UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS A RELAÇÃO DO HOMEM COM O MEIO AMBIENTE NOS ESPORTES DE AVENTURA: CANOAGEM E ESCALADA MATHEUS BLAZISSA MARTINI Rio Claro – SP 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS A RELAÇÃO DO HOMEM COM O MEIO AMBIENTE NOS ESPORTES DE AVENTURA: CANOAGEM E ESCALADA MATHEUS BLAZISSA MARTINI ORIENTADOR: PROF. DR. AFONSO ANTONIO MACHADO Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Humano e Tecnologias. Rio Claro – SP 2020 M386r Martini, Matheus Blazissa A Relação do Homem com o Meio Ambiente nos Esportes de Aventura : Canoagem e Escalada / Matheus Blazissa Martini. -- Rio Claro, 2020 45 p. : tabs., fotos + 1 CD-ROM Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientador: Afonso Antonio Machado 1. Esportes de Aventura. 2. Canoagem. 3. Escalada. 4. Meio Ambiente. 5. Turismo de Aventura. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. RESUMO Os Esportes de Aventura possuem uma relação histórica com o meio ambiente, sobretudo na Canoagem e na Escalada. Antes de esses esportes existirem oficialmente as montanhas já eram escaladas e os rios navegados em pequenas embarcações adaptadas, e o fator preponderante para realizarem essas atividades era uma boa relação com a natureza local, levando em conta as suas imprevisibilidades. Essa relação se manteve com o surgimento desses esportes por seus pioneiros praticantes até simbolizarem como tradições essenciais para suas práticas. E com o objetivo de identificar as alterações que surgiram na relação do homem com o meio ambiente dentro da Canoagem e da Escalada ao longo do tempo, esta pesquisa qualitativa foi realizada através de uma revisão bibliográfica sistemática, consultando livros, trabalhos acadêmicos e artigos científicos. Como justificativa, observamos uma alteração na relação homem/meio ambiente dentro desses esportes em questão, que atualmente podem ser praticados em novos ambientes (inclusive os artificiais) e, concomitantemente, estão recebendo novos praticantes com perfis diferentes daqueles que seguem a tradição de seus pioneiros. A análise desta pesquisa verificou que os novos ambientes para a prática da Canoagem e da Escalada e a incursão agressiva do Turismo de Aventura podem gerar um menosprezo na relação homem/meio ambiente, e como consequência altera a experiência durante a prática esportiva, criando novos riscos para seus praticantes e uma percepção de externalização do homem com a natureza. Palavras-chave: Esportes de Aventura. Canoagem. Escalada. Meio Ambiente. Turismo de Aventura. ABSTRACT The Adventure Sports have a historical relationship with the environment, especially in Canoeing and Climbing. Before such sports officially existed as mountains were alread climbed and rivers navegated in small boats adapted, and the preferred factor for carrying out these activities was a good relationship with the local nature, taking into account how unpredictable they were. This relationship holds with or operates theses sports by their pioneering practitioners until they symbolize as essential traditions for their practices. And in order to identify the changes that have arisen in the relationship between man and the environment within Canoeing and Climbing over time, this qualitative research was conducted through a systematic literature review, consulting books, academic papers and scientific articles. As a justification, we observed a change in the relationship between man and environment within these sports, which can currently be practiced in new environment (including artificial ones) and, concomitantly, are receiving new practitioners with different profiles from those who follow the tradition of their pioneers. The analysis of this research found that the new environments for the practice of Canoeing and Climbing and the agressive incursion of Adventure Tourism can generate a slight disregard in the relationship between man and environment, and as a consequence alters the experience during sports pratices, creating new risks for its practitioners and a perception of man's externalization with nature. Keywords: Adventure Sports; Canoeing; Climbing; Environment; Adventure Tourism. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Um esquimó carregando seu caiaque feito com peles de animais (data desconhecida). ...................................................................................................................... 9 Figura 2 - Os alemães Sebastian Brendel e Jan Vandrey nas olimpíadas Rio-2016, na categoria C-2 1000M. ........................................................................................................... 10 Figura 3 - O brasileiro Edson Isaias Freitas da Silva nas olimpíadas Rio-2016, competindo na categoria K-1 200M ......................................................................................................... 11 Figura 4 - A Brasileira Ana Sátila nas Olimpíadas Rio-2016, competindo na categoria K-1 da modalidade Slalom .............................................................................................................. 12 Figura 5 - Campeonato Mundial de Rafting, realizado no Japão-2017. ................................ 13 Figura 6 - Um canoísta utilizando seu capacete, colete e roupa térmica. ............................ 14 Figura 7 - Percurso artificial da Canoagem Slalom nas Olimpíadas Rio-2016. .................... 15 Figura 8 - Subida ao Monte Everest, maior altitude do mundo, localizado no Nepal ............ 17 Figura 9 - O escalador Ian Padilha praticando o Big Wall em um paredão no Brasil............ 18 Figura 10 - O escalador Alex Honnold subindo o El Capitan (Yosemite, EUA) na modalidade Free Solo. ........................................................................................................................................................ .18 Figura 11 - Um escalador praticando o Boulder com os colchões auxiliando na segurança. 19 Figura 12 - Escalada esportiva Indoor simulando um Boulder, (Casa de Pedra, São Paulo). ............................................................................................................................................ 20 Figura 13 - Equipamentos de Escalada. .............................................................................. 21 Figura 14 - Motivação entre os participantes de Corrida de Aventura. ................................. 35 Figura 15 - Fila no cume do Monte Evereste (Nepal, Maio de 2019). .................................. 38 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 7 2. CANOAGEM ........................................................................................................... 9 3. ESCALADA ........................................................................................................... 16 4. OS PRATICANTES COMO GESTORES DOS RISCOS ....................................... 22 5. TOPOFILIA ........................................................................................................... 29 6. O CENÁRIO ATUAL DO TURISMO DE AVENTURA ............................................ 35 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 40 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 41 7 1 INTRODUÇÃO “Uma aventura constitui-se de uma busca pelo desconhecido, uma expedição, uma descoberta de lugares não antes explorados, apontando para a emoção de se enfrentar as incertezas” (PEREIRA, 2011, p. 83). Podemos sugerir que foi dentro desse conceito de aventura que surgiu a Canoagem e a Escalada. O primeiro esporte em questão começou através de uma exploração dos rios europeus feita pelo escocês John MacGregor em seu caiaque de madeira adaptado para suportar águas mais agitadas, enquanto o segundo teve seu início com uma busca pelo desconhecido no Mont Blanc (França). Esses esportes de origem aventureira podem ser encontrados juntos dentro de algumas frentes conceituais, como: Esportes de Aventura, Atividades Físicas de Aventura na Natureza, Esportes Radicais, entre outras. Esta pesquisa optou pelo conceito Esportes de Aventura por estar mais alinhado aos objetivos aqui pretendidos, focando na definição de aventura e entendendo esses esportes como uma “busca de sensações novas, com um caráter prazeroso, plenitude pessoal, evasão divertida e o contato com a natureza” (LAVOURA; MACHADO, 2006, p. 143). Entretanto, não pretendemos limitar os resultados aqui obtidos para uma única frente conceitual, a opção foi feita como escolha metodológica, ou seja, trata-se de um caminho que foi traçado, não de um fim proposto. Dessa maneira, cito uma importante indagação de Pimentel, encontrada em seu artigo intitulado “Esportes na Natureza e Atividades de Aventura: Uma Terminologia Aporética” (2013): Por que, então, se as experiências reais divergem do próprio conceito de lazer, devemos construir uma barreira conceitual entre essas vivências na natureza e vivências de outra ordem ou codificação, que também ocorrem na natureza, às quais chamamos de esporte? (PIMENTEL, 2013, p. 693). O caminho metodológico escolhido permitiu realizar esta pesquisa qualitativa em uma revisão bibliográfica sistemática, consultando livros, artigos científicos e trabalhos acadêmicos, mas a escolha pela Canoagem e a Escalada se deve a minha prática pessoal como canoísta que obtive enquanto instrutor de Rafting na cidade de Brotas – SP, além de também me aventurar eventualmente na Escalada, com maior dedicação na modalidade Boulder. E foi durante a prática esportiva que a justificativa desta pesquisa começou, observando novas situações de riscos que foram surgindo dentro do Turismo de Aventura, como a superlotação de pessoas em uma mesma via de escalada ou o despreparo dos 8 praticantes diante das vulnerabilidades do meio ambiente às mudanças repentinas da natureza, onde toda preparação e planejamento da prática esportiva fogem ao praticante enquanto o mesmo confia à agência toda sua atividade e gestão dos riscos, além de uma alteração completa na rotina de algumas atividades esportivas devido à mudança de ambiente, do natural para o artificial. A alta tecnologia apresentou muitos benefícios para os Esportes de Aventura, porém, alterou exageradamente suas práticas esportivas na medida em que modificou os ambientes e se abriu ao Turismo de Aventura cada vez mais agressivo na