Marília / SP 2024 FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - CÂMPUS DE MARÍLIA DANIELLY LIMA DOS SANTOS José Bonifácio de Andrada e Silva e Silvestre Pinheiro Ferreira: Duas vertentes da filosofia no Brasil dos Séculos XVIII - XIX DANIELLY LIMA DOS SANTOS José Bonifácio de Andrada e Silva e Silvestre Pinheiro Ferreira: Duas vertentes da filosofia no Brasil dos Séculos XVIII - XIX Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Câmpus de Marília, para obtenção do título de mestre em Filosofia. Orientadora: Dr.ª Ana Maria Portich. Área de concentração: História da Filosofia, Ética e Filosofia Política. Coorientador: Prof. Dr. Kleber Cecon. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – (CAPES) 88887.684223/2022-00. Disposições bem diferentes fizeram, para mim, deste estudo, uma espécie de paixão que preenche o vazio de todas aquelas que não tenho mais. Os Devaneios do Caminhante Solitário - Rousseau AGRADECIMENTOS As pessoas que estão ou que passaram por nossa vida tornam nosso caminho mais fácil ou mais árduo. Venho agradecer a todos aqueles que abrandaram minha vida e me trouxeram até aqui. Agradeço à minha mãe, Neuzete Nobre de Lima, sem a qual eu literalmente não seria. É a grande responsável por eu insistir em continuar sendo neste mundo, ofereceu- me todo o suporte necessário, emocional e financeiro, para que eu pudesse finalizar esta etapa da minha vida. Ao Edevaldo Jacob, meu padrasto, que sempre me incentivou e me apoiou ou nos estudos. À minha vó, Maria de Lurdes, in memoriam. À minha orientadora, Ana Maria Portich, que anos atrás, em 2018, enxergou-me e, mesmo diante da minha defasagem educacional, não virou as costas para mim, ao contrário, mostrou-me os caminhos para preencher os buracos deixados pela minha história. Meu eu acadêmico tem muito dela e meu eu não acadêmico também. Foi e sempre será uma honra tê-la como minha guia, tê-la na minha história, pois, sem ela, meu caminho teria sido outro. Mais que uma orientadora, considero que tenha se tornado uma amiga. Parafraseando Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), repito os ditos dos agradecimentos do meu TCC: “Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração!”. Agradeço também ao meu coorientador, Kleber Cecon, que aceitou prontamente me ajudar neste processo, devido à mudança de tema. Mesmo tendo um estilo diferente, aceitou minha forma de ser orientada, escutou minhas angústias e, até sem saber, tentou amenizá-las. Mesmo em pouco tempo, conseguiu me passar ensinamentos e valores acadêmicos que levarei por uma vida. Agradeço por ter tido a chance de aprender com ele. Ao grupo de estudos GEFIC, mais especificamente aos membros Annais e Matheus, que também me acolheram em momentos emocionais delicados. Aos meus amigos e amigas em geral. Dois merecem ser destacados, Matheus Ianae e Matheus Chinellato, amigos que frequentemente me deram ânimo para viver. Aos professores membros da banca examinadora, pela pronta aceitação ao convite. Por fim, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – código de Financiamento 001. RESUMO Encontra-se nesta dissertação um estudo sobre a filosofia do Brasil do período iluminista, mediante a análise de obras de José Bonifácio de Andrada e Silva e Silvestre Pinheiro Ferreira. Sob uma perspectiva histórica, identifica-se o interesse pela filosofia natural no Brasil-Colônia como herança do pragmatismo português. A obra de José Bonifácio comprova a hipótese da necessidade histórica da filosofia brasileira, marcada pelo empenho em colocar a teoria em prática. Por outro lado, sob uma perspectiva mais propriamente filosófica, a filosofia no Brasil teria enfrentado problemas especulativos decorrentes da fortuna crítica do empirismo, razão pela qual os textos de Silvestre Pinheiro condicionam a possibilidade de atingir um nível mais profundo de conhecimento pelo incremento da linguagem. Em segundo plano, verifica-se que as duas vertentes, de Silvestre Pinheiro (filosófica) e José Bonifácio (histórica), conferem à linguagem um papel fundamental. Palavras-Chave: José Bonifácio de Andrada e Silva; Silvestre Pinheiro Ferreira; Condillac; Iluminismo no Brasil; Filosofia da Linguagem ABSTRACT This dissertation consists of a study of philosophy in Brazil during the Enlightenment period, through the analysis of works by José Bonifácio de Andrada e Silva and Silvestre Pinheiro Ferreira. From a historical perspective, the interest in natural philosophy in Colonial Brazil is identified as a legacy of Portuguese pragmatism. The works of José Bonifácio prove the hypothesis of the historical necessity of Brazilian philosophy, marked by a commitment to putting theory into practice. On the other hand, from a more purely philosophical perspective, philosophy in Brazil would have faced speculative problems arising from the critical fortune of empiricism, which is why Silvestre Pinheiro's texts condition the possibility of reaching a deeper level of knowledge by enhancing language. In the background, the two strands, namely Silvestre Pinheiro's (philosophical) and José Bonifácio's (historical), give language a fundamental role. Keywords: José Bonifácio de Andrada e Silva; Silvestre Pinheiro Ferreira; Condillac; Enlightenment in Brazil; Philosophy of Language P á g i n a | 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10 Uma Perspectiva Histórica sobre a Filosofia na Ilustração Luso-Brasileira............... 11 José Bonifácio de Andrada e Silva ............................................................................. 16 Uma Perspectiva Filosófica sobre a Filosofia na Ilustração Luso-Brasileira ............. 19 Silvestre Pinheiro Ferreira .......................................................................................... 23 CAPÍTULO 1: A HISTÓRIA DA FILOSOFIA NATURAL NO BRASIL-COLÔNIA 25 CAPÍTULO 2: A FILOSOFIA NATURAL NO BRASIL-COLÔNIA.......................... 43 CAPÍTULO 3: JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA .................................... 59 CAPÍTULO 4: SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA .................................................. 87 4.1 SILVESTRE PINHEIRO, LEITOR DE CONDILLAC ......................................... 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 126 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 130 P á g i n a | 9 P á g i n a | 10 INTRODUÇÃO “[...] a história natural [...] está, na realidade, entrecruzada com uma teoria das palavras”. As Palavras e as Coisas - Michel Foucault É indispensável, ao tratar do Iluminismo, considerar as consequências da secularização do conhecimento frente à dominação da Igreja no âmbito filosófico, “[...] restando apenas a correspondência indissolúvel e direta, sem mediações, entre a natureza e o homem que se põe a conhecê-la através de seu próprio entendimento”1. O mistério, que era exaltado, perde seu valor, o que, como mostra Paolo Rossi, é visto de maneira mais clara nas ciências naturais, mais especificamente, na química2. “A natureza tornou- se o espaço ideal de construção do saber para o pensamento da Ilustração”3. No Brasil-Colônia, essa tendência da filosofia moderna fica patente principalmente na obra de José Bonifácio de Andrada e Silva4, nascido na cidade Santos, e Silvestre Pinheiro Ferreira, português com atuação no Rio de Janeiro como professor de filosofia de 1813 a 1821. O pensamento de Silvestre Pinheiro é ligado ao de José Bonifácio pela importância imputada à linguagem no papel de aquisição de conhecimento. Tanto Silvestre Pinheiro Ferreira quanto José Bonifácio de Andrada e Silva acreditam que o domínio da linguagem equivalha ao conhecimento. No século das Luzes [...] a nomeação e a classificação das espécies naturais equivaliam ao conhecimento destas mesmas espécies, uma vez que para nomear e classificar é necessário que o homem de ciência conheça o caráter que distingue essencialmente as espécies umas das outras5. 1 PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A Investigação da Natureza do Brasil-Colônia. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000, p. 45. 2 Cf. ROSSI, Paolo. O Nascimento da Ciência Moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001, p. 284-322. 3 VARELA, Alex Gonçalves. Juro-lhe pela Honra de Bom Vassalo e bom Português: Análise das Memórias Científicas de José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Annablume, 2006, p. 37. 4 Como o termo ‘cientista’ não existia e José Bonifácio referia-se a si mesmo como um filósofo naturalista, “[...] optaremos por denominá-lo como um filósofo natural”. VARELA, Alex Gonçalves. Op. Cit., p. 92. 5 VARELA, Alex Gonçalves. Juro-lhe pela Honra de Bom Vassalo e bom Português: Análise das Memórias Científicas de José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Annablume, 2006, p. 46. P á g i n a | 11 Os ilustrados das ciências naturais, como da botânica, mineralogia e zoologia, acreditavam que, “[...] através dos métodos e das classificações, através das discussões sobre a terminologia”6, transforma-se o cenário da ciência, não apenas por trazer definições mais enxutas, mas porque através de um sistema de linguagem podemos nos orientar na natureza. Uma das características do assim chamado iluminismo foi a necessidade de tornar públicas as descobertas da ciência moderna, o que significava objetivar o que antes era considerado sobrenatural, enigmático como, por exemplo, os conhecimentos alquímicos. Nem sempre a comunicação pública e a discussão de ideias e teorias foram consideradas valores positivos. O conhecimento alquímico das grandes arcanas, por exemplo, era algo que, teoricamente, deveria ser ensinado apenas aos escolhidos e iniciados, transmitido de um mestre adepti para o aprendiz via linguagem decodificada e alegórica. Muitos consideravam esse saber um donun Dei, ou seja, um presente de Deus para os escolhidos, que não poderia cair em mãos erradas e não deveria ser de domínio público 7. No pano de fundo da publicização do saber científico está a emergência de uma linguagem que desse conta desse processo de objetivação, demarcando a passagem do saber oculto hermético – ao conhecimento científico público. Como diz Paolo Rossi, a ciência moderna preza pelo rigor linguístico em detrimento a linguagem enigmática: “As teorias devem ser integralmente comunicáveis e as experiências repetíveis sempre que for preciso” 8 . Uma Perspectiva Histórica sobre a Filosofia na Ilustração Luso-Brasileira 6 ROSSI, Paolo. Op. Cit., p. 313 – 314. 7 CECON, Kleber. “Sobre a Origem das Academias Científicas”. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, 2021, p. 9. 8 ROSSI, Paolo. Op. Cit., p. 44 P á g i n a | 12 A análise do texto de Maria Odila da Silva Dias nomeado Aspectos da Ilustração no Brasil foi o ponto de partida para este estudo. Silva Dias chama atenção para o fato de que, quando se trata do Brasil colonial, os estudiosos costumam focar suas pesquisas no campo político e ético, no entanto, apesar de os autores brasileiros dessa época terem tido participação efetiva nas manifestações políticas, seu objetivo é entender a influência que as “[...] ideias secularizadoras da mentalidade ilustrada europeia [tiveram] sobre esses intelectuais brasileiros dos fins do século XVIII e início do XIX”9, porque são essas ideias que levam os brasileiros a trilhar os caminhos científicos. Segundo a autora, a obra dos naturalistas luso-brasileiros tem um aspecto predominantemente prático, visto que eles foram guiados em seus estudos por necessidades práticas, imediatas: “[...] os estudiosos brasileiros dos fins do século XVIII tiveram suas obras marcadas por uma atitude idêntica. Imbuídos do mesmo estado de espírito, hão de procurar ser úteis e aproveitar ‘as luzes’, voltando seus estudos principalmente para a agricultura”10. De acordo com Antônio Paim, o interesse científico, tanto em Portugal quanto no Brasil colonial, se dá pela ruptura em 1759 com o ensino jesuíta. “Daí em diante e até a Independência, o interesse maior estará voltado de um lado para a formação meramente científica”11. Isto porque, como veremos mais detalhadamente nos próximos capítulos, antes os jesuítas detinham o domínio do ensino no Império e em suas colônias. A filosofia ensinada pelos jesuítas pode ser caracterizada como uma filosofia tradicional, que consistia “[...] no curso superior em três anos de filosofia (Aristóteles) e quatro de Teologia (S. Tomás). A ideia básica defendida pela pedagogia da Companhia de Jesus 9 DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1968, p. 106. 