__________________________________________________________________ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO __________________________________________________________________ O BIODIREITO NA INTERFACE ENTRE CIÊNCIA E FICÇÃO: UM ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL A PARTIR DA ANÁLISE DO FILME MAR ADENTRO. EDILSON ANTEDOMENICO Abril – 2014 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. 1 EDILSON ANTEDOMENICO O BIODIREITO NA INTERFACE ENTRE CIÊNCIA E FICÇÃO: UM ESTUDO DO IMAGINÁRIO SOCIAL A PARTIR DA ANÁLISE DO FILME MAR ADENTRO. Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Marcia Reami Pechula. Rio Claro 2014 3 4 Aos meus pais, Antonio Carlos e Maria Helena, por todo carinho, amor e dedicação. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, pela oportunidade de completar esta jornada. A toda minha família e a minha querida namorada Tamires, pelo amor e carinho incondicionais. À Profa. Dra. Marcia Reami Pechula, pelo apoio, dedicação e confiança ao ter me recebido de braços abertos na Pós-Graduação. Ao Prof. Dr. José Renato Martins, pela amizade, companheirismo e profundo ensinamento. Ao Prof. Dr. Pedro da Cunha Pinto Neto, pela inestimável colaboração, em nome de quem agradeço também todos os integrantes do Grupo de Estudo e Pesquisa em Ciência e Ensino (GEPCE), da Faculdade de Educação da Unicamp. Ao Prof. Dr. Rodrigo Batagello, pela valiosa contribuição. À Profa. Dra. Adriana Duarte Bonini Mariguela, pela gentileza ao emprestar o livro Cartas do Inferno, cuja edição encontra-se esgotada. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela prazerosa convivência e profícua aprendizagem. Aos funcionários da Secretaria Acadêmica do Departamento de Educação e da Seção Técnica de Pós-Graduação, pelo suporte e auxílio. Aos amigos do Grupo de Estudo (Carol, Elisângela, Angela, Stella, Artur, Natanael e Thierry), pela amizade e convívio. E, por último, em especial, a Ramón Sampedro, motivo da inspiração deste trabalho. 6 RESUMO O estudo aqui proposto voltou-se ao estudo das possibilidades de exploração do cinema para ampliação dos conhecimentos necessários à reflexão bioética. Tendo como base o direito (biodireito), o objetivo central da pesquisa foi o de entender, por meio da análise do filme Mar Adentro, em que medida o cinema pode contribuir para a compreensão do imaginário social sobre a morte assistida, tema caro à bioética. O texto estrutura-se em duas partes: a primeira aborda questões teóricas, tais como breve contextualização histórica da bioética; o biodireito como desdobramento especializado no campo da bioética e a necessidade de uma educação bioética para elucidação das escolhas que envolvem os valores vinculados à bioética. Na segunda parte, empreende-se uma leitura do referido filme a partir de três perspectivas metodológicas, que caracterizam o imaginário social sobre a morte assistida: 1) Familiar/Religioso; 2) Jurídico e 3) Existencial. O estudo permitiu verificar a riqueza do cinema como proposta de reflexões acerca de questões bioéticas no campo da educação. Palavras-chave: Bioética. Biodireito. Educação. Direito. Cinema. 7 ABSTRACT The study proposed here turned to the study of exploitation cinema to expand the knowledge needed for bioethical reflection. Based on the law (biolaw), the central aim of the research was to understand, through the analysis of the film Mar Adentro, the extent to which cinema can contribute to understanding the social imaginary of assisted death, subject dear to bioethics. The text is structured in two parts: the first deals with theoretical issues, such as brief historical background of bioethics; the biolaw being a split in the field of bioethics and the need for bioethics education for elucidation of the choices involve values related to bioethics. In the second part, undertakes up a reading of said film from three methodological perspectives that characterize the social imaginary of assisted dying: 1) Family/Religious; 2) Legal and 3) Existential. The study showed the wealth of cinema as proposed reflections on bioethical issues in education. Keywords: Bioethics. Biolaw. Education. Right. Cinema. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................9 1 DIREITO A UMA EDUCAÇÃO BIOÉTICA.............................................................13 1.1 Breve retomada do conceito de Bioética..............................................................13 1.2 Biodireito – um novo campo de conhecimento.....................................................17 1.3 Biodireito: direito a uma educação bioética?........................................................24 2 EDUCAÇÃO, CINEMA E IMAGINÁRIO SOCIAL...................................................33 2.1 Cenário conceitual................................................................................................33 2.2 O imaginário social como modelos sociais padronizados....................................35 2.3 Apresentação do dispositivo metodológico..........................................................40 3 BIOÉTICA E MORTE ASSISTIDA..........................................................................47 3.1 Morte assistida: aspectos filosófico-existenciais..................................................47 3.2 Morte assistida: abordagem jurídica.....................................................................53 4 MAR ADENTRO – INCURSÕES SOBRE O DIREITO DE MORRER....................61 4.1 Ficha técnica do filme...........................................................................................61 4.2 Resumo do filme...................................................................................................62 4.3 Critérios para análise do filme..............................................................................63 4.3.1 Perspectiva Familiar/Religiosa..........................................................................63 4.3.2 Perspectiva Jurídica..........................................................................................70 4.3.3 Perspectiva Existencial......................................................................................77 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................95 REFERÊNCIAS..........................................................................................................99 9 INTRODUÇÃO O início de tudo se deu com o meu ingresso na Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba, em 2009. Enquanto assistia às aulas, ficava imaginando se não haveria alguma forma de utilizar os conhecimentos adquiridos na saudosa Universidade de São Paulo, durante o curso de Bacharelado e Licenciatura em Química, finalizado em 2000, com as lições jurídicas que estava tendo contato. Em 2012, já pensando nisso, mas ainda sem saber exatamente como proceder, ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp, sob orientação da Prof. Dra. Marcia Reami Pechula. No decorrer de uma das instigantes aulas de Direito Penal, ministradas pelo Prof. Dr. José Renato Martins, foram sugeridos alguns temas para que os alunos proferissem uma palestra. Por motivo até agora não muito bem compreendido, meus olhos se voltaram imediatamente para um deles: “Bioética”. O que seria isso? O que isso tem a ver com Direito? Será que devo escolher esse tema? Aceitei o desafio! Eu, juntamente com meus colegas Eduardo, Érick e Maria Aparecida começamos a preparar o trabalho. Ética, ciência, bioética, direito, biodireito, aborto, eutanásia, pesquisa com seres vivos, reprodução assistida, eugenia, organismos geneticamente modificados, biossegurança, poluição ambiental, armas químicas, bem-estar de animais1... Que imensidão de assuntos! Mas o que será que a atividade científica tem a ver com a ética? Suas características de objetividade, neutralidade e imparcialidade não garantiriam que ela fosse utilizada somente para o bem da humanidade? A resposta encontrada foi: absolutamente, não! Com o avanço da ciência, novos desafios foram introduzidos e a tecnociência aparece como “vetor dinâmico da cultura material contemporânea” (ARAÚJO, 1998, p. 13), sendo necessário, portanto, refletirmos até onde podemos ir (LATOUR, 2000). 1 Novas exigências do mercado internacional obrigam produtores de carne brasileiros a adotar práticas que priorizam o bem-estar animal. Resultados de pesquisas mostram que cuidados na criação, no transporte e no abate resultam em alimentos de melhor qualidade. (UNESP, 2013, p. 18). 10 Motivos para isso não faltam: experiências atrozes realizadas durante a Segunda Guerra Mundial com prisioneiros de guerra, sem o consentimento deles, expondo-os a temperaturas extremas por períodos prolongados; infectando-os com doenças diversas, como tifo e malária, para testes de drogas e vacinas; esterilização; administração de venenos para estudar seus efeitos letais; aplicação de corantes químicos na tentativa de mudar a cor de seus olhos; experiências genéticas com gêmeos; entre outras. Ao longo da história, a atividade científica insistiu em sua inocência e boa vontade, que tornariam supérflua toda interferência moral ou restrição de sua liberdade. Essa imunidade ficou difícil de sustentar na medida em que os cientistas participam de projetos militares, invadem fronteiras críticas do saber – genética, nanotecnologia – ou escolhem áreas e temas de pesquisa por serem economicamente promissoras. As respostas oficiais em diversas nações têm sido ceder a pressões da sociedade civil e proporcionar o controle ético mediante proibição ou negativa de financiamento público a pesquisas em animais não-humanos, ao uso de células embrionárias, à clonagem reprodutiva ou a outras áreas moralmente críticas. (KOTTOW, 2008, p. 15). Por conta disso, em 1947, médicos do regime nazista foram julgados pelos crimes cometidos, sendo produzido na ocasião o primeiro documento sobre ética e ciência, que abordava especificamente os problemas relacionados com a pesquisa envolvendo seres humanos, o Código de Nuremberg. Mais tarde, em 1964, a Declaração de Helsinque, elaborada pela Assembléia Médica Mundial (AMM), tornou-se o diploma internacional mais importante concernente ao controle ético de tais pesquisas. Naquela época, após a superação da ameaça nazista, foram detectados, principalmente nos Estados Unidos da América (EUA), vários ensaios clínicos desenvolvidos em pessoas vulneráveis e que, apesar de inescrupulosos sob o ponto de vista metodológico e moral, foram aceitos para publicação em importantes revistas científicas. (GARRAFA; PRADO, 2007, p. 11). Em 1971, preocupado com essa problemática, o bioquímico e oncologista Van Rensselaer Potter, buscando estabelecer um diálogo entre as ciências e as humanidades, criou o neologismo bioética para a incorporação de valores na atividade científica. 