THIAGO SANTOS DUARTE ANÁLISE DO ENSINO DE QUÍMICA NA ESCOLA DO CAMPO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL (BRASIL) A PARTIR DA PERSPECTIVA HUMANÍSTICA DA EDUCAÇÃO Ilha Solteira 2020 Campus de Ilha Solteira THIAGO SANTOS DUARTE ANÁLISE DO ENSINO DE QUÍMICA NA ESCOLA DO CAMPO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL (BRASIL) A PARTIR DA PERSPECTIVA HUMANÍSTICA DA EDUCAÇÃO Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Ensino e Processos Formativos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientadora: Profa. Dra. Carolina Buso Dornfeld Ilha Solteira 2020 THIAGO SANTOS DUARTE ANÁLISE DO ENSINO DE QUÍMICA NA ESCOLA DO CAMPO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL (BRASIL) A PARTIR DA PERSPECTIVA HUMANÍSTICA DA EDUCAÇÃO Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos, junto ao Programa de Pós- Graduação em Ensino e Processos Formativos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientadora: Profa. Dra. Carolina Buso Dornfeld Comissão Examinadora Profa. Dra. Carolina Buso Dornfeld UNESP – Ilha Solteira, SP. Orientadora Profa. Dra. Adriana Marques de Oliveira UFGD – Dourados, MS. Profa. Dra. Rosemary Rodrigues de Oliveira UNESP – Jaboticabal, SP. Ilha Solteira 2020 Deus nos concede, a cada dia, uma página de vida nova no livro do tempo. Aquilo que colocarmos nela, corre por nossa conta. Chico Xavier Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Paulo Freire AGRADECIMENTOS Dedico este trabalho primeiramente à Deus, onipotente e onipresente em minha vida, autor do meu destino, guia e socorro nas horas de angústia e aflição. Meus objetos de estudo só reforçam a certeza de que estás comigo em todos os momentos e me deste a graça de entender a natureza que nos deste como presente. Aos meus pais, Nivaldo e Ilda, meus primeiros educadores, sempre incentivando aos estudos e ao caminho correto a seguir. A eles, que sempre trabalharam incansavelmente para proporcionar uma vida digna a seus filhos e oportunizar seguir a carreira escolhida pelos mesmos. Agradecimentos em especial à minha mãe Ilda por inspirar o caminho docente que hoje estou trilhando. Que nunca mediu esforços para educar mesmo à longas distâncias, enfrentando chuva e sol em uma bicicleta para exercer a profissão que Deus lhe concedeu, na zona rural da cidade de Três Lagoas-MS. A minha irmã Thais, também professora, que me presenteou com o diamante mais lindo da face da terra, minha sobrinha Lívia Duarte. Aos avós Prozopino Antônio dos Santos (In Memorian) e Maria Vicente Soledade (In Memorian), que sempre me apoiaram desde a jornada da graduação até aqui, estes que choravam todas as vezes que tinha de voltar para Dourados e se alegraram muito quando pude voltar e ficar perto da família novamente. A minha querida orientadora e Profa. Dra. Carolina Buso Dornfeld, responsável por essa vitória, mestre e amiga, compreensiva em todos os momentos, oportunizando o meu crescimento pessoal e profissional. A todos os momentos de orientação e reflexão, sempre preocupada com o ensino, paciente nas minhas falhas e otimista nos momentos de maiores dificuldades desta pesquisa. As professoras Doutoras Adriana Marques de Oliveira e Rosemary Rodrigues de Oliveira por terem participado e contribuído com seus conhecimentos na Banca de Qualificação e por aceitarem participar da Banca de Defesa dessa Dissertação. Agradecimentos especiais a amiga Fabiani Soares da Silva, que hoje considero como uma irmã do coração, que nos momentos mais difíceis sempre proferiu palavras de fé e incentivo e que foi essencial nesta caminhada. A Escola Estadual Francisco Afonso Xavier Trannin, aos alunos no terceiro ano do Ensino Médio e a todos os seus funcionários que me receberam de braços abertos e muito contribuíram para a conclusão desta pesquisa. E por fim, a Profa. MSc. Diane Cristina Araújo e, novamente a Profa. Dra. Adriana Marques de Oliveira que mesmo longe me incentivaram a concluir esta jornada, oportunizando importantes momentos de reflexão sobre o ensino de química na Educação do Campo durante minha graduação, momentos estes que foram de grande contribuição para novas reflexões durante esta jornada. E a todos que contribuíram direta ou indiretamente na elaboração desta pesquisa. Muito Obrigado! RESUMO Este trabalho permeia discussões acerca do currículo de química na Educação do Campo a partir da análise dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) das Escolas do Campo e do Referencial Curricular do estado de Mato Grosso do Sul (MS) sob a perspectiva humanística de Paulo Freire. Envolveu também a construção de Sequência Didática abordando a temática dos agrotóxicos para se trabalhar o conteúdo dos grupos funcionais, sendo estes componentes curriculares do Ensino de Química no Ensino Médio. A pesquisa foi norteada pela concepção educacional Freireana e buscou valorizar a dialogicidade e a contextualização do tema, visando contribuir com propostas temáticas significativas que reflitam diretamente o nsino de Química para a Educação do Campo. Como percurso metodológico adotamos a análise documental, na qual foram analisados os PPP das Escolas do Campo de MS, bem como a análise de questionário respondido por alunos do terceiro ano do Ensino Médio, que versava sobre a investigação do contexto cotidiano dos alunos envolvidos e também acerca dos grupos funcionais, agrotóxicos e produção agroecológica. Também foi proposta uma Sequência Didática elaborada a partir da metodologia dos Três Momentos Pedagógicos. Verificou-se pela análise dos PPP que os mesmos não possuem um padrão de produção para todo o estado, cada escola possui a liberdade de produzir os itens que acham necessários conter em seu documento. Foi observado ainda que a maioria das Escolas do Campo que citam os projetos trabalham com a horta escolar como meio coletivo de produção do conhecimento científico e desenvolvimento de projetos científicos (Feira de Ciências). A análise das respostas dos alunos indicaram que a maior parte sabem definir o que é um agrotóxico e qual a sua utilização no meio rural. Foi verificado ainda, que estes tipos de produtos altamente tóxicos fazem parte do cotidiano de muitos estudantes, não só os sujeitos envolvidos na pesquisa como a comunidade escolar como um todo. Sendo assim, como produto elaborou-se uma Sequência Didática utilizando os Três Momentos Pedagógicos, e um Guia Químico de Inseticidas Naturais, que contemplam o conteúdo curricular dos grupos funcionais, com uma visão ampliada para agregar conceitos inerentes à agroecologia, como por exemplo, a produção de inseticidas naturais. Palavras-chave: Agrotóxicos. Inseticidas naturais. Sequência didática. Material didático. Ensino médio. ABSTRACT This work permeates discussions about the chemistry curriculum in Rural Education based on the analysis of Pedagogical Political Projects (PPP) in the Schools of the Countryside and the Curriculum Reference of the state of Mato Grosso do Sul (MS) under the humanistic perspective of Paulo Freire. It also involved the construction of Didactic Sequence addressing the theme of pesticides to work on the content of functional groups, these being curricular components of Chemistry Teaching in High School. The research was guided by the Freirean educational concept and sought to value the dialogicity and contextualization of the theme, aiming to contribute with significant thematic proposals that directly reflect the teaching of chemistry for rural education. As a methodological path, documental analysis was adopted, in which the PPPs of the Coutryside´s Schools of MS were analyzed, as well as the analysis of a questionnaire answered by students of the third year of high school, which dealt with their previous knowledge about the functional groups, pesticide and agroecological production. It was also proposed a Didactical Sequence elaborated from the methodology of the Three Pedagogical Moments (Paulo Freire). We verified by the analysis of the PPP that they do not have a production standard for the entire state, each school has the freedom to produce the items that they think necessary to contain in their document. It is also observed that the majority of schools in the countryside that mention the projects work with the school garden as a collective means of producing scientific knowledge and developing scientific projects (Science Fair). The analysis of the students' responses indicated that all of them know how to define what a pesticide is and how it is used in rural areas. We also observed that these types of highly toxic products are part of the daily lives of many students, not only the subjects involved in the research, but also the school community as a whole. Therefore, as a product a Didactical Sequence was elaborated using the Three Pedagogical Moments, and a Chemical Guide of Natural Insecticides, which contemplate the curricular content of the functional groups, with an expanded vision to aggregate concepts inherent to agroecology, such as, for example, production of natural insecticides. Keywords: Pesticides. Natural insecticides. Didatical sequence. Didactic material. High school. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. Portal de busca dos Projetos Políticos Pedagógicos. .................................................48 Figura 2 - Localização da região do Bolsão no estado de Mato Grosso do Sul. ....................... 66 Figura 3 - Vista aérea do distrito de Arapuá ........................................................................... 67 Figura 4 - Escola Estadual Afonso Francisco Xavier Trannin. ................................................ 68 LISTA DE QUADROS E TABELAS Quadro 1. Resultados da análise das 14 questões contidas no questionário, apesentando a categorização e unidades de significado...................................................................................72 Tabela 1. Tabela a ser preenchida pelos alunos.......................................................................79 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AECAMS - Associação dos Educadores de Colônias, Acampamentos e Assentamentos do Mato Grosso do Sul CBAR - Comissão Brasileiro-Americana de Educação de Populações Rurais CEB - Câmara de Educação Básica CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNE - Conselho Nacional de Educação CPT - Comissão Pastoral da Terra ENERA - Encontro de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBRA - Instituo Brasileiro de Reforma Agrária INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INDA - Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC - Ministério da Educação MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MS - Mato Grosso do Sul PROCAMPO - Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo PRONERA - Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária PPP - Projetos Políticos Pedagógicos PPC – Projeto Pedagógico do Curso SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade SUPRA - Superintendência de Política de Reforma Agrária TVT - Terra, Vida e Trabalho UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFS - Universidade Federal de Sergipe UFBA - Universidade Federal da Bahia UNB - Universidade de Brasília SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14 2 REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................... 18 2.1 A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL................................................................ 18 2.1.1 Educação do Campo: raízes históricas e epistemológicas ...................................... 