10 Ibid., p. 109-110. 11 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Humanidades, vol. 2, 2007, p. 11. P á g i n a | 13 era a da subordinação da filosofia à teologia”12. Há um apreço no ensino jesuítico pela física aristotélica, recusando qualquer outra. O domínio dos jesuítas é descrito por Paim como o momento da segunda escolástica, em que o contato com autores da filosofia moderna era proibido por lei, diretriz que só em meados do século XVIII é suprimida. “Deve-se o esfacelamento da escolástica, em Portugal, antes de mais nada à intervenção, algo abrupta da corrente política, chefiada por Pombal, que se propunha fortalecer o instituto da monarquia absoluta a esta subordinando a própria Igreja”13. As teses cartesianas e newtonianas eram combatidas em Portugal por supostamente contrariar os princípios religiosos que tinham como base o aristotelismo. No entanto, Paim afirma que na metade do século XVIII a escolástica já havia sido superada nos países vizinhos de Portugal; como exemplo menciona que na Inglaterra a metafísica já não era tão bem-vista e o filósofo responsável por esta mudança teria sido Locke. Três correntes filosóficas abalaram a força da filosofia escolástica (tradicional) em Portugal e, por consequência, no Brasil: o cartesianismo, não por sua metafísica, mas por inovações no campo da física, “[...] o empirismo, pelo desapreço da problemática tradicional e correlativo interesse pelos resultados da observação e da experimentação concreta”14; e o ecletismo, pela recusa à autoridade e ao espírito de sistema. A tensão entre filosofia tradicional e filosofia natural na Ilustração diz respeito à luta contra a escolástica pretendia justamente “[...] demolir a física peripatética”15. A recusa à escolástica em Portugal vincula-se ainda ao absolutismo monárquico e ao processo de renovação do ensino impulsionado pelo Marquês de Pombal, o que 12 Ibid., p. 15. 13 Ibid., p. 26. 14 Ibid., p. 27. 15 Ibid., p. 27. P á g i n a | 14 possibilitou a geração de uma elite brasileira de naturalistas, “[...] entre os quais se destacam José Bonifácio de Andrada e Silva [...]. Aos brasileiros é que incumbiria levar a revisão da escolástica às últimas consequências”16. Para Paim, o desenvolvimento da ciência moderna é responsável por minar a física aristotélica17. Portanto, com a expulsão dos jesuítas o ensino da filosofia, quando se trata do Brasil-Colônia, torna-se o ensino das ciências naturais. Como escreve Paim, o tema central na modernidade é o da experiência, “[...] que se tornou nuclear não apenas para as correntes empiristas”. Havia um desinteresse por parte dos luso-brasileiros no que diz respeito aos problemas teóricos suscitados pelo empirismo clássico, o que resultou no aparecimento de um empirismo mitigado em terras luso-brasileiras. As teses do empirismo mitigado podem ser determinadas da seguinte forma: I) a verdadeira filosofia reduz-se à ciência, sendo ilegítima a metafísica ensinada em Portugal até as reformas pombalinas; II) o conhecimento se origina nas sensações, embora se possa apreender em nossa mente a presença de certas idéias cuja proveniência não se pode estabelecer com precisão; III) em matéria de filosofia natural, a verdade está com os modernos; e, IV) no terreno moral, embora sejam legítimas algumas teses modernas, cumpre seguir a tradição.18 O historiador da ciência José Carlos de Oliveira salienta a importância de D. João IV para o desenvolvimento da ciência na Colônia. O aspecto prático da filosofia enquanto ciência operativa, que significa que as pesquisas eram determinadas por questões práticas como, por exemplo, o aumento das riquezas do reino, foi mais incentivado pela Corte que o aspecto teórico. No que diz respeito ao Brasil-Colônia, José Carlos de Oliveira assume 16 Ibid., p. 34. 17 Cf. Ibid., p. 18. 18 Ibid., p. 37. P á g i n a | 15 uma abordagem externalista da história da ciência, porque a própria política influenciou a “[...] cultura científica brasileira”19. Para Carlota Boto, o Iluminismo desdobra-se de maneiras diferentes em cada país, além disso, a ciência no século XVIII está ligada à política, o que significa que são questões práticas que guiam as pesquisas. Corrobora a tese de que foi Verney o filósofo de Portugal que iniciou a crítica ao aristotelismo, principalmente no campo da física ou da química. Acrescenta que houve também a "[...] recusa dos padrões filosóficos”, anteriores à reforma de Pombal. “Por tal razão, ao tratar dos Cursos das ciências naturais e filosóficas, os Estatutos declaram abolir de todas as escolas do reino a filosofia escolástica"20. João Cruz Costa, na Contribuição à História das Ideias no Brasil, também afirma que na Colônia os trabalhos dos naturalistas são definidos pelo interesse prático, por uma herança Portuguesa. Os luso-brasileiros rejeitam a mera especulação, o que para Costa é positivo, pois seria um ato de liberdade em relação à filosofia tradicional. Maria Elice Brzezinski Prestes, em seu livro A Investigação da Natureza do Brasil Colônia, afirma que os primeiros trabalhos da natureza realizados na Colônia, foram pouco estudados, muitos até receberam a atenção dos pesquisadores, mas só no campo político, sendo ignorados seus trabalhos científicos. O foco do seu estudo recai sobre o naturalista Manuel Arruda da Câmara, que foi “[...] beneficiário do então criado cargo de ‘naturalista-viajante’, pelo qual tornava-se encarregado de cumprir as determinações da 19 OLIVEIRA, José Carlos de. D. João VI - Adorador do Deus das Ciências? A Constituição da Cultura Científica no Brasil (1808-1821). Rio de Janeiro: E-papers, 2005, p. 35. 20 BOTO, Carlota. “A Dimensão Iluminista da Reforma Pombalina dos Estudos: das Primeiras Letras à Universidade”. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Educação, v. 15 n. 44, 2010, p. 154. P á g i n a | 16 Coroa no que tangia ao levantamento de recursos naturais do Brasil”21, como foi José Bonifácio. Os trabalhos científicos produzidos pelos naturalistas, enquanto colonos, visavam a fins práticos, pretendendo desenvolver, por exemplo, através da agricultura, o fomento econômico de Portugal, ou seja, eram guiados por diretrizes práticas determinadas pela Coroa. Para a autora, o que caracteriza a passagem da Renascença para o que ela chama de nova ciência, ou filosofia da natureza, é a exigência de que as teses fossem colocadas à prova, testadas, observadas e descritas. “A nova ciência incitava a ideia de que o mundo era um sistema puramente material que podia ser explorado para o benefício do homem”22. José Bonifácio de Andrada e Silva José Bonifácio de Andrada e Silva é uma figura marcante quando se trata do interesse prático como característica a filosofia natural no mundo lusitano: “A obra científica de José Bonifácio é bem representativa do novo estado de espírito vigente [em que há uma exaltação das ciências naturais] no seio da elite luso-brasileira”23 . Antônio Paim foi, entre os estudiosos da filosofia no Brasil-Colônia, o que mais deu atenção para a produção científica de Bonifácio. Na passagem da filosofia tradicional à natural, Ao invés do saber especulativo, ‘prescreve-se o conhecimento das regras newtonianas estabelecidas na Filosofia Natural’ [...]. Era natural, pois, que o novo saber se entendesse em seu sentido próprio, isto é, como eminentemente operativo, consoante se pode ver da 21 PRESTES, Maria Elice Brzezinski. Op. Cit., p. 14. 22 Ibid., p. 51. 23 Cf. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Humanidades, vol. 1, 2007, p. 158. P á g i n a | 17 obra de uma figura das mais representativas desse espírito: José Bonifácio de Andrada e Silva24. Vê-se que, resultante da aplicação de princípios teóricos das ciências naturais, como a física, a química, a botânica e a mineralogia, José Bonifácio considerava de suma importância a atividade agrária para o incremento da riqueza do Império, no entanto, como mineralogista, defendia que nosso desenvolvimento econômico dependia da exploração de bosques e minas de carvão, bem como de demais minérios. Após implementar e ocupar a cadeira de mineralogia na universidade de Coimbra, Bonifácio também ocupou cargos governamentais em Lisboa, tendo tido sucesso na instalação da máquina a vapor movida a carvão vegetal, com a qual colocou em atividade a fábrica de ferro de Figueiró, no norte de Portugal, obtendo uma notável produção de ferro. Descobriu carvão na cidade do Porto e promoveu expedições em busca de minas de prata e estanho. Esta máquina a vapor foi importada da Inglaterra sob recomendação de José Bonitácio, sendo a base para a revolução industrial que ele vislumbrava. Uma das razões do sucesso da disciplina de mineralogia na Universidade de Coîmbra foi, de acordo com Paim, decorrente do “[...] espírito dominante na reforma dos cursos universitários, antes referido, isto é, o cunho pragmático”25. Abraham Gottlob Werner (1750/1817), que foi professor de José Bonifácio na Escola de Minas de Freiberg, Alemanha, entre 1792- 179426, foi o responsável por separar a mineralogia da química, fazendo dela uma disciplina independente: “[...] a posição de destaque ocupada pela mineralogia, nesse primeiro momento de contato da cultura luso-brasileira com a ciência nova, resulta de uma correta apreensão de seu cunho operativo”27. 24 Ibid., p. 156 – 157. 25 Ibid., p. 157. 26 Cf., MENCK, José Theodoro Mascarenhas. José Bonifácio de Andrada: Patriarca da Nacionalidade. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019, p. 47. 27 PAIM, Antônio. Op. Cit., p. 158. P á g i n a | 18 Nos textos de José Bonifácio há a insistência na correlação necessária que o conhecimento teórico deve ter com o técnico. Sendo formado pós-reforma de Pombal, Bonifácio não aprecia o ensino escolástico, “[...] o que corresponde à mudança radical se tivermos em vista que a reação iniciada por Verney tivera lugar apenas há alguns decênios e encontrara de pronto oposição encarniçada”28. Miriam Dolhnikoff, autora da biografia José Bonifácio, endossa que seu posicionamento filosófico resultou da reforma do ensino promovida pelo Marquês de Pombal, momento em que a Universidade de Coimbra se aproximou das ideias científicas modernas. Na Universidade Coimbra, José Bonifácio formou-se em direito e filosofia, que na época se destacava pelos cursos de ciências naturais, desse modo, ele se vê como um filósofo naturalista. Isto porque José Bonifácio carrega a ideia de que o filósofo ilustrado usava seus conhecimentos para o exercício científico, ou o desenvolvimento de técnicas que visassem solucionar problemas sociais, exemplo disso é o experimento que chegou a realizar com a casca da quina, planta originária do Peru usada para fins medicinais. Sua pesquisa objetivava ampliar o conhecimento sobre a quina para o uso médico, visto que a quina é até hoje usada na cura contra doenças como a malária. No segundo capítulo desta dissertação analisaremos a produção científica de José Bonifácio, classificando-a, em consonância com os referidos comentadores, como um veículo de “[...] difusão do enciclopedismo”, o que implica adesão ao “[...] utilitarismo e o pragmatismo, assim como a vontade e o desejo de classificar os elementos”29. Identificamos ainda na obra do autor o zelo pela linguagem científica acurada, que, para José Bonifácio, tem um papel central no aprofundamento da ciência, para tanto, 28 Ibid., p. 159. 