11 Entretanto, a bioética sozinha não tem sido suficientemente forte para proteger os direitos fundamentais envolvidos quando esses avanços científicos são aplicados aos seres humanos, sendo o direito chamado a agir (VILA-CORO, 2005). A interface entre bioética e direito poder ser constatada por meio de diversos documentos jurídicos em escala nacional e internacional, que visam proteger o ser humano diante dos dilemas trazidos pelo avanço técnico-científico, possibilitando, assim, maior segurança jurídica a essas questões, o que vem sendo chamado de biodireito (CASINI, 2004). Parecia, portanto, que eu havia encontrado o meu nicho de pesquisa: a bioética. Com ela, eu poderia agregar o conhecimento das ciências naturais com o das ciências humanas, especificamente o direito ou, melhor dizendo, o biodireito. Ao elaborar o seminário, constatei que havia pouco material bibliográfico a respeito, sobretudo no campo educacional. À procura de filmes que ilustrassem um diálogo bioético, acabei me deparando com um em especial, Mar Adentro. O que fazer quando não se encontra mais motivos para viver? O que fazer quando o direito de viver se torna uma obrigação? Esse é o dilema em torno do qual se desenvolve o filme Mar Adentro, que possibilita uma série de questionamentos bioéticos em torno da vida e da morte, da eutanásia, do direito de morrer com dignidade e das questões jurídicas, religiosas e sociais envolvidas (PESSINI, 2008). Ao apresentar o seminário, tive a certeza de ter encontrado um assunto fascinante (a bioética), e a sua interface com o direito (o biodireito), deixou-me fascinado. Foi então que tive a ousadia de sugerir à professora Marcia a proposta de fazer um estudo do biodireito com vistas a trazer alguma aplicação ao campo educacional, foi quando, para minha grata surpresa, ela aceitou! Debruçamo-nos sobre o assunto e começamos a perceber que o biodireito não se resume somente à normatização e legislação afetas a questões bioéticas, mas que ele é muito mais do que isso. Ele traz consigo também a ideia de um direito a uma educação bioética, já que deve ser um direito de todos o acesso a informações sobre os benefícios e malefícios que o desenvolvimento técnico- científico pode trazer. A pretensão central da pesquisa foi, portanto, a de investigar a formação do biodireito na interface entre ciência e ficção, tendo como foco a construção do imaginário social a partir da análise do filme Mar Adentro. Para tanto, os estudos foram direcionados para a constituição do biodireito no campo jurídico, e no campo 12 social, tendo como suporte a análise do referido filme, que aborda fatos reais, a fim de se compreender o imaginário social que ele transmite à sociedade, por meio das seguintes questões investigativas: Como o biodireito nasce a partir da bioética? De que maneira o biodireito se relaciona com temas caros à bioética, tal como a morte assistida? Como essa relação é transposta para filmes cinematográficos que retratam casos verídicos? Que imaginário social o filme forja ao retratar tal temática? Nessa perspectiva, o primeiro capítulo intitulado “Direito a uma Educação Bioética”, consistiu em revisão bibliográfica para compreensão dos aspectos teóricos e epistemológicos da bioética e do biodireito, com o estabelecimento de possíveis vínculos com o campo educacional. No segundo capítulo, denominado “Educação, Cinema e Imaginário Social”, objetivamos abordar o cinema e seu potencial no processo educacional, com posterior apresentação do dispositivo metodológico, conforme proposto por Michel Foucault. Posteriormente, fizemos uma leitura do filme Mar Adentro, utilizando-se, para tanto, dos seguintes aportes teóricos: O Estado Atual do Biodireito, de Maria Helena Diniz; La Ciencia y il Imaginario Social, de Esther Díaz; A Ordem do Discurso, Vigiar e Punir, Microfísica do Poder e Em Defesa da Sociedade, de Michel Foucault; e Cartas do Inferno, de Ramón Sampedro, livro que deu origem ao filme Mar Adentro. E, finalmente, a partir da leitura empreendida do referido filme, fizemos algumas considerações que julgamos pertinentes para o estabelecimento de uma educação voltada à bioética. 13 CAPITULO 1: DIREITO A UMA EDUCAÇÃO BIOÉTICA 1.1 Breve retomada do conceito de Bioética A Bioética é considerada um campo de conhecimento desde a publicação da obra de Van Rensselaer Potter, Bioethics: Bridge to the Future, em 1971. Desde então o termo bioética passou a referi-se a temas relacionados aos efeitos da atividade científica sobre os seres vivos e o meio ambiente, entre os quais se destacam questões como aborto, eutanásia, pesquisas com células-tronco, eugenia e poluição ambiental (DINIZ, 2011). Assim a emergência das questões ligadas à vida, sobretudo, no contexto da sociedade técnico-científica permite afirmar a necessidade de debates bioéticos relacionados à nossa vida e ao futuro da vida no planeta (PESSINI, 2010). Segundo Nogueira, Loureiro e Silva (2004, p. 20-21), o homem, a ciência e a bioética compreendem três realidades simultaneamente próximas e Completam-se, numa arriscada dinâmica de interligações, interdependências e relações muitas vezes conflituosas e dúbias. A ciência evoluiu nas últimas décadas como nunca sequer sonhou que poderia evoluir. A base da relação entre o Homem e a ciência é continuamente ameaçada por novas descobertas, novos caminhos que surgem, novas possibilidades, que indubitavelmente nos fazem refletir. Perante isto também a própria ciência se interroga sobre o sentido e limites do seu progresso e pede a contribuição da bioética. A bioética, portanto, pode ser definida como o estudo transdiciplinar entre a ciência, a filosofia (ética) e o direito (biodireito), que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e responsabilidade ambiental (MALUF, 2010). O dinamismo da realidade contemporânea e a revolução técnico- científica que exerce influência cada vez maior sobre o desenvolvimento econômico e o progresso social produzem, muitas vezes, situações complexas e imprevistas, colocando o indivíduo e, até mesmo, a coletividade perante alternativas morais, apresentando-lhes exigências cada vez maiores. Daí o aumento de atenção e do interesse especial em relação à ética como ciência da moral. Bioética, portando, é um ramo da ética aplicada que reúne um conjunto de conceitos, princípios e teorias, com a função de dar legitimidade às ações humanas que podem ter efeito sobre os fenômenos vitais e a vida em geral. (YEGANIANTZ, 2001, p. 139). 14 A bioética trouxe a possibilidade de romper os limites entre ciência e ética (GOLDIM, 2000), aproximando essas duas áreas do conhecimento que, por muito tempo, ficaram isoladas, conforme observação de Silvio Seno Chibeni, professor de Filosofia da Ciência da Unicamp. Embora a ciência seja, do ponto de vista histórico, descendente da filosofia, e a ética seja, até hoje, uma das áreas mais importantes da filosofia, é usual pensar-se em ciência e ética como disciplinas autônomas e independentes. A ciência se ocuparia da geração de conhecimento sobre o mundo; a ética, com a discussão das ações humanas, no que diz respeito às suas repercussões sobre a felicidade e bem-estar de outros seres humanos ou quaisquer outros seres. No entanto, há ligações importantes entre elas, que têm sido crescentemente investigadas. (CHIBENI, 2005, p. 1). Pegoraro (2008) destaca que toda essa problemática em torno da atividade científica gera questões éticas, quais sejam: Pode a ciência investigar tudo o que quiser? Não existem limites para a ciência? Qual a obrigação do homem diante daquilo que representam as conquistas da ciência? Que dever se põe para o homem em razão do patrimônio da técnica e da cultura que a humanidade conseguiu acumular através dos tempos? A ciência pode tornar mais gritante o problema do dever, mas não o resolve. Os conhecimentos científicos tornam, às vezes, mais urgentes a necessidade de uma solução sobre o problema da obrigação moral, mas não implicam qualquer solução, positiva ou negativa. O problema do valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resolvê-lo. Este problema que a ciência exige, mas não resolve, chama-se problema ético, e marca momento culminante em toda verdadeira Filosofia, que não pode deixar de exercer uma função teleológica, no sentido do aperfeiçoamento moral da humanidade e na determinação essencial do valor do bem, quer para o indivíduo, quer para a sociedade. (REALE, 1988, p. 25). Segundo Clotet (1997), a bioética nasceu e se desenvolveu a partir dos grandes avanços da ciência, sobretudo, da biologia molecular e da biotecnologia aplicada à medicina; das denúncias de abusos efetuados pela experimentação científica com seres humanos; do pluralismo moral reinante nos países de cultura ocidental; da maior aproximação dos filósofos da moral aos problemas relacionados com a vida humana (sua qualidade, início e fim); do posicionamento das instituições 15 religiosas sobre tais temas; e da intervenção do Estado em questões que envolvem a proteção à vida ou os direitos dos cidadãos sobre saúde, reprodução e morte. Com o surgimento da bioética, houve a necessidade da elaboração de metodologia própria para a análise dos casos concretos, o que motivou a criação dos princípios bioéticos. Heloisa Helena Barboza (2000) ensina que o estabelecimento dos princípios da bioética decorreu da criação, pelo Congresso dos Estados Unidos, de uma Comissão Nacional que tinha a incumbência de identificar os princípios éticos básicos que deveriam guiar a investigação em seres humanos pelas ciências do comportamento e pela biomedicina, quais sejam: a) o da autonomia ou do respeito às pessoas por suas opiniões e escolhas, segundo valores e crenças pessoais; b) o da beneficência, que se traduz na obrigação de não causar dano e de extremar os benefícios e minimizar os riscos; c) o da justiça ou imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios, não podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra, salvo quando haja entre ambas alguma diferença relevante. A esses três princípios, ainda segundo a referida autora, Tom L. Beauchamp e James F. Childress acrescentaram outro, na obra intitulada Principles of Biomedical Ethics, publicada em 1979, o da "não-maleficência", segundo o qual não se deve causar mal a outrem, diferenciando, assim, do princípio da beneficência, que envolve ações de tipo positivo: prevenir ou eliminar o dano e promover o bem, no sentido de um bem contínuo, de modo que não há uma separação significante entre um e outro princípio. A formulação de tais princípios se dá de modo amplo, para que possam reger desde a experimentação com seres humanos até a prática clínica e assistencial. Sua observância deve ser obrigatória sempre e quando não entrem em conflito entre si, caso em que se hierarquizam conforme a situação concreta, o que significa dizer que não há regras prévias que dêem prioridade a um princípio sobre outro, havendo a necessidade de se chegar a um consenso entre todos os envolvidos, o que constitui o objetivo fundamental dos comitês institucionais de ética. (BARBOZA, 2000, p. 212). Isso não exclui a possibilidade da inclusão de novos princípios que balizem a atividade científica, conforme observação feita pela Comissão Europeia sobre princípios éticos básicos de bioética e biodireito, de que a autonomia, a dignidade, a 16 integridade e a vulneralibidade são quatro valores que devem orientar a tomada de decisões sobre bioética e desenvolvimento biotecnológico em relação a leis e políticas públicas na modernidade (KEMP; RENDTORFF, 2008), visto que os recentes progressos científicos e avanços tecnológicos criaram possibilidades novas de interferência na vida humana, que podem significar vantagens ou, contrariamente, riscos e graves prejuízos (DALARI, 2008). Portanto, desde o seu começo, a partir da década de 1970, a bioética atingiu relevante pauta mundial, trazendo uma nova roupagem aos problemas éticos relativos à ciência, à vida, ao viver e ao morrer. Caracterizando-se por ser uma instância dialogal e reflexiva, manifestou também estreitos vínculos com o direito. Essa aproximação