18 2.1.2 Contexto histórico da Educação do Campo no Brasil ............................................ 19 2.1.3 Aspectos sociais e epistemológicos da Educação no Campo no Brasil ................... 22 2.1.4 O Campo brasileiro construído por meio das estatísticas ...................................... 31 2.1.5 Educação do Campo no Brasil: marcos normativos contemporâneos e estatísticos.............................................................................................................. ..................33 2.2 EDUCAÇÃO DO CAMPO A PARTIR DA PERSPECTIVA HUMANÍSTICA DA EDUCAÇÃO ....................................................................................................................... 41 3 CAMINHOS METODOLÓGICOS ....................................................................... 45 3.1 CAMINHOS PARA A ANÁLISE DOCUMENTAL ACERCA DO PANORAMA ATUAL DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL ....... 45 3.2 CAMINHOS PARA A ANÁLISE DE DADOS DOS PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS (PPPS) DAS ESCOLAS DO CAMPO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL ............................................................................................................................... 47 3.3 CAMINHOS PARA A INVESTIGAÇÃO DO CONTEXTO DA ESTRUTURA DA UNIDADE ESCOLAR E O PERFIL DAS CONCEPÇÕES DOS ALUNOS DA ESCOLA PARCEIRA ......................................................................................................................... 48 3.4 METODOLOGIA DE ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS PARTIR DOS QUESTIONÁRIOS APLICADOS AOS ALUNOS DO 3º ANO DO ENSINO MÉDIO ......... 49 3.5 PERCURSO METODOLÓGICO PARA ELABORAÇÃO DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA COMO UM PRODUTO EDUCACIONAL .......................................................................... 51 3.5.1 Três Momentos Pedagógicos ................................................................................. 51 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO ........................................................................... 54 4.1 PANORAMA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL ..................................................................................................................................... 54 4.2 O ENSINO DE QUÍMICA PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL ................................................................................................... 57 4.3 ESTUDO DA ESTRUTURA DE ENSINO DE ESCOLAS DE CAMPO DO MATO GROSSO DO SUL ............................................................................................................... 59 4.3.1 O ensino de ciências e química nas escolas do campo no estado de Mato Grosso do Sul sob a perspectiva do Projeto Político Pedagógico das instituições ........................ 59 4.3.2 Estudo da realidade local, infraestrutura e perfil dos alunos da Escola do Campo participante da pesquisa .................................................................................................... 65 4.3.3. Concepções Iniciais dos Estudantes sobre os Agrotóxicos e a Agroecologia: codificações a partir da análise dos questionários iniciais ................................................ 71 4.4 ESTRUTURAÇÃO DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA COMO UM PRODUTO PEDAGÓGICO ................................................................................................................... 76 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 81 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 84 APÊNDICE A: ELEMENTOS DOS PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS UTILIZADOS NA ANÁLISE DOCUMENTAL .............................................................. 93 APÊNDICE B: QUESTIONÁRIO APLICADO AOS ALUNOS DO 3º ANO DO ENSINO MÉDIO ............................................................................................................. 111 APÊNDICE C: PLANOS DE AULA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA ............................ 113 APÊNDICE D: GUIA QUÍMICO DE INSETICIDAS NATURAIS ELABORADO PARA AUXILIAR NO DESENVOLVIMENTO DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA PROPOSTA ..................................................................................................................... 125 ANEXO A - PROPOSTA CURRICULAR DO MATO GROSSO DO SUL PARA O ENSINO DE QUÍMICA NO ENSINO MÉDIO E POSSIBILIDADES DE TEMÁTICAS A SEREM ABORDADAS NA EDUCAÇÃO DO CAMPO ............................................ 141 14 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como origem a busca por novos caminhos na área do ensino em Escolas do Campo, em particular o Ensino de Química, haja vista a necessidade da articulação da realidade em que os alunos vivem e os conteúdos estudados. Sendo a pesquisa de cunho qualitativo, a mesma busca valorizar o ambiente natural como sua fonte direta de dados, buscando analisar as possibilidades e desafios ao se abordar os conteúdos de química a partir de uma adaptação curricular buscando a ressignificação do mesmo. O currículo de química é embasado na observação da natureza, no estudo da matéria e de seus respectivos fenômenos, estes, muitas vezes, ocorrem no dia a dia sem que os alunos percebam ou consigam relacioná-los aos conteúdos que se estuda na escola. Quando se fala em Escolas do Campo estamos tratando de uma realidade bastante restrita, onde a falta de profissionais em áreas específicas, como no componente curricular de química, torna o ensino e a aprendizagem, muitas vezes, descontextualizado e menos atrativo, dificultando este processo.. Tendo em vista as necessidades de articulação entre o referencial curricular e o cotidiano vivido pelos estudantes das Escolas de Campo, o presente trabalho busca contextualizar os conteúdos de funções orgânicas, especialmente dos Hidrocarbonetos, utilizando a temática dos Agrotóxicos, proporcionando um movimento reflexivo a partir da proposta de uma Sequência Didática estruturada com base na perspectiva Freireana. A proposta de Freire parte do estudo da realidade e da organização dos dados, de modo a promover o diálogo entre os envolvidos. Nesse sentido, destacamos os Agrotóxicos como uma problemática a ser estudada em sala de aula, a qual possibilita as articulações supracitadas. Considerando a região estritamente rural e predominantemente composta pela agricultura familiar, a proposta buscou uma reflexão por meio do aporte teórico existente, sobre a relação da agroecologia, o ambiente e os alimentos que os pais ou os próprios alunos produzem na propriedade em que vivem. Esta pesquisa se embasa na propositura de um Ensino de Química problematizador e contextualizador, mostrando que os conteúdos estudados em sala de aula não se distanciam do cotidiano vivido pelos mesmos. Tendo em vista que o meio ambiente se constitui como um sistema natural que está ligado diretamente à qualidade de vida da população humana e um desequilíbrio causado no mesmo, influência diretamente na permanência da vida na Terra, é imprescindível que estasdiscussões sejam abordadas em sala de aula, não só nos componentes curriculares que 15 envolvem o Ensino de Ciências, mas em todos os componentes curriculares trabalhados em sala de aula. Temos no ambiente escolar um espaço onde, a todo o momento, se pensa e se vivencia os processos de construção do conhecimento, e é neste espaço, que professores e alunos podem vivenciar o pensamento crítico quanto as questões socioambientais e as relações que a humanidade tem hoje com o meio ambiente, buscando a percepção da importância de suas ações para a manutenção e subsistência nesse meio (SILVA et al., 2014). A Química como ciência está presente no nosso cotidiano desde o início das civilizações, tendo em vista a busca da espécie humana pelo fogo e, posteriormente, os processos de manutenção da sobrevivência, tais como o cozimento dos alimentos, processos fermentativos, tingimento, curtimento do couro, entre outros (SILVA et al., 2014). Portanto, o Ensino de Química possui papel fundamental para a construção do conhecimento e a formação de cidadãos mais críticos e reflexivos com as situações vivenciadas no seu dia a dia. O processo de construção do conhecimento químico deve desenvolver a capacidade de tomada de decisão do aluno, o que implica a vinculação do conteúdo trabalhado ao seu contexto social (SANTOS; SCHNETZLER, 1996). As temáticas ambientais como propulsoras da construção do conhecimento químico, propiciam ao aluno não só um conhecimento teórico em relação a fórmulas e estruturas, mas também buscam desenvolver um pensamento voltado as relações positivas que o ser humano deve estabelecer com o ambiente em que vive, ou seja, a química como componente curricular proporciona aos estudantes desenvolver o pensamento crítico em relação as temáticas ambientais, devendo ainda proporcionar o desenvolvimento da capacidade de tomada de decisão do aluno. Quando trabalhamos com as temáticas que abordam os problemas ambientais cotidianos em uma escola do meio rural, esta construção do conhecimento químico ganha ainda mais significado, pois os alunos do campo vivenciam as mais diferentes formas de exploração dos recursos da natureza. Os alunos da zona urbana estão inseridos em um contexto onde o meio ambiente é fonte de recursos para a industrialização e a expansão das grandes cidades. Assim, estes vivem “na pele” as consequências da urbanização, tais como a grande emissão de gases poluentes, chuva ácida e também o desmatamento para tornar essa expansão dos grandes centros uma realidade. Já no campo, os alunos têm as consequências da contaminação dos solos e dos rios, o uso indiscriminado dos agrotóxicos na lavoura, desmatamento dentre outros problemas ambientais. Deste modo, abordar as relações da sociedade com o meio ambiente nas aulas de 16 Química das Escolas do Campo, vai ao encontro de um ensino contextualizado que visa valorizar as relações sociais e cotidianas vividas pelos estudantes da zona rural, buscando possibilitar uma aprendizagem significativa, pautada na dialogicidade e no desenvolvimento do pensamento crítico. De maneira particular, a construção do conhecimento químico se desenvolve em estreita ligação com o meio cultural e natural, em todas as dimensões, como implicações ambientais, sociais, econômicas, ético-políticas, científica e tecnológicas (BRASIL, 2006, p.107). Considerando o exposto, a presente pesquisa teve por objetivo geral analisar o ensino de ciências e de química nas Escolas do Campo do estado de Mato Grosso do Sul por meio da análise documental dos Projetos Políticos Pedagógicos e do Referencial Curricular do Estado de Mato Grosso do Sul das Escolas do Campo. Além disso, investigar o contexto dos educandos acerca da temática dos agrotóxicos buscando evidenciar a perspectiva humanística no Ensino de Química tanto nos documentos oficiais, quanto pela visão dos alunos. Como objetivos específicos foram delineados: - Investigar o contexto dos educandos e conceitos relacionados ao Ensino de Ciências e química relacionados às Funções Orgânicas (Hidrocarbonetos, Funções Oxigenadas e Nitrogenadas) e Questões Ambientais (tais como: horta na escola, agrotóxico e agroecologia) nos Projetos Político Pedagógicos de Escolas do Campo do Estado do Mato Grosso do Sul; - Elaborar uma Sequência Didática e um Material Didático em Ensino de