29 VARELA, Alex Gonçalves. Op. Cit., p. 93. P á g i n a | 19 além de seus trabalhos de cunho estritamente prático, utilizamos os discursos que produziu para a Academia Real de Ciências. Uma Perspectiva Filosófica sobre a Filosofia na Ilustração Luso-Brasileira Na revisão de literatura sobre a filosofia no Brasil entre os séculos XVIII e XIX constatamos que a maioria dos comentadores, como João Cruz Costa, José Carlos de Oliveira, Maria Odila da Silva Dias e Miriam Dolhnikoff salientou que o aspecto prático que a filosofia assumiu no Brasil, em decorrência do Iluminismo, foi uma herança portuguesa. Bento Prado Jr. faz uma provocação, propondo um caminho diferente quando se trata da filosofia no Brasil. Em seu texto “O Problema da Filosofia no Brasil”, afirma que há “[...] historiadores preocupados em recortar a história do pensamento segundo as fronteiras dos ‘espíritos das nações’”30, de modo a achar aspectos particulares de um conjunto de obras que justifiquem atribuí-las a uma mesma nação, com o intento de identificar uma filosofia nacional. Prado Jr. afirma que, para discriminar uma filosofia nacional, procura-se “[...] ultrapassar a diversidade dos estilos e temas que separa aparentemente os pensadores e as gerações”31, de modo a encontrar uma visão comum de mundo compartilhada entre os pensadores de uma determinada nação. Assume-se assim uma ideia de identidade na história, em que as filosofias se sucedam formando uma unidade. Nessa perspectiva, “[...] a filosofia apenas exprime algo que a precede e não podemos distingui-la jamais da mera ideologia”32. 30 PRADO JÚNIOR, Bento. “O Problema da Filosofia no Brasil”. In Alguns Ensaios: Filosofia, Literatura, Psicanálise. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 153. 31 Ibid., p. 154. 32 Ibid., p. 154. P á g i n a | 20 Para Bento Prado Jr. é inegável que haja obras filosóficas no Brasil, entretanto, não há escolas filosóficas, pois, mesmo que estejam representadas aqui grandes escolas e tendências, o que significa que no Brasil “[...] também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo”33, os pensadores luso-brasileiros seriam quase sempre meros divulgadores. Disto resulta que a coesão da filosofia brasileira sempre venha de fora, pois trabalhos filosóficos aqui produzidos não formam um sistema próprio. Bento Prado acrescenta que resenhar as obras brasileiras não resultará em nada para um ‘‘leitor europeu’’, porque “[...] não há no Brasil um conjunto de obras filosóficas que componha um sistema ou uma tradição autônoma”34. Para justificar sua hipótese, Prado Jr. analisa a Contribuição à História das Ideias no Brasil, de João Cruz Costa, texto no qual, segundo Prado, o autor propõe uma tese prospectiva, buscando no passado da história brasileira os germes do que acredita ser, ou que deveria ser, a filosofia no futuro. A obra de Cruz Costa repousa sobre pressupostos filosóficos como a crença no progresso em linha reta. “O que se perde, dessa perspectiva, é a heterogeneidade dos campos epistemológicos nos quais gravitam os diversos discursos e onde eles vão buscar as suas regras de formação”35. Cruz Costa segue uma linha de raciocínio que “[...] opõe formalismo a realismo, especulação a pragmatismo, transoceanismo a radicação da cultura nacional, metafísica a crítica social”36, fazendo uma generalização do pensamento brasileiro, por consequência, perdendo as nuances que há entre os pensadores. Paulo Margutti escreveu dois volumes sobre a História da Filosofia no Brasil. No primeiro volume, sobre a filosofia no Brasil colonial, ressalta que deseja trabalhar em cima de uma filosofia do Brasil e não apenas produzida em solo brasileiro, o que não seria 33 Ibid., p. 155. 34 Ibid., p. 156. 35 Ibid., p. 168. 36 Ibid., p. 160. P á g i n a | 21 contraditório, na medida em que é possível identificar “[...] a existência de uma filosofia praticada no Brasil com características próprias e que, mesmo assim, não perde o caráter da universalidade”37. Ele também criticou a abordagem de cunho histórico da filosofia feita por Cruz Costa, porque sua crítica aos autores brasileiros costuma ser dirigida ao estilo desses autores, principalmente daqueles que fogem ao aspecto puramente prático da filosofia luso-brasileira que ele defende. Cruz Costa teria se baseado “[...] em pressupostos que se sobrepõem ao sistema e o avaliam a partir de um ponto de vista exterior”, fazendo um “[...] julgamento apriorístico sobre a apropriação inadequada das doutrinas europeias por parte dos nossos pensadores e [que] constitui uma tentativa de justificar isso por meio de fatos históricos alheios aos sistemas considerados”38. Prado Jr. dá como exemplo de uma vertente alternativa ao pragmatismo da filosofia no mundo português do século XVIII e XIX a obra de um “[...] pensador que não abandonou o campo da epistéme clássica”39, Silvestre Pinheiro Ferreira. Gérard Lebrun também escreveu sobre os problemas da filosofia nacional, em sua resenha sobre Consciência e Realidade Nacional, de Álvaro Vieira Pinto. Lebrun diz que é uma característica dos países colonizados o divórcio com a realidade nacional, assim, autores como Vieira Pinto insistem na necessidade de formação de uma cultura nacional, no prisma da independência intelectual. Para Lebrun, quando se fala sobre a consolidação de uma cultura nacional, fala-se de algo que já está esboçado, porque se “[...] a cultura já morreu quando nos propomos a defendê-la, [...], ela já nasceu quando nos propomos a promovê-la”40. Falar de uma cultura nacional também implica resolver questões prementes e pertinentes, como a erradicação do analfabetismo no Brasil, afinal, trata-se 37 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: O Período Colonial (1500 – 1822). São Paulo: Loyola, 2013, p. 41. 38 Ibid., p. 34. 39 PRADO JÚNIOR, Bento. Op. Cit., p. 169. 40 LEBRUN, Gérard. A “Realidade Nacional” e seus Equívocos. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 166. P á g i n a | 22 da cultura de um país subdesenvolvido, cuja, “[...] educação não se separa da educação política”41, consequentemente, não podemos nos furtar à busca pela emancipação. Lebrun critica Álvaro Vieira porque, ao reduzir o conhecimento a uma tomada de consciência política, nega-se a objetividade da ciência. Não seria possível “[...]conservar o terreno de objetividade indispensável a toda ciência e ao mesmo tempo conceber toda ciência como um produto histórico e nacional”42. Não se pode reduzir o aspecto objetivo de uma teoria ao estudo do contexto histórico em que ela foi elaborada, é preciso estudar “[...] o estudo estrutural dos conceitos”43 de que os filósofos lançam mão, o que significa que as leis físicas, a lógica etc., não são categorias subjetivas, passíveis de modificação conforme a formação intelectual de um povo periférico ou não. A crítica de Lebrun a Vieira Pinto segue, então, o mesmo caminho que a de Bento Prado Jr., onde se identifica um programa ideológico disfarçado de história da filosofia brasileira. De nossa parte optamos por considerar a trama portuguesa, mesmo tendo em mente que a nossa história não se limita a ela. José Bonifácio e Silvestre Pinheiro Ferreira permitem mostrar vertentes diferentes da filosofia no Brasil: uma vertente que parte de um olhar histórico, em que o aspecto prático é colocado como demarcador. Outra vertente considera os autores luso-brasileiros objetivamente, concluindo que a filosofia não pode ser determinada por seu contexto histórico, pois “[...] precisamos conhecer tanto as intenções do autor como a estrutura lógica do seu texto”44. 41 Ibid., p. 168. 42 Ibid., p. 180. 43 Ibid., p. 181. 44 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: O Período Colonial (1500 – 1822), p. 36. P á g i n a | 23 Silvestre Pinheiro Ferreira Um autor que foge da visão tida como hegemônica pelos historiadores da filosofia no Brasil-Colônia é, segundo Bento Prado Jr., Silvestre Pinheiro, cujo sistema não se limitou a defender o aspecto utilitário e a aplicação prática da filosofia. Como menciona Paulo Margutti, Silvestre Pinheiro Ferreira diverge da tendência do empirismo mitigado45, que se define por ver a filosofia como ciência operativa, pois seu trabalho não se resume a problemas éticos ou políticos, como os naturalistas. Como afirma Paim, é Silvestre Pinheiro que trará para o debate as questões ignoradas no empirismo mitigado: [...] é o primeiro pensador a atacar frontalmente o empirismo mitigado, despreocupado da defesa da filosofia tradicional, em nome da própria coerência do empirismo. [...]. Longe de obscurecer as dificuldades do sensualismo, irá afrontá-las de forma direta. Graças a tudo isto e ao magistério de filosofia que exerceu no Rio de Janeiro, ao longo da segunda década do século, lançou as bases para o debate dos temas modernos, que iria empolgar parte da intelectualidade nas décadas de trinta e quarenta.46 O pressuposto filosófico da obra de Pinheiro Silvestre é que o raciocínio se subordina ao organismo, porque as sensações são provenientes dos órgãos exteriores e os sentimentos, dos órgãos interiores. Assim, ele rejeita um certo dualismo, ao [...] reduzir tudo à sensibilidade. Isso lhe permite alegar que, do ponto de vista da evidência sensorial, o dualismo alma/corpo é um pseudoproblema e que não apenas as nossas ideias, mas também os sentimentos lógicos pertencem ao domínio da sensibilidade47. 45 Paulo Margutti contesta o termo “empirismo mitigado” usado por Antônio Paim para definir filosofias como a de Silvestre Pinheiro, propondo como alternativa a expressão “empirismo espiritualista” que seria o termo ideal para se referir àqueles que tentam conciliar no ser humano “[...] uma posição sensualista em relação à origem das ideias com uma posição racionalista em relação à presença de uma alma e suas faculdades”. in MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: Ruptura Iluminista (1808 – 1843). São Paulo: Loyola, vol. 2, 2020, p. 124. 46 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Humanidades, vol. 2, p. 50-51. 47 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: Ruptura Iluminista (1808 – 1843), 2020, p. 149. P á g i n a | 24 Devedor do empirismo, Silvestre Pinheiro Ferreira defende então que tudo começa na sensação, mas para que as sensações venham futuramente a ser articuladas em conhecimento é preciso que sejam objetivadas, e isto só pode ocorrer mediante ao desenvolvimento da linguagem. Portanto, para Silvestre Ferreira a linguagem é central, como Maria Beatriz Nizza da Silva afirma, o debate no qual o filósofo está inserido nasce no momento que se considera que o homem só tem acesso direto ao seu pensamento e o mundo exterior só seria conhecido mediante sinais da linguagem: a questão é se há uma correspondência entre os sinais e os seus referentes, se a ideia tem relação com o signo. Se a linguagem é o meio pelo qual a sensação pode vir a ser conhecimento, a linguagem é o que possibilita conhecer as coisas, pois “[...] as palavras são sinais de nossas ideias, [..., bem como] são indispensáveis na atividade individual de pensamento”48. Paim considera que, se a conformação fisiológica é que vai definir a concepção de nossas ideias, o empirismo defendido por nosso autor leva-o a “[...] impasses muito próximos daqueles com que se defrontam os mais destacados representantes do sensualismo francês”49 , como Condillac, autor que Silvestre Pinheiro cita e confronta em seus textos. Isso porque as ideias de um indivíduo jamais corresponderiam às de outro, já que emanam de reações orgânicas intrasferíveis. Sendo assim, as palavras não poderiam transmitir plenamente o significado das ideias, implicando uma teoria da linguagem relativista ou arbitrária contestada por Pinheiro Ferreira. 48 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Silvestre Pinheiro Ferreira: Ideologia e Teoria. Lisboa: Augusto Sá da Costa, 1975, p. 141. 