levou a teorizações acerca da necessidade de inaugurar-se um novo ramo do direito, o biodireito, ainda que o seu reconhecimento não seja uníssono (SILVEIRA, 2009). Segundo Amaral (1999), impõe-se como questão preliminar o reconhecimento de que o progresso científico deve ser orientado não somente pela promoção da qualidade de vida individual e social, pessoal e ambiental, mas, também, pelos problemas que as descobertas podem trazer, e que o direito é chamado a resolver, elaborando estruturas jurídicas de respostas legitimadas pelo respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Tal questão é também reforçada por Vila-Coro (2005, p. 313, tradução nossa)2: O discurso bioético tem sido insuficiente para resolver os dilemas trazidos pelos avanços científicos. Tanto a partir de uma ética objetivista como partindo de uma concepção relativista da moral, a dificuldade é encontrar canais suficientemente fortes para se ter certeza de que as novas tecnologias serão implantadas sem violação dos direitos humanos. Tem sido bem demonstrada a necessidade de inaugurar um novo ramo do direito, que tem sido chamado de "Biodireito". A nova disciplina está preocupada com a preparação e 2 El discurso bioético resulta insuficiente para dar respuesta a la problemática que plantean los avances científicos. Tanto desde una ética objetivista como partiendo de una concepción relativista de la moral, se advierte la dificultad de hallar cauces suficientemente firmes como para tener la certeza de que se van a aplicar las nuevas tecnologías sin violar los derechos humanos. Se ha demostrado así la necesidad de recurrir a una nueva rama del Derecho a la que se ha llamado “biojurídica”. Esta nueva disciplina se ocupa de la preparación y estudio de nuevas leyes y del seguimiento de lãs actualmente vigentes, para garantizar su debida fundamentación en la dignidad del hombre y en los derechos que le son inherentes. Pretende poner unos limites legales a la aplicación de la investigación sobre los seres humanos. 17 estudo de novas leis e monitoramento das normas vigentes, para garantir sua devida fundamentação na dignidade do homem e nos direitos que lhe são inerentes. Destina-se a colocar limites legais às pesquisas com seres humanos. Assim, Vicente de Paulo Barreto (2001, p. 383), ao abordar o assunto, explica que: O progresso científico e suas aplicações tecnológicas provocaram o surgimento de um complexo e intrincado conjunto de relações sociais e jurídicas, que envolve valores religiosos, culturais e políticos diferenciados e, também, a construção de poderosos interesses econômicos que se refletem na formulação de políticas públicas. As questões éticas suscitadas pela ciência biológica contemporânea tratam, assim, das interrogações feitas pela consciência do indivíduo diante dos novos conhecimentos, e, também, como esses conhecimentos materializados em tecnologias estão repercutindo na sociedade. Vemos, então, como a complexidade das relações estabelecidas em virtude da nova ciência e tecnologias no campo da engenharia genética fazem com que a bioética e o biodireito não possam ficar prisioneiros da teorização abstrata ou do voluntarismo legislativo, pois ambos são chamados a responder às indagações práticas e imediatas que nascem de relações sociais, econômicas, políticas e culturais características da civilização atual. 1.2 Biodireito – um novo campo de conhecimento Como a bioética repousa sobre uma racionalidade pluralista e dialógica, ela pressupõe uma interação comunicacional com o direito (BORBA, 2010). Direito e bioética: dois saberes que promovem a formação de indivíduos capazes de refletir e construir uma sociedade que caminha sem se deter rumo à justiça social, uma sociedade que promova a todos o vivenciar da dignidade humana. (VIEIRA, 2010, p. 76). O direito, compreendido como fenômeno sócio, histórico e cultural, não poderia ficar à margem dos problemas morais e políticos que afetam a sociedade (GARCÍA, 1991). Assim, deve, seguramente, intervir no campo da biotecnologia, quer para legitimá-la, quer para proibi-la ou regulamentá-la (LEITE, 2001). O campo do direito, conjugando normatização e coerção, passa a buscar respostas ao andar acelerado das ciências da saúde e das biotecnologias e a trazer maior segurança jurídica. Recebendo a influência das discussões iniciadas no âmbito da bioética, o direito 18 vem refletindo acerca do estabelecimento de limites jurídicos às práticas biomédicas e dando início à sua regulamentação — seja no interior dos ordenamentos jurídicos nacionais, na forma de legislações sobre temas específicos; seja no plano internacional, por meio de declarações que incorporam valores partilhados por diferentes culturas e sociedades nacionais. Ao que vem sendo considerado como um novo campo do direito, próprio do estudo e da normatização das questões bioéticas, convencionou-se chamar de Biodireito. (MÖLLER, 2007, p. 155-156). Assim, se inúmeras são as indagações relativas à bioética, multiplicam-se quando há referência ao biodireito, havendo mesmo corrente que nega sua existência. Mas, o que é biodireito? Pode-se dizer, em um primeiro momento, que o biodireito é o ramo do direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em face dos avanços técnico- científicos (BARBOZA, 2000). Na verdade, o campo epistêmico de que estamos tratando sequer foi nominado, estando seus melhores argumentos no pequeno campo do que se tem passado a chamar de biodireito. A identificação nominal de uma área epistêmica não é o melhor caminho para estabelecê-la, muito embora na maioria das vezes dê indício de sua existência. Assim, se o biodireito parece se referir à regulação jurídica da vida, a bioética parece vincular-se à moralidade da vida, e podem ser vistas como estruturas diferentes ao leitor mais desatento. (SILVEIRA, 2005, p. 79). Inicialmente, é preciso esclarecer que ainda não existe consenso ao redor dessa nomenclatura. Alguns autores preferem nominar esse novo campo do conhecimento de “Biodireito”. A bioética dominou a esfera do direito como “pano de fundo” de debates de situações controversas, porém, hoje em dia, já há algumas normas sobre a consideração de valores, o que acirra as discussões. Logo, é o momento de se preocupar com o biodireito. Deve-se desvincular o direito da bioética, a qual serve mais a uma finalidade política: usada para fazer prevalecer o entendimento religioso ou o laico. O biodireito tem, portanto, por objetivo facilitar a solução normativa para as questões que as ciências colocam na vida das pessoas, pela necessidade de se encontrar uma resolução para um dilema. (NAMBA, 2009, p. 13). E outros, como o argentinho Pedro Federico Hooft, professor titular de Filosofia do Direito da Universidade de Mar del Plata, preferem a nomenclatura “Bioética e Direito”, conforme relatado por Borba (2010, p. 47). 19 Hooft, de forma contundente, considera mais adequado recorrer à expressão “Bioética e Direito” do que ao termo “Biodireito”, pelas razões seguintes: a) o neologismo “Biodireito” carece da rica tradição histórica como a que o termo bioética carrega. Por isso, sua utilização representa o perigo de se perder o frutífero diálogo transdisciplinar da bioética, reduzindo-se a uma abordagem meramente horizontal, idêntica a dos clássicos ramos do direito; b) O vocábulo “Biodireito” marca uma forte presença no campo jurídico, o que pode acarretar uma excessiva formalização dos procedimentos e o conseqüente aumento da burocratização, reduzindo as verdadeiras razões ou dimensões éticas de um problema ao simples seguimento de uma regra; c) Um prudente e adequado equilíbrio entre os elementos jurídico-formais e os valores e princípios éticos envolvidos será mais facilmente alcançado sem um terceiro elemento que intermedeie o vínculo entre Bioética e Direito, já que se corre o risco de potencializar a formalidade jurídica em detrimento de uma leitura ética contextualizada; d) A ponte comunicativa entre a concepção clássica do Direito e uma nova juridicidade mais aberta aos aportes transdisciplinares da Bioética já está assentada na filosofia dos direitos humanos e na sua formulação normativa, sem a necessidade de recorrer-se, portanto, ao Biodireito. No mesmo sentido, a opinião de Volnei Garrafa, coordenador da Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília (2000, p. 174). As carreiras mais envolvidas quantitativamente com a Bioética no Brasil são a Medicina e o Direito. Contudo, contraditoriamente, apesar de serem as duas áreas que mais têm mostrado avanços, são também aquelas onde as resistências são também maiores: no lado da Medicina, principalmente pela confusão que grande número de professores e profissionais fazem entre a bioética e a ética profissional, legalista e codificada; com relação ao Direito, o problema acontece pelo fato de alguns grupos insistirem em utilizar o neologismo “Biodireito” ao invés da expressão usual que se refere à “Bioética e Direito”. Como a Bioética não surgiu para dar respostas acabadas aos conflitos, com base no respeito à secularização e ao pluralismo moral, o “Biodireito” tenta resolver todas as questões pelo viés estritamente jurídico, o que empobrece irreversivelmente a proposta original da bioética ao priorizar o legalismo e o estreitamento das discussões em prejuízo da legitimidade e amplitude que o verdadeiro estatuto epistemológico da disciplina generosamente proporciona. Pelo fato dessas diferenças nominais não interferirem diretamente no escopo deste trabalho, optamos por utilizar a expressão “Biodireito”, pois acreditamos que a palavra direito comporta diversos significados, não ficando restrita à noção positivista do termo, formulada, sobretudo, por Hans Kelsen (1999), que encarava o 20 direito apenas a partir das normas jurídicas, ou seja, um complexo de leis impostas pelo Estado. O direito pode ser compreendido também como a faculdade ou a possibilidade de alguém exigir algo que lhe é devido, tornando-se, assim, um sujeito de direitos. Quando alguém exige que tais direitos sejam respeitados e luta para que novos direitos sejam alcançados, como é o caso do biodireito, inicia-se a transformação de indivíduos em cidadãos, e a educação pautada em valores pode contribuir para essa transformação. Assim como a criação de um novo ramo do direito para tratar das questões ambientais, o “Direito Ambiental”, assim denominado em vez da expressão “Direito e Meio Ambiente”, trouxe maior amplitude às discussões ambientais, justamente porque ele não ficou pautado em um viés estritamente jurídico, mas propiciou um enfoque interdisciplinar entre as diversas áreas do saber, abrindo espaço para a criação da educação ambiental, é que pensamos que o biodireito, entendido como um direito subjetivo de que toda pessoa seja protegida em sua dignidade face aos avanços da ciência, concentrará esforços no sentido de que todos tenham direito a uma educação bioética, em caráter formal e não formal, incumbindo ao Poder Público e a sociedade em geral manter atenção permanente à formação de valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuação individual e coletiva voltada para a prevenção, a identificação e a solução dos problemas bioéticos. Assim, é preciso esclarecer que, segundo a filosofia da ciência de Gérard Fourez (1995), o biodireito encontra-se em construção, estando na fase pré- paradigmática, ou seja, no período imediatamente anterior ao nascimento de uma disciplina. Caracteriza-se pela inconsistência de práticas disciplinares precisas e pela inexistência de formações universitárias específicas. Nesse momento, ainda não há a formação de especialistas na disciplina, que provêm de outras áreas do conhecimento (BORBA; HOSSNE, 2010). O biodireito, então, surge do cruzamento da bioética com o direito, tendo a vida por objeto principal, sendo certo que a verdade científica não poderá se sobrepor à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar os destinos da humanidade, sem limites jurídicos (DINIZ, 2011). 