busca de uma maior lucratividade, e dessa forma, rompeu com a tradição na relação dos praticantes com o meio ambiente, expondo-os a novos riscos que consequentemente surgiram, gerando uma percepção de externalização com a natureza, caminhando de maneira oposta a qualquer possibilidade de educação ambiental (CAETANO; LEITE, 2004, p. 139). Sendo assim, o objetivo deste trabalho é de identificar as alterações que surgiram na relação do homem com o meio ambiente dentro da Canoagem e da Escalada ao longo do tempo, relação essa que foi cultivada por seus pioneiros praticantes e agora está se enfraquecendo pelo desenvolvimento do Turismo de Aventura somado ao surgimento dos novos ambientes artificiais para a prática esportiva. E para chegar aos resultados aqui obtidos, estruturamos esta pesquisa através de uma abordagem histórica, começando pela história da Canoagem e da Escalada, já identificando a interdependência desses esportes junto ao meio ambiente em que realizavam suas atividades. Em seguida, os perfis dos praticantes são analisados enquanto atores na gestão dos riscos que a prática esportiva na natureza pode oferecer. Após esse entendimento, o desenvolvimento tecnológico aparece como uma benfeitoria que pode se tornar extremamente maléfica quando é mal implantada ou quando faz desaparecer os ganhos obtidos pela prática na natureza, através da mudança de ambiente. Durante esse capítulo sobre os ganhos dos praticantes pela prática em meio natural, o foco se dá no processo de internalização do homem com a natureza pelos estímulos dos órgãos sensoriais (TUAN, 2012, p. 107). Finalmente, antes da conclusão do trabalho é demonstrado como a incursão agressiva do Turismo de Aventura, apesar de manter a prática esportiva no meio ambiente natural e possuir uma alta tecnologia, despreza a relação tradicional do homem com o meio ambiente dentro da Canoagem e da Escalada para atender a alta demanda atual, objetivando apenas os lucros que essas atividades oferecem, sem a preocupação pelo desenvolvimento esportivo e sua relação com o meio ambiente. 9 2 CANOAGEM Quando Cristóvão Colombo chegou pela primeira vez na América, se deparou com algumas tribos indígenas que já utilizavam pequenos barcos movidos a remo como meio de transporte e principalmente para a prática da pesca. Chamavam esses barcos de canoas, diferenciados de outros barcos movidos a remo por terem proa e popa do mesmo tamanho, essas pequenas embarcações não eram exclusividade das tribos americanas, mas eram utilizadas por vários povos ao redor do mundo, apesar de terem outras denominações (LOPES, 2014, p.16). Em um desses lugares, no Polo Norte, alguns esquimós realizaram modificações nesses barcos para conseguirem navegar pelos canais gelados com um mínimo de conforto e segurança, revestindo-os com lonas impermeáveis feitas de peles de animais e utilizando um remo com duas pás (uma em cada ponta), e dessa maneira, surgia uma variação às canoas: os chamados caiaques (SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA - SP, 2012, p.125). Figura 1 - Um esquimó carregando seu caiaque feito com peles de animais (data desconhecida). Fonte: http://www.caiaker.com/canoagem/tudo-sobre-canoagem-e-caiaques. Acesso em 27 de Abril de 2019. Indispensáveis para sobrevivência de vários povos, essas embarcações seriam utilizadas com outro viés pelo explorador escocês John MacGregor, despertando o interesse aventureiro e esportivo pela remada contada através de seus livros, como no seguinte trecho retirado de “A Thousand Miles in The Rob Roy Canoe” (1866): http://www.caiaker.com/canoagem/tudo-sobre-canoagem-e-caiaques 10 The object of this book is to describe a new mode of travelling on the Continent, by which new people and things are met with, while healthy exercise is enjoyed, and an interest ever varied with excitement keep fully alert the energies of the mind (MacGREGOR, 1866, p.1). Salientando a importância física e mental da remada aventureira, John MacGregor inspirou a criação de um novo esporte, diferente do já tradicional Remo por questões técnicas como o atleta estar remando de frente e não de costas, e ainda de características das embarcações, como os remos não terem mais contato com o barco (TEREZANI, 2013, p.17). E não demorou muito para atrair interessados na prática do novo esporte, e assim, no mesmo ano da publicação de seu livro (1866), o explorador escocês fundou em Londres o primeiro clube para a prática da Canoagem, o Royal Canoe Club (LOPES, 2014, p.17). Foi o ponto de partida para o surgimento do esporte, a partir daí foram formados clubes de Canoagem que organizavam seus próprios campeonatos regionais até atingirem diversos países do mundo, inicialmente com competições de Caiaque e Canoa de Velocidade em águas calmas, até integrarem o programa olímpico em Berlim-1936. A principal diferença dessas modalidades está em que na canoa o atleta rema sobre um dos joelhos e com um remo de uma pá, enquanto no caiaque o atleta rema sentado com um remo de duas pás, como mostram as fotos abaixo: Figura 2 - Os alemães Sebastian Brendel e Jan Vandrey nas olimpíadas Rio-2016, na categoria C-2 1000M. Fonte: https://www.olympic.org/photos/rio-2016/canoe-sprint. Acesso em 20 de Janeiro de 2019. https://www.olympic.org/photos/rio-2016/canoe-sprint 11 Figura 3 - O brasileiro Edson Isaias Freitas da Silva nas olimpíadas Rio-2016, competindo na categoria K-1 200M. Fonte: http://www.edinhocanoagem.com.br/style/images/art/1.png. Acesso em 20 de Janeiro de 2019. As categorias disputadas dentro da Canoagem seguem as siglas inglesas que conferem Canoe (Canoa) ou Kayak (Caiaque), seguidas pela quantidade de tripulantes, distância da prova, e se a competição é entre homens ou mulheres. Dessa maneira, as categorias olímpicas para a Canoagem de Velocidade são: C-1 1000M (MEN); C-1 200M (MEN); C-2 1000M (MEN); K1 200M (MEN); K1 200M (WOMEN); K1 500M (WOMEN); K1 1000M (MEN); K2 200M (MEN); K2 500M (WOMEN); K2 1000M (MEN); K4 1000M (MEN); K4 1000M (WOMEN). Essas duas modalidades, entretanto, não seriam as únicas abrangidas pela Canoagem, que com a evolução das tecnologias na construção das embarcações ainda final do século XIX, possibilitaram o surgimento de uma nova modalidade, agora praticada em águas brancas (corredeiras). Dessa forma, foi na busca pela aventura durante o verão europeu que alguns praticantes do Esqui Slalom levaram o esporte da neve para as águas dos rios Izar, Enns e Lech, na fronteira da Alemanha com a Áustria, criando assim a Canoagem Slalom, com embarcações adaptadas para águas brancas – designação utilizada para rios com alta declividade e com correntezas fortes, formando espumas brancas pela agitação das águas – e com a aventura incorporada do Esqui alpino (TEREZANI, 2013, p.20). E com a evolução dessa nova modalidade e a organização de várias competições, o Comitê Olímpico Internacional (COI) resolveu testar a Canoagem Slalom nas Olimpíadas de http://www.edinhocanoagem.com.br/style/images/art/1.png 12 Munique-1972, até oficializar vinte anos mais tarde (Barcelona-1992) a modalidade que hoje conta com quatro categorias nos jogos: C-1 (MEN); C-2 (MEN); K-1 (MEN); K1 (WOMEN). Figura 4 - A Brasileira Ana Sátila nas Olimpíadas Rio-2016, competindo na categoria K-1 da modalidade Slalom. Fonte: https://www.cob.org.br/pt/Galerias/veja-como-foi-o-treino-dos-atletas-brasileiros-neste-sabado- 30-07. Acesso em 22 de Janeiro de 2019. Contudo, apesar de essas serem as únicas modalidades da Canoagem que competem nos jogos olímpicos, outras modalidades continuaram surgindo dentro do esporte e hoje fazem parte da International Canoe Federation (ICF), entidade internacional que regulamenta a prática da Canoagem. Uma delas é o Rafting, que apesar de ser tão antigo quanto às modalidades já citadas, tornou-se popular apenas nos dias de hoje por se tornar um grande atrativo das agências de turismo da atualidade. Mas foi em 1869 que John Wesley Powell, contemporâneo de John MacGregor, organizou uma expedição pelo rio Colorado (EUA) que pode ser considerada a primeira descida de Rafting da história. O objetivo era realizar pesquisas geológicas e geográficas no rio que corta o Grand Canyon (EUA), ele encomendou três embarcações de Chicago feitas sob medida, movidas a remo e com capacidade suficiente para resistir aos perigos das corredeiras que enfrentariam durante meses. Com a companhia de pesquisadores, empregados e aventureiros, concluiu sua expedição sem saber que estaria inaugurando uma grande maneira de se aventurar por rios de águas brancas até os dias atuais (RABBITT, 1969, p.3-4). https://www.cob.org.br/pt/Galerias/veja-como-foi-o-treino-dos-atletas-brasileiros-neste-sabado-30-07 https://www.cob.org.br/pt/Galerias/veja-como-foi-o-treino-dos-atletas-brasileiros-neste-sabado-30-07 13 E indo além às práticas nas agências de turismo, o Rafting também possui competições de alto nível, como os campeonatos mundiais realizados anualmente, unindo a aventura com o desejo pela competição. Figura 5 - Campeonato Mundial de Rafting, realizado no Japão-2017. Fonte: https://www.internationalrafting.com/events-2/events/wrc-2017-japan/wrc-2017-japan-photos- results-press-releases-videos/. Acesso em 23 de Janeiro de 2019. Não é diferente das outras modalidades que também fazem parte do contexto esportivo da Canoagem, e embora não tenham o mesmo reconhecimento das modalidades olímpicas, se organizam com competições e grupos de praticantes que buscam a fuga da rotina, o desejo pela aventura, o exercício pelo bem da saúde e o contato com a natureza. Hoje a International Canoe Federation (ICF) reconhece treze modalidades da Canoagem, são elas: Canoe Sprint; Paracanoe; Canoe Slalom; Canoe Wildwater; Canoe Marathon; Canoe Polo; Dragon Boat; Canoe Freestyle; Canoe Ocean Racing; Stand Up Paddling; Canoe Sailing (Independente); Rafting (Independente); Waveski Surfing (Independente). As três últimas destacadas como independentes são modalidades reconhecidas pela ICF, mas não são regulamentadas por ela, possuindo federações independentes que formulam suas regras e organizam suas competições (INTERNATIONAL CANOE FEDERATION, 2019). Notadamente, observamos que as embarcações sofreram uma grande alteração com a evolução das tecnologias no esporte. Como já vimos no início, o precursor da Canoagem foi o escocês John