas do ponto de vista do antropólogo ou do crítico literário com instrumentos de análise voltados à cultura eurodescendente, dando ensejo às generalizações e estereótipos apontados por ������������������������������������������������� 19 The creatures in native literature are seldom mere representations of animals in nature or culture, wild, domestic, generic, or otherwise; however, there is an unnamable presence, the traces of a familiar nature, comic motivation, native reason, and the introspection of authors. 20 The larger Native cultural framework that indigenous authors are invoking, describing, engaging and remaking in their writings, and, as such, how this cultural and linguistic (re) tooling stands on its own as Indigenous theory. � 38 críticos literários voltados aos estudos de escrita indígena norte-americana, como Krupat (1989) e Vizenor (1998). Alguns dos conceitos abordados por Kelsey em seu estudo, como a formação de vínculos entre os membros da tribo (Tiošpaye), vão aparecer na obra de Zitkala-Ša: Ao mesmo tempo em que conceitos de nação e soberania são introduções relativamente recentes nos discursos, os Dakota já possuíam claramente uma identidade de pré-contato, que era formada através de relacionamentos e relacionalidade: o tiošpaye, ou família extensa. Esta unidade social forma a base da afiliação a um bando e é mais ampla, interligando-se com outros bandos de Dakota, Lakota, e Nakota. Devido ao fato de que estes três ramos da "Nação Sioux" se considerarem como parte do mesmo povo, cuja existência implicava o estabelecimento de um relacionamento com os outros, há um discurso nascente sobre nação, ou, nesse caso, identidade do bando ou do tiošpaye. (KELSEY, 2008, p. 27) 21 Este senso de comunidade será um ponto essencial a ser abordado na literatura indígena e principalmente na obra de Zitkala-Ša, que descreve e reconstrói, em diversos de seus contos e narrativas autobiográficas a vida tribal e as relações entre os diversos membros da comunidade, como pais e filhos, jovens e anciãos, conforme será estudado mais adiante na análise das obras. Pelas razões acima, pode-se observar porque escritores como Zitkala-Ša e outros de sua época e etnia não conseguiram evidência ou uma atenção séria por parte de escritores, literatos, ou mesmo acadêmicos, sobre seus trabalhos. A origem dos autores, de seu contexto social e físico gerou uma forma de separação e categorização desses trabalhos como obras não merecedoras de uma análise mais apurada. Por esse motivo, os textos indígenas do período em que Zitkala-Ša viveu e escreveu passaram a ser revistos e examinados quase cem anos após sua escrita. Kelsey (2008) alerta para a necessidade, então, da busca de um aparato de análise que consiga abarcar os textos literários indígenas sob pena de perder-se a amplitude de sentidos desses textos: A teoria está tão profundamente entrelaçada com a cultura que uma falha em proceder à leitura de textos literários fecha cada tipo de narrativa sobre como nós a compreendemos como literatura. Igualmente, aplicar um aparato não apropriado a ������������������������������������������������� 21 While concepts of nation and sovereignty are relatively recent introductions to discourses, the Dakota clearly had a form of precontact identity that was formed through relationships and relationality: the tiospaye, or extended family. This social unit forms the core of band affiliation and its larger interweaving with other bands of Dakota, Lakota, and Nakota. Because the three branches of the "Sioux Nation" viewed themselves as being part of the same people whose existence was predicated upon establishing their relationship to each other, there is a nascent discourse of nation, or in this case band or tiošpaye identity. � 39 um texto colonizado pode ter o efeito de revitimizar os povos cujas experiências são apresentadas naquele texto. (KELSEY, 2008, p. 12) 22 Quirk e Scharnhorst (1994) e Krupat (1989) concordam que a leitura, a escrita, a produção e reprodução de textos literários são cultural, política e economicamente condicionados. Isso equivale a dizer que os processos de produção e divulgação de textos literários muitas vezes deixam de fora autores cujas características não se encaixam na denominação de eurodescendentes, masculinos, ou de posição social ou econômica mais elevada. Para Krupat (1989), além das relações de poder que formam o cânone literário, ou seja, as obras consagradas e consideradas essenciais como literatura, há o papel da academia. O que é ensinado na academia também determina a escolha dos trabalhos canônicos ou não, portanto, enquanto os textos etnicamente marcados como os textos indígenas não constituírem conteúdo a ser discutido na academia, eles não existirão como textos literários, algo que vem ocorrendo apenas nos últimos anos, pela insistência de autores como o próprio Krupat. Segundo Lukens, embora a frenologia e a craniologia tenham sido renegadas como ciência, elas continuam existindo no cânone literário: ainda há separações de “escrita étnica”, e divisões das bibliografias, que diminuem a possibilidade de autores não anglo-saxônicos, e não pertencentes ao sexo masculino serem conhecidos nos EUA. A autora aposta na descrição da “literatura americana sem fronteiras”, na qual os textos redigidos por autores negros, nativo-americanos e por mulheres não sejam considerados ilegítimos aos olhos de uma cultura hegemônica, pois eles oferecem a