21 O direito, assim voltado a organizar as liberdades decorrentes das dimensões biotecnológicas que sem cessar despontam, bem como voltado à sua função maior de revisor e guardião de valores fundamentais da esfera humana, se estrutura e opera sob sua nova ordem, vale dizer, sob a denominação de biodireito. E o duo inicial promovido pelo bio e pela ética, se pluraliza, se reforça e se redesenha neste viés jurídico novo, disponibilizado à garantia da preservação da dignidade humana e da dignidade da própria humanidade. (HIRONAKA, 2003, p. 1). Chegando Norberto Bobbio (1992, p. 13) a definir o biodireito como direito de quarta geração, “cujo objeto é justamente, regular os efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, acompanhado as transformações sociais em curso e buscando prevenir e solucionar todos os conflitos dela decorrentes”. A esfera do Biodireito é um campo que se caminha sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a pessoa ou a espécie humana. O Biodireito engloba os denominados direitos de quarta geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos dos avanços tecnológicos na biomedicina, nos quais se quer fundamentar a esperança de construção de uma nova humanidade. Após os direitos individuais (de 1ª geração), os direitos sociais (de 2ª geração) e os direitos ecológicos (de 3ª geração), vivemos os de 4ª geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. (BOBBIO, 1992, p. 06). Scofano (2006), discorrendo sobre biodireito, bioética e ética, questiona como o direito tem se comportado frente ao desafio de formular normas ou encontrar soluções na mesma velocidade com que os problemas gerados pela sociedade biotecnológica se apresentam. Assim Borba (2010, p. 45) defende que cabe ao biodireito a “tarefa de resguardar o pluralismo político, oferecendo condições procedimentais para a realização do método dialógico e interdisciplinar, suscitado pela bioética”. Portanto, a exemplo do tratamento teórico da interface entre bioética e direitos humanos feito por Oliveira (2010), o estudo do biodireito (enquanto subárea da bioética) é relevante para que esse novo saber que apresenta claramente a dignidade da pessoa humana como princípio diretriz possa compartilhar instrumentos teóricos e práticos, com o escopo de que sejam empregados por aqueles que detêm força decisória nas mais diversas instâncias. Estudar o biodireito (enquanto subárea da bioética) consiste na abertura de um novo espectro de 22 reflexão, pois, a despeito dessa correlação essencial, há um pequeno número de estudos que têm como objetivo específico essa aproximação. O biodireito é disciplina incipiente no universo jurídico e ainda não ocupou seu devido lugar nem nos currículos das faculdades de Direito, nem na própria Dogmática. Seu estudo é normalmente setorial, não havendo quem procedesse à formulação de uma teoria geral, regente de conceitos, princípios e fundamento jurídicos. (SÁ; NAVES, 2009, p. 3). Dentre os problemas que mais afetam a evolução da bioética e do biodireito, destacam-se: 1) a falta de diálogo interdisciplinar entre a ética e o direito; 2) a falta de uma educação voltada à bioética (SOARES, 2000). O primeiro deles, o da falta de diálogo entre a ética e o direito, é uma das mais antigas preocupações da filosofia prática, chegando Miguel Reale (2002) a dizer que se trata de um dos problemas mais difíceis e dos mais fascinantes da filosofia jurídica, qual seja, o da relação entre a ética e o direito. Pelo menos desde Platão e Aristóteles tem havido esforços da filosofia ocidental para abordar essa questão complexa, a qual tem sido objeto de estudo de vários filósofos contemporâneos do direito, e com o advento da bioética, essa questão voltou à tona (BILLER-ADORNO, 2008). Nesse sentido, Lima Vaz (2002, p. 242) destaca que a resposta para a crise das sociedades políticas contemporâneas está na questão mais decisiva que lhes é lançada, a da significação ética do ato político ou a da relação entre ética e direito, enfatizando que a resposta a ser encontrada irá depender o destino das sociedades justas, que é o sentido original do termo sociedade política; caso contrário, essas sociedades sofrerão influência de imensos sistemas mecânicos, que eliminarão a liberdade e regularão ― “apenas só modelos sempre mais eficazes e racionais do arbítrio dos indivíduos, já então despojados de sua razão de ser como homens ou como portadores do ethos”. Compreender as semelhanças e diferenças entre a ética e o direito é fundamental para todos aqueles que se interessam por assuntos de bioética e de biodireito. Se o que hoje chamamos de biodireito é uma parte do direito (assim como a bioética é tida como uma parte da ética), as distinções entre o biodireito e a bioética seguem-se das distinções entre o direito e a ética (AZEVEDO, 2000). Não mais sobrevive a ficção de que o direito é uma ― “ciência pura”, separada da ética – 23 se pelo contrário, os grandes temas éticos são também os grandes temas jurídicos – caberá à bioética fornecer ao direito os parâmetros que permitirão a reconstrução da ideia de pessoa fundada na coincidência entre pessoa e ser humano (MARTINS- COSTA, 2000). Portanto, uma reaproximação do direito com a ética se faz necessária, sobretudo, quando falamos em bioética. Não há outra saída a não ser retomar o elo com a Filosofia e com a Ética, buscando um espaço de diálogo para a construção de fundamentos racionais sobre valores culturais. A atenção deve voltar- se às convicções de uma pós-modernidade imersa em uma falta de referenciais. O papel do Direito é favorecer escolhas racionais e moralmente coerentes com o espaço democrático, pois será no campo bioético que se delinearão os caminhos da cultura pós- moderna dos direitos humanos. (SILVEIRA, 2009, p. 250). O segundo dos problemas levantados por Soares (2000), o da falta de uma educação voltada à bioética, é o que pretendemos enfrentar neste trabalho. Direito e bioética: dois saberes que trazem necessariamente à tona valores universais, valores individuais e sociais, particulares e coletivos; valores que para atravessarem a barreira abstrata reflexiva e ganharem concretude na vida do homem necessitam de instrumentos viabilizadores. (VIEIRA, 2010, p. 76). Acreditamos que a educação possa ser um desses “instrumentos viabilizadores”, pois o biodireito não consiste somente em um conjunto de normas de comportamento, mas, estando inserido no rol dos Direitos Humanos, traz implícita também a ideia de uma educação bioética como um direito fundamental. Por isso, o Biodireito não deve se nortear pura e simplesmente pelo critério da validade formal, na medida em que expressa o compromisso operacional com a validade substancial, material, isto é, com a validade ética, influenciando o traçado de uma hermenêutica jurídica de promoção da vida. (DUARTE, 2009, 192). Assim, é interessante notar que uma educação pautada em valores, construída em relações mais justas, democráticas e solidárias, constitui o benefício a ser defendido pelo biodireito, mostrando que educação e bioética possuem fortes vínculos no preparo de cidadãos conscientes de suas responsabilidades e livres para a tomada de decisões (DUMARESQ, 2009). 24 O direito não pode ter a função de um veículo autoritário para impor valores éticos não compartilhados: similar direito não seria propriamente um direito, mas uma pseudo-ética (indevidamente) veiculada pelas formas do direito e, portanto, em si mesma falsa. (D’AGOSTINHO, 2006, p. 88). “A biotecnologia acontece no cotidiano". A afirmação foi feita pelo assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para assuntos de bioética, Dr. Frei Antônio Moser, em 2008, no XXIII Encontro da Sociedade de Canonistas. Durante a palestra, Frei Moser, que abordou o tema "Bioética e Igreja", afirmou: "A revolução biotecnológica não é algo que acontece apenas no silêncio dos laboratórios. Ela incide, portanto, sobre a educação e os valores"3. Portanto, se queremos cidadãos engajados no respeito e valores preconizados pela bioética, o processo educacional precisa oferecer estruturas coerentes com esse tipo de formação (SANTOS, 2009). 1.3 Biodireito: direito a uma educação bioética? De acordo com Maria Helena Diniz, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a bioética e o biodireito deverão contribuir para um desenvolvimento controlado das ciências, garantindo o respeito à dignidade da pessoa humana na transformação das condições da existência, constituindo o núcleo de um projeto de formação para ética, componente essencial da cultura geral do século XXI (DINIZ, 2011). O Direito desenvolve-se na História e, por isso, um de seus papéis é o de mediar a dialética que por vezes resta estabelecida entre a tradição e a ruptura, entre os processos de continuidade e os de descontinuidade social. Seu papel não é, pois, o de cercear o desenvolvimento científico, mas, justamente, o de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos que importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e como tal portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados. (MARTINS-COSTA, 2000, p. 233). 3 Conforme matéria publicada na página eletrônica: . Acesso em 10 set. 2013. 25 Nesse contexto de situações novas e polêmicas e de intensa evolução tecnológica, de uma sociedade cada vez mais ciente de seus direitos, que exige respeito e proteção à dignidade humana, foram lançadas as bases da bioética e do biodireito (VILLAS-BÔAS, 2012). A atividade científica, como aponta Garcia (2004, p. 33-34), envolve necessariamente questões filosóficas (a necessidade humana do saber), políticas (o fenômeno do poder, de dominação da realidade) e, por certo, jurídicas (a liberdade do homem e suas limitações). E, acrescentamos aqui, a questão educacional – a formação e preparação dos futuros cientistas, filósofos, políticos, operadores do direito, enfim, de todos os futuros cidadãos, conforme prescreve o art. 205 da Constituição Federal. A educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Dessa forma, a questão dos limites éticos da ciência requer o início de uma programação educacional em bioética e biodireito, para que os futuros cidadãos possam direcionar sua ação e pensamento para o exercício de escolhas democráticas, com respeito à dignidade humana (DINIZ, 2011), levando-se em conta que a educação deve ser o veículo de distribuição da ciência para toda a sociedade, e esta a produtora de uma nova ciência, mais humanizada e menos abstrata, mais real do que positiva, mais popular e menos elitista (GALLO, 1995). A ética e a responsabilidade da ciência devem integrar a formação humana, de modo a incentivar os cidadãos, desde cedo, a uma atitude positiva com relação à reflexão, atenção e consciência sobre os dilemas éticos que a ciência pode suscitar (UNESCO, 2003). Assim, demonstrando preocupação com a formação bioética, em 2005 a UNESCO publicou a “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”. Em seu art. 23, que dispõe sobre informação, formação e Direitos Humanos, enfatiza que “os Estados devem envidar esforços para promover a formação e educação em Bioética em todos os níveis, bem como estimular programas de disseminação de informação e conhecimento sobre Bioética”. 