MacGregor, e em certa passagem de seu livro aparece o seguinte relato: https://www.internationalrafting.com/events-2/events/wrc-2017-japan/wrc-2017-japan-photos-results-press-releases-videos/ https://www.internationalrafting.com/events-2/events/wrc-2017-japan/wrc-2017-japan-photos-results-press-releases-videos/ 14 “This was a fine long day of pleasure, though in one of the sudden squalls my canoe happened to ground on a bank just at the most critical time, and the bamboo mast broke short” (MacGREGOR, 1866, p.33). Sua embarcação pioneira possuía um mastro de bambu, que mais tarde seria excluído de seus caiaques, porém revela um dos materiais utilizados na construção das primeiras embarcações, com a tecnologia que tinha à disposição. Alguns povos ao redor do mundo, principalmente tribos indígenas, utilizavam canoas feitas de madeira, em muitos casos utilizando o tronco inteiro da árvore. Os tipos de madeira variavam conforme a região por motivos óbvios: cada povo utilizava a madeira que tinha à sua disposição (SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA - SP, 2012, p.125). Atualmente, existem vários tipos de caiaques feitos de diferentes materiais: madeira, fibra de vidro, fibra de carbono, etc. Cada um deles atende uma determinada demanda, seja ela com fins recreativos, para pesca ou para competição. No caso das competições, cada modalidade possui seu regulamento que dispõe sobre o peso, largura, comprimento e design permitido, como forma de equilibrar e tornar justa a competição entre os atletas. A modalidade Canoagem Slalom ainda requer o capacete, colete salva-vidas e roupa térmica para maior segurança e conforto aos praticantes. Figura 6 - Um canoísta utilizando seu capacete, colete e roupa térmica. Fonte: https://www.canoeicf.com/news/satila-leads-brazilian-charge-pan-american-slalom- championships. Acesso em 27 de Abril de 2019. Na foto acima, o praticante está utilizando uma roupa térmica para manter a temperatura corporal, um colete para se precaver de uma possível queda no rio, e um capacete como proteção de algum impacto com as rochas, algo comum em um esporte praticado em águas de correntezas muito fortes. Essas tecnologias desenvolveram o esporte e diminuíram os riscos para o praticante. O capacete e o colete salva-vidas ajudam na segurança se algum https://www.canoeicf.com/news/satila-leads-brazilian-charge-pan-american-slalom-championships https://www.canoeicf.com/news/satila-leads-brazilian-charge-pan-american-slalom-championships 15 acidente ocorrer, enquanto a evolução das tecnologias na construção das embarcações e dos remos possibilitaram o desenvolvimento das técnicas, manobras, velocidade e conforto. Entretanto, não foram apenas as embarcações e os materiais que enfrentaram o avanço tecnológico na Canoagem, mas o ambiente também se modificou. Nas Olimpíadas do Rio- 2016 a Canoagem Slalom foi praticada em um percurso completamente artificial, simulando barreiras e desníveis naturais, com uma vazão d’água semelhante ao ideal que é encontrado na natureza para a prática da modalidade. Figura 7 - Percurso artificial da Canoagem Slalom nas Olimpíadas Rio- 2016. Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/792543/olimpiadas-rio-2016-parque-radical-vigliecca-and- associados. Acesso em 27 de Abril de 2019. Neste trabalho, o estudo dentro do esporte da Canoagem será conduzido principalmente através das modalidades da Canoagem Slalom e do Rafting, por se tratarem de práticas completamente identificadas com o conceito de Esporte de Aventura, objeto desta pesquisa. Ambas sofreram alterações em suas embarcações, nos equipamentos e até mesmo no ambiente da prática pela evolução tecnológica no esporte. A demanda por um ambiente de risco controlado e de mais fácil acesso no que se refere à localização, acompanhada pelo crescimento vertiginoso do Turismo de Aventura, desenvolveram uma grande aceitação na entrada dessa tecnologia no esporte. Atualmente, é mais difícil encontrar praticantes fora das agências de turismo e dos ambientes controlados do que dentro deles, o que causou uma alteração na rotina e na relação dos canoístas com a natureza, principalmente quando comparados com a atividade prática dos praticantes pioneiros desse esporte (ALVES; MENDES; MONÇÃO; SANTOS, 2013, p.56). https://www.archdaily.com.br/br/792543/olimpiadas-rio-2016-parque-radical-vigliecca-and-associados https://www.archdaily.com.br/br/792543/olimpiadas-rio-2016-parque-radical-vigliecca-and-associados 16 3 ESCALADA Além da Canoagem, outro esporte objeto de estudo deste trabalho é a Escalada, que também possui várias modalidades, além de uma estreita relação histórica e fundamental com o meio ambiente. Quando estudamos a história da humanidade, observamos que os homens buscavam explorar os montes, morros e montanhas por diversos motivos, que poderiam ser científicos, aventureiros ou até mesmo religiosos. A Bíblia relata que Jesus Cristo costumava subir os montes para fazer suas orações em um lugar mais silencioso e particular (BÍBLIA SAGRADA, 2015, Mateus 14.23). Entretanto, a primeira grande escalada conhecida foi feita no Mont Blanc (França), pelos alpinistas franceses Jean Michel Paccard e Jacques Balmat em 1786. O médico e o garimpeiro, respectivamente, aceitaram o desafio do naturalista Horace Benedict de Saussure, interessado em testar as capacidades do corpo humano para realizar suas pesquisas. Essa montanha pertencente aos Alpes Franceses, perto da fronteira com a Itália, possui uma altitude de 4.807 metros e é permanentemente coberta por neve (PEREIRA, 2007, p.40). A realização desta escalada motivou aventureiros de todo o mundo, interessados em descobrir o desconhecido e se aventurar para a conquista dos lugares mais altos de suas regiões. No princípio o único equipamento que utilizavam era uma corda simples, sem a tecnologia atual, e roupas comuns de frio para suportar o clima congelante. Atualmente são chamados de alpinistas somente aqueles que escalam nos Alpes, são chamados escaladores aqueles que praticam qualquer escalada vertical, deixando para os montanhistas a generalidade que engloba caminhadas e trilhas de menor dificuldade em declividades menos acentuadas (PEREIRA, 2007, p. 74). Hoje existem diversas modalidades dentro da Escalada e podemos separá-las pelos locais em que elas são realizadas, como também pela dificuldade e a técnica utilizada. Nas montanhas nevadas é realizada a chamada Escalada em Neve, onde estão os cumes de maiores altitudes do mundo, como no maior de todos, Monte Everest (Nepal) com seus 8.850 metros de altitude. A subida dessas montanhas oferecem diversos perigos além das quedas, com possibilidades de avalanches, tempestades, hipotermia e outros riscos à saúde causados pela mudança de altitude e do clima (NISTA-PICCOLO, 2010, p.74). Na foto abaixo está caracterizada uma subida em montanha nevada, com o caso especial do Monte Evereste, 17 localizado no Nepal, a montanha que possui a maior altitude da superfície terrestre em todo o planeta. Figura 8 - Subida ao Monte Everest, maior altitude do mundo, localizado no Nepal. Fonte: http://blogdescalada.com/o-que-e-preciso-para-escalar-o-everest/. Acesso em 30 de Janeiro de 2019. Indo além das montanhas nevadas, alguns paredões rochosos tiveram grande destaque na história da Escalada e no surgimento de novas modalidades. É o caso do Yosemite Valley, pertencente aos Estados Unidos, foi o local do nascimento de uma nova maneira de escalar que acabou marcando época, como conta o documentário “Valley Uprising” (2014), revelando o surgimento da escalada Big Wall (em grandes paredões rochosos) e do Free Solo (sem o auxílio de cordas) em meio aos preconceitos sociais e desafios impostos pelos escaladores ao longo do tempo (CHIN; VASARHELYI, 2018). Essas duas modalidades, assim como a Escalada em Neve, possuem riscos fatais que infelizmente somam suas vítimas ano após ano. Seus praticantes conhecem os perigos de cada modalidade e de cada via (caminho para subida ao topo), mas resolvem ir em frente mesmo assim, na realização de seus prazeres e objetivos. A Escalada é um esporte em que não é preciso nenhum equipamento para sua prática, basta um morro, uma grande rocha ou uma parede que já é o suficiente para iniciar a atividade esportiva. Entretanto, o uso de equipamentos tecnológicos do esporte é fundamental para aqueles que queiram diminuir seus riscos, cabe a cada praticante definir qual modalidade e http://blogdescalada.com/o-que-e-preciso-para-escalar-o-everest/ 18 quais equipamentos irá utilizar (NISTA-PICCOLO; PEREIRA, 2013, p.3). A foto abaixo mostra um escalador praticando o Big Wall, modalidade onde o praticante escala um paredão rochoso com a ajuda de cordas que eles prendem em grampos colocados no percurso de uma via. Figura 9 - O escalador Ian Padilha praticando o Big Wall em um paredão no Brasil. Fonte: http://gooutside.com.br/big-wall-made-in-brazil/. Acesso em 01 de Fevereiro de 2019. Já na modalidade Free Solo, como mostra a Figura 10, o praticante não utiliza nenhuma corda como auxílio, onde ele está confiando apenas no seu conhecimento sobre a parede rochosa e seu entorno e em suas habilidades como escalador. Figura 10 - O escalador Alex Honnold subindo o El Capitan (Yosemite, EUA) na modalidade Free Solo. Fonte: < https://footwearnews.com/2017/influencers/athletic-outdoor/alex-honnold-climb-free-solo- yosemite-el-capitan-north-face-366732/>. Acesso em 01 de Fevereiro de 2019. http://gooutside.com.br/big-wall-made-in-brazil/ https://footwearnews.com/2017/influencers/athletic-outdoor/alex-honnold-climb-free-solo-yosemite-el-capitan-north-face-366732/ https://footwearnews.com/2017/influencers/athletic-outdoor/alex-honnold-climb-free-solo-yosemite-el-capitan-north-face-366732/ 19 Essas modalidades possuem um grande poder de atração, mas nem todo mundo deseja arriscar-se subindo montanhas nevadas ou paredões rochosos, por isso adaptaram novas modalidades mais acessíveis e não menos prazerosas, como o Boulder e a Escalada Esportiva em paredes artificiais. O Boulder foi criado pelo matemático John Gill nos Estados Unidos, escalando blocos de rochas de 2 a 5 metros de altura, que dispensam a maioria dos equipamentos de segurança das modalidades mais tradicionais. As rochas escolhidas geralmente fornecem uma grande dificuldade técnica aos