Química, a respeito do tema geral das funções orgânicas, com ênfase nas Questões Ambientais que relacionam a agroecologia e o uso de agrotóxicos. O texto dessa dissertação está organizado em oito seções, sendo a primeira a Introdução, ora apresentada, acompanhada dos objetivos da pesquisa. O Referencial Teórico será apresentado na segunda seção, no qual são abordados conteúdos referentes à História da Educação no Campo no Brasil, bem como seus aspectos epistemológicos e dados estatísticos. Além disso, são abordados os marcos normativos contemporâneos, finalizando com a Educação do Campo, especificamente no Estado do Mato Grosso do Sul. Na segunda seção, a Educação do Campo é apresentada sob a ótica Freireana, que busca construir novos sentidos e significados ao que se estuda na escola, bem como busca-se refletir sobre o Currículo e práticas pedagógicas do Ensino da Química na Educação do Campo, tomando como base a especificidade desta modalidade de ensino. Na terceira seção são apresentadas as metodologias utilizadas na presente pesquisa, constituindo-se de análise documental dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) das Escolas 17 de Campo, análise de questionários respondidos pelos alunos do 3º ano do Ensino Médio através da Análise Textual Discursiva (ATD), bem como a metodologia de elaboração de Sequência Didática e Material Didático. Sendo a Sequência Didática baseada na temática dos agrotóxicos, tema cotidiano e muito recorrente na região em que se localiza a escola parceira. O município em que a pesquisa foi realizada possui economia baseada na Silvicultura, sendo que neste está implantada duas grandes fábricas de papel e celulose. Assim, grandes fazendas que possuíam como principal atividade a pecuária de corte e de leite, foram arrendadas para o plantio de eucalipto, sendo que este necessita de uma grande quantidade de agrotóxicos para o combate de pragas, podendo oferecer riscos de contaminação dos solos e dos rios. Portanto, é de suma importância que estas discussões sejam abordadas em sala de aula, visto que muitos pais trabalham no plantio e no corte do eucalipto. Na quarta seção são apresentados os resultados e a discussão, sendo descrita a estrutura de ensino das Escolas de Campo do Mato Grosso do Sul, incluindo a análise dos PPP e do perfil dos alunos, as concepções iniciais dos mesmos sobre as funções orgânicas, contextualizados com o tema Agrotóxicos, sendo posteriormente apresentada a Sequência Didática e em Apêndice, o Material Didático proposto. Na quinta seção são apresentadas as Considerações Finais desta pesquisa. Finalmente, na sexta seção, são apresentadas as Referências utilizadas, seguidas pelos apêndices e anexos. 18 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL 2.1.1 Educação do Campo: raízes históricas e epistemológicas De esquecida e marginalizada à repensada e desafiante. Esta poderia ser a linha do tempo que representa a trajetória da educação para os povos do campo. Um percurso instigante para a pesquisa e a reflexão, para ação educativa e as políticas públicas atuais (ROSA; CAETANO, 2008). A Educação do Campo como direito constitucional dos povos do campo é uma questão que se insere diretamente na luta pelos direitos humanos. Foi ignorada e marginalizada por diferentes esferas, tais como o poder público, pesquisas, reflexão pedagógica e também propostas curriculares, sendo este um debate recente que surge no campo educacional do Brasil. Esse descaso, segundo Caldart (2004, p. 149), guarda estreita correlação com o encurtamento dos horizontes políticos e educacionais para os povos do campo, o qual reflete a visão pessimista deste e sua educação, ou seja, pauta-se na crença de que ―para trabalhar com a enxada ou cuidar do gado não são necessários nem letras nem competências. Não é necessária a escola, ou seja, ao longo de décadas a Educação do Campo não foi considerada como direito humano. Somente a partir da metade do século XX a Educação do Campo ganhou espaço de discussão no campo da pesquisa educacional. Cada vez mais se tem discutido sobre o processo de consolidação da Educação do Campo como política pública e como um instrumento que possibilite a transformação da realidade dos sujeitos das áreas rurais. Um reflexo disso são os levantamentos e estudos desenvolvidos por distintos órgãos e pesquisadores (PEREIRA, 2007; BOF, et al., 2006; INEP, 2005; DAL RI; VIEITEZ, 2004; FURTADO, 2004; CALDART, 2004, RIBEIRO, 2001). Embora sejam pesquisas que marcam uma ruptura no cenário de esquecimento a que a Educação do Campo foi submetida por longas décadas, as mesmas enfatizam aspectos ligados à Educação enraizada nos movimentos sociais, ou seja, no contexto dos assentamentos. Segundo Lindemann (2010, p. 70) o campo como território de cultura dos povos rurais, só passou a ser discutido no final dos anos 1990, quando as pesquisas passam a considerar que é neste território que se estabelecem as relações constitutivas entre os sujeitos. Assim, a partir 19 deste marco as pesquisas desenvolvidas passaram a considerar todos os aspectos e características que envolvem os povos do campo, sejam estas surgidas em meio aos movimentos sociais ou não. Neste capítulo se discute aspectos históricos e culturais que permeiam a educação no contexto rural, as peculiaridades dos sujeitos do campo e os novos espaços que a Educação do Campo vem conquistando frente ao meio acadêmico. 2.1.2 Contexto histórico da Educação do Campo no Brasil O desenvolvimento da agricultura brasileira e o direito ao uso da terra para a sobrevivência, foi construído sob pilares que incluíam a imposição e a submissão do homem do campo a certas mazelas sociais. Observando o período histórico que perpassa desde a colonização do Brasil em 1500 e o desenvolvimento do país até 1964, observa-se que o desenvolvimento agrário foi sustentado por períodos que passam pela escravidão e pela exploração das terras somente para o latifúndio. Desde a colonização deste país, o homem do campo sempre teve que se submeter ao grande modelo capitalista, explorador dos recursos naturais e de riquezas, criando assim apenas um modo de sobrevivência e nunca de crescimento no âmbito intelectual. Assim, criou-se desde os primórdios a ideia de que o homem do campo é apenas mão de obra, portanto , os povos do campo não precisavam ser alfabetizados para se trabalhar com a lida diária, pois seriam sempre empregados e nunca donos de um pedaço de chão. Este pensamento surge na época em que o território brasileiro ainda era uma monarquia, não havendo então propriedades particulares. Após um período, a monarquia, com o a finalidade de explorar os recursos e enxergando um movimento agro explorador nas terras brasileiras, resolveu oferecer a concessão de uso das terras com direito à herança. Porém, a coroa Portuguesa utilizou rígidos critérios para dar concessão de grandes extensões de terra somente aos chamados capitalistas-colonizadores, estes, possuíam um grande capital para investir na exportação de produtos para o mercado europeu, sendo estas concessões de uso hereditário (PRADO JUNIOR, 2004, p. 32) Dentro deste cenário, a coroa favorecia apenas os fazendeiros que utilizavam mão de obra escrava de negros e indígenas. Após a pressão sofrida pela Inglaterra para realizar a troca de mão de obra e já prevendo um possível movimento de abolição dos escravos, cria-se a primeira lei de terras no país, a Lei nº 601 (BRASIL, 1850), substituindo assim a concessão do uso da terra para um movimento de propriedade privada da terra, levando o território do 20 país a possuir valores como outras mercadorias. Porém, a lei nº 601/1850 negava o direito à compra de terra a qualquer cidadão, principalmente aqueles que agora compunham a classe de ex-escravos, para que os mesmos não se tornassem camponeses ou donos de pequenas propriedades, obrigando-os agora a vender sua força de trabalho mesmo após a abolição. Com o impedimento de cidadãos comuns e ex-escravos de comprarem qualquer extensão de terra para a agricultura, iniciou-se um movimento de êxodo rural, principalmente para as cidades portuárias, o que resultou nas construções de casas em terrenos que não se destinavam a agricultura, dando início a formação de favelas com populações oriundas da zona rural. Neste período o país passava também pela crise da Plantation, ao mesmo tempo em que a Europa cancelava suas transações comerciais com as Américas (CASTELLUCCI JÚNIOR, 2008). Com a crise de mão de obra nos grandes latifúndios do país no fim do século XIX, intensas propagandas em países como Itália, Espanha e Alemanha, foram realizadas a fim de atrair camponeses pobres. Assim, o país começou a receber colonos que migravam em busca de emprego e melhores condições de vida. Stedile (2005, p. 25) afirma que “o país atraiu aproximadamente mais de 1,6 milhões de camponeses pobres da Europa, no período de 1875 até 1914”. As regiões que mais foram povoadas por imigrantes neste período, situavam-se a sul e sudeste do Brasil, nas quais alguns colonos conseguiam adquirir terras, outros se submetiam ao trabalho pesado na lavoura em troca de casa e um pequeno pedaço de terra para se retirar o sustento da família (STEDILE, 2005). No início do século XX, o país inicia importantes transformações no cenário político. O Brasil, antes administrado pela monarquia, passou a ter um novo regime, agora governado pela república, assim: A crise do império brasileiro foi o resultado de vários fatores de ordem econômica, social e política que, somando-se, conduziram importantes setores da sociedade a uma conclusão: a monarquia precisava ser superada para dar lugar a outro regime político, mais adequado aos problemas da época (COTRIM, 2002, p. 216). Mesmo com o surgimento da república, o modelo anterior continuou a ser operado no país, a classe dominante permaneceu a mesma, ricos continuaram com a exploração assalariada e muitos permaneceram na miséria, principalmente nas áreas rurais. Muitas elites burguesas da nascente industrial impuseram ao país um novo modelo econômico de mercado, 21 surgindo novos setores industriais que abasteciam o mercado agrícola com insumos, ferramentas, adubos, máquinas e principalmente os venenos. Com esse desenvolvimento da indústria agrícola no país, a modernização das grandes propriedades era inevitável, crescendo consequentemente a então chamada elite ruralista. Na contramão ao novo sistema imposto, estavam os pequenos agricultores, sofrendo pressões internas de mercado, sendo massacrados pela nova política econômica do país. Segundo Stedile (2005) essa nova ascensão industrial capitalista do país influenciou a vida do camponês, estimulando seus filhos ao êxodo rural pois ao invés de sonharem com sua reprodução como camponeses, em vez de lutarem pela terra, pela reforma agrária se iludiram com os novos empregos e salários na indústria, reafirmando e reproduzindo a lógica da agricultura capitalista implantada no início da colonização, em que a elite agrária se tornou mais rica e os camponeses cada vez mais pobre e submissos ao sistema capitalista. Desde o início da colonização deste país, o único interesse dos Portugueses era a plena exploração comercial das terras descobertas. Para tanto, a finalidade era apenas de usufruí-la e não de desenvolver vínculos sociais, pelo contrário, criou-se desde o início barreiras sociais que mais tarde vinham a compor as classes sociais, segregadas e separatistas. Fixaram a colônia como forma de desenvolver o modelo escravocrata, criando o conceito de submissão, cabendo