26 Motivo pelo qual Silva (2011a, p. 231), ao discutir as possibilidades do ensino de bioética na educação básica, enfatiza que: Os avanços da tecnociência têm sido objeto de discussões que resultam em transformações sociais, principalmente em decorrência de suas implicações éticas e sociais. A produção científica e tecnológica está sujeita às forças que regem a sociedade, aos interesses econômicos, políticos, sociais, morais e éticos, ou seja, está inserida no processo de construção de valores sociais. Por esse motivo, a reflexão sobre os valores que orientam a produção científica deve fazer parte do processo educacional. Nesse sentido, as mudanças que incidam na visão de ciência e tecnologia talvez sejam o principal problema a ser enfrentado no ensino de ciências. É chegada a hora de superar aquele velho imaginário social criado ao redor da figura do cientista, que fica isolado em seu laboratório, estando movido apenas por uma simples curiosidade e desvinculado de um contexto. Para isso, é preciso encarar a produção científica como uma atividade sujeita a fatores sociais, políticos e econômicos (SILVA, 2010). A “bioética é um tema da mais alta importância e jamais pode estar desvinculada da ideia de educação”, já que a própria educação envolve, intrinsecamente, a ética. Assim, ela se faz presente na socialização do debate sobre as tecnociências, podendo estimular a reflexão sobre o papel da ciência. (ZANCANARO, 2006, p. 161-62). De acordo com Pires e Garrafa (2011), um dos desafios apresentados à bioética é atuar no campo da educação para listar os dilemas morais, com o intuito de fazer germinar a ideia de justiça social, não só como um direito de todos, mas também como obrigação de cada um, resgatando o significado real da palavra equidade e proporcionando maior lucidez coletiva para que se atinja a desejável iluminação moral. Em alguns setores a bioética é vista como uma área do conhecimento já bastante consolidada, porém, na área educacional ela ainda é pouco conhecida. Por isso, a necessidade de uma rápida abordagem e caracterização desta nova disciplina e, para alguns, desta nova ciência, ou, ainda, um campo multidisciplinar (DURAND, 2003). Podemos afirmar, portanto, que uma educação bioética trará maior reflexão sobre as implicações dos avanços tecnológicos, sem a pretensão de se chegar a 27 uma discussão concluída ou última, mas fornecendo argumentos para a tomada de decisões, por meio do reconhecimento e do respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural. A educação bioética é de caráter problemático e questionador, reflete sobre o futuro da humanidade, questiona os objetivos e os métodos da ciência, respeita a dignidade e a integridade dos homens. Assim, a educação bioética por seu caráter prático é útil e indispensável para o exercício de toda atividade profissional que tenha a ver com a vida ou com a prática social. (SAKAMOTO, 2008, p. 12-13). Os novos conhecimentos sobre a vida e a natureza estão gerando técnicas com arrojado poder de manipulação do ser humano. O crescente uso dessas técnicas está revelando o descompasso entre o progresso teconológico e a maturidade das reflexões morais sobre suas consequências. Pelo fato de a bioética ser uma área de saber complexa e recente, não existe, para seu ensino, uma tradição pedagógica específica nem uma experiência didática consolidada (AZEVEDO, 1998). Ressalta-se, dessa forma, que a bioética, devido ao seu caráter interdisciplinar, pode se tornar um rico instrumento metodológico no ensino das disciplinas científicas. Nesse sentido, um dos objetivos do trabalho de Silva e Krasillchik (2009) foi o de apontar para a possível antecipação da formação e educação em bioética para a educação básica, pois esta se assenta sobre um saber transdisciplinar, interligando-se num plano superior com vários outros saberes, contribuindo para a formação ético-moral do estudante. Conforme previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e explicitado nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a educação deve estar integrada à formação ética do cidadão, para que este interaja ativa e conscientemente com a sociedade em que vive (MESSIAS; ANJOS; ROSITO, 2007). Nesse sentido, a afirmação de Pires e Garrafa (2011, p. 736), alicerçada nos ensinamentos de Paulo Freire: A formação da consciência ética não pode ser vista como algo que ocorra espontaneamente. Esta capacidade depende dos estímulos promovidos pela família e pelos instrumentos de inserção social, em particular a escola. Não se podem exigir comportamentos éticos se não forem ofertadas oportunidades para sua construção e realização. 28 A retomada e a valorização de temas da esfera da ética ajudam a definir o padrão comportamental das pessoas. Desse modo, parece interessante uma abordagem sobre os prováveis espaços que a bioética pode ocupar no campo educacional, sendo necessário o desenvolvimento de práticas pedagógicas que preparem alunos conscientes das rápidas transformações promovidas pela tecnociência nas últimas décadas, no sentido de que compreendam as implicações éticas da utilização do conhecimento (MESSIAS; ANJOS; ROSITO, 2007). A abordagem bioética é interdisciplinar, carecendo da colaboração e da interação da diversidade das ciências naturais, tecnológicas, sociais e humanas. Por isso, a necessidade da formação de profissionais multidisciplinares, que promovam o diálogo entre as diversas áreas do saber (FORTES, 2010). E a educação pode contribuir muito para o pensamento bioético (SANCHES; SOUZA, 2008). Percebe-se, a cada dia, a importância que uma aprendizagem humana, reflexiva e integral, que objetive desenvolver a autonomia, a criticidade e a argumentação do educando, seja oportunizada nos processos educacionais. O incentivo ao envolvimento do aluno nas discussões éticas e o seu posicionamento perante as situações conflitantes, pode configurar qualquer momento da sua formação. Proporcionar ao aluno meios de envolvê-lo nas discussões de maneira participativa, de modo que ele perceba que suas decisões estão sendo consideradas, incentiva uma concepção de formação no qual o indivíduo passa a se sentir parte responsável por suas escolhas. A aprendizagem possivelmente terá significado e se tornará efetiva. A formação educacional deve configurar primeiramente uma face social e humana, não somente deter-se ao caráter intelectual e cognitivo. (WILGES, 2007, p. 7). É nesta perspectiva que, para Pereira e Sánchez (2010), o ensino de ciências deve ter como base de ação pedagógica, problematizadora e questionadora, a bioética, visando à promoção dos valores ético-morais. Assim, a educação como dever ético é evidente em si. Sem ela não haveria vida política, espaço de igualdade e gestão dos bens comuns. Não existiriam a democracia, os direitos humanos e os direitos civis, bem como a sociedade moderna. A educação bioética é um principio constituinte da própria modernidade, e abdicar dela seria o mesmo que abandonar o ideário iluminista, que se encontra na base de nossa contemporaneidade (UNESCO, 2003). 29 Dessa forma, o caráter indissociável do progresso da ciência e das exigências éticas que devem acompanhá-lo tem a força de um imperativo moral para os cidadãos do século XXI, e uma das formas de se implementar tal imperativo é a educação (CLOTET, 2000). Logo, abordar a educação e formação em bioética é, antes de tudo, abordar a educação em valores, ou ainda, educar na cidadania. Sua importância não reside no fato de todos falarem do tema, mas sim no fato de ser um componente indispensável da vida humana, isto é, os valores morais são inseparáveis de nosso ser como pessoa (SILVA, 2011b). Sobre isso, Paulo Freire escreveu (2001, p. 33): Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Na tarefa de educar, devemos sempre ter em mente que tipo de cidadão e de sociedade nós queremos formar e a partir de quais valores. A bioética não é uma nova ética, é apenas uma necessidade de pensar e valorar os problemas decorrentes dos avanços da ciência sobre os seres vivos e a natureza. Nesse sentido, a posição Zancanaro (2006, p. 162) quanto à possibilidade de uma educação bioética: A educação deve inspirar-se nos fundamentos da bioética. O que ela aspira são os grandes desafios que historicamente a humanidade sempre almejou: a dignidade humana, a qualidade de vida, a justiça, a autonomia. Educar para a autonomia é ensinar a buscar a realização e não a destruição. Este é o verdadeiro significado de uma educação voltada para a bioética. Cada geração necessita fazer esse esforço. Uma das principais finalidades da educação em ciência consiste na preparação de alunos para um mundo marcado por complexos dilemas éticos suscitados pela atividade científica e tecnológica. O exercício da cidadania em sociedades democráticas depende da capacidade de seus cidadãos avaliarem 30 criticamente tais dilemas, de modo a participarem efetivamente dos processos decisórios que dizem respeito a todos (REIS, 2007). Diante do exposto, resta clara a importância de uma educação bioética na formação e capacitação de futuros cidadão para a compreensão da interação existente entre ciência, tecnologia e sociedade (SILVA, 2008). Entendemos por educação bioética o processo pedagógico por meio do qual o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para o desenvolvimento de valores éticos, como a justiça, a dignidade da pessoa humana, o respeito ao próximo e a igualdade, enfatizando o papel da bioética e do biodireito na construção de uma sociedade livre, justa, solidária e democrática. Por meio da ética, é possível reger as próprias ações e tomadas de decisão, levando-se em conta um sistema de princípios, segundo o qual os valores — e as opções que envolvem — são analisados, nas diferentes situações da vida. O desenvolvimento dessa capacidade permite considerar e buscar compreender razões, nuanças, condicionantes, consequências e intenções, isto é, permite a superação da rigidez moral, no julgamento e na atuação pessoal, na relação interpessoal e na compreensão das relações sociais. (BRASIL,1998a, p. 74). Pensando nisso é que propomos a seguir alguns dos objetivos a serem alcançados por uma educação bioética4: I – Conscientização de indivíduos e grupos sociais sobre a importância da bioética e seus desafios; II – Desenvolvimento de uma compreensão integrada da bioética em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos filosóficos, jurídicos, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e religiosos; III - Pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi e transdisciplinaridade; IV – Reconhecimento e respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural; V – Democratização das informações bioéticas; 4 Proposta baseada no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2007) e na Lei n° 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispõe sobre a Educação Ambiental e institui a Política Nacional de Educação Ambiental. 