49 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Humanidades, vol. 1, p. 37. Página | 25 CAPÍTULO 1: A HISTÓRIA DA FILOSOFIA NATURAL NO BRASIL-COLÔNIA Salta aos olhos a inexistência de universidades e mesmo a dificuldade de se manterem academias no Brasil-Colônia. Diferentemente da Espanha, não havia universidades nas colônias de Portugal, porque Portugal não autorizava o ensino superior em suas colônias. No Brasil-Colônia existia apenas o ensino regular nos seminários, uma educação de cunho religioso que também preparava os alunos para cursarem uma universidade na Europa. Portugal evitava levar o ensino de ciências para as suas colônias, porque isso poderia implicar autonomia intelectual, formando-se uma nacionalidade e, por consequência, ameaçando seu domínio. “Uma maneira de controlar a difusão dos conhecimentos no Brasil era conservar o ensino superior em Portugal”1. Portanto, os pensadores brasileiros eram obrigados a ir à Europa para dar sequência ao ensino básico, sendo que a maior parte ia para a Universidade de Coimbra, como no caso de José Bonifácio. Antes da vinda da Corte para o Brasil, houve associações entre os intelectuais da Colônia para a consolidação de academias. Na época o termo academia designava um grupo de homens letrados, não necessariamente vinculados a uma universidade. “A relação das universidades com as academias científicas não foi sempre cordial. As academias não se formaram dentro das universidades, mas fora delas e, frequentemente, em oposição às mesmas”2. Porque, como enfatiza Kleber Cecon, as pesquisas científicas, antes de serem adotadas nas universidades, que ainda no século XVII estavam presas 1 DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 87. 2 CECON, Kleber. “Sobre a Origem das Academias Científicas”. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, 2021, p. 15. Página | 26 majoritariamente à filosofia tradicional, eram feitas nas academias. “O surgimento da pesquisa científica parece estar, na verdade, muito mais atrelado ao surgimento das sociedades científicas do que à universidade”3, como eram as academias. Nesse sentido, Paolo Rossi4, ao falar sobre O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, aponta a tensão entre os ilustrados e o âmbito da universidade, afirmando que foi fora da universidade que a ciência moderna nasceu e, por vezes, em confronto com ela. A passagem da filosofia tradicional à natural, no Império português, ocorre mediante a reforma pombalina. Em geral, as academias em nosso território foram rapidamente dissipadas pela Corte, pois somente em 1821 passaram a ter licença da Coroa para se organizar. “No Brasil-Colônia as Academias tiveram duração efêmera, e a maioria dos seus trabalhos foram de cunho literário, dentre elas, destaca-se a Academia Brasílica dos Esquecidos, criada em 1724.”5. A Academia dos Esquecidos, criada em Salvador, tinha como missão desenvolver as áreas de “[...] ciências naturais, movimentação militar, eclesiástica e política, estimulando também a produção poética de seus membros”6. O material produzido pelos intelectuais desta academia sobre as terras do Brasil “[...] seria enviado para a Corte a fim de ser anexado à monumental História de Portugal, que estava sendo redigida pela Academia Real de História Portuguesa”7. 3 CECON, Kleber. Op. Cit., p. 18. 4 ROSSI, Paolo. O Nascimento da Ciência Moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001, p. 12-13. 5 ALMEIDA, Cláudia Alves de; ALMEIDA, Mário José de. “Importância do Marquês do Lavradio, 3º vice- rei, na divulgação da história natural do Brasil setecentista”. Revista Scientiarum Historia, vol. 1, n. 1, 9. 2018, p. 5. 6 ELIAS, Simone Santana Rodrigues; MARTINS, Décio Ruivo. “O Papel das Academias para o Nascimento da Elite Intelectual na América Portuguesa”. Porto: Revista da FLUP, vol. 7, n. 2. 2017, p. 55. 7 PEDROSA, Mendonça Fábio. “A Academia Brasílica dos Esquecidos e a História Natural da Nova Lusitânia o Movimento Academicista e a Academia Brasílica dos Esquecidos”. Rio de Janeiro: SBHC, vol. 32, n. 2. 2003, p. 21. Página | 27 As primeiras academias do Brasil-Colônia, de breve existência, tinham em seu horizonte um enfoque mais literário que científico, contudo, foram importantes enquanto um espaço de formação dos luso-brasileiros que suprisse aqui um conhecimento institucionalizado. Simone Santana Rodrigues Elias e Décio Ruivo Martins listam seis dessas academias: 1. Academia Brasílica dos Esquecidos, criada em Salvador, que colaborava com a Academia Real através do fornecimento de dados da Colônia. 2. Academia dos Felizes, criada pelo governador do Rio de Janeiro, Gomes Ferreira de Andrade, em 1736, tendo em sua presidência o médico Matheus Saraiva. 3. Academia dos Seletos, também do Rio de Janeiro, criada por Feliciano Joaquim de Souza Nunes em 1752, para homenagear Gomes Freire; apesar de ter sido diluída após uma única sessão, foi responsável pela primeira tipografia do Brasil, queimada a mando da Coroa, pois proibia- se a publicação de obras na Colônia. 4. A Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos foi [...] criada em Salvador no ano de 1759 [...]. Para [Antonio] Candido, a Academia abordava temas literários e históricos de forma ingênua, porém, contava com letrados de várias localidades ‘num primeiro lampejo de integração nacional’ [...], deixando de existir em onze meses de criação.8 5. D. Luís Antônio de Souza criou em 1770 a Academia dos Felizes de São Paulo, composta pela elite intelectual paulista. 6. Colônia Ultramarina na Vila Rica de Ouro Preto, de duração desconhecida, criada pelo “[...] poeta Cláudio Manuel da Costa, ao lado 8 Ibid., p. 56. Página | 28 de Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Joaquim Inácio de Seixas Brandão e Domingos Caldas Barbosa”9. Houve ainda associações como a maçonaria, que pode ser considerada uma academia, já que pregava naquele momento a difusão dos ideais das Luzes. A maçonaria enquadra-se [...] no que Augustin Cochin chamou de “sociedades de pensamento”. Segundo o historiador Jacques Godechot, na Revolução Francesa, as lojas maçônicas “contribuíram para a difusão das ideias dos filósofos, isto é, do racionalismo”.10 No Brasil a maçonaria foi um espaço de encontro e discussão para os membros da elite. Após a Revolução Francesa, foi considerada pela Coroa portuguesa uma sociedade destinada a espalhar o terror revolucionário, sendo proibida em todo o Império. Em 1821, no entanto, os maçons eram bastante ativos no Rio de Janeiro, onde havia uma importante loja maçônica denominada Comércio e Artes. Fundada em 1815, foi fechada em 1818 em função de um alvará que proibia as sociedades secretas, mas, aproveitando-se dos novos ventos liberais, foi reaberta em junho de 1821. Dela faziam parte Gonçalves Ledo, Januário da Cunha e Clemente Pereira. José Bonifácio havia ingressado na maçonaria durante o período em que foi enviado para exploração científica a vários países da Europa como bolsista pela Coroa de Portugal. Mas, segundo ele próprio declarou, em 1822 deixara de frequentar as reuniões das lojas maçônicas em Portugal por considerar que não realizavam [...] ‘os fins sublimes da verdadeira e legal maçonaria’. É certo, em todo caso, que foi em razão de seus conflitos [políticos] que resolveu abrir outra sociedade secreta no Rio de Janeiro, fundando em 2 de 9 Ibid., p. 57. 10 DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p. 165. Página | 29 junho de 1822 uma espécie de réplica da maçonaria, denominada Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz11. É interessante notar os pseudônimos que os participantes da maçonaria assumem, porque muitos são nomes de filósofos ilustrados franceses: Gonçalves Ledo, por exemplo, denomina-se Diderot, indicando a influência do enciclopedista no que diz respeito à política. Os ideais iluministas foram fundamentais para o fenômeno histórico de nossas Inconfidências, como a de Minas Gerais, ocorrida em 1789. A do Rio de Janeiro, que aconteceu em 1794, foi supostamente iniciada por integrantes da Academia Científica do Rio de Janeiro. A da Bahia, ocorrida em 1798, teve o registro de um médico, de um professor e de um militar envolvidos. “As três inconfidências se ressentiam de livros, de matéria escrita em geral, posto que os poucos livros que existiam eram de circulação restrita entre os conjurados, e muitos deles eram proibidos”12. Nesse período, a educação básica que existia no Brasil colonial era oferecida pelos jesuítas. Com a Contrarreforma católica iniciada no século XVI, houve a criação de ordens religiosas como a ordem dos Teatinos, fundada por São Caetano; os Barnabitas, por Antônio Maria Zaccaria; os Irmãos Hospitaleiros, por João de Deus; e a Congregação do Oratório, por Filipe Néri, todas visando ao combate à heresia protestante, destacando- se a ordem da Companhia de Jesus criada por Santo Inácio de Loyola. Na morte do seu criador, a ordem já contava com a administração de mais ou menos 30 colégios e, quando foi decretado o fim da Companhia de Jesus, em 1773, “[...] os jesuítas administravam mais de oitocentos estabelecimentos pelo mundo, entre 11 Ibid., p. 166. 12 OLIVEIRA, José Carlos de. D. João VI - Adorador do Deus das Ciências? A Constituição da Cultura Científica no Brasil (1808-1821). Rio de Janeiro: E-papers, 2005, p. 98. Página | 30 universidades, seminários e escolas primárias e secundárias”13. Chegados em 1540 em Lisboa, apenas 100 anos depois já dominavam a educação de Portugal, inclusive o ensino superior, já que todos os alunos que fossem para a Universidade de Coimbra tinham de passar pelo Colégio de Artes de Coimbra, dirigido pela Companhia de Jesus. Os jesuítas que vieram ao Brasil não eram apenas responsáveis pela catequese dos colonizados, eram responsáveis por organizar o “[...] sistema educacional brasileiro, do qual tiveram monopólio até 1759”14, embora não se imaginassem como pedagogos e sim como pregadores. Após o terremoto que destruiu a cidade de Lisboa em 1750, o Marquês de Pombal foi nomeado ministro de d. José I e adotou medidas para a reconstrução da cidade, o que dependia da industrialização do país, reorganizando a administração colonial e, em especial, reformando o currículo escolar através do estatuto de 1772, que criava novas faculdades e cursos. Na Faculdade de Direito, voltada até então exclusivamente para o estudo do cânone eclesiástico, foram introduzidas matérias dedicadas às leis civis. Na Faculdade de Medicina, teorias modernas passaram a integrar o currículo (incluindo matérias referentes à higiene) e o estudo da anatomia humana passou a se valer da dissecação de cadáveres, prática proibida pela Igreja. Por fim, foram criados institutos científicos (como o Jardim Botânico, o Laboratório Químico e o Gabinete de Física Experimental, entre outros) a fim de garantir que os estudos teóricos viessem acompanhados de aprendizado prático15. 13 Ibid., p. 121. 14 Ibid., p. 52. 15 Cf. DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 23. Página | 31 O estímulo inicial para o estudo da flora brasileira parte de um pedido de Pombal para levantar produtos comerciáveis na Colônia. A política visada por ele só começa a ser posta em prática pelo vice-rei Marquês do Lavradio16 e seu sucessor, Luís de Vasconcelos e Sousa17. No governo do Marquês de Lavradio, um ilustrado que sintonizava com as ideias do Marquês de Pombal, foi criada a Academia Científica do Rio de Janeiro (1772 - 1779). O mais interessante é que, apesar ser fundada na Colônia, foi “[...] a primeira academia científica do império português”18. Lavradio reuniu alguns estudiosos para compor a Academia, sendo estes “[...] nove académicos, dois médicos, quatro cirurgiões, dois boticários e um prático em agricultura”19. A Academia Científica tinha em vista o estudo da terra brasileira e a troca de informações, bem como a busca de soluções para enfermidades. Em seu estatuto afirmava-se que as reuniões aconteceriam todas as segundas-feiras, em que se apresentariam nas discussões textos claramente escritos “[...] 16 Luís de Almeida Portugal Soares Mascarenhas, Marquês do Lavradio (1729-1790), foi o décimo primeiro vice-rei do Brasil de 1769 até 1778. 