escaladores, apesar da pouca altura (PEREIRA, 2007, p. 95). Na Figura 11, logo abaixo, um praticante escala um bloco de rocha sem a utilização de cordas, nessa modalidade a altura do percurso é menor, porém ainda são feitas algumas intervenções de segurança, como estender colchões logo abaixo da via de escalada, absorvendo o impacto de uma possível queda. Figura 11 - Um escalador praticando o Boulder com os colchões auxiliando na segurança. Fonte: http://blogdescalada.com/saiba-quais-os-equipamentos-essenciais-na-pratica-de-boulder/. Acesso em 04 de Fevereiro de 2019. E além do Boulder, outra modalidade de menor risco que está crescendo muito em número de praticantes é a Escalada Esportiva, que originalmente é praticada em ambiente natural, mas encontrou maior atração em paredes artificiais, pela facilidade de treinamento e acesso aos novos praticantes. Esses ambientes artificiais para a prática esportiva são dotados http://blogdescalada.com/saiba-quais-os-equipamentos-essenciais-na-pratica-de-boulder/ 20 de alta tecnologia, simulando percursos naturais em todos os seus níveis técnicos. Trata-se do ápice que a tecnologia alcançou dentro dos esportes. Com isso, não demorou muito para surgirem clubes e academias para a prática da Escalada Esportiva no Brasil, como a Casa de Pedra, localizada em São Paulo – Brasil. Figura 12 - Escalada esportiva Indoor simulando um Boulder, (Casa de Pedra, São Paulo). Fonte: http://www.casadepedra.com.br/ginasio/por-dentro-da-casa. Acesso em 05 de Fevereiro de 2019. Como vimos anteriormente, na subida ao Mont Blanc (França), em 1786, Jean Michel Paccard e Jacques Balmat tinham apenas uma corda feita de cânhamo amarrada à cintura para protegê-los, e suas roupas eram feitas de lã, ou seja, nada dessas jaquetas de alta tecnologia que protegem os escaladores do frio das montanhas (PEREIRA, 2007, p.41). Com a evolução do esporte, foram surgindo inúmeras ferramentas que se tornaram essenciais na Escalada: proteções fixas e móveis; cadeirinhas de Escalada; mosquetões e freios; cordas, fitas e costuras; capacetes, roupas, calçados e magnésio. O domínio sobre esses equipamentos é fundamental para a prática do esporte com a segurança desejada. Portanto, o atleta de Escalada desenvolve uma atenção muito especial aos seus equipamentos, com os quais em muitos casos trata-se de uma relação de completa dependência, caracterizando como um fator entre a vida e a morte. Atualmente existem inúmeros equipamentos de Escalada que podem ajudar o praticante, como mostra a foto abaixo, mas o uso deles é caro e também varia conforme os http://www.casadepedra.com.br/ginasio/por-dentro-da-casa 21 objetivos do escalador, que decide os equipamentos que vai utilizar conforme a dificuldade desejada (PEREIRA, 2018, p.65). Figura 13 - Equipamentos de Escalada. Fonte: http://agmontanhismo.org/tag/equipamentos/. Acesso em 28 de Abril de 2019. Os riscos são grandes e diminuí-los foi um fator importantíssimo para a difusão do esporte que a partir de 2020, nas Olimpíadas de Tóquio, se juntará aos esportes olímpicos aprovados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). A integração da Escalada no programa olímpico contará com competições nas categorias Speed (velocidade), Leed (dificuldade) e Boulder (simulando a modalidade de mesmo nome) (OLYMPIC STUDIES CENTRE, 2014, p. 1). Essa difusão também se deve aos clubes de Escalada Esportiva que surgiram com a prática da Escalada em paredes artificiais, que simulam quase todas as agarras e fendas que podemos encontrar nas paredes das montanhas e rochas. E assim como na Canoagem Slalom, o imprevisível da natureza foi substituído pelo ambiente controlado, longe das mudanças climáticas repentinas, dos animais e das rochas soltas que podem formar verdadeiras armadilhas. Mas apesar da congratulação do esporte com a participação nas próximas olimpíadas, alguns dos escaladores mais renomados das modalidades da Escalada não partilham do mesmo interesse competitivo olímpico, e continuam com seus desafios pessoais para serem realizados em meio ao ambiente natural e conforme sua capacidade e motivação, com riscos letais, mas com a tradicional rotina de vida do escalador marcada por um profundo respeito às forças da natureza. http://agmontanhismo.org/tag/equipamentos/ 22 4 OS PRATICANTES COMO GESTORES DOS RISCOS O interesse pela prática dos Esportes de Aventura possui uma curiosidade singular, pois essas atividades oferecem mais riscos e exigem, em geral, maiores dificuldades de acesso porque são distantes dos grandes centros urbanos. Essa curiosidade pode ser compreendida através do estudo da motivação gerada nas pessoas para iniciar nas práticas desses esportes, motivação essa, que pode ser entendida como a “direção e intensidade de seus esforços” (GOULD; WEINBERG, 2008, p. 70). A direção pode definir qual a modalidade a pessoa escolheu para praticar, e isso significa ir além da simples escolha pessoal, mas levam-se em conta as limitações e possibilidades de cada um. De mesmo modo, sua intensidade determina os níveis de riscos e a dedicação de cada praticante, buscando ser um atleta de ponta, competitivo, ou apenas com interesse recreativo do esporte. Um caso famoso entre os praticantes de Esportes de Aventura na Natureza aconteceu em 1924, quando na busca em ser o primeiro a conquistar o topo do Monte Everest (Nepal), George Mallory (escalador britânico considerado uma lenda do esporte) respondeu da seguinte maneira as perguntas sobre o motivo de arriscar sua vida subindo uma montanha que nenhuma pessoa havia conseguido até então: - Porque ela está lá. Simples e objetivo, ele resumiu o sentimento e a motivação dos escaladores que utilizam sua resposta até hoje. Entretanto, foi nessa escalada que George Mallory faleceu após desaparecer no meio da neblina da montanha em 1924, seu corpo foi encontrado apenas em 1999, faltando cerca de 300 metros para realizar seu sonho de conquistar o “topo do mundo” (TRAMONTINA, 2004, p. 216). Contudo, a boa resposta de George Mallory não corresponde às motivações e ao perfil de todos os praticantes que possuem direções e intensidades diferentes, e tanto a Canoagem como a Escalada possuem variadas modalidades com a intenção de atender todas as motivações direcionadas aos seus respectivos esportes, além de buscarem, com isso, novos praticantes. Podemos observar, no entanto, que um fator preponderante na escolha das modalidades é a análise do risco. Enquanto algumas pessoas desejam uma prática esportiva com o menor risco possível, outras preferem arriscar-se com a intenção de sentir emoções mais intensas, em uma busca por maiores aventuras. 23 George Mallory vivenciou um dos principais problemas enfrentados pelos escaladores até hoje, um mal-estar conhecido como “Mal da Montanha”, uma reação do organismo que – como o nome já diz – afeta as pessoas quando estão em altitudes muito elevadas, onde o ar é rarefeito: “O Mal da Montanha é um distúrbio ou reação do organismo à baixa pressão atmosférica, causada pela exposição do homem aos ambientes hipobáricos, característicos das regiões de alta montanha. O ar rarefeito é o principal gerador da referida síndrome, aliado ao rápido ganho de altitude e agravado pela tensão psicofisiológica e pelo cansaço. Estima-se que a metade das pessoas que permanecem a uma altitude superior a 3.000 metros, durante mais de seis horas são afetadas pelo Mal da Montanha em graus muito diversos, que vão desde a simples dor de cabeça até perturbações muito mais graves” (AMORIM, 2015, p. 1). Esse problema faz com que os escaladores planejem um período de adaptação do organismo para o que está por vir, além de quando conseguir chegar ao seu objetivo, voltar para baixo o mais rápido possível. Quanto mais tempo permanecer nas altitudes extremas, maior a chance de ser acometido pelo “Mal da Montanha”. Trata-se de uma altitude extremamente alta e perigosa, inabitável para os seres humanos. Os problemas deixam de ser “apenas” o risco de quedas nos inúmeros abismos e nas fendas escondidas sob a neve, mas aparecem vários outros problemas à saúde dos escaladores que somam suas vítimas ano após ano, mesmo com todo invento tecnológico. É um problema próprio da Escalada nas montanhas, que também pode provocar a hipotermia e o congelamento das extremidades do corpo (dedos das mãos e dos pés, ponta do nariz), devido às temperaturas negativas que também é consequência do ar rarefeito. Para esses problemas a tecnologia se faz fundamental com o desenvolvimento de roupas adequadas para suportar o frio das montanhas, além das botas e luvas especiais. A hipotermia não é exclusiva das montanhas, é um perigo que também está presente quando caímos em águas muito frias, algo comum na prática do Rafting em determinadas regiões. Entretanto, é combatida pela tecnologia com roupas térmicas adequadas, diferentes daquelas usadas pelos escaladores por motivos óbvios: são ambientes completamente opostos. Por isso que os pioneiros dos Esportes de Aventura eram, acima de tudo, aventureiros. Cientes dos riscos extremos que haveriam de enfrentar, tanto na Escalada como na Canoagem, a aventura moveu os criadores e primeiros praticantes desses esportes, e claramente, continua motivando novos praticantes de espírito aventureiro até os dias atuais. 