31 VI – Estímulo e fortalecimento de uma consciência crítica ao redor da atividade científica; VII – Desenvolvimento de habilidades necessárias para discussão e avaliação de questões emergentes da bioética; VIII – Aprimoramento do senso de responsabilidade e de urgência em relação às questões bioética. Com esse propósito é possível utilizar o cinema como recurso para educação bioética, isto é, como forma de disseminação cultural pela formação do sujeito ético, tal como se manifesta no ideário grego, que considera a educação como um bem cultural (Paidéia), indo assim ao encontro do que vem sendo proposto pelos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), já que a bioética não é uma nova ética, mas um desdobramento desta em relação ao papel da ciência na sociedade. A reflexão ética traz à luz a discussão sobre a liberdade de escolha. A ética interroga sobre a legitimidade de práticas e valores consagrados pela tradição e pelo costume. Abrange tanto a crítica das relações entre os grupos, dos grupos nas instituições e perante elas, quanto à dimensão das ações pessoais. Trata-se, portanto, de discutir o sentido ético da convivência humana nas suas relações com várias dimensões da vida social: o ambiente, a cultura, a sexualidade e a saúde. (BRASIL, 1997, p. 25). O filme Mar Adentro, inspirado na autobiografia de Ramón Sampedro, Cartas do Inferno, traz à tona a polêmica em torno da morte assistida, tema caro à bioética. Além de comover platéias do mundo inteiro, o filme trouxe a público uma série de questionamentos éticos sobre a vida e a morte, dentre as quais se destacam: qual o valor da vida humana quando marcada por deficiências que tolhem a liberdade e a autonomia? O que fazer quando não se encontra mais motivos para viver? Continuar a viver tentando ressignificar a vida seria possível ou a opção pelo suicídio assistido seria desejável como o fez Ramon Sampedro? (PESSINI, 2008, p. 55). A película evidencia a complexidade do debate bioético na contemporaneidade. Abordagens dilemáticas em torno da vida, da morte, da eutanásia, do direito de morrer com dignidade, implicam os campos da ética, bioética, estendendo-se ao biodireito. O cinema tem se mostrado eficiente para a compreensão do fenômeno jurídico em toda sua extensão, permitindo a interação, reflexão e transformação dos 32 valores sociais (LACERDA, 2007), o que nos leva a crer que o cinema possa ser explorado, também, no campo educacional, conforme se pretende demonstrar a seguir. 33 CAPITULO 2: EDUCAÇÃO, CINEMA E IMAGINÁRIO SOCIAL 2.1 Cenário conceitual A relação entre cinema e educação faz parte da própria história do cinema. Desde os primórdios da produção cinematográfica a indústria do cinema sempre foi considerada um poderoso instrumento de educação e instrução (MIRANDA; COPPOLA; RIGOTTI, 2006). O cinema como instrumento pedagógico pode permitir a abordagem de vários aspectos educacionais e culturais de grande valia. Por isso, sobretudo na era da comunicação audiovisual, os textos fílmicos têm sido importantes veículos para abordagem de temas relevantes para a sociedade contemporânea, uma vez que atinge, graças às suas características, um grande contingente de indivíduos em fase de formação educacional. Prova isso o imenso arsenal fílmico sobre as mais diversas temáticas contemporâneas, que exigem revisão e reflexão sobre modos de ação e novos comportamentos para resolução de problemas como crises ambientais, relações interpessoais, valores ético-morais e políticos. Embora a finalidade do cinema não seja especificamente a pedagógica, pode- se dizer que ele apresenta também um viés educativo, na medida em que aborda vários aspectos da vida humana. Assim, este trabalho pretende defender que o cinema pode e deve ser utilizado no âmbito educacional, levando-se em conta que ao presenciar um fato na telona, uma pessoa é surpreendida a tomar decisões até então inimagináveis, a se colocar no lugar do outro, a apreender princípios e padrões de conduta que regulam a vida em sociedade. Lima (2010), ao abordar as potencialidades pedagógicas do cinema, considera-o como forma de lazer, informação, cultura, e também um modo de pensar a vida. Por se tratar de uma ficção, um filme pode iluminar a realidade mundana e a complexa subjetividade humana. Os filmes cinematográficos são produções em que a imagem em movimento, aliada às múltiplas técnicas de filmagem e montagem e ao próprio processo de produção e ao elenco selecionado, cria um sistema de significações. São histórias que nos interpelam de um modo avassalador porque não dispensam o prazer, o sonho e a imaginação. Elas mexem com nosso inconsciente, embaralham as fronteiras do que entendemos por realidade e ficção. Quando 34 dizemos que o cinema cria um mundo ficcional, precisamos entendê- lo como uma forma de a realidade apresentar-se. (FABRIS, 2008, p. 118). Muitas vezes a temática abordada em um filme é conduzida de forma a envolver o imaginário do espectador, por meio de recursos fictícios. Oliveira (2006), ao considerar a influência do cinema no imaginário científico, destaca que as ficções científicas são as primeiras que pensamos quando se discute ciência no cinema. Mas ela não é, obviamente, o único gênero de filme a projetar imagens sobre a ciência, os cientistas ou as sociedades neles centrada. Filmes de aventuras, dramas, comédias e desenhos têm também sua parcela de contribuição na formação de estereótipos, modelos e expectativas que acabam por se constituir como referências comuns pelas quais a ciência e a técnica são percebidas por grande parte da sociedade, compondo assim o arsenal simbólico no qual a opinião pública vislumbra e discute os rumos e os limites dos empreendimentos científicos e tecnológicos. (OLIVEIRA, 2006, p. 137). Para Suppia (2006), um filme de ficção, seja ele científico ou não, não tem que, obrigatoriamente, ficar restrito ao conhecimento. Tão pouco importa se as ideias nele contidas sejam verdadeiras, pois o que interessa é a construção de uma lógica interna. Assim, não há compromisso direto com a educação, mas sim com a liberdade da imaginação. Levando-se em conta que o gênero desperta no público o interesse pela ciência e natureza, ele pode exercer certa influência na educação bioética. Existem várias linhas de pesquisas educativas que se pautam no cinema e já temos provas de que ele dispara sentimentos e pensamentos mais amplos, gerando maior aprendizagem. O uso da ficção científica como recurso didático no ensino formal vem sendo sugerido por diversos professores e pesquisadores na área de ensino, para ilustrar ou levantar questionamentos a respeito de determinados temas (PIASSI; PIETROCOLA, 2006). O cinema, assim, tem sido uma alternativa atraente para a discussão de temas bioéticos (CAMPOS, 2012; CEZAR et al., 2011; GUILHEM et al., 2007; ALARCÓN et al., 2007; BLASCO et al., 2011), o que nos faz acreditar que o cinema também possa favorecer uma abordagem jurídica desses temas, como se tentará provar com a leitura do filme Mar Adentro. 35 A perspectiva sugerida neste trabalho para a exploração do cinema como recurso educacional é por meio do imaginário social, como o proposto por Díaz (1996), visto que o cinema, ao designar identidades, distribuir papéis e exprimir crenças, não apenas informa acerca da realidade, mas, ao mesmo tempo, constitui um apelo à ação, um apelo a comportar-se de determinada maneira (Oliveira, 2006). Ou seja, o cinema possibilita a reflexão, a reavaliação e a ressignificação do imaginário instituído socialmente. 2.2 O imaginário social como modelos sociais padronizados A questão do imaginário vem assumindo especial função e particular importância nos estudos das ciências humanas e sociais. Estudos e pesquisas na área da educação têm destacado ênfases à compreensão do imaginário social e de suas implicações no processo pedagógico (SILVA FILHO, 1995). Por suas relações com a linguagem, com a ideologia e com as representações sociais e, principalmente, por seu papel na orientação de condutas e das práticas sociais, o imaginário social constitui elementos essenciais à análise dos mecanismos que interferem na eficácia do processo educativo (ALVES-MAZZOTTI, 2008). O termo "imaginário" tem significados diferentes para cada um de nós. Para uns, o imaginário é tudo o que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade dura e concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Alguns representam o imaginário como um resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Outros o vêem apenas como uma manifestação de um engodo fundamental para a constituição identitária do indivíduo. (BARBIER, 1994, p. 15). Não é tarefa fácil definir o que seja imaginário social, porém, de maneira geral, os autores referem-se a uma instância onde circulam os mitos, as crenças, os símbolos e todas as ideias e concepções que se relacionam ao modo de viver de uma sociedade (SILVA, 2007). A imaginação é entendida como uma atividade de reconstrução do real, a partir dos significados que atribuímos aos acontecimentos ou das repercussões que estes nos causam (FRAIZ, 2011). 36 Diversos autores procuram definir o conceito de imaginário e revelam, em certos casos, significados bastante diferenciados sobre esse termo, pois tais conceitos podem ter significados diferentes para cada pessoa e podem ainda ser entendidos sob diferentes pontos de vista, dependendo do contexto em que se inserem (HOELLER, 2002). Para Taylor (2010), imaginário social é o modo como as pessoas imaginam a sua existência social, como elas se acomodam umas às outras em seu ambiente social e incorporam um sentido das expectações normais que temos uns dos outros, o tipo de compreensão comum que nos possibilita levar a cabo práticas coletivas que constituem a nossa vida social. Bronislaw Baczko (1985) assinala que é por meio do imaginário que se podem atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades esboçam suas identidades e objetivos, detectam seus inimigos e, ainda, organizam seu passado, presente e futuro. O campo clássico de estudo do imaginário social, segundo Backso, é formado por três autores: Marx com a intenção desmistificante e utilizando o conceito de ideologia; Dukheim demonstrando a relação entre as estruturas sociais e as representações coletivas e o modo como estas estabelecem a coesão social e Weber mostrando a questão do sentido que os atores sociais atribuem às suas ações. O campo é ampliado com a contribuição da psicanálise mostrando a imaginação como uma atividade necessária ao indivíduo, da antropologia estrutural mostrando como a cultura pode ser considerada como um sistema simbólico, pela história das mentalidades e por outras disciplinas. (SERBENA, 2003, p. 3-4). O imaginário social seria, portanto, uma espécie de linguagem que a sociedade cria de si. A forma de um grupo, uma comunidade, uma sociedade se enxergar; a base na qual cada sociedade elabora a imagem de si mesma e do universo em que vive. Enquanto imagem, atua, portanto, como uma espécie de representação da realidade (MIELKI, 2010). Como um sistema simbólico, o imaginário social reflete práticas sociais em que se dialetizam processos de entendimento e de fabulação de crenças e ritualizações. Produções de sentidos que circulam na sociedade e que permitem a regulação de comportamentos, de identificação, de distribuição de papéis sociais (FERREIRA; EIZIRIK, 1994). 37 Carvalho (1998) destaca que a manipulação do imaginário social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidade coletiva, destacando que não foi por acaso que a Revolução Francesa, em suas várias fases, tornou-se um exemplo clássico de tentativa de manipular os sentimentos coletivos no esforço de criar um novo sistema político, uma nova sociedade, um novo homem. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça, mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro. O imaginário social é constituído e se expressa por ideologias e utopias, símbolos, alegorias, rituais e mitos. Símbolos e mitos podem, por seu caráter difuso, por sua leitura menos codificada, tornar-se elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos coletivos. Na medida em que tenham êxito em atingir o imaginário, podem também plasmar visões de mundo e modelar condutas. A manipulação do imaginário social é importante principalmente nos momentos de mudança social e política, em momentos de redefinição de identidades coletivas. (CARVALHO, 1998, p. 10-11). Portanto, a compreensão do imaginário social e sua possível manipulação pode propiciar uma nova visão de mundo e, consequentemente, conferir novos sentidos às práticas sociais. E a educação poder ser um caminho para isso. Quais são justamente as implicações, quando uma teoria penetra e transforma o imaginário social? Quase sempre as pessoas empreendem, improvisam ou são induzidas a novas práticas. Estas ganham sentido em virtude da nova visão, que começou por ser articulada na teoria; esta visão é o contexto que confere sentido às práticas. Por isso, a nova compreensão torna-se acessível aos participantes de um modo que antes não existia. Começa por definir os contornos do seu mundo e pode, no fim das contas, vir a impor-se como caucionada configuração das coisas, demasiado óbvia para ser digna de menção. (TAYLOR, 2010, p. 37). Para nós, o imaginário social, baseando-se na definição de Esther Díaz (1996), corresponde à concepção de mundo apreendida a partir de uma complexa rede de relações entre discursos e práticas sociais que interage com as individualidades e se constitui a partir das coincidências e/ou resistências valorativas das pessoas, produzindo, assim, os valores, as crenças, os ideais que regulam as condutas das pessoas. 38 Comportamentos, é claro, realizam as pessoas, mas aspirando a certos ideais ou modelos que se consideram dignos de serem seguidos. Esses paradigmas são as ideias que regulam a educação, as aspirações, as expectativas e os valores éticos, estéticos, econômicos, políticos e religiosos de uma comunidade. Entretanto, essas categorias não vêm do nada, mas surgem em função do imaginário coletivo. Existe uma interação entre valorações individuais e valoração coletiva. (DÍAZ, 1996, p. 14, tradução nossa)5. Por se tratar da construção de modelos sociais concebidos padronizadamente, esse imaginário social é fomentado pelos meios de comunicação em massa, dentre os quais se destaca o cinema. O termo, na concepção Esther Díaz, instala-se nas distintas instituições que compõem a sociedade, atuando em todas as instâncias sociais. Trata-se de mecanismo que permite compreender as condutas das pessoas que aspiram a certos ideais ou modelos, considerados dignos de serem seguidos. Esses modelos constituem, então, os seus paradigmas reguladores (PECHULA, 2007). Da interação entre esses discursos e práticas sociais surgem valores, apreciações acerca da realidade, que são a razão de ser da conduta, constituindo um dispositivo imaginário que se torna um referencial para balizar as diversas situações. Assim, o ser humano, compreendido como um ser cultural, vai construindo ao longo do tempo os valores que direcionarão suas atitudes, seus comportamentos; exercício constante de valorar os valores, de comparar as alternativas de escolhas que lhe se apresentam. De acordo com Miguel Reale (1999), cada ser humano é guiado em sua existência pelo primado de determinado valor, pela supremacia de um foco de estimativa que dá sentido à sua concepção da vida. Valor implica sempre uma tomada de posição do homem e, por conseguinte, a existência de um sentido, de uma referibilidade. Tudo aquilo que vale, vale para algo ou vale no sentido de algo e para alguém. Os valores são entidades vetoriais, porque apontam sempre para um sentido, possuem direção para um determinado ponto 5 Las conductas, por supuesto, las realizan las personas, pero aspirando a ciertos ideales o modelos que se consideran dignos de ser seguidos. Esos paradgimas son las ideas que regulan la educación, las asperaciones, las expectativas y los valores éticos, estéticos, económicos, políticos y religiosos de una comunidad. Pero todas esas categorias no salieron de la nada, sino que se gestaron em función del imaginário colectivo. Existe uma interacción entre valoraciones individuales y valoración colectiva. 39 reconhecível como fim. Exatamente porque os valores possuem um sentido é que são determinantes da conduta. A nossa vida não é espiritualmente senão uma vivência perene de valores. Viver é tomar posição perante valores e integrá-los em nosso mundo, aperfeiçoando nossa personalidade na medida em que damos valor às coisas, aos outros homens e a nós mesmos. (REALE, 1988, p. 191). As percepções do mundo real ou do contexto social são registradas e conservadas na memória como imagens que são formadas a partir das experiências mantidas com o meio social e natural. Esse repertório de imagens vem a constituir o campo do imaginário individual e social (FERNANDES, 2007). Desse modo, anterior ao imaginário social, o homem é psique, é o lugar da imaginação individual do sujeito. A psique é o inconsciente e, portanto, ela não é a responsável pela construção das instituições e das significações imaginárias na sociedade. Existe um coletivo anônimo que determina o que é instituído: cada indivíduo nasce com valores já determinados. A própria linguagem é instituída. Não é no inconsciente que encontramos as origens das instituições. Leis, normas e tabus são impostos pelas instituições, pela sociedade. Mas a sociedade precisa da psique assim como a psique depende da sociedade, uma não diminui a outra. Tudo que encontramos no indivíduo foi socialmente construído, entretanto, para encontrar algo na psique que não tenha relação com o social, é preciso chegar até o ultimo estágio do inconsciente, onde encontraremos os desejos reprimidos, os afetos e as representações primitivas. As instituições procuram satisfazer as necessidades do inconsciente. (STIGGER, 2007, p. 112-113). O imaginário se faz presente na educação, antes de tudo, como dialética entre a imaginação individual do sujeito e imaginário social do coletivo anônimo. Sociedade e psique, na concepção de Castoriadis, são inseparáveis e irredutíveis. A educação, enquanto instituição social do indivíduo, consiste em fazer existir, para a psique, um mundo como mundo público e comum, sem, entretanto, absorver totalmente a psique na sociedade, mesmo porque seu modo de ser é radicalmente outro. A sociedade cumpre proporcionar à psique, isto é, ao sujeito, a possibilidade de encontrar sentido na significação social instituída, sem deixar de proporcionar-lhe, também, a possibilidade de um mundo privado, círculo mínimo de atividade "autônoma" e mundo de representação/afeto/intenção pelo qual, em grande medida, o indivíduo continua sendo o centro para si próprio. (CÓRDOVA, 1994, p. 34). 40 Finalizando com Salaini e Carvalho (2008), que discutiram a relação entre memória, mídia e imaginário social, afirmamos que é por meio do imaginário e do conjunto simbólico proposto por ele que é possível aos grupos e aos indivíduos a aquisição de posições no mundo. Assim, desponta o cinema como uma importante ferramenta para o estudo do imaginário social, com múltiplas possibilidades de exploração no campo educacional. 2.3 Apresentação do dispositivo metodológico De acordo com Kottow (2008), a ciência moderna, iniciada, sobretudo, com os experimentos de Galileu Galilei (1564-1642) e tendo como base as ideias de Francis Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1650) e Augusto Comte (1798-1857), manteve durante muito tempo a certeza de ser uma atividade objetiva, neutra e benéfica para a humanidade. Entretanto, os pressupostos de “inocuidade do conhecimento, de neutralidade científica, de convergência de racionalidade epistêmica e de progresso mostraram-se contestáveis pelos estudos em filosofia da ciência”. (CRUZ, 2011, p. 139). Essa ideia, esse imaginário social criado ao redor da atividade científica, não mais sobrevive na contemporaneidade, embora ainda esteja arraigada em nossa cultura, conforme relato de Ramón Sampedro, em seu livro Cartas do Inferno, obra que deu origem ao filme Mar Adentro. Aqueles que afirmam que a ciência tende a se transformar em imoral e soberba se enganam. A ciência nunca pode se transformar em imoral porque nasce do desejo humano de buscar a verdade. É absurdo que o ser humano sinta a necessidade imperiosa de conhecer a si mesmo cientificamente para acabar ser prejudicando. A razão, então, não teria sentido. Que alguns seres humanos utilizem os conhecimentos científicos para impor seu domínio imoral é algo muito diferente. (SAMPEDRO, 2005, p. 176). Hoje, é preciso pensar a ciência como uma atividade que sofre influências de fatores sociais, políticos e econômicos; estando imersa, portanto, num jogo de relações de poder. 41 As técnicas e as ciências são marginais, ou na melhor das hipóteses manifestam apenas o puro pensamento instrumental e calculista. As pesquisas não dizem respeito à natureza ou ao conhecimento, às coisas-em-si, mas antes a seu envolvimento com nossos coletivos e com os sujeitos. (LATOUR, 1994, p. 9) Em A Ordem do Discurso, a questão do poder começa a ocupar um lugar central no pensamento de Michel Foucault, e o ambiente compreendido pelas ciências da vida, especialmente a medicina e a psiquiatria, será o vetor das análises sobre o poder e a norma, pensando a norma como mecanismo de intervenção do poder. Fonseca (2012) destaca que o filósofo procurará, então, perceber as invasões das “práticas discursivas” enquanto “acontecimentos”, e, por estarem imersas em relações de poder, as “práticas discursivas” não são independentes das práticas do poder, ao contrário, são constituídas por estas. Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2012a, p. 8-9). Segundo Foucault, existe certo desnivelamento entre os discursos que perpassam a sociedade, os quais podem ser reconhecidos em nossa cultura. Em suma, pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades, uma espécie de desnivelamento ente os discursos: os discursos que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de ato novos de fala que os retomam, os transformam ou falam dele, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nós os conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de “literários”; em certa medida textos científicos. (FOUCAULT, 2012a, p. 21). Daí a importância do estudo do biodireito, pois ele aborda duas formas de discursos originários, o jurídico e o científico, que poderão induzir e influenciar os discursos que permeiam a sociedade, exercendo sobre estes uma espécie de pressão, ou seja, um poder de coerção. 