aos submetidos a negação do direito de crescer e se desenvolver. Segundo Freire (1992, p. 83) a única voz, no silêncio a que eram submetidos, que se poderia ouvir, era a do púlpito. Então, a educação não estava inserida nas políticas públicas da época, pois não eram pautas prioritárias que atuavam como ―política social que tinha importante caráter econômico (MOLINA, 2006, p. 30). Nesse mesmo período, os Padres Jesuítas foram os responsáveis pela catequização dos nativos da terra, estes foram responsáveis pela política de destribalização dos povos indígenas e submissão à civilização cristã europeia. Foram também os Jesuítas que por aproximadamente dois séculos, implantaram o ensino público no país. A implantação de escolas no país foi resultado da política colonizadora que permeava nesta época. Porém, este modelo atendia exclusivamente às famílias da elite brasileira, donos de terra e senhores de engenho. Portanto, o modelo educacional que foi implementado no país favorecia apenas uma pequena porção da população, porque os pobres não precisavam estudar, pois eram formados única e exclusivamente para mão de obra nas lavouras. No modelo da época havia apenas os chamados institutos, estes atendiam as camadas mais pobres da sociedade, ensinando-os apenas instruções básicas como ler e escrever (SHIGUNOV NETO; MACIEL, 2008). A luta social, pelo direito a educação de qualidade, pelo acesso à informação e pela 22 superação do analfabetismo, é ferida não cicatrizada do processo histórico de colonização, que perdura até os dias atuais. Nesse sentido, continuamos em um processo onde os jovens do campo ainda são obrigados a deixarem as comunidades em busca de qualificação profissional e melhores condições de trabalho, o que parece ir na contramão da proposta educacional do campo. 2.1.3 Aspectos sociais e epistemológicos da Educação no Campo no Brasil Ao se traçar um caminho desde a colonização do país até o século XXI, pode-se perceber que o povo brasileiro levou séculos para chegar aos bancos da escola pública não separatista, onde todos tem direito à educação independente de cor ou classe social. Embora a Educação Rural tenha nascido em 1889, incentivados pela então pasta da Agricultura, Comércio e Indústria, foi somente no ano de 1920 que surgiu o interesse da construção de escolas nas zonas rurais do país (PASSADOR, 2003). Com o surgimento do movimento denominado de ruralismo pedagógico, escolas rurais começaram a ser construídas e ofereciam Educação Rural, porém o único interesse era diminuir o êxodo rural e o consequente inchaço de problemas sociais nos grandes centros urbanos (RAMAL, 2011). Este modelo de educação continuou incentivando o pensamento de que para viver na roça, não há necessidade de amplos conhecimentos socializados pela escola, ler, escrever e contar não eram subsídios para lidar com a terra. Portanto, este modelo de educação implantado na época proporcionava somente alguns conhecimentos às crianças camponesas, sem a finalidade de proporcionar outros subsídios a elas. Na década de 1930, o governo de Getúlio Vargas tinha a prioridade de implantar novos modelos econômicos ao país, houve a necessidade da criação do Ministério da Educação, a fim de ampliar os programas de escolarização1. Porém, os projetos tinham como objetivo a formação do homem urbano e o compromisso com a industrialização. Dessa forma, a elite agrária foi substituída pela então elite industrial, sendo neste período um polo de maior importância econômica para o país, o que estimulou a construção de um currículo com uma visão urbanocêntrica. Mais uma vez temos a inserção da educação nos moldes segregadores, onde o ensino secundário e as escolas superiores visavam a formação das elites condutoras do país e o 1 A Era Vargas - 1º tempo - dos anos 20 a 1945. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/apresentacao . Acesso em : 03 de ago. de 2019. https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/apresentacao 23 ensino primário e profissional se adequava para formação de operários. Mais uma vez a Educação Rural permaneceu em inércia diante da situação de desenvolvimento econômico do país. Segundo Nascimento (2009), a Educação do Campo não foi mencionada nos textos constitucionais de 1824 e 1891, caracterizando o descaso dos dirigentes com a mesma. Desse modo, evidencia a precariedade que até os dias atuais atinge as Escolas do Campo. A educação rural só foi mencionada no cenário constitucional em 1934, com o surgimento de uma nova constituição em 16 de julho do referido ano. Esta, inseriu na educação um ensino primário obrigatório e gratuito, inclusive para adultos. A Constituição de 1934 (BRASIL, 1934) em seu Artigo 149 indica os objetivos do movimento em: ensino público, laico, obrigatório e gratuito patrocinado e custeado pelo Estado. A educação rural também está considerada no Artigo 156 que destaca: “Para realização do ensino nas zonas rurais, a união e os municípios reservarão, no mínimo, vinte por cento das quotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual”. Temos ainda no Artigo 121 (BRASIL, 1934) o exposto quanto as leis do trabalho onde destaca-se que: A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. O inciso 4º do referido artigo diz que ―o trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas. É neste período que a população do campo passa a ser lembrada perante a constituição, bem como a promoção da educação e a preocupação em fixar os trabalhadores rurais na terra, haja visto a crescente taxa de migração do campo para a cidade. Infelizmente, esta constituição que destinou parte dos recursos orçamentários ao desenvolvimento da Educação do Campo, permaneceu em vigor por pouco tempo. Uma nova constituição surgiu em primeiro de novembro de 1937, iniciando uma legislação autoritária do estado. Segundo Passador (2003) no ano de 1937, criou-se a Sociedade Brasileira de Educação Rural, com o objetivo de realizar debates sobre a problemática da Educação Rural no Brasil, reivindicando pautas como: 1) necessidade de organizar as escolas rurais de acordo com os interesses sociais da região, particularmente no que diz respeito à saúde e ao trabalho rural; 24 2) preparo especial do professor rural e melhoria das suas condições de vida; 3) acentuação do caráter nacionalista da educação dos núcleos de imigração e rigorosa seleção de professores para as escolas da região; 4) maior contato do alto sertão com as zonas de civilização para possibilitar penetração do aparelho escolar (PASSADOR, 2003. p. 91). Porém, mais uma vez a constituição atual (BRASIL, 1937) fazia menção a importância da educação profissional no contexto do desenvolvimento industrial do país. Ela deveria atender a todas as esferas que envolviam a educação naquele contexto, porém não fez menção direta à educação rural, apresentando sempre elementos que priorizavam a educação nos moldes urbanos. O único item que reserva a importância do trabalho no campo está registrado no artigo 132: O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às fundadas por associações civis, tendo umas; e outras por fim organizar para a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-lo ao cumprimento, dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação (BRASIL, 1937). Segundo indicam Damasceno e Beserra (2004), a época pós 1930 marca o início das preocupações com o sistema educacional brasileiro no meio rural. Conforme apontam as autoras: [...] é somente a partir da década de 1930 e, mais sistematicamente, das décadas de 1950 e 1960 do século XX que o problema da educação rural é encarado mais seriamente, o que significa que paradoxalmente a educação rural no Brasil torna- se objeto do interesse do Estado justamente num momento em que todas as atenções e esperanças se voltam para o urbano e a ênfase recai sobre o desenvolvimento industrial (DAMASCENO; BESERRA, 2004, p.75). Neste período, ainda considerando o trabalho de Damasceno e Beserra (2004), o Brasil tinha como presidente da república o médico Juscelino Kubitschek com uma administração pautada pela ideologia progressista, cujo governo tinha como proposta fazer 50 anos em 5, influenciando na expansão do meio urbano. No início dos anos 1960, ocorreu uma forte participação dos movimentos populares e de inúmeras campanhas na luta pela ampliação do atendimento escolar quando se destaca a busca pela equivalência entre o ensino secundário e o técnico-profissional, oficialmente modificada em 1961 (ROMANELLI, 1987), sendo também o ano da criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1961) a Lei Nº 4.024/61, proporcionando mudanças que atingiram todos os graus e modalidades de ensino, pautada no princípio de liberdade e nos ideais humanitários, assim a estrutura escolar passou a contar com conteúdos curriculares diversificados e obrigatórios. Lindemann (2010) salienta que na época, dentre os movimentos de educação popular 25 organizados destacavam-se: a Campanha de Educação de Adultos (1947), o Movimento da Educação de Base (1961) e o Programa Nacional de Alfabetização (1963). É no final da década de 1950 e início dos anos 1960 que surge no País a perspectiva educacional voltada para as classes populares, conhecida como Educação Popular, que buscou romper com a cultura do silêncio e da opressão fortemente presente na época. Sua constituição foi a partir de ações fora do âmbito escolar através do Movimento de Cultura Popular que, por meio dos Círculos de Cultura, desenvolveu ações culturais de educação nas periferias e demais locais públicos. Contudo, é somente na década de 1980 que essa perspectiva educacional chega à escola pública, por meio tanto de políticas públicas quanto de experiências educativas de professores adeptos dessa concepção educacional (BATISTA, 2005). Segundo Batista (2005), o processo de formação humana vivenciado pelos movimentos sociais pode trazer contribuições para a educação escolar, no sentido de superar a educação bancária, fortemente criticada por Paulo Freire. Temos como característica na educação balizada pelos movimentos sociais, a construção do conhecimento a partir de uma relação objetiva que resulta em saberes socialmente construídos. É somente a partir da década de 1980, que a educação popular começa a ganhar espaço frente à escola pública, com experiências em diversos municípios do país, desenvolvida como prática educativa experienciada por alguns docentes. Serve de exemplo o projeto Ensino de Ciências a partir de Problemas da Realidade, implementado de 1984 a 1987 em um município rural e em uma escola da capital do estado do Rio Grande do Norte (DELIZOICOV, 2008). Apesar de toda essa construção histórica do campo educacional brasileiro, foi somente em 1990 que se evidencia uma presença maciça dos movimentos sociais a nível internacional, estes questionando o capitalismo neoliberal e o processo de globalização. Segundo Batista (2005), esses movimentos protestavam contra um modelo que conseguia fazer com que os avanços e as conquistas sociais dos séculos XIX e XX retrocedessem. Ainda temos esse reflexo no século XXI, onde os movimentos sociais ainda lutam pelo direito à vida, a cidadania e a educação de qualidade. É somente a partir desta época que tais questões ganham espaço nas discussões acerca da educação e consequentemente da educação voltada à população rural brasileira (LINDEMANN, 2010). Diante do exposto, faz-se necessário retomar que entre os anos de 1930 até meados de 1980, duas tendências permeavam as ações pedagógicas das escolas do campo: a tendência ruralista e a tendência urbanizadora (ARROYO; CALDART, 2004a; CARVALHO, 2016). Segundo Abrão (2009, p. 285), a Tendência Ruralista considera que ―a escola deve ser vista como a instituição adequada para colocar o homem do campo a par do avanço da cultura 26 e da tecnologia a serviço da produção agrícola e assim possibilitar a sua fixação no campo sem ter de migrar para a cidade, ou seja, o papel da escola era formar indivíduos para o campo de modo que todas as atividades desenvolvidas eram voltadas prioritariamente para o desenvolvimento de habilidades da área agrícola, buscando fixar o homem no campo e promovendo a diminuição do êxodo rural. Na Tendência Urbanizadora a escola tinha um papel fundamental frente o desenvolvimento industrial do país, formar profissionais para atuar na cidade. Dessa forma, identifica-se na Tendência Urbanizadora a formação de mão de obra barata para atuar nos centros urbanos, portanto não se respeitava as especificidades de cada modalidade de ensino, sem respeitar o contexto escolar e as características socioeducacionais de cada localidade. Sobre esta tendência, Abrão observa que, A escola, o professor e o currículo de toda e qualquer escola, seja a da cidade ou do campo, tem de ser adequados para poderem compreender a transformação do homem para atender as necessidades de modernização da sociedade como um todo, necessidade de humanização do educando e seu preparo técnico-profissionalizante aos ditames do mercado de trabalho (ABRÃO, 2009, p. 285). Temos também no período de 1930 a 1980 a efetivação de programas de escolarização para as populações campesinas. Assim, o movimento denominado de ruralismo pedagógico, possuía como principal objetivo a permanência do homem do campo em sua terra de origem (LIRA; MELO, 2010). Sobre este movimento, Bezerra Neto (2003) explica que: O termo ruralismo pedagógico foi cunhado para definir uma proposta de educação do trabalhador rural que tinha como fundamento básico a ideia de fixação do homem no campo por meio da pedagogia (...). Para essa fixação, os pedagogos ruralistas entendiam como sendo fundamental que se produzisse um currículo escolar que estivesse voltado para dar respostas às necessidades do homem do meio rural, visando atendê-lo naquilo que era parte integrante do seu dia-a-dia: o currículo escolar deveria estar voltado para o fornecimento de conhecimentos que pudessem ser utilizados na agricultura, na pecuária e em outras possíveis necessidades de seu cotidiano (BEZERRA NETO, 2003, p. 11 e 15). Embora estas tendências divergissem no nível das intenções, as mesmas aproximavam-se em relação a proposição de ações, programas e soluções (ABRÃO, 1986). A tendência Ruralista foi responsável pela expansão da educação escolar no campo Brasileiro, porém a proposta não criou uma política que buscasse efetivar a permanência do homem no campo. A saída do campo era vista ou percebida como fenômeno natural, consequência das relações com os centros urbanos, como se os agricultores fossem em busca do progresso, do conhecimento, da superação do atraso (MORIGI, 2003, p. 51). 27 Segundo Lira e Melo (2010) entre 1940 e 1950 temos a implantação de diversos programas educativos realizados na maioria dos estados brasileiros, buscando principalmente a permanência do homem no campo e o desenvolvimento de cada região atendida. Primeiramente estes programas passaram a ser desenvolvidos pelo Ministério da Agricultura, como também pelo Ministério da Educação e Saúde, porém tínhamos algumas instituições norte americanas envolvidas no processo, tal como a Comissão Brasileiro-Americana de Educação de Populações Rurais (CBAR). Neste período temos maior difusão da Campanha de Educação de Adultos (1947), e às Missões Rurais de Educação de Adultos, ambos buscando desenvolver a escolarização de adultos das regiões rurais atendidas (CALAZANS, 1993). Calazens (1993) observa ainda que tais programas chegam prontos e acabados, moldados por uma realidade diversa, tomando como verdadeiro que os costumes e especificidades do homem do campo são os mesmos em quaisquer regiões do país. Logo os índices apresentados pelas escolas rurais revelavam um grande déficit em relação à aprendizagem do público atendido. Diante deste exposto, em 1942, os profissionais da educação realizaram o Oitavo Congresso Brasileiro de Educação com o intuito de debater o surgimento de diretrizes e soluções para os problemas educacionais dos povos do campo. O evento foi promovido pela Associação Brasileira de Educação, e contribuiu com debates em torno da busca de uma escola legitimamente rural que atendesse as necessidades do homem do campo em relação à educação formal. No final do ano de 1950 e início dos anos 1960, a centralização da terra na mão de poucos passa a ser vista como elemento de entrave ao desenvolvimento do país. Assim, inicia- se o processo de regulamentação do trabalho agrícola e o reconhecimento dos Movimentos Sindicais dos Trabalhadores Rurais (MENESES, 2015, p. 32). Nesta mesma época, temos no estado de Pernambuco o início do movimento de organização dos trabalhadores que fundaram as Ligas Camponesas, espalhando-se por outros Estados Brasileiros, sendo este movimento inserido no cenário de luta pela Reforma agrária no país. Temos neste período o fortalecimento dos movimentos sociais do campo, bem como partidos de esquerda e setores progressistas da Igreja Católica (MOLINA; FREITAS, 2011, p. 37), surgindo assim os primeiros movimentos de educação não formal, principalmente a Educação Popular. Segundo Torres e Freitas (1987) a Educação Popular surge como uma prática política entendida e assumida na prática educativa. Assim, essas experiências tornam- se a base para a consolidação do projeto da Educação do Campo. 28 Nos setores de colonização e reforma agrária foram criados os seguintes órgãos: Supra (Superintendência de Política de Reforma Agrária) – 1962; o IBRA (Instituo Brasileiro de Reforma Agrária) e o INDA (Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário), em substituição ao SUPRA – 1964; e o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que se origina da fusão entre o IBRA e o INDA, no final da década de 1960 (LIRA; MELO, 2010, p.11). Mesmo com alguns avanços em programas sociais, o meio rural não obtém grande êxito em relação ao desenvolvimento educacional, tendo uma maior valorização da educação urbana em contrapartida com o esquecimento da sua realização no campo, sendo exceção os programas desenvolvidos e focados na erradicação da pobreza rural destinados principalmente às regiões Norte e Nordeste (LIRA; MELO, 2012). Somente no ano de 1990 que os primeiros sinais de transformação da Educação do Campo surgem, principalmente devido a articulação dos movimentos sindicais, buscando juntamente com o poder público a garantia de construção de políticas públicas para os povos do campo, com propostas pedagógicas que respeitavam a realidade do homem do campo, da lida com a terra e o conviver com a natureza (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004; CARVALHO, 2016). Temos neste período uma grande contribuição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizando o I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA) em 1997, em consolidação com a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância); com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a UNB (Universidade de Brasília) (ARROYO; CALDART, 2004a; CARVALHO, 2016). Nesta parceria, surgiu ainda a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, sediada em Luziânia-GO no ano de 1998, que ressignificou o debate dos movimentos sociais e sindicais perante as políticas da Educação do Campo. Segundo Santos (2017, p.215) esses debates pontuavam principalmente os anseios da população que questionavam a formação dos indivíduos pautados apenas nos interesses econômicos e políticos da classe dominante. Portanto, considera-se que A crítica surge em função da não consideração das histórias, sonhos, desejos, limites e possibilidades dos povos do campo. Contestavam ainda as dimensões do agronegócio que fortalece, exclusivamente, a lógica da monocultura para exportação, em detrimento da agricultura familiar e da produção diversificada para abastecer o mercado nacional. Nesse contexto, as políticas públicas de educação implementadas nas áreas rurais, não têm dado conta de acompanhar as especificidades regionais, geográficas e históricas do campo, além da 29 necessária formação que atenda às demandas desta realidade (SANTOS, 2017, p.215). Em 2002 a Resolução CNE/CEB 01, de 03 de abril, foi aprovada e instituiu as Diretrizes Operacionais da Educação do Campo. Em 2004 cria-se a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), no âmbito do Ministério da Educação, sendo esta responsável direta pela Coordenação Geral da Educação do Campo. Assim, segundo Santos (2017, p. 217) este fato significou a inclusão, na estrutura federal, de uma instância responsável pelo atendimento das demandas do campo, a partir do reconhecimento de suas necessidades e singularidades. É importante salientar que a experiência do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), influenciou a elaboração de novas políticas públicas para o desenvolvimento do campo através de ações educativas para a constituição da formação dos sujeitos, assim surge o Programa de Apoio à formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (SANTOS, 2017, p. 217). Este programa visa implementar cursos de ensino superior de formação de Educadores para o Campo, formando-os em Licenciatura em Educação do Campo, habilitando-os a lecionarem nos anos finais do ensino fundamental e no Ensino Médio das escolas rurais de todo o país. As propostas para formação docente baseadas em cursos superiores específicos voltados para os povos do campo, surge apenas no ano de 2007 com a implementação de quatro experiências-pilotos desenvolvidas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Universidade Federal da Bahia (UFBA), mediante a criação do programa PROCAMPO. As políticas públicas voltadas para a formação específica dos educadores do campo foi alicerçada diante de intensas lutas pelo direito à educação para todos, luta essa que se igualam as lutas dos trabalhadores do campo pelo direito a terra e a proporcionar uma vida digna para suas famílias. Em 2012 os movimentos sociais do campo conquistaram 42 cursos permanentes desta nova modalidade de graduação em todas as regiões do país. Objetivando garantir a implementação dos cursos, o Ministério da Educação disponibilizou 600 vagas de concurso público de docentes da Educação Superior e 126 vagas de técnicos como suporte para esse processo (MOLINA, 2017). Segundo Molina (2014), baseando-se na perspectiva da formação docente com um 30 caráter multidisciplinar, a matriz curricular das Licenciaturas em Educação do Campo foi organizada em quatro grandes áreas do conhecimento, sendo elas: Linguagens (expressão oral e escrita em Língua Portuguesa, Artes, Literatura); Ciências da Natureza e Matemática; Ciências Humanas e Sociais; e Ciências Agrárias. A formação por área de conhecimento; a interdisciplinaridade; a alternância entre Tempo-Comunidade e Tempo-Universidade compõe o conjunto de elementos que definem as diretrizes da Licenciatura em Educação do Campo (CALDART, 2011). A área de Ciências da Natureza foi implantada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2013, onde possuía como objetivos principais, a formação docente e de gestão para que os mesmos pudessem