24 John MacGregor, pioneiro da Canoagem e fundador do primeiro clube para a prática da Canoagem em Londres, relata em seu livro que a parte mais legal e emocionante de suas viagens em seu caiaque era quando encontrava uma aventura em águas desconhecidas, que lhe exigia uma mente preparada e um corpo treinado para a remada em águas violentas (MacGREGOR, 1866, p. 269). Do mesmo modo, a já citada escalada no Mont Blanc (França) feita pelos alpinistas franceses Jean Michel Paccard e Jacques Balmat em 1786, inspirou praticantes de Escalada pelo mundo afora, motivados pela aventura sobre o desconhecido (PEREIRA, 2007, p.40). E ao longo dos anos, essa motivação continuou em alguns praticantes de Esportes de Aventura, como mostra o documentário “Valley Uprising” (2014) que realizou entrevistas com os escaladores do Vale Yosemite (EUA) de diferentes gerações, e na maioria de seus discursos havia a necessidade de “uma dose diária de adrenalina”. Para esses praticantes, tanto na Canoagem como na Escalada, o esporte se tornou mais do que uma prática eventual, mas um estilo de vida. Eles possuem os seus afazeres comuns para todas as pessoas, mas se acostumaram com o risco e com o espírito aventureiro de suas práticas esportivas, alterando a maneira como lidam com o medo, a ansiedade e outros sentimentos que a vida nos obriga a sentir. Sua frequência para a prática esportiva depende apenas da vontade da natureza, ou do clima para ser mais exato, quando procuram novos locais para suas aventuras exploratórias distantes das agências de turismo ou de outros sujeitos que limitariam suas práticas, que possuem como ordem geral, o alto risco. Trata-se de uma aventura interior que lhe traz prazer, “nessa prática esportiva, o corpo é vivido na sua totalidade e pode trazer recompensas que são valorizadas como justas, mesmo com os riscos inerentes” (NISTA-PICCOLO, 2012, p.94). São riscos altos que podem levar à morte em instantes, entretanto, o momento entre a vida e a morte é o momento que eles buscam, de aventura, controle do medo, domínio prático de todas as habilidades necessárias para sobreviver ao êxtase aventureiro da vertigem acima da montanha ou na queda de uma cachoeira. Todos os esportes possuem seus riscos, mesmo aqueles que não são conceituados como Esportes de Aventura. Em um artigo denominado “Chronic Traumatic Encephalopathy in a National Football League Player” (2005), o Dr. Bennet I. Omalu revela que as inúmeras colisões que os jogadores de futebol americano sofrem na cabeça podem causar uma doença que ele denominou Encefalopatia Traumática Crônica. Atualmente, como resultado da 25 descoberta do Dr. Bennet I Omalu, os jogadores da National Football League (NFL) não podem mais utilizar os capacetes para bloquear seus adversários, e quando acontece alguma colisão com a cabeça, eles são retirados de campo para observação. Alguns praticantes convivem com o alto risco em seus esportes desde pequenos, adquirindo uma percepção dos riscos que a natureza oferece que só é possível em um processo de internalização do homem com o meio natural, possível apenas com experiência prática vivenciada na natureza. Em um artigo intitulado “Anônimos supercampeões: a equipe de Rafting Bozo D’Água e a caracterização dos esportes de aventura” (2018), o autor entrevista atletas de Rafting de uma equipe da cidade de Brotas. Em um dos trechos das entrevistas nos deparamos com o seguinte relato: “Deslizar com a correnteza transpondo trechos pedregosos se tornou divertimento local, foi incorporado à identidade brotense e passou a ser caracterizada como prática nativa: ‘A maioria dos meninos da cidade brincam de boia porque é de graça, o trecho é fácil de chegar, dá pra ir andando, e acaba aqui na ponte do centro da cidade’ (Rafteiro 1)” (AMARAL; BANDEIRA; BASTOS, 2018, p. 6). Como vemos, o esporte em questão está presente na vida desses atletas desde sua infância, quando brincavam de boia no rio da cidade. Para eles, a motivação inicial à prática do Rafting já lhes era familiar, ou seja, uma brincadeira de criança estava se tornando um esporte competitivo e uma maneira de ganhar dinheiro. Atualmente, muitas crianças da cidade de Brotas praticam o Rafting como seu esporte preferido, tornou-se uma prática cultural do município, além de ser uma das atividades mais lucrativas do turismo local. Em um ambiente competitivo esses atletas demonstram um nível de autoconfiança muito grande decorrente de suas largas experiências que foram somadas desde a infância, o que fazem com que se sintam confortáveis em ambientes que para outras pessoas poderia ser desesperador (LAVOURA; MACHADO, 2006, p.147). As experiências os deixaram seguros para a prática diária do Rafting, mesmo com as vulnerabilidades do ambiente. O mesmo acontece na Escalada, na qual os habitantes de um local que praticam a escalada em uma determinada montanha ou paredão conhecem as vias de escalada como a palma de sua mão, e se tornam importantes guias para os viajantes que pretendem subir a montanha. Entretanto, a necessidade diária de adrenalina não se satisfaz em um mesmo local, onde o percurso já é conhecido e o risco mais controlado. 26 Para alguns praticantes o risco controlado torna-se entediante, faz-se indispensável um fato novo, ou melhor, um novo risco, capaz de aumentar a adrenalina e provocar medo. O que motiva muitos escaladores é a necessidade de superação, progressivamente, fazendo-os ganhar confiança em cada escalada e elevando o nível e o risco a cada passo. Não atoa, o término de cada escalada completa chama-se “conquista da via”, outros termos como “atacar o cume” e “chegar ao topo” também são frequentes, e indicam uma vitória, ou melhor, uma superação diante de seus próprios limites (CARVALHO, 2013, p. 41). No documentário “Valley Uprising” (2014), a história do Vale Yosemite (EUA) retrata a história da superação e evolução da Escalada. Vias que necessitavam de meses ou anos para serem escaladas, hoje são feitas em questão de horas. E mesmo as vias que já foram completas em tempos menores, agora são desafiadas com menos ou nenhum equipamento, por escaladores da modalidade Free Solo. No Free Solo, qualquer desatenção pode significar uma queda fatal, mesmo no Big Wall ou na Escalada em Neve, a prática oferece muitos riscos que podem facilmente levar à morte. Uma descida de Rafting ou a prática da Canoagem Slalom também apresentam situações de riscos extremos nas corredeiras que podem virar os caiaques ou botes, com riscos de afogamentos ou colisões nas rochas dos leitos dos rios. Individualmente, os riscos caminham junto com as motivações das pessoas, considerando suas emoções que podem limitá-la ou motivá-la para novos objetivos. Dentre essas emoções, aquela que caminha junto às análises intuitivas dos riscos é o medo. O medo é uma emoção relacionada ao perigo e aos riscos que uma pessoa possa ter, ele tem diferentes níveis de intensidade, gerando desde alerta e preocupação até ansiedade e pânico (ARRUDA, 2014, p. 32). A Canoagem e a Escalada são esportes que podem ser praticados para o treinamento psicológico no que se refere ao controle do medo, onde a confiança e a eficácia são capazes de diminuir os sentimentos ameaçadores, como o medo (LAVOURA; MACHADO; ZANETTI, 2008, p.121-122). Em uma entrevista feita ao documentário “Free Solo” (2018) da National Geographic, sobre a modalidade mais arriscada da Escalada, encontra-se a seguinte resposta de um dos mais conhecidos atletas do Free Solo, Alex Honnold: 27 “- Interviewer: I think it’s fair to say that you do things that many people would not do because they would be stopped by fear. What is the difference there? Is it that you’ve learned to manage fear, or something innate? - Alex Honnold: Part of that is that I’ve spent so much time being afraid. I have a lot of experience with fear, probably more than the average person. And I think that allows me to help differentiate when I’m truly in danger and when I should act on it — whether or not this fear that I’m feeling is important or not (CHINN; VASARHELYI; 2018, p. 3).” Alex Honnold, que tinha acabado de escalar um paredão de mais de novecentos metros de altura, responde a pergunta dizendo que conseguiu administrar suas emoções pela experiência que possui através de uma relação muito estreita com o medo, discernindo um perigo real de um imaginário, que aprendeu através da sua modalidade na Escalada, o diferenciando das pessoas comuns, que evidentemente não estão habituadas a se arriscarem em paredões rochosos sem nenhuma corda para lhes fazer a segurança. Contudo, é um caso isolado, a maioria das pessoas prefere menos riscos e buscam maior segurança em tudo o que fazem. Os cuidados com a saúde e alimentação é uma regra para todos que buscam melhor qualidade de vida, além do mais, os condomínios fechados e as cercas elétricas nas casas modificam as paisagens urbanas indicando o cuidado que as pessoas estão com a segurança de suas famílias. De mesmo modo, no esporte não é diferente para grande parte dessas pessoas que não pretendem arriscar suas vidas nos Esportes de Aventura; e foi pensando nelas que foram criados os chamados ambientes artificiais para práticas esportivas dos Esportes de Aventura que tradicionalmente eram praticados na natureza. Atualmente temos a Escalada Esportiva em ambiente controlado, como já foi apresentada no capítulo dois, e também temos a Canoagem Slalom com o percurso artificial, como foi implantada nas Olimpíadas Rio-2016. Esses ambientes possuem maior segurança aos praticantes por se tratarem de ambientes com riscos controlados, diferente do que acontece na natureza. Na natureza podemos nos deparar com animais, rochas soltas e aumento do fluxo d’água repentino, e sendo assim, precisamos estar sempre preparados para o inesperado. Já nos ambientes artificiais, não temos essa preocupação, ou seja, reduzimos o risco da natureza. Para esses praticantes que não querem os riscos extremos dos Esportes de Aventura, eles possuem uma relação com a Canoagem e a Escalada diferente dos praticantes tradicionais. Os finais de semana e feriados são momentos de esquecer a rotina, fugir do itinerário diário, praticar esportes e experimentar sensações que não lhes são familiares. É aí 28 que eles buscam as agências de turismo e os clubes que oferecem a prática dos Esportes de Aventura em ambientes controlados (ALMEIDA;GARCEZ, 2015, p.34). Algumas cidades já são reconhecidas como grandes centros dessas atividades. No estado de São Paulo destacam-se: Brotas, Socorro, Boituva e Iporanga. Os esportes que oferecem são variados, indo desde o salto de paraquedas até o trekking, que é uma caminhada feita em trilhas na natureza. Elas recebem turistas de todas as regiões do estado, do país e até mesmo do exterior. Os atrativos são os Esportes de Aventura e o contato com a natureza, que podem oferecer uma grande aventura com o menor risco possível, graças aos investimentos em tecnologias de segurança e instrutores capazes e experientes. Dessa forma, os riscos podem ser entendidos como uma antecipação do futuro baseada em probabilidades e estatísticas. Porém, fora dos cálculos matemáticos, ele é percebido individualmente através da intuição e do medo (FERREIRA; MOURA; SOARES, 2016, p. 4). Não é segredo ou novidade que os Esportes de Aventura possuem grandes riscos aos praticantes, e muitos desses esportes oferecem riscos fatais, como na Escalada e na Canoagem, mas a avaliação é perceptiva de maneira individual pelo praticante, conforme sua motivação e experiência. 