42 Numa acepção foucaultiana o poder é um exercício ou jogo de forças instável e permanente, podendo o biopoder ser compreendido como poder sobre a vida (as políticas da vida biológica) e sobre a morte, ou seja, práticas que interferem diretamente sobre o viver e o morrer, dando origem a formas de controle que penetram as relações sociais de baixo para cima (SÁ, 2012). Com o bio-poder, o Estado moderno inclui a vida biológica – tanto ao nível individual dos corpos adestrados pelas disciplinas, como no registro genérico das populações, cujos ciclos vitais de saúde e morbidez, natalidade e mortalidade, reprodução, produtividade e improdutividade, devem ser calculados em termos de previdência e assistência social. É desse modo que, com a bio-política, a antiga soberania régia (que se encarnava no poder do monarca de fazer morrer e deixar viver) se converte num poder de fazer viver e deixar morrer. Mas nem por isso aquela violência congênita ao efetivo exercício do direito de vida e de morte se encontra derrogada pela bio-política e pela racionalidade do Estado contemporâneo. (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 285). Muito pelo contrário, continua dizendo o autor, para Foucault, ela continua ativa e operante em diferentes e insólitas ressignificações, como, por exemplo, no racismo político. Vocês compreendem, em conseqüência, a importância – eu ia dizer a importância vital – do racismo no exercício de um poder assim: é a condição para que se possa exercer o direito de matar. Se o poder de normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de passar pelo racismo. E se, inversamente, um poder de soberania, ou seja, um poder que tem direito de vida e de morte, quer funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia de normalização, ele também tem de passar pelo racismo. É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassinato direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. (GIACOIA JUNIOR, 2008, p. 285). Assim, de acordo com Chauí (1994, p. 283), na medida em que a razão se torna instrumental, “a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração da natureza e dos seres humanos”. As grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta, mas podem também ser 43 lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade. (...) Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistema de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema de livros, da edição, das bibliotecas, como a sociedade de sábios outrora, os laboratórios hoje. Essa vontade de verdade tende a exercer sobre os outros discursos uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. (FOUCAULT, 2012a, p. 15-17). Para tanto, é preciso compreender o biodireito nos pequenos poderes, que se constroem e se manifestam em rede. Essa estrutura do poder passa pela mais variadas hierarquias, sejam elas econômicas, políticas, culturais, morais, religiosas, sexuais. O poder passa pelo próprio corpo, daí ser possível falar, a partir do pensamento de Foucault, em um biopoder. É preciso investigar o biodireito como uma manifestação do poder que está nas leis e também fora delas, controlando as grandes decisões instauradoras da ordem e da exceção, monitorando a microfísica do poder (MASCARO, 2012). A vida física e biológica, ao contrário, que antes eram preocupações privadas da família, passou a fazer parte do interesse público do Estado. Assim a vida que os humanos têm em comum com os animais foi integrada na soberania e no poder do Estado que começou a desenvolver estratégias políticas para a sua gestão. Esse fenômeno foi denominado por Michel de Foucault como biopoder e biopolítica. (JUNGES, 2011, p. 172). Atualmente, o biopoder está sendo fortalecido pelas crescentes potencialidades das biotecnologias impulsionadas pelo mercado. A gestão técnica da vida cria poderes de agenciamento que potencializam estratégias biopolíticas na sociedade. O biopoder da atual tecnologia em gerar habilidades no domínio da vida é o desafio fundamental da bioética em sua tarefa de defender e proteger a vida. Por isso não se pode entender o surgimento e o papel da bioética sem relacioná-la com as dinâmicas do biopoder e da biopolítica (JUNGES, 2011). As perguntas profundamente humanas sobre o sentido da vida e sobre o sentido da morte são dadas a partir da filosofia e da teologia, e os conflitos de valores harmonizados pelo direito. Quando o desenvolvimento da biologia molecular torna possível a engenharia genética com um grande impacto econômico – já que afeta a agricultura, a alimentação e a indústria –, a política entra com força também 44 no diálogo bioético. Assim, a bioética se converte em biopolítica e biodireito, já que o direito passa ser o mecanismo regulador (SOARES, 2000). Conforme o exposto, se os dispositivos de poder nas democracias modernas conjugam estratégias biopolíticas com a emergência da força do poder soberano que transforma a vida em vida nua, é fato que a bioética e o biodireito devem ser instrumento de proteção das pessoas vulneradas (ARÁN; PEIXOTO JÚNIOR, 2007). O presente trabalho, portanto, pretende estudar tais dispositivos de poder a partir do cinema, por meio da leitura do filme Mar Adentro. Penafria (2009), ao discutir possíveis metodologias para a análise fílmica, afirma que, embora não exista uma metodologia universalmente aceita para se proceder à análise de um filme, é comum aceitar que analisar implica duas etapas importantes: em primeiro lugar decompor, ou seja, descrever e, em seguida, estabelecer e compreender as relações entre esses elementos decompostos. Diante dessa constatação, percebe-se que a análise fílmica não contém uma fórmula específica de trabalho. Ela é uma atividade subjetiva que varia de acordo com o filme e com o que se procura, sendo a metodologia baseada no principio de compreensão do filme e, logo, na interpretação dos elementos para a reconstrução do todo (STIGGER, 2007). Portanto, a construção do roteiro para a análise fílmica foi desenvolvida da seguinte forma: inicialmente, o filme Mar Adentro foi assistido diversas vezes, com o objetivo de identificar pontos importantes que deveriam ser sistematizados, sendo elaborada, logo após, uma ficha contemplando as seguintes informações: a) Relatório técnico sobre o filme (título original, ano de lançamento, diretor, produção, distribuidora, atores e respectivos personagens, prêmios e demais informações técnicas); b) Sinopse do filme, com sua descrição sintetizada; c) Contextualização da história do filme e de sua produção (mostrando os fatos históricos ou fictícios que deram origem à película); d) Estabelecimento e compreensão das relações entre os discursos científico, político, jurídico e filosófico-existencial, com o intuito de apresentar a contribuição pedagógica do filme na transmissão de valores bioéticos e suas respectivas participações no campo educacional. Mar Adentro mobiliza discursos contraditórios em relação ao direito de morrer, fazendo prevalecer o ponto de vista segundo o qual a morte assistida é a 45 melhor opção em casos extremos. Ao passo que o discurso pró-eutanásia é enunciado principalmente pelo protagonista Ramón Sampedro, os discursos discordantes são mobilizados a partir do senso comum, do campo religioso e do campo jurídico, enunciados por diferentes personagens ao longo da trama (CARVALHO, 2013). Tendo em vista a diversidade de discursos e a forte carga dramática e emocional com que a questão do direito de morrer é tratada, achamos por bem incluir na análise a visão genuína de Ramón Sampedro, relatada em seu livro Cartas do Inferno, para entender como a complexa rede de relações entre discursos e práticas sociais abordadas no filme interage com a sua individualidade. Por isso, alertamos o leitor que ao longo da análise as cenas de maior destaque foram transcritas e, na medida do possível, a visão particular de Sampedro colocada em confronto. Nesse sentido, a leitura emprega tanto as “falas” do filme como da obra, sem fazer distinção entre os gêneros discursivos. O emprego justifica- se pela intenção central da análise, que foi a de compreender o imaginário social sobre a morte assistida a partir dos discursos empregados pelos diferentes sujeitos envolvidos – Sampedro, sua família, a Igreja, o Estado e a ONG Associação Direito a Morrer Dignamente. Assim, foi desenvolvido um estudo do biodireito a partir da análise do filme Mar Adentro, utilizando-se para isso a concepção de dispositivo, de Michel Foucault. Como ferramenta analítica, o conceito de dispositivo é desenvolvido por Foucault em sua obra História da Sexualidade. Entretanto, o sentido e a função metodológica do termo é feita em Microfísica do Poder. Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando−lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um 46 tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. (...) Disse que o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe que se trata no caso de uma certa manipulação das relações de força, de uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las etc. O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (FOUCAULT, 2012b, p. 364-67). Partindo da definição de Michel Foucault, Giorgio Agamben (2009, p. 29) sintetizou em três pontos a definição de dispositivo: a) É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa ou mesmo título: discurso, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos; b) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder; c) Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica na medida em que sua emergência, constituição e constante reconfiguração tem como condição de possibilidade a problematização de alguma experiência humana, uma experiência que se torna duvidosa em um determinado momento histórico e para a qual é preciso criar racionalidades estratégicas para transformar indivíduos em sujeitos de determinado tipo. (SILVA; MÉLLO, 2012, p. 209). A partir dessa perspectiva, colocamo-nos a pensar acerca de um dispositivo que diz respeito a todo um aparato jurídico criado e constantemente rearranjado para dar conta de questões bioéticas. 47 CAPÍTULO 3: BIOÉTICA E MORTE ASSISTIDA 3.1 Morte assistida: aspectos filosófico-existenciais A discussão sobre o início e o fim da vida humana sempre foram temas recorrentes da humanidade. Vida e morte são dois aspectos de um mesmo processo, de uma mesma condição, a humana. A morte é parte integral da vida. Assim sendo, acredito razoável supor-se que a morte deve ter uma proteção, prevista no ordenamento jurídico. É consensual a aceitação, aliás inscrita na "Declaração dos Direitos Humanos", de que todo ser humano deve ser tratado humanamente. Isso implica que cada ser humano – sem distinção de sexo, idade, cor, língua, religião, origem étnica ou social – possui uma dignidade inalienável e intocável. E como conseqüência, espera-se que cada um, indivíduo ou o Estado, se veja obrigado a honrar essa dignidade e garantir sua efetiva proteção. Pode-se, prosseguindo na argumentação, esperar que o direito de morrer com dignidade deva também ser tão bem protegido como outro direito vinculado ao viver. Assim, interdições ditadas pelo Estado, que causassem uma morte dolorosa e mesmo atroz a um doente terminal, deveriam ser consideradas como um ultraje contra a dignidade humana. Se a morte faz parte da vida, o direito de morrer significa o direito de viver os instantes finais com dignidade. As questões relacionadas à terminalidade da vida, ao tratamento de pacientes terminais têm sido tratadas tradicionalmente pela medicina e quanto à dimensão ética dessas questões tem-se buscado um fundamento e argumentos, de modo proeminente, em correntes doutrinárias religiosas. Hoje, no entanto, não se pode mais ignorar o processo crescente de secularização. (VON ZUBEN, 1998). Ronald Dworkin (2003) defende que o ser humano caminha ao encontro de uma separação entre questões r