17 “Décimo segundo vice-rei do Brasil, esteve no governo entre os anos de 1779 e 1790, tendo sucedido o marquês de Lavradio. Seu governo na colônia foi marcado pelo reformismo ilustrado que caracterizou Portugal nesse período, voltado para o fomento à economia, especialmente a agricultura, a melhoria da administração, o controle dos caminhos, as obras públicas e o apoio às sociedades literárias e científicas. Apoiou o cultivo do cânhamo, do anil e a indústria da cochonilha. Realizou importantes intervenções urbanísticas, de melhoramentos e embelezamento, como o Passeio Público do Rio de Janeiro, primeiro jardim público do país, projetado em 1773 pelo Mestre Valentim e inaugurado dez anos mais tarde. Foi um incentivador da obra desse artista, responsável também pela reforma do antigo Largo do Paço e pela instalação do Chafariz da Pirâmide (1789). Criou uma prisão especial para escravos que recebeu o nome de Calabouço, de modo a preservá-los dos excessos da violência dos senhores. Deu suporte às pesquisas botânicas do frei José Mariano Veloso, chefe de uma expedição científica pela província do Rio de Janeiro (1783-1790) que deu origem à publicação Flora Fluminensis. Criou ainda, em 1784, um gabinete de estudos de história natural, a chamada Casa dos Pássaros. Em 1786 aprovou a fundação da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, dedicada à difusão das Luzes, de temas científicos e literários, e que seria fechada no fim de seu governo, em 1790”. Referência: http://mapa.an.gov.br/index.php/publicacoes2/70- biografias/438-luis-de-vasconcelos-e-sousa-conde-de-figueiro 18 ELIAS, Simone Santana Rodrigues; MARTINS, Décio Ruivo. Op. Cit., p. 58. 19 ALMEIDA, Cláudia Alves de; ALMEIDA, Mário José de. Op. Cit., p. 5. http://revistas.hcte.ufrj.br/index.php/RevistaSH/article/view/116 http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-periodo-colonial/196-governador-geral-do-estado-do-brasil http://mapa.an.gov.br/index.php/publicacoes/70-assuntos/producao/publicacoes-2/biografias/436-jose-mariano-da-conceicao-veloso-frei Página | 32 e que não seria admitido nenhum que não contivesse comprovação científica”20. A Academia Científica ficaria responsável pelo Horto Botânico, pois a ideia era que os resultados dos estudos ajudassem Portugal a sair da dependência agrícola. Os trabalhos ali produzidos foram feitos tanto por portugueses quanto por luso-brasileiros. Graças aos trabalhos dessa academia difundiu-se no Rio a cultura do anil, (usado para o tingimento de roupas), do cacau, da cochonilha (corante natural de cor vermelho- escura feito a partir de um inseto, muito utilizado em alimentos), do café e começaram os levantamentos sistemáticos da flora brasileira. Sob os seus auspícios, publicaram-se em Lisboa alguns tratados de história natural do Brasil21. Apesar de o fim da Academia Científica ser associado ao fim do governo de Lavradio, Simone Santana Rodrigues Elias e Décio Ruivo Martins notam que “[...] seu fechamento ocorreu no mesmo ano [1779] em que foi criada a Academia de Ciências de Lisboa”22. Outro fator para a supressão da Academia Científica do Rio de Janeiro é que o movimento de Inconfidência desta cidade teria sido iniciado por seus membros, por isso acusados de conspiração contra a Coroa. Luís de Vasconcelos e Souza, sucessor de Lavradio como vice-rei, do Brasil, aprovou a fundação da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, que não seria uma completa substituta da Academia criada pelo Marquês do Lavradio, pois seu foco estava na parte literária, enquanto a outra se restringia ao campo científico. Como a Academia Científica do Rio de Janeiro, a Sociedade Literária tinha o objetivo de difundir as Luzes na Colônia, contudo, foi fechada no fim de seu governo. Os membros da Sociedade Literária foram 20 OLIVEIRA, José Carlos de. Op. Cit., p. 95. 21 Ibid., p. 114. 22 Ibid., p. 59. Página | 33 presos “[...] sob acusação de conspiração pró-independência [...], mais um exemplo da repressão lusitana ao desenvolvimento intelectual dos luso-brasileiros”23. A partir de 1796 uma equipe de bacharéis e cientistas luso-brasileiros se aproximaram do novo ministro da rainha D. Maria I, Rodrigo Domingos de Sousa Coutinho Teixeira de Andrade Barbosa, conhecido como D. Rodrigo. Nascido em Portugal em 1755 e falecido no Rio de Janeiro em 1812, era afilhado do Marquês de Pombal. Obstinado por reformas, Coutinho propunha uma política de inovação da agricultura e pedia aos governadores das capitanias das Colônias relatórios sobre o cultivo, sobre a exploração mineralógica e levantamentos de plantas nativas que pudessem ser levadas para o Reino, prometendo recompensas aos pesquisadores, que eram os próprios lavradores. De início os resultados foram técnicos, oferecidos por comerciantes e lavradores ilustrados que escreveram memórias sobre o uso de anil ou sobre a fábrica de descascar arroz e assim por diante. Coutinho tomava medidas para o aumento do comércio interno e externo, concedendo licença para que os comerciantes de outras nações pudessem comercializar no Brasil. Criou-se o primeiro periódico para a divulgação de conhecimentos na Colônia: a revista do Arco do Cego, “[...] fundada em 1798 com a finalidade de divulgar conhecimentos de ciências naturais e de agricultura, uma vez que a Razão, Natureza e Prática deveriam compor forças para o bem da sociedade”24. O Bispo D. José Joaquim de Azeredo Coutinho fundou em 1800 o Seminário de Olinda no lugar em que se formavam os jesuítas expulsos pelo Marquês de Pombal. O 23 Ibid., p. 61. 24 DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1968, p. 120. Página | 34 Seminário de Olinda foi criado sob a influência da reforma pombalina, trazendo consigo, para além da tradição jesuítica, que trabalhava com a gramática, o latim, a retórica e a teologia, disciplinas científicas como ciências naturais, além de outras línguas como grego e francês. O curso de Filosofia, antes ministrado pelos jesuítas, continuou a ser oferecido, mas nos moldes pombalinos, em que a filosofia pende para as ciências naturais. “E, assim, as Ciências Naturais fizeram entrada no currículo e na filosofia da educação do Brasil”25. Para José Carlos de Oliveira, antes da mudança da corte, o Seminário de Olinda é no Brasil-Colônia o que melhor representa o ensino de ciências e responsável por deslocar a filosofia tradicional em direção à filosofia natural. As cátedras oferecidas eram Teologia Prática (frei Beto da Trindade), Teologia Dogmática (Frei José Joaquim da Santa Ana Laboreiro), História Eclesiástica (padre Miguel José Reinan), Geometria (padre Miguel Joaquim Pegado), Filosofia (Frei José da Costa Azevedo), Desenho (padre João Ribeiro de Mello Monte Negro), Retórica (padre Miguel Joaquim de Almeida Castro), Grego e Francês (Antônio de Castro Delgado), Gramática Latina (padre Francisco Antônio de Brito), Cantochão [aula de canto da igreja católica] (padre Antônio de Santa Ana), Primeiras Letras (Antônio Mariz)26. Francisco Adegildo Férrer afirma que, apesar de o Seminário de Olinda não receber a devida importância dos estudiosos, foi crucial na formação intelectual do Brasil, tendo o curso mais completo do País: “Acolhia elevado número de alunos, não só os que se destinavam ao sacerdócio, como ainda todos quantos não podiam ir a Coimbra fazer os seus estudos”27. As ideias filosóficas presentes na Europa eram difundidas no 25 OLIVEIRA, José Carlos de. Op. Cit., p. 88. 26 Ibid., p. 89-90. 27 FÉRRER, Francisco Adegildo. “O Seminário de Olinda segundo a historiografia”. Revista Instituto do Ceará, 2008, p. 206. Página | 35 Seminário de Olinda, desde as aceitas, como a cartesiana28, que tinha acordo com a ordem religiosa no comando, até as consideradas subversivas, inovadoras por contrariar de algum modo a ordem política e religiosa vigente, como as de Condillac. As ideias de alguns pensadores da Ilustração punham em risco o delicado equilíbrio que o Reformismo Ilustrado português procurava manter entre a assimilação do pensamento crítico das Luzes e a contenção de seus possíveis efeitos: a contestação do absolutismo e do sistema colonial. Por isso, mereceram o repúdio veemente do aparato censório luso, que publicou vários editais interditando a circulação e a leitura dos escritos que os disseminavam29. Diante da repressão, os adeptos da filosofia natural criavam comunidades secretas, como a maçonaria, para debater ideias. Valnir Chagas enxerga no Seminário de Olinda a manifestação do Iluminismo no Brasil, porque, diferentemente das [...] aulas régias e [d]o Seminário do Convento de Santo Antônio, educandário franciscano localizado no Rio de Janeiro, [...] ele teria produzido uma ruptura em relação à “tradição deixada pela Companhia”, abrindo, dessa forma, “[...] a primeira fenda por onde enfim penetrariam no Brasil as ideias iluministas30. 28 Segundo Andrades e Barreto, apesar de Descartes ser proibido no ensino jesuítico, “[...] o qual ainda apregoava a escolástica tomista, baseada em princípios aristotélicos”, a filosofia cartesiana é sancionada pela reforma de Pombal, tendo em vista que a ordem religiosa dominante em Portugal passa a ser a dos Oratorianos, “[...] adeptos da filosofia cartesiana”. ANDRADES, José Carlos Corrêa de; BARRETO, Maria Renilda Nery. “A Reforma dos Ensinos Superiores de Coimbra e seus Reflexos nos Principais Colégios Seminários do Brasil-Colônia”. Florianópolis: XXVIII Simpósio Nacional de História, 2015, p. 4. Segundo Jonathan Israel, o cartesianismo foi crucial para a derrocada da escolástica na Europa, no entanto, com correntes filosóficas rivais fortes, como o “[...] Newtonismo (reforçado por Locke) [...], o Cartesianismo logo se mostrou o mais intelectualmente precário e foi o primeiro a ruir diante da crescente disputa filosófica e científica”. ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical: A Filosofia e a Construção da Modernidade, 1650- 1750. São Paulo: Madras, 2009, p. 526. 29 VILLALTA, Luiz Carlos. “Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leituras: Usos do Livro na América Portuguesa”. Tese de Doutorado: USP, 1999, p. 146 – 156, grifo nosso. “Em Portugal, em 1768, criou a Real Mesa Censória [...]. A instalação deste órgão acompanhava a tendência geral de secularização da censura e fazia parte da política reformista, absolutista e regalista, teórica e prática, seguida pela Coroa portuguesa a partir do reinado de D. José I, expressando, deste modo, os interesses específicos do Reformismo Ilustrado Português [...]. A Real mesa possuía uma outra notória preocupação, esta sim quase tão obsessiva como a referente aos inacianos: com os ventos mais radicais da Ilustração”. 30 FÉRRER, Francisco Adegildo. Op. Cit.., p. 211. Página | 36 Paulo Margutti afirma que teria sido a mudança da Corte para a Colônia a responsável por essa ruptura intelectual, porque “[...] foi a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil que abriu as portas para o desenvolvimento de um pensamento filosófico”31. A transferência da Corte faz com que as províncias se reúnam em torno de um centro comum, o Rio de Janeiro. Há a introdução da imprensa no Brasil, o que foi crucial para a circulação de ideias científicas através de jornais como O Patriota e o Idade d’Ouro do Brasil. Houve uma independência sem proclamação. “Ao sopro da renovação científica que a revolução acelera – tudo se animava”32, escolas de medicina foram criadas no Rio de Janeiro e em Salvador, e após a declaração da Independência fundaram-se também faculdades de direito que começaram a funcionar a partir de 1828, uma em São Paulo e outra em Olinda. Podemos dizer que as preocupações filosóficas afetaram inicialmente os médicos brasileiros, a partir de 1830, e depois chegaram aos advogados, a partir de 1865. Em virtude disso, seus reais reflexos só poderão ser observados nos períodos posteriores33. Dentre as medidas de fomento à ciência tomadas por D. João VI destacam-se o ensino da Academia Militar, que oferecia o curso de engenharia; os referidos cursos de medicinas; os cursos avulsos de formação, entre os quais agricultura, química e desenho; a fundação de bibliotecas, inclusive de uma pública, na casa em que ficava a biblioteca dos jesuítas expulsos; a liberação e criação da imprensa; o estabelecimento de instituições como o Museu Real e o Jardim Botânico. 