literatura híbrida, que reconstrói a paisagem, como numa velha lenda em que o povo da água que constrói a terra buscando sujeira do fundo do mar (LUKENS, 1991, p. 203). Os estudos de história, em geral, mostram os indígenas como grupos de pessoas que precisam ser cuidados, guiados, e ensinados – especialmente quando se considera todas as tentativas de “domesticação” dos “selvagens”, ou de sua conversão ao Cristianismo. A mitologia do indígena e sua forma de educação por meio de histórias, sejam elas acontecimentos reais de um grupo tribal específico, ou lendas e mitos de origem, transformando assim a tradição oral e pictórica como essencial à sobrevivência da comunidade, educação e intercâmbio cultural, podem ser apontadas como razões para a classificação da escrita indígena como infantil e dotada apenas de interesse exótico, uma literatura produzida por crianças primitivas. Essa afirmação é verdadeira com relação aos ������������������������������������������������� 22 Theory is so deeply entwined with culture that a failure to engage in the reading of literary texts closes off any sort of narrative about how we understand it as literature. Similarly, applying an inappropriate theoretical apparatus to a colonized text can have the effect of revictimizing the peoples whose experiences are represented in that text. � 40 indígenas escritores até o início do século XX, período no qual as boarding schools e outras políticas tentavam apagar os traços da cultura indígena, seja pela educação branca, seja pelas guerras índias, quando as tribos se revoltavam contra as determinações governamentais. 2.4 O TRICKSTER O trickster é um tropo, a figuração selvagem do xamanismo, soberania e sobrevivência (survivance) em muitas histórias nativas. As histórias de trickster são a piada da criação, o engodo aos costumes, as causas e as conexões na literatura nativa. As marcas das identidades nativas estão mais próximas dos silêncios enganadores no senso comum do que nas histórias pechinchadas e nas narrativas de dominação. Esta conexão da variedade cultural nativa incluiria e abarcaria alguns políticos do país, aqueles que receberam cocares de guerreiros, enganados por cachimbos da paz, zombados por adoções obscuras, e presenteados dubiamente com nomes descritivos. (VIZENOR, 1998, p. 91) 23 O trickster é uma figura recorrente na tradição indígena. Especialmente autores que estudam o Pós-colonialismo, como Ashcroft (2002) e Souza (1994) afirmam que procedimentos como ironia, humor e apropriação da linguagem para subvertê-la são características do discurso de resistência das pessoas que foram silenciadas. Esta pode ser considerada uma ação do trickster, traduzido livremente como “o embusteiro” (SMITH, 1994). O termo é utilizado para descrever um deus, deusa, espírito, homem, mulher ou animal antropomorfizado, ou uma mistura desses elementos, que prega peças, desobedece, quebra regras do universo, dos humanos e de outros deuses ou deusas. Trabalhar com esta personagem não é uma tarefa fácil, porque eles aparecem diferentemente nas diversas tradições. Ele tem matizes culturais que muitas vezes podem escapar aos leitores acostumados com obras escritas pela cultura dominante, e muitas vezes são interpretados erroneamente pelo filtro da cultura do intérprete. O intérprete indígena, ao reproduzir as histórias do trickster, também utiliza sua estilística e sua ourivesaria textual: ele faz escolhas, e tais escolhas são decorrentes não apenas do coletivo – história e histórias contadas e recontadas oralmente por séculos – mas do individual – da re-criação particular por um contador de histórias de um evento mítico, social ou histórico a partir de seu próprio filtro individual e ������������������������������������������������� 23 The trickster is a trope, the wild figuration of shamanism, sovereignty, and survivance in many native stories. Trickster stories are the tease of creation, a ruse of manners, causes and connections in native literature. The traces of native identities are closer to the tricky pauses in common sense than to dickered histories and narratives of dominance. This varionative connection would include and embrace some national politicians, those who have been touched in a warrior headdress, tricked by peace pipes, teased by obscure adoption, and given the dubious gifts of descriptive names. � 41 cultural, amalgamados e baseados nas necessidades e gosto da audiência (BALLINGER, 2004). Outro elemento que Ballinger aponta como dificuldade à transcrição de histórias que possuem o trickster como personagem primário ou secundário é a falta, justamente, do contador de histórias e de todas as inflexões orais, expressões e gestos que acompanham os sentidos incorporados às narrativas. Os tricksters estão imersos em dois níveis, como os mitos: eles são a história. Mas também eles são a linguagem. Eles recuperam os animais totêmicos e as lendas de origem e, portanto, fazem parte da história, seja como protagonistas ou como coadjuvantes, mas também operam no nível da escrita, presentes nas fórmulas e na pluralidade de sentidos da narrativa. A oralidade na vida do indígena norte-americano vai muito além do mero entretenimento: é essencial como sentido em si, como parte de uma cerimônia que reforça o poder da palavra, com mudanças de dramaticidade por parte dos contadores habilidosos, entre outros aparatos orais, assim como o andamento intencionalmente retardado ou acelerado, mudanças de vozes para as diferentes personagens, além da transmissão de um conjunto de valores sociais e morais que permeiam as histórias do trickster. Ballinger reforça o papel do contador de histórias e de sua importância: Poucos pesquisadores antigos investigaram a Estética Indígena americana além destes traços óbvios. As traduções passadas das histórias indígenas americanas frequentemente buscavam apenas transmitir um conteúdo literal e contexto cultural, sem considerar como o contador de histórias poderia ter estruturado a história artisticamente. Esta abordagem não levou apenas a traduções monótonas, mas também a traduções que ignoraram amplamente a estética indígena de contar histórias. (BALLINGER, p. 11 2004) 24 Ballinger ainda classifica as histórias do trickster como combinações, repetições, atos e eventos que criticam a experiência cultural e sugerem as falhas humanas e a incapacidade do ser humano de viver papéis e posições sociais a ele destinados. Uma segunda forma de histórias de trickster tem como foco a capacidade inata e na imperfeição como um todo. Sobre a forma das narrativas de trickster, Ballinger também traz informações importantes: As histórias do trickster podem ser apresentadas como narrativas breves, que resumem encontros com uma simplicidade burlesca, assim como contos desenvolvidos com mudanças de diálogo e de cenas, ou ciclos como aqueles que interligam muitos contos e uma narrativa que dura uma hora ou mais. Além disso, ������������������������������������������������� 24 Few early researchers probed American Indian aesthetics beyond these obvious traits. Past translations of American Indian stories often aimed to convey only literal content and cultural context without considering how the storyteller might have shaped the story artistically. This approach led not only to dreary translations but also to translations that largely ignored American Indian storytelling aesthetics. � 42 as histórias de trickster são comumente "marcadas com características formais recorrentes, que fornecem um fundo de expectativas." Em particular, as histórias são geralmente ahistóricas (apropriadas para histórias classificadas como mitos) e apenas ocasionalmente passadas em um cenário identificável (e nessas poucas vezes, apenas para propósitos de verossimilhança). (BALLINGER, 2004, p. 11) 25 O trickster indígena, muitas vezes, assume uma forma intermediária – nome de animal, atitudes e forma humana; forma de animal, atitudes humanas; seres humanos com nomes ou características animais; um amontoado impreciso de pistas construídas de linguagem que, como o próprio trickster, engana ou confunde a audiência sobre sua natureza. A ligação específica da figura do trickster com a linguagem é abordada por Vizenor em diversos de seus livros e reforçada por outros estudiosos, como Ballinger (2004). Como personagem, o trickster será o gaio-azul, o corvo, o coelho, algumas vezes o sapo em algumas culturas, Iktomi, a Aranha (entre os Dakota), mas sua personificação mais famosa é Coiote, difundido em muitas tribos norte-americanas, algumas vezes com nomes específicos, como Ma´i, em sua representação entre os Navajos. Há outras classificações das histórias do trickster, como a classificação de Gallen Buller (apud GILL E SULLIVAN, 1992), baseadas no Coiote dos Comanches e divididas quanto ao assunto: tentativas do Coiote de imitar outros animais; seu relacionamento com indígenas; seus relacionamentos com e tentativas de enganar os brancos; e suas tentativas de administrar problemas do século XX, em narrativas originais que utilizam as personagens míticas, ou adaptações de autores de histórias antigas. Quando Coiote tenta enganar outros animais, ele raramente sai vencedor, mas quando procura enganar pessoas, geralmente é bem sucedido, especialmente nas ocasiões em que utiliza seus dons de engano contra brancos ou ameaças aos indígenas. (GILL & SULLIVAN, 1992) Ballinger (1998) ainda coloca outra classificação, feita pelos próprios indígenas. Os Dakota dividem as histórias dos tricksters, assim como suas histórias da oralidade em geral em dois itens: - Ohunkakan stories (histórias míticas Lakota). - Mitos - ohunkakan histórias “construídas” para serem contadas apenas depois que o sol se põe, mas não para serem acreditadas. São modificadas, símiles criados, e suas referências e alusões são facilmente compreendidas por adultos e crianças indígenas treinadas ������������������������������������������������� 25 Trickster narratives may be presented as brief anecdotes that compress encounters with burlesque simplicity, as developed tales with exchanges of dialogue and scene shifts, or cycles as that weave many tales into a narrative lasting an hour or so. Further, trickster stories are commonly "marked by recurrent formal features, which provide a background of expectations." In particular, tales are usually ahistorical (appropriate enough for stories generally classified as myths) and only occasionally set in an identifiable location (and in those few instances, usually for purposes of verisimilitude only. � 43 para isto, com o instrumental para compreender o mecanismo da pedagogia indígena. O trickster se encaixa geralmente nesta categoria, mas nem sempre. - Lendas e⁄ou fatos históricos, a wosyakapi, envolvendo eventos relativos à memória da tribo, narrativas de como a tribo resolveu seus problemas no passado, como um de seus integrantes chegou ao poder, ou eventos