atuar em ambas as áreas dentro das escolas de Educação do Campo. Este projeto envolveu cerca de 77 municípios da região metropolitana de Porto Alegre-RS. Segundo o Plano Nacional de Formação dos Profissionais da Educação do Campo a formação de educadores do campo, tem o objetivo de estabelecer uma política nacional de formação permanente e específica dos profissionais da Educação do Campo que possibilite o atendimento efetivo das demandas e necessidades dos alunos, educadores, redes de ensino e comunidades do campo. De acordo com o Projeto Pedagógico do Curso - PPC (UFRGS, 2013) a EduCampo/UFRGS propõe-se a: a) Considerar a perspectiva da interdisciplinaridade, a qual se caracteriza como uma estratégia de integração metodológica, seja para fins tecnológicos, epistemológicos, ou pedagógicos, podendo gerar novos campos de conhecimento, ou procedimentos inovadores para responder a novas necessidades sociais. b) Organizar os componentes curriculares em áreas do conhecimento de forma interdisciplinar com ênfase nas Ciências da Natureza, de modo que os estudantes possam vivenciar na prática de sua formação a lógica do trabalho pedagógico para o qual estão sendo preparados. c) Organizar metodologicamente o currículo por alternância entre Tempo/Espaço, Universidade e Tempo/Espaço-Comunidade, de modo a permitir o necessário diálogo entre saberes técnico-tecnológicos e saberes das tradições culturais oriundos das experiências de vida no campo (UFRGS, 2013, p. 08) De acordo com Caldart (2011), a formação específica voltada para as áreas do conhecimento se alicerça nos preceitos da Educação do Campo, ou seja, se ancora em um projeto que busca construir os saberes científicos baseados na cultura local e a partir das experiências de vida dos sujeitos envolvidos, buscando uma prática pedagógica que atenda as peculiaridades no/do campo. A literatura atual já aborda a diferença entre a Educação do Campo e a visão tradicional de Educação Rural. A expressão “do campo” é utilizada para designar um 31 espaço geográfico e social que possui vida em si e necessidades próprias, como parte do mundo e não aquilo que sobra além das cidades. O campo é concebido enquanto espaço social com vida, identidade cultural própria e práticas compartilhadas, socializadas por aqueles que ali vivem. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP (PANORAMA DA EDUCAÇÃO, 2007), os diagnósticos da Educação do Campo apontavam para questões como: - A insuficiência e a precariedade das instalações físicas da maioria das escolas; - As dificuldades de acesso dos professores e alunos às escolas, em razão da falta de um sistema adequado de transporte escolar; - A falta de professores habilitados e efetivados, o que provoca constante rotatividade; - Currículo escolar que privilegia uma visão urbana de educação e desenvolvimento; - A ausência de assistência pedagógica e supervisão escolar nas escolas rurais; - O predomínio de classes multisseriadas com educação de baixa qualidade; - A falta de atualização das propostas pedagógicas das escolas rurais; - Baixo desempenho escolar dos alunos e elevadas taxas de distorção idade-série; - Baixos salários e sobrecarga de trabalho dos professores, quando comparados com os dos que atuam na zona urbana; - A necessidade de reavaliação das políticas de nucleação das escolas; - A implementação de calendário escolar adequado às necessidades do meio rural, que se adapte à característica da clientela, em função dos períodos de safra (PANORAMA DA EDUCAÇÃO, 2007, p. 9) Diante do contexto exposto, verifica-se que a transformação da Educação do Campo requer melhorias estruturais das escolas do campo, melhoria na formação dos professores que estão imersos nesta realidade, além de melhorias curriculares que atendam as reais necessidades da Educação do Campo. No contexto do currículo, deve-se atentar para que seja baseado no contexto social e que possibilite que o conhecimento seja utilizado como um recurso de transformação social e de desenvolvimento do meio rural. O movimento da Educação do Campo compreende que a população do campo participe com sua história de luta, evidenciando seus conhecimentos como núcleo essencial do processo de ensino e aprendizagem. Pelo exposto até aqui, evidenciamos que a educação do contexto rural sinaliza para a emergência de um ensino voltado para os sujeitos do campo e de um currículo reflexivo em torno das especificidades do campo que reconheça as diferentes formas de agir desses sujeitos. 2.1.4 O Campo brasileiro construído por meio das estatísticas Neste item, buscou-se compreender como o campo brasileiro se configura atualmente. 32 Com o intuito de nos aproximarmos da agricultura no contexto nacional e conhecer um pouco da realidade dos sujeitos que ainda mantém a vida no campo e faz dela um objeto de sustento. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), o território brasileiro possui uma área que corresponde a 851 milhões de hectares (10.000m²), sendo que desses, 350 milhões de hectares correspondem à floresta amazônica; 220 milhões de hectares às pastagens; 55 milhões hectares de reservas legais; 50 milhões de hectares ocupados por lavouras; 20 milhões de hectares ocupados pelos centros urbanos, estradas, lagos e pântanos; 5 milhões de hectares ocupados por reflorestamento. Os 151 milhões de hectares restantes estão nos cerrados, sendo que 127 milhões de hectares são de terras com potencial agrícola, dos quais 47 milhões de hectares são atualmente ocupados (35 milhões com pastagens plantadas, 10 milhões com culturas anuais e dois milhões com culturas perenes e reflorestamento) (IBGE, 2010). O Censo Agropecuário 2017 (Censo Agro 2017) do IBGE (IBGE, 2017, p.17) considera um imóvel rural como sendo qualquer unidade de produção/exploração dedicada, total ou parcialmente, a atividades agropecuárias, florestais e aquícolas, independentemente de seu tamanho, de sua forma jurídica (se pertence a um produtor, a vários produtores, a uma empresa, a um conjunto de empresas etc.), ou de sua localização (área urbana ou rural), tendo como objetivo a produção, seja para venda (comercialização da produção) ou para subsistência (sustento do produtor ou de sua família). Classifica ainda o produtor como sendo qualquer pessoa física independente do sexo, ou pessoa jurídica responsável pelas decisões na utilização dos recursos, e que exerce o controle administrativo das operações que envolvem a exploração do estabelecimento agropecuário. O produtor tem a responsabilidade econômica ou técnica da exploração e pode exercer todas as funções direta ou indiretamente por meio de um administrador, sendo assim, não se deve confundir o produtor com o proprietário das terras. Ainda, segundo os dados do censo demográfico do ano de 2010 (IBGE, 2010) a população de áreas rurais do Brasil tem decrescido nos últimos anos, em comparação com os censos demográficos anteriores, considerando que: em 1960 a população rural representava 54,9% da população total do Brasil, em 1970 a mesma caiu para 44%, em 1980 a população rural representava 32,3% da população total, em 1991 este número decresceu para 24,5%, em 2000 para 18,8% e em 2010 para apenas 15,6% da população total. Este decréscimo sinaliza dados alarmantes, pois mostra um grande desinteresse pela área rural por parte dos pequenos produtores, ocasionando o êxodo rural. 33 Os dados do Censo Agro-2017 (IBGE, 2017, p.46) mostra quedas nas atividades de pecuária, pecuária leiteira, ovinocultura, caprinocultura leiteira e avicultura. Sendo fortalecidas áreas como bubalinocultura, caprinocultura e suinocultura. Outro aspecto relevante envolvendo populações do meio rural está relacionada à fonte de renda que provém da produção agrícola, na qual mais de 35% dos estabelecimentos rurais trabalham com a cafeicultura como culturas permanentes, seguida de culturas como laranja e outras frutas e também castanhas. Já quando se analisa as culturas temporárias, observa-se que mais de 37% dos estabelecimentos rurais trabalham com culturas de grãos, seguidas por tubérculos (ESTATÍSTICAS DO MEIO RURAL, 2010). A grande produção de grãos no Brasil tem sido responsável pelo aumento do uso de agrotóxicos nos últimos anos, assim como o aumento dos casos de intoxicações e outros tipos de acidentes envolvendo estes produtos. E a venda de agrotóxicos, fertilizantes e maquinários são considerados como um dos parâmetros para delinear o desempenho da agropecuária (ESTATÍSTICAS DO MEIO RURAL, 2006), sendo que, valores altos conseguidos com a venda desses produtos, representa um melhor desempenho da agropecuária, causando um contraponto com as questões relativas aos pequenos produtores rurais. No que concerne ao capital sociocultural, ou seja, o nível de instrução e o acesso à educação, os índices demonstram significativas diferenças que se configuram sempre em prejuízo da educação oferecida aos povos do campo. Esse assunto será abordado na próxima seção. 2.1.5 Educação do Campo no Brasil: marcos normativos contemporâneos e estatísticos As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001) se constituem como principal referência para a política de Educação do Campo no Brasil, trazendo consigo um conjunto de legislações que estabelecem princípios que visam adequar as escolas do campo às Diretrizes Curriculares Nacionais. Segundo o Artigo 28 da LDB (BRASIL, 1996) que propõe medidas de adequação da escola à vida do campo, tais como o mencionado no Parecer 36 do Conselho Nacional de Educação, da Câmara da Educação Básica, em 2001. A Educação do Campo deve incorporar espaços das florestas, da pecuária, das minas e da agricultura. Nesse sentido o campo se torna mais do que um perímetro não- urbano, é um espaço de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos, com a terra, a natureza e a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana (BRASIL, 2001). 34 Porém, durante a análise das Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo, nos deparamos com uma contradição em relação aos documentos oficiais, que preconizam a Educação do Campo, como um ensino adaptável quanto ao currículo e ao calendário das atividades agrícolas quando necessário, buscando adequar o ensino as características climáticas regionais. Contudo, a partir da realidade vivida nas escolas rurais, percebe-se que o currículo é adaptado a partir de uma realidade urbanocêntrica, não respeitando e muito menos valorizando a cultura e as características regionais dos povos do campo. Podemos assim dizer que o currículo urbano é tratado como parâmetro e o rural como adaptação, reforçando novamente a desvalorização do ensino no meio rural. Em todas as constituições Brasileiras, a educação escolar é contemplada, porém sob diferentes olhares, que foram se modificando ao longo do tempo. Na primeira constituição, jurada em 25 de março de 1824, apresentava dois incisos referente a educação escolar, no Artigo 179, sendo eles o inciso XXXII e XXXIII respectivamente, onde um assegura a gratuidade da instrução primária, e o outro faz referência à criação de ensino nos termos a seguir, sem mencionar a educação rural: Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: [...] XXXII. A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos. XXXIII. Colégios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras e Artes (BRASIL, 1824). A constituição de 1891 também não faz menção a respeito da educação rural, restringindo-se, no artigo 172, nos parágrafos 6 e 24, à garantia da laicidade e à liberdade do ensino nas escolas públicas. Segundo ele: Art.72. A Constituição assegura aos brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes: [...] § 6º. Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. [...] § 24º. É garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial (BRASIL, 1891). Para os povos do campo, o cenário era outro. A ideia de que não necessitavam de educação básica para residir no campo e trabalhar com os métodos totalmente braçais eram totalmente infladas e propagadas. Assim, essas ideias contribuíram para a ausência de propostas específicas de uma educação escolar voltada aos interesses dos camponeses. A 35 educação rural no Brasil só passou a ter o mínimo de visibilidade nas primeiras décadas do século XX, onde está era considerada por grandes pensadores, como um fator primordial para elevar a produtividade no campo e combater os movimentos migratórios da época. A Constituição de 1934 firma a concepção do Estado educador, atribuindo às três esferas do poder público responsabilidades quanto à garantia do direito à educação. Prevê ainda o Plano Nacional de educação, a organização do ensino em sistemas e a instituição dos conselhos de Educação (MEC, 2001) perante a lei, a Educação do Campo se inseriu como responsabilidade do poder público, sendo seu financiamento assegurado e inserido no Título dedicado à família, à educação e à cultura, conforme o seguinte dispositivo: Art. 156. A União, os Estados e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos. Parágrafo único. Para realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará, no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual (BRASIL, 1934). No dia 10 de Novembro de 1937 uma nova constituição é decretada, sinalizando agora a importância da educação profissional no contexto das expansões industriais que vinham ocorrendo no país. Segundo consta no Artigo 129 (BRASIL, 1937), a educação pré- vocacional profissional, destinada às classes menos favorecidas, é considerada, em primeiro lugar, dever do Estado, o qual, para executá-lo, deverá fundar institutos de ensino profissional e subsidiar os de iniciativa privada e de outras esferas administrativas. Essa inovação, além de legitimar as desigualdades sociais nas entranhas do sistema de ensino, não se faz acompanhar de proposições para o ensino agrícola, e, continuando no Artigo 129, apresenta o seguinte texto: É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especificidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo poder público (BRASIL, 1937). No Artigo 132, da mesma Constituição, a importância do trabalho no campo e a formação de oficinas para jovens do campo é ressaltada igualmente, admitindo ainda a necessidade de financiamento público para iniciativas que retomassem a mesma perspectiva dos patronatos. Segundo o artigo: Art. 132. O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às fundadas 36 por associações civis, tendo umas e outras por fim organizar para a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação. No que diz respeito ao ensino primário gratuito e obrigatório, o novo texto institui, em nome da solidariedade para com os mais necessitados, uma contribuição módica e mensal para cada escolar (BRASIL, 1937). A formação de oficinas para o desenvolvimento do trabalho do campo com a juventude da época, se deu, posteriormente, embasada na Lei Orgânica do Ensino Agrícola, objeto do Decreto de Lei 9613, de 20 de agosto de 1946 (BRASIL, 1946), do Governo Provisório, tinha como objetivo principal a preparação profissional para os trabalhadores da agricultura. Seu texto, traduzia os esforços para estabelecer a equivalência do ensino agrícola com as demais modalidades, estabelecia as restrições impostas aqueles que optavam por cursos profissionais destinados as classes mais baixas. Esta articulação das modalidades do ensino compunham o Artigo 14, onde articulava o ensino agrícola com outras modalidades da educação pelo seguinte texto: Art. 14. A articulação do ensino agrícola e dêste com outras modalidades de ensino far-se-á nos termos seguintes: III - É assegurado ao portador de diploma conferido em virtude da conclusão de um curso agrícola técnico, a possibilidade de ingressar 16 em estabelecimentos de ensino superior para a matrícula em curso diretamente relacionado com o curso agrícola técnico concluído, uma vez verificada a satisfação das condições de admissão determinadas pela legislação competente (BRASIL, 1946). O decreto ainda reafirmava a educação sexista, ora trazia a educação como direito igualitário para homens e mulheres, ora abordava diversas restrições quanto ao ensino agrícola para o sexo feminino. Restrições estas abordadas no artigo 52, sendo: Art. 52. No ensino agrícola feminino serão observadas as seguintes prescrições especiais: 1. É recomendável que os cursos de ensino agrícola para mulheres sejam dados em estabelecimentos de ensino de exclusiva frequência feminina. 2. Às mulheres não se permitirá, nos estabelecimentos de ensino agrícola, trabalho que, sob o ponto de vista da saúde, não lhes seja adequado. 3. Na execução de programas, em todos os cursos, ter-se-á em mira a natureza da personalidade feminina e o papel da mulher na vida do lar. 4. Nos dois cursos de formação do primeiro ciclo, incluir-se-á o ensino de economia rural doméstica (BRASIL, 1946). O mencionado Decreto incorporou na legislação específica, o papel da escola na constituição de identidades hierarquizadas a partir do gênero. Podemos observar claramente que o programa de qualificação rural seguia duas linhas distintas, sendo estas separatistas e 37 segregadoras, conferindo ao homem ensino técnico e à mulher um ensino voltado para a economia doméstica e o papel da mulher como mãe e esposa. Quanto ao espaço rural como característica geoeducacional, este só foi reconhecido a partir da Constituição de 1988, nos Artigos 208 e 210, e na LDB (BRASIL, 1996) em seu Artigo 28, que promulga que: Art. 28. ―Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente. I- conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II- organização escolar própria, incluindo a adequação do calendário escolar as fases do ciclo agrícola e as condições climáticas; III- adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 1996). A partir da leitura do documento referente às Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001) foi possível destacar alguns pontos de interesse para a presente pesquisa: a) Alguns estados apontam para a expansão do atendimento escolar no campo, propondo a ampliação de vagas e buscando melhorias para as escolas rurais; b) Está mencionado que se encontra presente na Constituição, a determinação de medidas que valorizem o professor que atua no magistério do campo; c) Que alguns estados, apenas apontam para uma realidade específica da zona rural de cada região, respeitando as características regionais, a organização e a operacionalização de seu sistema educacional, porém não menciona questões importantes como currículo e a formação continuada de professores; d) Apenas no estado do Acre é mencionado a valorização do currículo do campo, em seu artigo 194, parágrafo II, estabelecendo que, na estruturação dos currículos, dever-se-ão incluir conteúdos voltados para a representação dos valores culturais, artísticos e ambientais da região. No artigo 26 da LDB menciona-se a necessidade de uma base nacional comum curricular, evidenciando a formação básica do cidadão a partir das especificidades regionais e locais. Segundo o artigo, os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser contemplada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela (BRASIL, 1996). Assim, considerando que se o artigo 28 da LDB, mencionado anteriormente, fosse valorizado e executável no momento de compor o currículo e a formação, todos os estados levariam em conta as especificidades do campo, os conteúdos e a metodologia trabalhada 38 nestes espaços, o que ainda não ocorre em todo o território nacional. Outro aspecto importante que sustenta a assertiva é o Art. 2º das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001) que institui a identidade da escola do campo, definindo-a pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ou seja, os estabelecimentos municipais e estaduais de ensino devem levar em consideração as questões como temporalidade, saberes comuns dos estudantes, memória coletiva e lutas dos movimentos sociais que defendem como modos de vida. O Art. 5º, das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001), referência ainda que as propostas pedagógicas das escolas do campo devem ser embasadas nas diferenças e o direito à igualdade e cumprir ainda o estabelecido nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, contemplando a diversidade do campo em todos os aspectos. Assim a elaboração curricular deve contemplar aspectos sociais, econômicos, culturais, políticos, de gênero e etnia. Estes pressupostos nem sempre conseguem ser cumpridos pelos estabelecimentos de ensino da zona rural e o principal motivo é a falta de formação dos docentes que atuam em áreas rurais de todo Brasil, principalmente em componentes curriculares específicos tais como química, física e matemática, não sendo difícil encontrar professores de outras áreas lecionando nestes componentes. Ainda sobre formação o Art. 13 da referida Diretriz orienta sobre o processo de normatização da formação de professores para o exercício docente em escolas do campo, observando os seguintes componentes: I- Estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual e coletiva, da região, do país e do mundo; II- Propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas (BRASIL, 2001). Uma questão importante a ser revista em relação aos componentes curriculares de formação de professores, é a questão da ausência de qualquer disciplina relacionada à Educação do Campo como componente curricular em algumas licenciaturas. Este componente faz parte das grades curriculares dos cursos de pedagogia, porém a Educação do Campo compõe não só a educação a nível fundamental, mas também a nível médio, contemplando muitos outros componentes, como Física, Química, Matemática, etc. Assim, a proposta da Educação do Campo pode não ser contemplada, quando estes professores possuem uma 39 defasagem desse aspecto em sua formação, havendo assim boas chances de os aspectos culturais do campo não serem incorporados ao currículo, reafirmando um currículo urbanocêntrico em uma escola de Educação do Campo. Quanto à estrutura das escolas da zona rural temos o Decreto Nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, que Dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, em seu Artigo 3º apresenta os parâmetros estruturais mínimos para as escolas da Educação do Campo, sendo eles: I- Garantir o fornecimento de energia elétrica, água potável e saneamento básico, bem como outras condições necessárias ao funcionamento das escolas do campo; II- Contribuir para a inclusão digital por meio da ampliação do acesso a computadores, à conexão à rede mundial de computadores e a outras tecnologias digitais, beneficiando a comunidade escolar e a população próxima às escolas do campo (BRASIL, 2010). Porém, não é difícil encontrarmos escolas do campo com estruturas precárias e com a falta do básico para a mesma funcionar, sendo que poucas possuem conexão com a internet ou outros materiais tecnológicos que oferecem suporte ao professor na elaboração de seu planejamento e diversificação de suas aulas. Outra questão a ser considerada, é o baixo desempenho escolar na educação básica, fator crucial para o aumento da evasão e do abandono escolar. Alguns especialistas consideram que o bom desempenho escolar é o resultado da combinação do capital sociocultural e a qualidade da oferta do ensino. Assim, uma interpretação possível considera que diante da debilidade do capital sociocultural das populações do campo, as taxas de analfabetismo tendem a aumentar cada vez mais. Porém devemos ainda considerar fatores como, desamparo do governo à educação rural, defasagem na formação inicial e continuada dos educadores e ainda a implantação de uma educação urbanocêntrica para as populações que vivem no campo, não sendo condizente com a realidade a que estão imersos. Segundo o INEP, o aumento da taxa de analfabetismo na zona rural pode ser interpretado a partir das taxas de distorção idade-série, que revela o nível do desempenho escolar e a capacidade do sistema educacional de manter a frequência do aluno em sala de aula (INEP, 2007). Ainda segundo o INEP, o problema começa nas séries iniciais do ensino fundamental, apresentando uma alta distorção idade-série com cerca de 41,4% com seus alunos com idade superior à adequada. Assim, este problema reflete ainda nos anos finais do ensino fundamental e também no ensino médio, sendo a idade elevada, um dos fatores que fazem os jovens abandonarem o ensino médio e não concluírem seus estudos. Para alunos da zona rural, a taxa de distorção idade-série no ensino médio chega a 59,1% frente a 40 46% para alunos da zona urbana (INEP, 2007, p.19). A rede de ensino da educação básica da área rural, de acordo com os dados do censo escolar de 2018, atende cerca de 4 milhões de alunos, da pré-escola aos finais do ensino fundamental, frente a aproximadamente 18 milhões de alunos atendidos no ensino básico da rede urbana. Já no Ensino Médio a rede estadual rural no Brasil atende cerca de 315 mil alunos, frente a aproximadamente 7 milhões de alunos atendidos no Ensino Médio da zona urbana, uma discrepância enorme que pode revelar a alta evasão escolar no ensino médio da zona rural. Segundo dados do último levantamento realizado pelo INEP (2004) sobre o Panorama da Educação do Campo no Brasil, a escolaridade média da população de 15 anos ou mais que vive na zona rural corresponde a quase metade da estimada para a população urbana (7,3 anos), evidenciando a necessidade de ações que visam a diminuição dessa disparidade. Os dados da Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária (PNERA) (INEP, 2005), indicam que os principais motivos para o abandono dos estudos por parte da população rural em qualquer faixa etária, são as dificuldades de acesso às escolas, a falta de oferta de ensino nos níveis pretendidos, a necessidade de auxiliar no serviço da propriedade, entre outros. Diante deste quadro preocupante a que a Educação do Campo vem sendo submetida até os dias atuais, as políticas públicas destinadas a população rural devem ser fortalecidas cada vez mais, buscando um olhar diferenciado sobre a educação neste meio, uma vez que a escola do campo vem se configurando apenas como uma extensão das escolas da zona urbana. Dessa forma, permanecem os dados apresentados no Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2010), que apontava que a taxa de analfabetismo na zona urbana se configurou em 7,06%, entretanto, na zona rural este percentual salta para 22,89%. Deve-se ressaltar que este levantamento considerou as populações acima de 15 anos. Temos até o momento, ações específicas do MEC, sendo elas o Programa Escola Ativa e o Procampo, ações estas que ainda tem se mostrado insuficientes diante das dificuldades enfrentadas pela Educação do Campo frente ao cenário nacional existência de expressiva desigualdade nos indicadores educacionais. Entre as dificuldades que ficam mais evidentes no processo educativo para o meio rural, é sem dúvida o processo de fechamento das escolas no meio rural brasileiro. De acordo com o estudo Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2012, nos últimos anos registrou-se um processo 41 acelerado de fechamento de escolas no campo. Só entre 2009 e 2010, 3.630 escolas rurais foram fechadas em todo o Brasil. No período de 2002 a 2010, o meio rural perdeu 27.709 escolas (IPEA, 2012). Segundo o IPEA, o estado que mais promoveu o fechamento de escolas do campo no período analisado, se localiza na região Norte. Rondônia fechou 1.233 escolas, o que equivale a uma diminuição de 63,1% no número de escolas rurais em 2010 em relação a 2002. Tocantins, Goiás, Rio Grande do Sul e Santa Catarina também fecharam mais de 40% de suas escolas rurais no mesmo período. No caminho inverso estão estados que abriram novas escolas do campo: Amazonas, com mais 7,2%; Amapá, com mais 6,6%; e Mato Grosso do Sul, com mais 47,1% (IPEA, 2012). Assim, oferecer um ensino de qualidade na área rural se transforma em uma das ações prioritárias para o resgate do capital sociocultural dessa população, no sentido de buscar contrapor as tendências classistas que caracteriza a educação rural desde a década de 1930 com uma formação precarizada para os povos do campo. 2.2 EDUCAÇÃO DO CAMPO A PARTIR DA PERSPECTIVA HUMANÍSTICA DA EDUCAÇÃO Ao discutirmos sobre a Educação do Campo adentramos em um contexto educacional esquecido e marginalizado durante um longo período da história do Brasil. O campo sempre foi concebido como lugar de atraso, onde pessoas analfabetas residiam, pois, só saberiam lidar com a enxada, pessoas estas sem nenhum de grau de instrução que dificilmente conseguiriam se inserir no mercado de trabalhos dos centros urbanos. Seguindo esta linha de pensamento, toda a geração de uma mesma família estava fadada a se submeter aos trabalhos braçais mais pesados, seja na lavoura ou na lida com o gado. Podemos assim dizer que aos “filhos do campo” era negado a garantia do direito à educação escolar, o mundo das letras não era necessário quando os sujeitos deveriam apenas conduzir o cabo da enxada. Tal exclusão representa o “[...] elitismo acentuado do processo educacional aqui instalado pelos jesuítas e a interpretação político-ideológica da oligarquia agrária, conhecida popularmente na expressão gente da roça não carece de estudos. Isso é coisa de gente da cidade” (LEITE, 1999, p.14). Esse pensamento excludente acarretou em graves consequências que vão desde as condições físicas das escolas do campo até na construção inconsistente de uma proposta curricular que não atende as necessidades dos povos do campo, ocorrendo muitas vezes a inserção do currículo urbano nas escolas da zona rural, sem nenhum respeito às pessoas que ali residem. 42 Sendo a educação uma prática de construção do ser humano como um todo, a mesma é condicionada por elementos culturais, econômicos, políticos e pedagógicos do contexto histórico no qual se concretiza (ARAÚJO; SILVA; SOUZA, 2013). Sendo este um processo em que não há neutralidade. A educação enquanto ação cultural não tem um fim único e acabado, pelo contrário, depende de como, por que e para quem ela é pensada e construída, de modo que os educadores tem o poder de trabalhar tanto para a humanização como para desumanização, para opressão ou para libertação dos sujeitos. Na primeira hipótese, o processo de alfabetização reforça a mitificação da realidade, fazendo-a opaca e embotando a consciência dos educandos com palavras e frases alienadas. No segundo caso, pelo contrário, o processo de alfabetização, como ação cultural para a libertação, é um ato de conhecimento em que os educandos assumem o papel de sujeitos cognoscentes em diálogo com o educador, sujeito cognoscente também (FREIRE, 1981, p. 43). Assim, toda proposta que traz em sua essência o objetivo de libertação dos oprimidos, deve ter como figura central do processo educativo o ser humano e todo o seu processo de humanização. Observa-se na Educação do Campo a preocupação de construção de uma proposta emancipadora para os campesinos, colocando-os como peça central do processo de ensino. A construção de um currículo embasado nos preceitos da Educação do Campo, deve preocupar-se em propor metodologias que promovam o diálogo, a inserção da cultura campesina e do verdadeiro valor que o homem do campo tem perante a sociedade. A visão de uma educação que promova a libertação e a valorização da figura humana, têm influência direta das ideias de Freire, que ―concebe o ser humano em suas relações com a realidade social, a história, a cultura e a educação, esta última, entendida como uma ação cultural que tanto pode ser domesticadora e conservar determinadas estruturas sociais, como também forjar as possibilidades de libertação dos sujeitos na construção de outra sociedade (ARAÚJO; SILVA; SOUZA, 2013). Por isto, a educação para a ‘‘domesticação é um ato de transferência de conhecimento”, enquanto a educação para a libertação é um ato de conhecimento e um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade (FREIRE, 2007, p. 105). Para Gadotti (1995) essa é uma das grandes contribuições de Freire para o pensamento crítico na educação, este busca em discussões de autores, tais como Bourdieu e Althusser, que entenderam o processo educativo como um modo de reprodução da cultura das classes dominantes, sendo este utilizado para controle e manutenção das relações sociais, transformando ainda a escola como palco representativo da desigualdade social. 43 Para Freire a relação entre os processos educativos deve estar diretamente vinculada à realidade dos camponeses. O autor ressalta que os mesmos ‘‘não devem ser considerados como vasilhas nas quais se vá depositando o conhecimento dos especialistas, mas pelo contrário, sujeitos também do processo de capacitação’’ (FREIRE, 2007). Este processo de depósito de conhecimento foi nomeado por Freire como Educação Bancária (FREIRE, 1987), o qual é caracterizada pela doação do “saber” por parte de sujeitos que se consideram sábios, a sujeitos que se consideram “ignorantes”, o que enaltece e evidencia o processo de opressão, havendo a exaltação da ignorância, que é quando o sujeito vê a ignorância sempre no outro e nunca em si mesmo (GOTARDI, 2012). Nesse tipo de educação podemos classificar o educador como o detentor do conhecimento, soberano e absoluto, que deposita conhecimento sobre os educandos, os quais recebem passivamente as informações, sempre memorizando-as e repetindo-as. É como se os educandos fossem fichadores que guardam e arquivam seus depósitos. Contudo, o que acontece na verdade é que os próprios educandos é quem são os arquivados. Assim, nessa visão bancária, não há saber que possa resultar em transformação, pois para isso acontecer, deveria haver a reinvenção permanente no mundo e com o mundo por parte dos homens (FREIRE, 1987). A Educação Bancária reflete o caráter opressor da sociedade, como pode ser visto por meio das suas características como descritas em Freire (1987): a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos (FREIRE, 1987, p. 34). A Educação Popular do Campo tem em Freire uma de suas principais referências, se apropriando de uma visão crítica e libertadora e opondo-se diretamente à uma suposta visão neutra de educação rural (ARAÚJO; SILVA; SOUZA, 2013). Portanto, o ser humano inserido no contexto da Educação do Campo é considerado como um ser em constante transformação, influenciado pela natureza e por suas interações socioculturais, tendo Freire considerado o ser humano como “ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE, 1967, p. 39). 44 Para Freire (1967) o hom