29 5 TOPOFILIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO Topofilia é um neologismo definido por Ti-Fu Tuan (2012) que representa os sentimentos dos seres humanos com o meio ambiente físico. O conceito diz sobre os estímulos que o meio ambiente fornece às pessoas através dos órgãos sensoriais. A visão, o sabor, o cheiro, o som e o tato captam estímulos físicos e os transformam em impulsos elétricos que são transmitidos até o sistema nervoso. Através desses sensores o ambiente se torna agradável ou detestável ao indivíduo (TUAN, 2012, p. 107). Quando encontramos um ambiente detestável, podemos denominar esse sintoma de topofobia, o oposto ao conceito tratado neste estudo. E esse oposto representa um ambiente detestável por transmitir sensações ruins, que podem ser: tristeza, medo, pânico ou algum outro tipo de desconforto. Mas o foco deste trabalho é o lado positivo, da topofilia, o qual estudamos os ambientes que provocam as boas sensações: de alegria, prazer, realização ou algum outro tipo de conforto. E todos nós temos essas sensações pessoais. Talvez algum cheiro possa nos remeter a uma boa ou má lembrança do passado, ou ainda alguma paisagem que nos faça sentir medo ou paz. Decerto que, apesar de possuirmos nossas individualidades, somos culturalmente influenciados em nossos valores, atitudes e pensamentos. No livro “Montanhas da Mente: História de um Fascínio” (2005), o autor assim definiu o ambiente das montanhas: “Montanhas são só contingências da geologia. Não matam propositadamente; tampouco causam prazer de modo consciente; quaisquer características emocionais que pareçam possuir, a elas são atribuídas pela imaginação humana. Simplesmente, as montanhas – à semelhança dos desertos, das planícies polares, das profundezas dos oceanos, das selvas e outros locais ermos por nós romantizados – existem e perduram; e, embora as suas estruturas físicas sejam alteradas ao longo do tempo pelas forças da geologia e do clima, as montanhas continuam a existir a despeito da percepção dos humanos. Todavia, não deixam de ser produtos da percepção humana; através dos séculos, sua existência foi imaginada” (MACFARLANE, 2005, p. 26-27). Essa definição sobre as montanhas representa uma realidade bastante diversificada culturalmente, sofrendo influências históricas, religiosas, políticas e pessoais. A mesma montanha que impõe o medo de uma avalanche pode provocar prazer por uma bela paisagem ao pôr do sol. Sendo assim, podemos dizer que o ambiente é percebido pelos órgãos do sentido, podem transformar seu comportamento e orientar sua percepção. Dessa forma, tanto o homem como o meio interagem reciprocamente exercendo influências positivas ou negativas (MOREIRA, 2006, p. 39-40). 30 Em um único percurso ou em uma única atividade esportiva, uma pessoa pode experimentar sentimentos diversos e até mesmo opostos, como aconteceu com Christopher McCandless entre dezembro de 1990 e janeiro de 1991. Quando remava em seu caiaque de metal pelo extenso rio Colorado (EUA) até o Golfo de Santa Clara (México), suas motivações eram a aventura e a fuga de uma rotina que para ele era tediosa, o objetivo era viver na natureza selvagem, longe da sociedade. Durante sua remada foi surpreendido várias vezes pela mudança de ambiente, passando pelo deserto de Utah (EUA) até os pântanos do Arizona (EUA); nessa jornada remou por águas calmas, corredeiras, cachoeiras e rios afluentes do Colorado que são intermitentes (temporários), sendo obrigado a retornar por quilômetros já percorridos (KRAKAUER, 1998, p. 21-23). Uma remada aventureira precisa ser planejada minuciosamente. Antes de cada descida de Rafting, uma das primeiras coisas para se observar no rio é a sua escala de dificuldade, que no esporte em questão convencionou-se um nível de um a seis, na qual o primeiro significa um percurso suave, sem qualquer perigo para um iniciante na prática; e a partir do primeiro, a dificuldade vai aumentando gradativamente até o nível seis, com um percurso indicado apenas para atletas de alto nível, com experiência e capaz de realizar técnicas de resgate (CARVALHO, 2016, p. 39-40). Quando a descida se faz em águas brancas (corredeiras), o canoísta deve estar atento ao aumento do volume d’água que pode ocorrer de uma hora para outra, as rochas no meio do caminho também exigem uma atenção especial contra um possível acidente. Mas, indo além da concentração que é exigida em muitos esportes, a aventura inserida dentro da Canoagem e da Escalada emergem outros estados emocionais que os colocam no grupo especial dos Esportes de Aventura, mesmo que esse grupo ainda não esteja conceitualmente definido (PIMENTEL, 2013, p.692). No livro “O Imaginário no Rafting: Uma busca pelos sentidos de aventura, do risco e da vertigem” (2004), a autora destaca o Rafting como um esporte extremamente sensível às emoções, alternando sensações de vertigem, prazer e alívio: “Seja qual for o nível da pessoa que joga com a vertigem, seu prazer é cessado assim que ela atinge o limite, mas o prazer do jogo pode continuar, se um novo limite, situado além do que já foi ultrapassado, for proposto. O que interessa a esses jogadores é realizar o possível e não o contrário, porém esse possível é variável, de acordo com a superação de limites” (SOUZA, 2004, p. 74). 31 O percurso de uma descida de Rafting é uma sequência de emoções distintas, principalmente quando praticado por turistas que não possuem experiência na modalidade. No início pode haver ansiedade pela expectativa sobre as cachoeiras que estão por vir enquanto seguem as instruções do guia no controle do bote, essa concentração acaba quando encontra a vertigem no alto da primeira “queda”. O sentimento de prazer e alívio com o primeiro obstáculo ultrapassado provoca um êxtase para as próximas cachoeiras, automaticamente todos a bordo do bote criam um objetivo em comum, buscando a superação final. Sensações opostas acabam configurando uma característica dos Esportes de Aventura, que durante as “práticas aventureiras compartilham da experimentação de tais sensações, ora apresentando uma fusão entre medo e prazer, ora entre ansiedade e satisfação” (LAVOURA; MACHADO; SCHWARTZ, 2008, p.124). Algumas empresas estão buscando agências de turismo para levar seus funcionários praticar o Rafting como maneira de qualificar o ambiente coletivo no trabalho, melhorando o relacionamento coletivo através do trabalho em grupo que é praticado na descida de Rafting. Esse relacionamento coletivo que é praticado durante a descida de Rafting permite também o surgimento de lideranças, além de reforçar a autoestima do grupo (MARCHI; MEZZADRI, 2003, p. 7.). As sensações vivenciadas durante a prática esportiva da Canoagem e da Escalada podem contribuir no desenvolvimento do indivíduo, modificando suas relações interpessoais, onde a ajuda mútua vivenciada obrigatoriamente durante a prática esportiva – na remada do bote ou no compartilhamento da corda de escalada - se torna uma realidade fora dela, em seu cotidiano, seja em ambiente natural ou urbano. Essa prática vivenciada nos Esportes de Aventura também faz parte do processo de desenvolvimento humano, entendido neste trabalho como um caminho de contínua evolução do indivíduo, determinado não apenas por fatores biológicos ou genéticos, mas por influência do meio – recebendo estímulos dos órgãos sensoriais e aprendendo com as interações interpessoais dentro de uma determinada prática social (PASSOS; RABELLO, 2020, p.1). Existem vários exemplos de como as experiências aprendidas dentro dos Esportes de Aventura, lidando com as adversidades do meio natural e com as inconstâncias emocionais, capacitaram os praticantes para ajudar em situações extremas que aconteceram dentro e até mesmo fora dos ambientes da prática esportiva. No dia primeiro de janeiro de 2010, uma grande enchente transbordou o rio Paraitinga, na cidade de São Luiz do Paraitinga – SP, e iniciou um grande desastre inundando as ruas e invadindo as casas. A cidade sempre atraiu 32 muitos turistas para a prática do Rafting, e dessa maneira alguns atletas que trabalham como guias para os turistas na prática dessa modalidade, vivem ali e conhecem o rio Paraitinga como ninguém. Quando souberam da inundação e conhecendo o poder destrutivo do rio, prontamente se juntaram e tomaram seus botes na missão de salvar algumas vidas. Utilizando seus conhecimentos desenvolvidos junto ao esporte, conseguiram resgatar muitas pessoas. Incrivelmente, não houve nenhuma fatalidade apesar do evento ter devastado a cidade (MORADEI, 2016, p. 114). O sentimento altruísta, ausente de egoísmo, aparece frequentemente dentro dos Esportes de Aventura, sobretudo quando alguém está em perigo e longe de algum resgate ou centro urbano. Em 1999, o casal, Helena Guiro Coelho e Paulo Rogério Coelho, experientes escaladores brasileiros, estavam no Himalaia buscando o sonho de alcançar o ponto mais alto da Terra quando souberam que seu amigo, o português João Garcia, estava desaparecido nas montanhas em uma altitude aproximada de 7000 metros. Os dois abdicaram de seus sonhos por um tempo para procurar o amigo e conseguiram encontra- lo já com o nariz, os dedos das mãos e dos pés congelados, contudo, graças ao resgate ele sobreviveu depois de alguns meses internado (TRAMONTINA, 2004, p. 213-214). Existe uma regra geral para todo aquele que pratica um Esporte de Aventura: nunca pratique sozinho. A natureza oferece muitos riscos dos quais os praticantes já esperam e se preparam, porém, ela possui um perigo real do inesperado, algo que foge do previsto. Pode ser algum animal perigoso que se coloca no caminho, uma tempestade inesperada que nem mesmo estava prevista pela meteorologia, ou simplesmente um acidente durante a prática esportiva. No livro intitulado “127 horas” (2011), de Aron Ralston, o autor conta que no dia 26 de abril de 2003, cometeu a besteira de ir sozinho se aventurar no Grand Canyon, em meio ao deserto de Moab, em Utah (EUA). Mesmo sendo um escalador experiente e levando consigo todos os equipamentos necessários, em um descuido na parede do cânion ele escorregou e seu braço ficou preso sob uma grande rocha. Não havia ninguém por perto, não conseguiu