31 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: Ruptura Iluminista (1808 – 1843). São Paulo: Loyola, 2020, p. 307. 32 COSTA, João Cruz. Contribuição à História das Ideias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 196., p. 54. 33 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: Ruptura Iluminista (1808 – 1843), p. 43. Página | 37 “Na coleção de Leis do Brasil, registra-se, em 18 de fevereiro de 1808, que a família Real ao aportar na Bahia ordena a criação da Escola de Cirurgia da Bahia, no Hospital Real”34. Além do curso da Bahia, foi criada a Escola de Medicina e Cirurgia no Hospital Militar da Bahia, juntamente com os cursos de Anatomia e Cirurgia. Entre 1808 e 1819 vê-se a criação de mais 6 cursos de medicina: Terapêutica Cirúrgica (1808); Anatomia, Medicina Operatória e Arte Obstetrícia (1809); Medicina Clínica, Teórica e Prática (1809); Higiene, Patologia e Terapêutica (1813); Operações e Obstetrícia (1813); todos no Rio de Janeiro, e o de Farmácia, na Bahia, em 181935. Criou-se na Bahia um curso chamado Cirurgia Especulativa e Prática, separação que também ocorreu no Rio de Janeiro. Faziam parte do ensino de medicina ciências como química, física, biologia, história natural e assim por diante. “As intenções de munir a Medicina com conhecimentos teóricos eram bem nítidas, visando a retirá-la do empirismo com que era executada, objetivo, aliás, revelado até nos nomes dos cursos”36. Isto porque não existiam médicos formados no Brasil-Colônia, havia o que se chamava de barbeiros, os quais faziam pequenas cirurgias e sangrias, aplicavam ventosas, faziam curativos, arrancavam dentes. Existiam ainda os boticários (farmacêuticos que preparavam e administravam os remédios), os quais também acabavam assumindo o papel de médico. 34 OLIVEIRA, José Carlos de. D. João VI - Adorador do Deus das Ciências? A Constituição da Cultura Científica no Brasil (1808-1821). Rio de Janeiro: E-papers, 2005, p. 227. 35 Ibid., p. 232. 36 Ibid., p. 243. Página | 38 Jean-Baptiste Debret. Cirurgião Negro Colocando Ventosas. Rio de Janeiro, 1826. “A precariedade do exercício da Medicina antes da vinda da corte era tão grande, que nem no meio militar havia condições de funcionamento sistemático”37. Logo, o ensino de medicina, uma preocupação direta do Reino, era uma necessidade básica para se erradicar a medicina prática existente no Brasil até a chegada da família real. D. João VI, em 1820, decretou pensões mensais aos alunos que por falta de subsistência não conseguissem continuar os estudos na Academia Médico-Cirúrgica da Corte. “Estabelecia-se pensão mensal de $9000 a alunos pobres, de bom procedimento e que mostrassem aptidão para aqueles estudos”38. Os avanços na medicina foram uma iniciativa do governo e não propriamente de uma comunidade científica dos médicos. Segundo José Carlos de Oliveira, a primeira ocorrência de um curso de ensino superior propriamente dito no Brasil se deu através da criação da Academia Real dos 37 Ibid., p. 246. 38 Ibid., p. 251. Página | 39 Guardas-Marinhas - ARGM (1782, em Portugal; 1808 em Pernambuco/Brasil) e da Academia Militar (1810), cujo currículo contava com significativa presença de ciências naturais e matemáticas, reproduzindo os modelos da Universidade de Coimbra e da Real Academia de Marinha em Lisboa. Em março de 1809 criaram-se em Pernambuco, por solicitação do meio militar, cadeiras para cálculo integral, mecânica e hidrodinâmica. Até então não havia um curso de engenharia na Colônia, mas a inserção de tais matérias indicava o interesse dos militares pela engenharia. A criação das cadeiras fora do Rio de Janeiro mostra “[...] o interesse nítido do governo de D. João com o lado profissional dos oficiais do Exército”39. A Academia Real dos Guardas-Marinhas foi transferida com a corte de Portugal para o Rio de Janeiro, juntamente com sua biblioteca. Com a iminente invasão das tropas napoleônicas ao Reino português, os guardas-marinhas partiram para o Brasil, em novembro de 1807, antes mesmo da corte e dos integrantes do governo. Professores, alunos, biblioteca e materiais escolares da Real Academia dos Guardas-Marinhas, além de parte dos acervos pertencentes ao Observatório da Marinha e à Sociedade Real Marítima, embarcaram na nau Conde D. Henrique em 29 de novembro de 1807, integrando uma frota com 36 embarcações, escoltada por seis navios ingleses40. José Maria Dantas Pereira (1772-1836) foi nomeado comandante da ARGM em 1800, responsável pela fundação da biblioteca da Academia em 1803, tornando-se seu diretor. A biblioteca da Academia Real dos Guardas-Marinhas pode ser considerada a primeira biblioteca científica do Brasil, pois tinha um acervo atualizado para o ensino 39 Ibid., p. 132. 40 Disponível: http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-periodo-colonial/221-real-academia-dos- guardas-marinhas Página | 40 científico da época. No acervo da biblioteca da ARGM constavam obras de química, de balística, de matemática, de história natural, de filosofia, de óptica, de mecânica, de botânica e assim por diante; encontram-se autores como d’Alembert (1717-1783), coeditor da Enciclopédia; Newton (1643-1727), matemático, físico e astrônomo que abre o caminho para a ciência moderna com suas descobertas, como a lei da gravitação; Lineu (1707-1778), botânico, zoólogo e médico sueco, considerado o pai da taxonomia e adotado como base no ensino de ciências naturais da Universidade de Coimbra: “No início a biblioteca não era pública; para usufruir seus livros deveriam ser obtidas licenças especiais. Só em 1814 foi aberta à população”41. A Academia Real Militar foi criada em 1810 no Brasil. “O que é mais importante, e de fato novo é que os estudos militares deveriam ser feitos com orientação científica”42. A criação da Academia Militar era um salto qualitativo na cultura científica da Colônia, dado que não existiam até então professores qualificados no Brasil e o ensino de engenharia na Academia Militar fez com que intelectuais viessem à Colônia para lecionar. Em 1812, através de carta régia, D. João VI funda na Bahia um curso que “[...] enfatiza a importância do conhecimento científico para a agricultura, mostrando que a melhoria da produção agrícola requisitava conhecimentos elaborados, para fazer frente à concorrência europeia”43. 41 OLIVEIRA, José Carlos de. Op. Cit., p. 256. Fato interessante é que em 1811 criou-se uma biblioteca pública na casa em que ficava a biblioteca dos jesuítas expulsos. Os preços dos livros eram proibitivos, portanto, a criação de uma biblioteca pública é notável e “Seu aparecimento só poderia ser obra do Estado, dado o grande custo tanto de reunir livros quanto de colocá-los à disposição do público”. Segundo Oliveira, bibliotecas públicas eram raras naqueles tempos, apenas em 1700 funda-se uma biblioteca pública nos Estados Unidos. “No entanto, essa biblioteca da Bahia era considerada pública e nasceu antes mesmo da Europeia, 1811”. Ibid., p. 258 e 262. 42 Ibid., p. 160. 43 Cf. Ibid., p. 135. Página | 41 Em 1819 o rei decreta o aumento da plantação de cravo e outras especiarias que serviam para fins medicinais, inclusive, ofereciam-se prêmios às pessoas que conseguissem aclimatar plantas medicinais no Brasil. "Paralelamente às academias e tipografia, a instituição de jardins botânicos tornou-se projeto oficial para abrigar espécies de plantas medicinais além de outras de valor econômico, como as de utilidade para a construção naval”44. O Jardim Botânico criado no Rio de Janeiro em fins do século XVIII tinha caráter experimental, sendo responsável pela “[...] aclimatação e reprodução das diversas espécies de plantas trazidas para o Brasil”45, tais como a canela e o cravo. “O Museu Nacional foi inaugurado em 1818 por D. João [...] e foi chamado um especialista em Mineralogia para dirigi-lo. José da Costa Azevedo, isolado e praticamente solitário em meio a seus minerais, colocava-os em ordem nas vitrinas”46. Na Bahia, em 1812, foi criado também o curso avulso de Desenho e Figura, que objetivava fins práticos, pois o desenho na época era necessário para a indústria naval, para a botânica e a agricultura, na reprodução de plantas, mapas e paisagens do Brasil: “[...] não se pode esquecer que o desenho era também acoplado à História Natural: os naturalistas da época tinham necessidade de pessoas com habilidades para desenhar plantas, animais, ambientes e habitantes com seus costumes”47. 44 PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A Investigação da Natureza do Brasil Colônia. São Paulo: Annablume: FAPESP, p. 96-97. 45 OLIVEIRA, José Carlos de. Op. Cit., p. 254. 46 Ibid., p. 267. 47 Ibid., p. 138. Página | 42 Em 1817 estabeleceu-se na Bahia um curso avulso de química. “Apesar do caráter prático impingido à Química, ela assumia um perfil de Ciência básica necessária a outros conhecimentos”48. Em 1812 era fundado o Laboratório Químico Prático no Rio de Janeiro, não como o curso teórico de química da Academia Militar, nem como os cursos avulsos da Bahia, pois o laboratório visava à aplicação prática deste saber com materiais para a execução de experiências que fossem úteis à agricultura, à farmácia etc. A partir de 1808 criaram-se revistas de divulgação científica como o Correio Braziliense, O Patriota e a Imprensa Régia, colaborando com o “[...] processo de formação de uma consciência nacional”49. Antes mesmo da vinda da família real para o Brasil, estudos geográficos foram implementados aqui durante o reinado de D. José I (1750 – 1777), sob recomendação do Marquês de Pombal50, os quais resultaram na “[...] coleção geo-hidro-topográfica da Sociedade Real Marítima e Geográfica”51, fundada pelo ministro D. Rodrigo em 1798, sendo que esse acervo foi transportado para o Brasil com a vinda da Corte. 48 Ibid., p. 144. 49 Ibid. 131. 50 Vide., p. 57 neste trabalho. 51 DIAS, Maria Odila da Silva. Op. Cit., p. 128. Página | 43 CAPÍTULO 2: A FILOSOFIA NATURAL NO BRASIL-COLÔNIA [...] aquilo que se chamava de preferência universo, ou mundo, passa a chamar-se natureza. Enquanto os libertinos do século anterior se haviam distraído com a matemática e a física, neste os curiosos, os filósofos, sem desdenhá-la, se enamoram, cada vez mais, da botânica e da zoologia. Antonio Candido - Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos João Cruz Costa defende que para caracterizar o pensamento de uma nação é necessário recuperar sua origem e, falando de Brasil, a origem está na cultura portuguesa. A herança de Portugal é vista a princípio de modo negativo por Cruz Costa, pois se inicia com a educação dos jesuítas, que só entraria “[...] em recesso quando a filosofia se volta para sua radicação histórica e o filósofo liga a sua tarefa teórica aos destinos da Nação”52. Para ele, é positivo o aspecto prático da filosofia cultivada no Brasil sob a influência da reforma educacional promovida por Pombal: “É o pragmatismo lusitano [...] que João Cruz Costa rastreia ao longo da história das ideias no Brasil”53. A herança prática deixada pelos portugueses foi levada às últimas consequências pelos luso-brasileiros, o que, segundo Cruz Costa, não seria ruim, pois nunca nos perderíamos em teorias extravagantes. “O pensamento é sempre produto da atividade de um povo e, assim, é para nossa história nas suas relações com a história universal”54. O século XVIII brasileiro foi metade português e vice-versa. Ao Brasil foram impostas as línguas, a religião, enfim, toda a civilização europeia. Para Cruz Costa, somos “[...] um prolongamento, um ramo novo talvez, da civilização ocidental [...], dessa história 52 PRADO JÚNIOR, Bento. Op. Cit., p. 158. 53 Ibid., p. 159. 54 COSTA, João Cruz. Contribuição à História das Ideias no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 4. Página | 44 desprende-se uma experiência humana, uma filosofia apenas esboçada, mas que para nós é do mais alto valor”55. Assim como herdamos de Portugal a língua, costumes, enfim toda a sua cultura, também herdamos sua filosofia, sua visão de mundo que, segundo Cruz Costa, se nota pelo aspecto prático da filosofia lusitana. Portanto, o que poderia ser visto como um 'vazio cultural', é entendido por Cruz Costa como a liberdade em relação à tradição filosófica. “Se ‘para nós a filosofia autêntica sempre esteve ligada à ação’, podemos estar seguros de que não cairemos nas ilusões das ‘teorias extravagantes’ que encerram o filósofo numa torre de marfim”56. Quando se fala da filosofia, sobretudo no que diz respeito à natureza no século das Luzes, deve-se levar em conta, como salienta Antônio José Alves de Oliveira, que a ciência e a política portuguesas no século XVIII são inseparáveis: [...] a própria análise dos interesses dos sujeitos históricos envolvidos no fazer-se dessa ciência portuguesa e global implica o entendimento de uma politização da prática “científica”, e ainda a transformação no próprio entendimento da ciência, que deveria, portanto, ser encarada como uma política incentivada e levada a cabo nos mais distintos espaços do Reino e das conquistas ultramarinas.57 Alex Gonçalves Varela afirma haver a identificação da política com a ciência ou daqueles que detinham o conhecimento com os que detinham o recurso financeiro para 55 Ibid., p. 4. 56 PRADO JÚNIOR, Bento. “O Problema da Filosofia no Brasil”. In Alguns Ensaios: Filosofia, Literatura, Psicanálise. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 161. 57 OLIVEIRA, Antonio José Alves de. “O Reformismo Ilustrado e a construção de espaços coloniais: os sertões da América portuguesa nas memórias econômicas da Academia das Sciencias de Lisboa (1779- 1800)”. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 16, 2023, p. 36. Página | 45 realização das pesquisas científicas no Brasil-Colônia. “Em síntese, isso demonstra o reconhecimento do poder da ciência pelo Estado”58. Paulo Margutti, em seu livro História da Filosofia do Brasil: o Período Colonial (1500 – 1822), trabalha os problemas tratados por filósofos da época que atuaram em nosso território, nascidos ou não no Brasil, como Gregório de Matos Guerra e Silvestre Pinheiro Ferreira. O historiador da filosofia analisa basicamente as questões morais, pois, para ele, seriam pontos que caracterizariam uma filosofia não apenas presente no Brasil, mas do Brasil, sendo estes relacionados ao relacionamento com os povos originários, à escravidão dos africanos, enfim, problemas concernentes postura moral. Adotada diante aos habitantes desta terra. Contudo, a filosofia no Brasil, sobretudo a partir de meados do século XVIII, priorizou, pelos motivos expostos até aqui, a história natural: “Temos uma dívida [...] com nossos primeiros naturalistas. Infelizmente, os naturalistas luso-brasileiros formados nesse período são escassamente conhecidos, especialmente no que se refere ao conteúdo científico de suas obras”59. Antônio Paim escreve em seu livro História das Ideias Filosóficas no Brasil um capítulo dedicado de filosofia e ciência “A ideia informadora consiste no empenho em abandonar-se o verbalismo e as disputas retóricas em prol da observação e do encaminhamento prático”60. Para compreender este movimento de transição da filosofia escolásticas para a filosofia 58 VARELA, Alex Gonçalves; LOPES, Maria Margaret; FONSECA, Maria Rachel Fróes da. “Os Minerais são uma Fonte de Conhecimento e de Riquezas: as Memórias Mineralógicas Produzidas por José Bonifácio de Andrada e Silva”. Rio de Janeiro: Revista Fontes, v. 9, n. 2, 2002, p. 407. 59 PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A Investigação da Natureza do Brasil Colônia. São Paulo: Annablume, p. 13. 60 PAIM, Antônio. “III. Filosofia e Ciência”. In História das Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Edições Humanidades, 2007, p. 156. Página | 46 natural, uma das hipóteses mais contundentes é a de João Cruz Costa que, como vimos, salienta o aspecto prático como herança da cultura lusa, contudo, devemos lembrar que as maiores influências sobre os luso-brasileiros estão na França, “Apesar dos cuidados que a censura portuguesa tomava para impedir a entrada das ideias francesas em seu território”61. Por exemplo, em 1790 o Conde de Rezende proibiu as obras dos Enciclopedistas e “[...] em 1794, prendia-se gente, no Brasil, pelo crime de enciclopedismo”62. Em Aspectos da Ilustração no Brasil, Maria Odila da Silva Dias identifica a presença de elementos da cultura iluminista europeia no Brasil dos séculos XVIII e XIX, em especial, os estudos científicos realizados por luso-brasileiros ilustrados que [...] procuraram ocupar-se dos problemas de sua terra e nela introduzir reformas. Apesar do prisma cosmopolita e universal de sua mentalidade de ilustrados, pode-se dizer que seus estudos, de natureza empírica e objetiva, refletiram [...] a realidade brasileira63. José Carlos de Oliveira, em sua obra intitulada D. João VI: Adorador do Deus das Ciências? A Constituição da Cultura Científica no Brasil (1808-1821), afirma que no Brasil-Colônia o “[...] desenvolvimento científico fundamentou-se e aconteceu lado a lado dos interesses desse poder [público]; portanto, fica implícita a aproximação entre ciência teórica e ciência prática”64. A reforma do ensino promovida pelo Marquês de Pombal teria sido responsável por essa virada após “[...] a fundação da faculdade de filosofia [de Portugal (1770)]”65, destinada ao estudo de ciências como química e física. 61 COSTA, João Cruz. Op. Cit., p. 45. 62 Ibid., Op. Cit.,p. 46. 63 DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1968, p. 105. 64 Ibid., p. 100. 65 DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Op. Cit., p. 23. Página | 47 Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, nasceu em Lisboa em 1699 e faleceu em 1782. Como ministro de Estado secularizou o ensino e para isso expulsou os jesuítas, que dominavam até então a educação portuguesa. Os jesuítas eram “´[...] um entrave, como membros da Igreja, às medidas de modernização”. Através do “[...] alvará de 1759, todo o aparato educacional jesuítico da colônia foi desmontado”66 sob acusação de que a Companhia de Jesus havia feito parte de um suposto atentado contra o rei, Dom José I. Antes de Pombal a ciência em Portugal era apanágio “[...] do clero católico que se mantinha atrelado ao estado português, influenciando-o nas medidas de cunho cultural”67. A educação jesuítica colocava barreiras para o acesso aos conhecimentos científicos. “A influência jesuítica fechara Portugal à renovação científica que se processava na Renascença e para a qual colaborara com o magnífico movimento dos descobrimentos marítimos”68. As doutrinas de Descartes e Newton, filósofos “[...] que eles [os jesuítas] declaravam hereges”69, ainda em 1746 foram proibidas no Império. A expulsão dos jesuítas não significou o enfraquecimento do catolicismo, pois com a saída da Companhia de Jesus tem-se a predominância da Ordem dos Oratorianos na educação lusitana. Contudo, é nesse momento que a Universidade de Coimbra se aproxima da ciência moderna, pois [...] a política de Pombal produziu em Portugal a emancipação do pensamento científico. Foi nesse ambiente mais favorável às conquistas da revolução científica da época moderna que os estudantes brasileiros foram buscar a sua formação nas universidades portuguesas. Graças a isso, no alvorecer do século 66 DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p. 122. 67 Ibid., p. 81. 68 COSTA, João Cruz. Op. Cit., p. 23. 69 Ibid., p. 47. Página | 48 XIX, a elite brasileira contava com um grupo significativo de naturalistas e pesquisadores entre os quais se pode contar José Bonifácio de Andrada e Silva70. Após a reforma pombalina há um maior incentivo da Corte à exploração de terras brasileiras, ocasionando um maior interesse pelos estudos das ciências naturais. “Conjuntamente universalizaram as ciências naturais, dando-lhes por campo de estudo quase todo o planeta”71. A tendência aos estudos práticos no Brasil-Colônia resulta em um grande interesse pelas ciências naturais e as artes mecânicas. Como exposto por Maria Odila Dias, nos anos 1794 a 1804 houve mais alunos nos cursos de ciências naturais (84) do que no curso de matemática (75) ou medicina (10). A relevância de tais estudos vai muito além, constituindo mesmo um “fenômeno inteiramente revolucionário”, se confrontado “[...] com os moldes do ensino jesuítico que predominava até o momento”72. O primeiro momento da Ilustração no Brasil é, então, marcado pela dedicação exclusiva aos trabalhos científicos de ordem prática. Entre a ciência prática e a ciência teórica, no Brasil-Colônia a metrópole deu mais incentivo à ciência prática: “[...] nunca a especulação pura foi a qualidade essencial do português. Ao contrário: é a continuada experiência, o traço dominante do pensamento português”73. Consideramos que este não seja um aspecto exclusivo do pensamento português, mas um reflexo da forte influência que as correntes do enciclopedismo e do empirismo exerceram sobre os intelectuais luso-brasileiros. Como afirma Jonathan Israel, o movimento “[...] intelectual ibérico sempre esteve intimamente relacionado com um 70 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: O Período Colonial (1500 – 1822), p. 331. 71 COSTA, João Cruz. Op. Cit, p. 25. 72 DIAS, Maria Odila da Silva. Op. Cit., p. 115. 73 COSTA, João Cruz. Op. Cit., p. 31. Página | 49 fenômeno maior que compreendeu a Europa como um todo”. O embate de correntes filosóficas em que o aristotelismo escolástico dá lugar ao cartesianismo, por sua vez, perde sua força frente ao avanço do newtonismo e o empirismo. Neste confronto de ideias, ocorre na Espanha e em Portugal “[...] o esmagador triunfo do empirismo [...]. O empirismo e as ideias britânicas foram, de fato, a alavanca que abalou a fortaleza escolástica da cultura ibérica e deu forma ao Iluminismo ibérico e ibero-americano”74. Trata-se do movimento de passagem da filosofia tradicional à filosofia natural, o qual não aconteceu sem confronto, pois “[...] a inteligência brasileira vai expressar ideias que nos chegam de uma Europa em que se travava ainda a luta entre as ideias tradicionais e aquelas que derivavam da filosofia do século XVIII”75. A transferência da corte para o Brasil ocorreu em decorrência do confronto entre o governo francês e inglês, porque as "[...] pretensões expansionistas de Napoleão colocavam Portugal em situação a um só tempo delicada, complexa e incontornável"76. Portugal precisava escolher um lado, França ou Inglaterra. No governo de Portugal não havia um acordo, o que havia era um grupo que defendia manter alianças com a França e outro que defendia manter-se aliado à Inglaterra. O ministro D. Rodrigo fazia parte dos que optaram pelo lado dos ingleses, porque para ele a Colônia da América tinha prioridade, deveria ser protegida e, ao apoiar a França, Portugal perderia a colônia para os ingleses, que dominavam os mares. O ministro D. Rodrigo já em 1803 propôs que a corte fosse transferida para a América, por considerar que Portugal não fosse a melhor 74 ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo Radical: A Filosofia e a Construção da Modernidade, 1650-1750. São Paulo: Madras, 2009, p. 577 e 586. 75 COSTA, João Cruz. Op. Cit., 69-70. 76 DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit., p. 61. Página | 50 parte do império. Os partidários da França na corte ganhavam força por vislumbrar uma suposta neutralidade de Portugal. Contudo, em 1806, Napoleão inicia uma ofensiva que acaba com a possibilidade de uma política de neutralidade, ou seja, Portugal foi obrigado a escolher um lado. Aliando-se à França, Portugal perderia sua colônia, e, aliando-se à Inglaterra, corria o risco de perder seu o Reino. No fim, optou-se por não perder a Colônia, já que seu futuro dependia das riquezas que estavam nela e não em Portugal. Em 1807 a França invadiu Portugal, dez dias depois a corte foi transferida por completo para a América, chegando ao Brasil em 1808. Margutti acredita que a transferência da corte para o Brasil tenha ocasionado o que chamou de ruptura iluminista, pois é o momento no qual aparecem no Brasil manuais de filosofia em português para o ensino nos seminários, bem como ocorre a intensificação da divulgação de ideias políticas liberais. A tendência liberal no mundo luso-brasileiro refletia “[...] a ideologia da independência norte-americana e da Revolução Francesa, formas generalizadas de um movimento cosmopolita e universal”, trazendo à baila “[...] ideias secularizadoras da mentalidade ilustrada europeia sobre esses intelectuais brasileiros dos fins XVIII e início do século XIX”77, o que fez a Igreja perder em alguma medida seu predomínio. Como enfatiza Carlota Boto, [...] a ação do Estado pombalino, em consonância com o pensamento iluminista português, foi além e trouxe medidas que não apenas favoreceram a laicidade – ao reforçar o poder do Estado na ação política e no controle público – como promoveram também uma via emancipatória que ficaria clara [...] nas lutas por libertação nacional que aconteciam no Brasil daqueles tempos78 77 DIAS, Maria Odila da Silva. Op. Cit., p. 106. 78 BOTO, Carlota. “A Dimensão Iluminista da Reforma Pombalina dos Estudos: das Primeiras Letras à Universidade”. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Educação. v. 15, n. 44, 2010, p. 297. Página | 51 No artigo intitulado “Uma Família de Químicos Unindo Brasil e Portugal: Domingos Vandelli, José Bonifácio de Andrada e Silva e Alexandre Vandelli”, de Adílio Jorge Marques e Carlos A. L. Filgueiras, vê-se que uma das figuras mais influentes no Brasil pós-reforma de Pombal foi [...] o médico, químico e naturalista Domingos Agostinho Vandelli, natural de Pádua. Vandelli foi contratado para lecionar História Natural e Química no Colégio dos Nobres, indo depois para a Faculdade de Filosofia de Coimbra em 1772, dentro do espírito iluminista da “Encyclopédie”. Sua formação acadêmica era baseada nos ideais da sistematização do conhecimento, devendo servir ao homem para classificar e catalogar a natureza, apreendendo o Universo com a razão79. Dentre os discípulos de Vandelli destaca-se José Bonifácio de Andrada e Silva, “[...]o primeiro brasileiro a granjear renome científico internacional em vida”80. Objetivos e pragmáticos, preocupados com os problemas concretos, não se limitaram esses intelectuais [luso-brasileiros] às obras dos filósofos [...]. Particularmente ilustrativa desse intuito é a Casa Literária do Arco do Cego, que se destinava a divulgar traduções, focalizando principalmente a agricultura nos Estados Unidos e nas Antilhas Inglesas e Francesas81. Dessa forma foram divulgadas no país as descobertas mais importantes de Isaac Newton, tais como a lei da gravitação e a decomposição da luz solar no espectro. Newton havia chegado à “[...] ciência do movimento dos corpos, impregnada de uma Matemática 79 MARQUES, Adílio Jorge; FILGUEIRAS, Carlos A. L. “Uma Família de Químicos Unindo Brasil e Portugal”. Química Nova na Escola, Vol. 31, N° 4, 2009, p. 251. 80 Ibid., p. 252. 81 DIAS, Maria Odila da Silva. Op. Cit., p. 136. Página | 52 precisa e rica, tornando a mecânica não apenas uma ciência exata, mas também modelo de como uma ciência naquele tempo deveria ser”82. Mas é a França que tem uma presença mais significativa nas bibliotecas do Brasil, pois é principalmente de Paris ou através de Paris, que nos chegariam as ideias filosóficas”83. Desse modo, chegou até nós a obra de Antoine Lavoisier (1743-1794), químico francês que criticou as teorias tradicionais da química, promovendo uma revolução científica ao reformular a nomenclatura química. O próprio Lavoisier afirmou na introdução de seu Tratado Elementar de Química que sua base filosófica para o desenvolvimento desse trabalho científico foi a teoria da linguagem de Condillac, que [...] estabeleceu que nós só pensamos recorrendo às palavras; que as línguas são verdadeiros métodos analíticos, que a álgebra mais simples, a mais exata de todas as maneiras de enunciar e a melhor adaptada ao seu objeto, é ao mesmo tempo uma linguagem e um método analítico, e enfim, que a arte de raciocinar se reduz a uma linguagem bem feita84 Pensando no enciclopedismo, devemos lembrar que os autores escolhidos por Diderot para colaborar com a Enciclopédia são em sua maioria voltando para as ciências naturais: Louis Daubenton era naturalista, fazendo estudos no campo de anatomia comparativa e paleontologia, Louis de Jaucourt, formado em ciências naturais e medicina, Ménuret de Chambaud era médico, o próprio D’Alembert, coeditor da Enciclopédia, era físico e matemático. E, como Maria das Graças de Souza indica na introdução da edição brasileira da Enciclopédia, um traço do empreendimento enciclopédico francês que não agrada aos conservadores é a valorização das artes mecânicas, “[...] o que implica colocar 82 OLIVEIRA, José Carlos de. D. João VI - Adorador do Deus das Ciências? A Constituição da Cultura Científica no Brasil (1808-1821). Rio de Janeiro: E-papers, 2005, p. 67. 83 COSTA, João Cruz. Op. Cit., p. 67. 84 LAVOISIER. Traité Élémentaire de Chimie.Bruxelles: Culture et Civilisation, 1965, p. V, grifo do autor. Página | 53 no mesmo plano o douto e o artesão”85. Como escreve Kleber Cecon, no século XVII os escravos eram condenados aos trabalhos braçais, às artes mecânicas, enquanto o homem livre se ocupava das artes liberais (gramática, retórica, lógica, aritmética, música, geometria e astronomia). Efetivamente, “[...] as sete artes liberais [...] eram chamadas de “liberais” exatamente porque eram dedicadas e praticadas pelos homens livres (liberi) em oposição ao servo ou escravo que praticava artes mecânicas e manuais”86. Coisa que iluministas, especialmente os enciclopedistas, lutam contra, como podemos verificar na afirmação que D’Alembert faz na Enciclopédia sobre a supervalorização das artes liberais em detrimento das artes mecânicas ser injusta, pelo desprezo generalizado aos homens que executam os trabalhos manuais. Mas “[...] a sociedade, que justamente venera os grandes gênios que a iluminam, não deve aviltar as mãos que a servem”87. Diderot, em seu Discurso Preliminar, ressalta que “[....] muito [foi escrito] a respeito das ciências; não se escreveu suficientemente bem sobre a maioria das artes liberais, e quase nada sobre as artes mecânicas”88. Por isto, ele e os autores dos verbetes sobre as artes mecânicas tiveram que visitar oficinas para escrever sobre aqueles ofícios. Viram então que os trabalhadores que se dedicavam àqueles ofícios conheciam a prática, mas não sabiam discorrer sobre o que executavam. “Foi assim que nos colocamos em condições de 85 SOUZA, Maria das Graças de. “Círculo dos Conhecimentos”. In DIDEROT, Denis. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Volume 1: Discurso preliminar e outros textos. São Paulo: UNESP, 2015. 86 CECON, Kleber. “Sobre a Origem das Academias Científicas”. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, 2021, p. 15. 87 D’ALEMBERT, Jean le Rond. Discurso Preliminar dos Editores (junho de 1751). In D’Alembert, Jean le Rond e DIDEROT, Denis. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Volume 1. São Paulo: UNESP, 2015, p. 107 88 DIDEROT, Denis. Discurso Preliminar dos Editores (junho de 1751). In DIDEROT, Denis. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Volume 1: Discurso preliminar e outros textos. São Paulo: UNESP, 2015, p. 233-235. Página | 54 demonstrar [...] que é pelo hábito de conversar uns com os outros que os operários se entendem, muito mais pela repetição de conjunturas do que pelo uso dos termos”.89 O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, nascido na Bahia em 1756, resume talvez a perspectiva filosófica dominante do Brasil-Colônia: "[....] nenhum obséquio faz à Filosofia, quem a estuda por deleitável. [...] O grau de aplicação, que merece uma ciência, mede-se pela sua utilidade90.” Posicionamento encontrado na frase de epígrafe da capa dos textos acadêmicos da Academia das Ciências de Lisboa, que diz o seguinte: Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria [Se o que fazemos não é útil, vã é a glória]. Para José Bonifácio de Andrada e Silva, o sentido dos estudos científicos é o progresso material que proporciona melhor condição de vida aos homens. Outros exemplos são: Frei José Mariano da Conceição Veloso, escritor da Flora Fluminensis, que enfatizou a utilidade da botânica e a importância das ciências naturais para a medicina e a economia; Ribeiro Sanches, autor português, tenta evidenciar a importância da história natural para a medicina e a agricultura. Em seu texto Carta sobre a Educação da Mocidade, ele teria elevado os valores burgueses acima dos aristocráticos, exaltando o trabalho industrial e o comércio em detrimento da espada e da honra. Sanches pretendia “[...] promover o progresso da agricultura contra as leis ‘góticas’ do Reino que a destruíam. Imbuídos do mesmo estado de espírito, [os filósofos] hão de procurar ser úteis e aproveitar ‘as luzes’, voltando seus estudos principalmente para a agricultura”.91 89 Ibid., p. 235-237. 90 FERREIRA, Alexandre Rodrigues apud CORRÊA Fº, Virgílio. Alexandre Rodrigues Ferreira: Vida e Obra do Grande Naturalista Brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 22. 91 DIAS, Maria Odila da Silva. Op. Cit., p. 109-110. Página | 55 A agricultura assume nesse cenário de interesse prático-científico um papel central, vista como a mãe do gênero humano por ser a que mais contribui para o aumento da população e sua manutenção. José Bonifácio apresentou na Memória sobre a Necessidade e Utilidades do Plantio de Novos Bosques em Portugal “[...] uma reflexão e apresentando sugestões para a melhoria da agricultura em Portugal”92. Ele enxergava na agricultura a salvação de Portugal mediante a conquista da independência econômica: “A Agricultura, tão necessária quanto aprazível e honrosa, sempre atraiu a minha atenção e amor”93, afirma Bonifácio, isto porque através da agricultura a natureza tornava-se útil. Os preceitos da agricultura mudam segundo os climas, as terras, os costumes e as leis de cada povo, mas sua essência e princípios não mudam, que sejam: I. descrever e ensinar o método mais fácil e seguro com que se faça vingar tais sementeiras: II. Diminuir quanto possível as despesas e custos: III. Concluir a sementeira da porção de Costa, que por ora julguei ter mais necessidade de aproveitamento e defesa, no menor tempo possível94. Vê-se que a prática da pesquisa experimental foi crucial para a consolidação da filosofia luso-brasileira entre os séculos XVIII-XIX, sendo que os naturalistas tiveram aí um papel especial. A maior parte dos naturalistas eram estrangeirados, “[...] intelectuais que, a partir de meados do século XVII, moraram fora de Portugal e tiveram a oportunidade de conviver com as culturas dos grandes centros europeus, entre os quais se destaca a França”95. Há nesses autores uma reverência à ciência, juntamente com uma 92 VARELA, Alex Gonçalves. “Atividades Científicas na “Bela E Bárbara” Capitania de São Paulo (1796- 1823)”. Tese: UNICAMP. Campinas, 2005, p. 237. 93 SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Memória sobre a necessidade e utilidades do plantio de novos bosques em Portugal. In Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva. Vol. 1, Brasília: Câmara dos Deputados, 2006, p. 167. 94 SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. Cit., 166. 95 MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: O Período Colonial (1500 – 1822), p. 123. Página | 56 tomada de posição empirista. O próprio José Bonifácio pode ser visto como um dos estrangeirados, já que foi bolsista da Coroa e viajou o mundo para fazer pesquisas mineralógicas. As Luzes estavam present