chamar ninguém para resgatá-lo dali, e após alguns dias preso na rocha, conseguiu cortar seu próprio braço com um canivete e seguiu caminhando no deserto, em uma luta pela vida, até encontrar ajuda. Os Esportes de Aventura praticados na natureza exigem uma atividade em grupo, interdependente, através de uma relação de extrema confiança e reciprocidade, modificando o comportamento dos praticantes em um processo civilizador, de desenvolvimento contínuo (CAREGNATO; CAVICHIOLLI; ZANIOL, 2019, p.84). Como esses lugares de prática esportiva em ambiente natural geralmente estão longe das áreas urbanas, cada praticante se 33 coloca no lugar de alguém que sofreu algum acidente, onde em todo caso, o inesperado poderia ocorrer com qualquer um. Os perigos relacionados ao imprevisto da natureza, tanto por suas surpresas como por geralmente estar localizada distante de centros urbanos, não ocorrem em ambientes artificiais pelo motivo do risco imprevisto da natureza não existir mais, agora que o ambiente foi criado e controlado pelo homem; a localização é dentro ou muito perto dos centros urbanos para atrair o máximo de praticantes, o que torna a prática em grupo simplesmente optativa, e não mais obrigatória, já que não existe o risco de ficar isolado na natureza esperando pelo resgate. Marinho (2001) definiu muito bem as características do ambiente artificial para a prática de Escalada Esportiva: “A certeza do controle de eventuais riscos, nos ambientes artificiais de escalada, manifesta-se por uma segurança voltada para três principais vertentes. A começar pela segurança da atividade propriamente dita, oportunizada pelo parceiro munido de equipamentos sofisticados; passando pela segurança do espaço, haja vista a localização do muro adequadamente estruturado dentro de uma faculdade; e, por fim, a segurança no sentido de proximidade às casas dos escaladores, possibilitando idas e vindas sem supostos problemas de deslocamento e acesso, em um espaço dominado pelo reconhecimento e por previsibilidades” (MARINHO, 2001, p. 81). Salientando três vertentes de segurança ao praticante, a autora aborda sobre algumas situações que os praticantes da Escalada enfrentam durante a prática nos ambientes naturais. A primeira diz sobre os equipamentos adequados, eles são caros e nem todo mundo possui todos os equipamentos básicos ou tampouco sabe manuseá-los corretamente, além da importantíssima manutenção adequada aos materiais. Em segundo lugar, o ambiente controlado não dispõe de surpresas como rochas soltas que podem significar verdadeiras armadilhas aos escaladores. Por último, a proximidade dos centros urbanos evoca uma segurança substancial, onde em alguma possível emergência os primeiros socorros e a distância de casa ou do hospital são menores. O mesmo ocorre com a Canoagem, porém, o ambiente artificial para a prática da Canoagem é extremamente caro e dispensável, quando podemos encontrar variados tipos de rios e lagoas com suas dificuldades para a remada que vão desde o nível zero ao seis (de acordo com a escala desenvolvida no Rafting). E tudo isso perto dos centros urbanos, com os clubes de canoagem ou mesmo em lagoas dentro de alguns condomínios e cidades (principalmente do interior dos estados). Toda preocupação para a prática segura do esporte em ambiente natural faz com que o praticante aprenda a respeitar as leis da natureza, porque essa relação que pode ser perigosa e 34 fatal, também proporcionará prazer e realização através do contato com a natureza transmitido pelos estímulos dos órgãos sensoriais, em um processo de internalização do homem com o meio ambiente (TUAN, 2012, p.95). Dentro da Escalada e da Canoagem, as modalidades mais tradicionais desses esportes exigem dos praticantes um conhecimento e uma percepção mínima do meio ambiente para que consigam realizar sua prática esportiva com segurança. Antes do deslocamento até o local, o escalador planeja um roteiro que envolve todos os passos que deverá tomar em relação à sua prática e ao meio ambiente. É comum, por exemplo, o estudo sobre as estações do ano naquela região onde a montanha se localiza, para saber qual a época em que o frio será menos intenso, a neve mais ou menos densa, a possibilidade de chuva e até mesmo o ciclo de um rio, com suas inundações, degelo e seca (SOUZA, 2004, p.69). A relação é estreita do começo ao fim, se no início do dia o tempo fechar com alta possibilidade de chuva ou com o surgimento de uma neblina, a prática é suspensa e adiada para o próximo dia (PEREIRA, 2007, p.67). O conhecimento geológico básico também é fundamental. Que tipo de rocha vai escalar? Quais são suas particularidades? São questões importantes para o sucesso da Escalada em alguns paredões, principalmente nas modalidades Big Wall e Free Solo. E essa relação de dependência da natureza para que seja possível a prática evoca um profundo respeito, não apenas ao seu poder destrutivo como também na contemplação de sua grandeza. As experiências vividas pelos praticantes moldam sua percepção, transmitem um sentimento intenso com o lugar, gerando novos estados emocionais e novas atitudes: “Os lugares vivenciados estão e são com toda a força de expressão, registrados indelevelmente nas faces, nos corpos, e sobretudo, nas representações e nos olhares: no fundo dos olhos, trazemos paisagens interiorizadas nas profundidades dos nossos espíritos, vindas à luz por intermédio de experiências e percepções exteriorizadas em atitudes, condutas e emoções” (GUIMARÃES, 2002, p. 132). Esses praticantes tornam-se, em geral, defensores do meio ambiente, cuidam do lugar que proporcionou experiências emocionais distintas, desenvolvendo suas capacidades de concentração e proporcionando uma sensação de bem-estar que dificilmente seria realizada em ambiente urbano (VIEIRA, 2019, p.16). O ambiente é imaginado e percebido, provoca medo e prazer; têm capacidade de produzir realizações e resiliências; se adapta nas motivações; porém, impõe responsabilidades. 35 6 O CENÁRIO ATUAL DO TURISMO DE AVENTURA A força de atração da natureza ao ser humano sempre evocará seu imaginário na busca pela contemplação das belas paisagens que lhe transmitem estados emocionais positivos. Esses sentimentos denominados de Topofilia se tornam um grande objetivo e motivação para muitas pessoas. E é nos Esportes de Aventura que esses estados emocionais se juntam com os ganhos de superação, prazer e realização dos esportes, resultando uma busca incessante pelo sonho desse imaginário completo. Na seguinte tabela formulada no artigo “Turismo de Aventura: conceitos e paradigmas fundamentais” (CHINÁGLIA; LÓPEZ-RICHARD, 2004), é apresentada a motivação geral demonstrada pelos turistas de aventura: Figura 14 - Motivação entre os participantes de Corrida de Aventura. Fonte: Artigo “Turismo de Aventura: conceitos e paradigmas fundamentais” (CHINÁGLIA; LÓPEZ- RICHARD, 2004). Como se nota pela tabela, entre os praticantes de Esportes de Aventura que procuram uma agência de turismo com oferta para esses esportes, o contato com a natureza é uma grande motivação declarada por eles e, portanto, revela-se um grande fator de atração desses esportes, mas, sobretudo, uma expectativa que – principalmente os iniciantes – almejam durante sua prática. 36 Portanto, é fundamental entender que apesar de os praticantes de Esportes de Aventura se colocarem em risco, eles o fazem por almejar algum ganho esperado, seja ele físico ou emocional; ou seja, não se arriscam atoa e sem alguma motivação. Esses ganhos podem ser físicos ou emocionais. A prática da Escalada oferece um ganho de força muito grande, principalmente nos braços e costas, pelo fato de contraírem os músculos por um longo tempo suportando o peso do próprio corpo. Aos montanhistas, as longas caminhadas nas montanhas desenvolvem a capacidade aeróbica e a musculatura das pernas (PEREIRA, 2007, p. 33). Com a Canoagem não é diferente, o movimento da remada fortalece os braços e a capacidade respiratória pelo seu ritmo contínuo. Além do mais, novos estudos indicam o esporte como um forte aliado para pessoas que sofrem com asma. A prática na superfície da água induz uma broncoconstrição menos severa pela alta umidade do ar inspirado durante o exercício, que possivelmente diminui a osmolaridade do muco das vias aéreas (BERNARD, 2010, p. 352). Mas os benefícios não se resumem aos ganhos físicos na saúde, principalmente quando tratamos sobre aventuras as experiências ultrapassam o simples exercício de força e movimento, exige muita preparação mental e proporciona sensações extremas capazes de desenvolver os estados emocionais com grande efeito ao praticante. A atividade de Escalada exige uma concentração máxima do início ao fim, qualquer deslize resulta em uma queda que pode ser fatal. O autocontrole é uma condição fundamental para o êxito, sem ele é impossível manter o foco e superar o medo e a ansiedade (VIEIRA, 2019, p.16). Qualquer passo deve ser extremamente cauteloso, sem perder o ritmo, mas sem se apressar e colocar tudo a perder. A superação gradual de objetivos dentro dos Esportes de Aventura pode ser utilizada como tratamento ao medo de altura. No trabalho intitulado “A Superação do Medo na Atividade de Arvorismo” (2018), a autora realizou uma experiência com 20 pessoas, sendo 10 condutores e 10 iniciantes na prática de Arvorismo. Todos os iniciantes demonstraram sentir medo, em maior ou menor intensidade, e estipularam limites ao qual seriam inseridos na prática do Arvorismo. Cada realização motivava um objetivo seguinte, em uma altura maior, e de maneira gradual o medo de altura foi diminuindo de acordo com a superação de cada um (SILVA, 2018, p.21). Algum trabalho semelhante pode ser feito em paredes de Escalada, utilizando a superação gradual de vias mais tranquilas e baixas até as mais complicadas e altas. 37 As superações de metas individuais realizadas gradualmente, comum nesses esportes, aumentam o nível de autoconfiança. “Os psicólogos do esporte definem autoconfiança como a crença de que você pode realizar com sucesso um comportamento desejado” (GOULD; WEINBERG, 2008, p. 341), e essa autoconfiança desperta emoções positivas, oferecendo um ganho incalculável ao praticante. Com a ajuda da tecnologia, que ao longo dos anos evoluiu incrivelmente, as possibilidades de façanhas que antes eram quase inatingíveis agora se tornaram mais palpáveis. O que antes exigia quase uma vida toda de dedicação ao esporte e relação íntima com o meio a ser “conquistado”, agora se exige “apenas” uma boa quantia em dinheiro com uma rápida preparação pré-estabelecida e um planejamento que o praticante já não mais participa. Mesmo nas modalidades que preferem permanecer distante da alta tecnologia, o próprio desenvolvimento técnico do esporte já o conferiu maior segurança pela evolução dos fundamentos e do conhecimento sobre a atividade. Mapas topográficos de montanhas, informações sobre a meteorologia, o treinamento prévio de preparação física e muitos outros elementos contribuem de maneira fundamental junto aos praticantes, mas quando a prática torna-se institucionalizada por organizações e agências de turismo, esse planejamento foge ao praticante, objeto de estudo do artigo “Da exacerbação dos sentidos no encontro com a natureza: contrastando esportes radicais e turismo de aventura” (2005). “Quanto mais institucionalizada a atividade, mais o controle será delegado ou definido por outros, sejam eles os operadores que oferecem atividades de turismo de aventura ou os organizadores de competições; são eles que definem ou fornecem equipamentos especializados, o tipo de equipamento de segurança a ser utilizado, roteiros e limites geográficos, etc” (ALVES; ARAGAKI; SPINK, 2005, p.30). Sendo assim, embora a contemplação da paisagem seja uma das motivações principais dos turistas que decidem praticar um Esporte de Aventura, a falta do entendimento e compreensão dessa relação de dependência com o meio ambiente - que passa despercebido pelos praticantes que deixam essa incumbência às agências de turismo - altera a rotina e a prática esportiva, tornando a relação do homem com o meio ambiente muito relapsa e perigosa, onde o praticante está externo ao meio ambiente, e o respeito pela natureza junto com a gestão dos riscos, desaparece. Em 2000 foi realizada uma expedição ambiental no Everest (Nepal) com apenas nove alpinistas e vinte e dois sherpas (etnia da região montanhosa do Nepal) com a missão de 38 limpar o lixo trazido pelos turistas para a montanha, o grupo conseguiu retirar 632 tubos de oxigênio vazios e 270 quilos de lixo de todo o tipo (TRAMONTINA, 2004, p. 128). Não é mais segredo que os turistas levam muito lixo e degradam o meio ambiente por onde passam, geralmente as praias são as mais afetadas por essa problema. Contudo, as mudanças que ocorreram no esporte não apenas afastaram os praticantes de sua relação com o meio ambiente como alteraram sua rotina e o planejamento e conhecimento prévio, e essas nova maneira de preparação prévia exigida pelo praticante, que é muito precária, revela-se extremamente perigosa para a sua própria segurança. Apesar das tecnologias se mostrarem muito confiáveis, não se deve de maneira alguma subestimar os perigos da natureza, que são muito mais perigosos quando não perceptíveis ou sensíveis ao praticante. Uma subida ao conhecido Monte Everest (Nepal), por exemplo, deixou de ser uma façanha quase impossível ao ser humano pelo avanço da tecnologia, e atualmente esse sonho é vendido por alguns milhares de dólares para alguém que “não precisa” se preocupar com o planejamento ou com os riscos naturais que lhe deveriam ser perceptíveis. Figura 15 - Fila no cume do Monte Evereste (Nepal, Maio de 2019). Fonte: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,como-a-popularidade-do-monte-everest- aumentou-sua-letalidade,70002846733?r=https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,como-a- popularidade-do-monte-everest-aumentou-sua-letalidade,70002846733. Acesso em 06 de Junho de 2019. 39 A foto acima chocou muitas pessoas que jamais imaginavam que isso poderia ocorrer algum dia. Trata-se de uma fila de turistas aguardando sua vez para pisar no cume do Monte Everest (Nepal) e tirar suas fotos no momento que alcança seu sonho. Um novo problema surgiu, a superlotação e grande espera na fila levaram ao número máximo de mortes em uma temporada desde quando George Mallory se arriscou pela primeira vez. Com isso, muitas observações foram feitas por essa foto, todas elas impactantes. Luís Fernando Veríssimo, em sua coluna no jornal “O Estado de São Paulo” assim indagou sobre a foto em questão: “Como se explica a fila do Everest? Descobriram uma nova rota de subida? A população do mundo está maior do que se pensava, está sobrando gente para fazer fila, qualquer fila? Como fomos de Hillary e Norgay se arrastando na neve a vendedores de água mineral e biscoitos Globo na fila, sem nos darmos conta?” (VERÍSSIMO, 2019, p. C6). A relação entre o praticante do Esporte de Aventura na Natureza e o meio ambiente, que tradicionalmente era muito estreita para o sucesso da prática e sua própria segurança, agora se tornou distante, e com isso muito mais perigosa, apesar do avanço tecnológico. Quanto ao meio ambiente, mais uma vez, comum nos tempos atuais, se transformou em um produto comercial, vendendo suas paisagens ao imaginário dos turistas sem qualquer preocupação ambiental sustentável. As agências de turismo visam o lucro em primeiro lugar, mas sabem dos riscos que acompanham os Esportes de Aventura que são praticados na natureza, diante disso, elaboram termos e condições para o caso de algum acidente acontecer com o praticante/turista/consumidor. Esses termos são comumente chamados de termos de responsabilidades, onde o praticante declara ciente dos riscos assumidos na prática do esporte escolhido, mesmo que esteja confiando plenamente nos equipamentos e planejamentos preparados alheios a si, ou seja, desconhecendo os reais riscos que o ambiente lhe oferece e os materiais que sofreram ou não as devidas manutenções (CAÑAS; GALINDO; SOUZA, 2004, p. 87). Quando o ambiente do esporte praticado permanece distante do praticante, mesmo com toda tecnologia envolvida, os riscos aumentam e a segurança do praticante se torna extremamente vulnerável aos imprevistos. Isto posto, não somente sua segurança é exposta como sua vivência prática é alterada, pois o meio ambiente permanece externo à sua percepção. 40 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os pioneiros praticantes da Canoagem e da Escalada possuíam uma tradição em suas rotinas esportivas de intensa relação com o meio ambiente, sobre o qual deveriam adquirir uma percepção extremamente sensível às possíveis intempéries. Não havia, entretanto, uma regra geral de adaptação ao meio durante a prática esportiva, visto a diversidade natural encontrada em diferentes regiões do mundo. Dessa forma, a avaliação dos riscos, que são característicos dos Esportes de Aventura, era feita pelo próprio praticante, conforme sua motivação e sua sensibilidade ao meio, adquirida pela experiência prática percebida pelos órgãos sensoriais, em um conceito denominado Topofilia. Através da prática esportiva, diferentes sensações são vividas pelos praticantes, contrastando entre vertigem, alívio, medo, superação e realização. Os Esportes de Aventura fornecem, portanto, situações emocionais que podem ajudar no desenvolvimento humano contínuo de uma pessoa, gerando autoconfiança, autocontrole, capacidade de liderança e de trabalho em grupo. Porém, a Canoagem e a Escalada vêm sofrendo modificações em seus ambientes para prática esportiva, saindo dos espaços naturais e caminhando rumo aos espaços artificiais, de riscos controlados, maior acessibilidade e com a mais alta tecnologia, retirando o praticante do ambiente natural e tradicional do esporte, desconsiderando, dessa maneira, todas as possibilidades que o meio ambiente natural oferece. Não existe mais o imprevisto da natureza ou o planejamento prévio que considera o clima, vegetação, volume d’água, etc. Tampouco é desenvolvida a capacidade perceptiva adquirida pela experiência prática na natureza, tudo isso se perde quando o ambiente natural é substituído pelo artificial. Todavia, mesmo quando o ambiente permanece o mesmo, quando ele é institucionalizado por uma agência de turismo e foge ao planejamento e percepção do praticante, que confia em outros a sua vivência prática esportiva, o próprio praticante se torna externo ao meio ambiente natural em que pratica o esporte, e assim, não sabe lidar com os imprevistos comuns da natureza, colocando-se em riscos que mesmo a alta tecnologia não será capaz de evitar. A sua vivência prática, dessa forma, não é a mesma dos pioneiros da Canoagem e da Escalada, pois o meio ambiente permanece externo à sua percepção, diminuindo consideravelmente a possibilidade de Topofilia e desenvolvimento humano contínuo do praticante. 41 REFERÊNCIAS ALMEIDA, F. Q.; GARCEZ, B. Montanhismo no Espírito Santo: Perfis da Associação Capixaba de Escalada (ACE). Corpoconsciência, Cuiabá, v. 19, n. 03, p. 22-37, set./dez. 2015. ALVES, M. P.; ARAGAKI, S. S.; SPINK, M. J. P. 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Rio Claro – SP 2020 1 INTRODUÇÃO 2 CANOAGEM Figura 1 - Um esquimó carregando seu caiaque feito com peles de animais (data Figura 2 - Os alemães Sebastian Brendel e Jan Vandrey nas olimpíadas Rio-2016, na Figura 3 - O brasileiro Edson Isaias Freitas da Silva nas olimpíadas Rio-2016, competindo na categoria K-1 200M. Figura 4 - A Brasileira Ana Sátila nas Olimpíadas Rio-2016, competindo na categoria K-1 da modalidade Slalom. Figura 5 - Campeonato Mundial de Rafting, realizado no Japão-2017. Figura 6 - Um canoísta utilizando seu capacete, colete e roupa térmica. Figura 7 - Percurso artificial da Canoagem Slalom nas Olimpíadas Rio-2016. 3 ESCALADA Figura 8 - Subida ao Monte Everest, maior altitude do mundo, localizado no Nepal. Figura 9 - O escalador Ian Padilha praticando o Big Wall em um paredão no Brasil. Figura 10 - O escalador Alex Honnold subindo o El Capitan (Yosemite, EUA) na Figura 11 - Um escalador praticando o Boulder com os colchões auxiliando na Figura 12 - Escalada esportiva Indoor simulando um Boulder, (Casa de Pedra, São Figura 13 - Equipamentos de Escalada. 4 OS PRATICANTES COMO GESTORES DOS RISCOS 5 TOPOFILIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO 6 O CENÁRIO ATUAL DO TURISMO DE AVENTURA Figura 14 - Motivação entre os participantes de Corrida de Aventura. Figura 15 - Fila no cume do Monte Evereste (Nepal, Maio de 2019). 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS