UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – Campus São Paulo GLEIZIANE PINHEIRO DO SANTOS A VOZ NEGRA NO TEATRO POR TRECHOS DE SÃO PAULO: aspectos anatomofisiológicos e identitários São Paulo 2024 GLEIZIANE PINHEIRO DOS SANTOS A VOZ NEGRA NO TEATRO POR TRECHOS DE SÃO PAULO: aspectos anatomofisiológicos e identitários Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, com a área de concentração em Artes Cênicas, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), para a obtenção do título de Mestra em Artes Cênicas. Linha de Pesquisa: Estética e Poéticas Cênicas Orientadora Profa. Dra.: Lucila Romano Tragtenberg Versão Final. São Paulo 2024 Autorizo a reprodução e divulgação integral ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S237v Santos, Gleiziane Pinheiro dos (Gleiziane Pinheiro ), 1977- A voz negra no teatro por trechos de São Paulo: aspectos anatomofisiológicos e identitários / Gleiziane Pinheiro dos Santos. -- São Paulo, 2024. 160 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lucila Romano Tragtenberg. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Voz - negros. 2. Negros nas artes cênicas. 3. Representação teatral. I. Tragtenberg, Lucila Romano. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.028 Bibliotecária responsável: Mariana Borges Gasparino - CRB/8 7762 https://unesp.alma.exlibrisgroup.com/ng/ng/ GLEIZIANE PINHEIRO DOS SANTOS A VOZ NEGRA NO TEATRO POR TRECHOS DE SÃO PAULO: aspectos anatomofisiológicos e identitários Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Artes Cênicas. Dissertação aprovada em: 20 de junho de 2024. Banca Examinadora _______________________________ Profa. Dra. Lucila Romano Tragtenberg Unesp - Orientadora _______________________________ Dra. Irani Cruz Cippiciani _______________________________ Dra. Andrea Limberto Leite Para Ana, minha mamãe. A mulher que mais amo no mundo, que me apoia com amor e orgulho. AGRADECIMENTOS Agradeço ao clã Pinheiro, Ana, Cristiane, Ione, João Gilberto, Joice, Leiliane, Maria do Carmo, Sebastião, Tatiane, Viliane e Viviane, por sempre terem me apoiado. Faço por nós, eu sou porque nós somos! À Edilson Walney, parceiro amado sempre a meu lado. À minha orientadora maravilhosa, Profa. Dra. Lucila Romano Tragtenberg. Às queridas Andrea Limberto e Irani Cippiciani, que atenderam ao meu chamado com carinho. Aos companheiros e companheiras, Beatriz Nauali, Danielle Rosa, Fábio Resende, Gleice Kelly, Jon Marques, Luiz Paulo Rodrigues, Luiz Silva dos Santos, Marcelo Tragtenberg, Márcio Rodrigues, Rosimeire da Silva, Roniel da Paz, Tatiana Polistchuk. À Alexandre Mate, Carolina Romano, Lilian Vilela, Wânia Storolli, professoras e professor que tive durante meu processo como mestranda. À Rita de Cássia Oliveira Takaki, médica ultrassonografista, especialista em Radiologia. À Maria Renata Macca Ferreira Jorge, médica otorrinolaringologista. À todas as funcionárias e todos os funcionários da UNESP, sempre oferecendo atendimento competente e afetuoso. Ao Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) - campus Guarulhos, com professoras e professores incríveis. Aprendi muito com vocês. Aos que são Baobá por natureza e partilham o caminhar com essa mulher negra que aqui escreve, Abdias do Nascimento, Adriana Lessa, Ana Carbatti, Ana Maria Gonçalves, Antônio Pitanga, Antônio Pompêo, Bell Hooks, Benjamin de Oliveira, Chica Lopes, Chica Xavier, Conceição Evaristo, Dione Carlos, Edson Montenegro, Gésio Amadeu, Grada Kilomba, Inaycira Falcão, Bárbara Carine, Haroldo Costa, Isadora Tito, João Acaiabe, Léa Garcia, Leda Maria Martins, Lázaro Ramos, Lizette Negreiros, Lélia Gonzales, Maya Angelou, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Salloma Salomão, Solano Trindade, Taís Araújo e Zezé Motta. Às companhias, coletivos e grupos de Teatro Negro do Brasil. Aos que me fortaleceram com suas vozes, melodias, harmonias e letras de pura inspiração, Beyoncé, Emicida, Fela Kuti, Elza Soares, Gilberto Gil, Kendrick Lamar, Luedji Luna, Milton Nascimento e Racionais MC’s. Atravessei o mar Um sol da América do Sul me guia Trago uma mala de mão Dentro uma oração, um adeus Eu sou um corpo, um ser, um corpo só Tem cor, tem corte, e a história do meu lugar Eu sou a minha própria embarcação Sou minha própria sorte E *Je suis ici 1 Ainda que não queiram não Je suis ici Ainda que eu não queria mais Je suis ici agora Cada rua dessa cidade cinza Sou eu Olhares brancos me fitam Há perigo nas esquinas E eu falo mais de três línguas E a palavra amor, cadê? Je suis ici, ainda que não queiram não Je suis ici, ainda que eu não queira mais Je suis ici, agora Je suis ici E a palavra amor cadê? Um corpo no mundo Luedji Luna 1 Je suis ici, na tradução do francês, eu estou aqui. Um corpo no mundo. Canção de Luedji Luna. Data de lançamento: 2017. Disponível em: https://youtu.be/V-G7LC6QzTA?si=MSOHeiw437DggE2wP. Acesso em: 11 jun. 2024. https://youtu.be/V-G7LC6QzTA?si=MSOHeiw437DggE2wP RESUMO Algumas/alguns autoras/es afirmam que existem diferenças anatomofisiológicas entre grupos étnico-raciais e que a voz da mulher negra e do homem negro tem como características: potência, graves acentuados, tamanhos, espessuras e até ausência de musculaturas laríngeas. Este projeto objetiva correlacionar essas características perceptivas e acústicas com seus respectivos achados anatomofisiológicos e descrever perspectivas identitárias nas vozes de atrizes negras e atores negros atuantes em algumas regiões da capital e na área metropolitana da cidade de São Paulo. Identificaremos quais e como são essas diferenças, observando se contribuem ou não para o trabalho vocal da atriz negra e do ator negro. Por fim, desvelaremos os aspectos identitários imbricados entre os dados da anatomofisiologia e o fazer artístico vocal teatral. Palavras-chave: voz; teatro; anatomofisiologia; identidade; negritude. RESUMEN Algunas/algunos autoras/es plantean que existen distinciones anatomofisiológicas entre diferentes grupos étnico-raciales y que la voz de la mujer negra y del hombre negro se caracteriza por: potencia, notas bajas, extensión, tamaño y aún ausencia de musculatura laríngea. Esta investigación suele relacionar tales características perceptivas y acústicas a sus respectivos resultados anatomofisiológicos para describir perspectivas identitárias de las vozes de actrices negras y actores negros que trabajan em regiones de la ciudad de São Paulo. Vamos a identificar quales y de que tipo son las diferencias, observando si aportan o no para la práctica vocal de la actriz negra y del actor negro. Por fin, revelaremos los aspectos identitários entrelazados a los datos de la anatomofisiologia y del ejercicio artístico vocal teatral. Palabras-clave: voz; teatro; anatomofisiologia; identidad; negritud. ABSTRACT The current research project aims at correlating the perceptive and acoustic aspects in the voices of black actresses and black actors working in the State of São Paulo, Brazil, with anatomo-physiological scientific findings, and thus describe identity perspectives. Some authors state that anatomo-physiological traces vary amongst different ethnic-racial groups and that the voice of black women and black men could be distinguished by: power, accented low notes, laryngeal muscles sizes, thickness and even their absence. The focus of this research is then to point out, describe and associate which and how these regarded differences present themselves, observing if they contribute or not to the vocal performance of the black actresses and black actors. Lastly, we are to unveil the identity issues intertwined between the anatomo-physiology and the theater artistic vocal work. Keywords: voice; theater; anatomo-physiology; identity; blackness. LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 – Grupo Clariô de Teatro ―Hospital da Gente‖ Figura 2 – Grupo Clariô de Teatro ―Urubú come carniça e vôa‖ Figura 3 – As Capulanas Companhia de Arte Negra. ―Ialodês – Trilogia da Mulher Negra – Uma ficção afrofuturista‖ Figura 4 – As Capulanas Companhia de Arte Negra. ―Solano Trindade e suas negras poesias‖ Figura 5 – Revista Legítima Defesa. Foto da capa: Espetáculo Sortilégio (1957), em montagem do Teatro Experimental do Negro (TEN) Figura 6 – Coletivo Os Crespos. ―Os Coloridos‖ Figura 7 – Coletivo Negro. ―Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens‖ Figura 8 – Coletivo Negro. ―Gota D’Água Preta‖ Figura 9 – Companhia dos Inventivos. ―Nzinga‖ Figura 10 – Companhia dos Inventivos. ―Maria Auxiliadora‖ Figura 11 – Companhia dos Inventivos. ―Um Canto para Carolina‖ Figura 12 – Coletivo Legítima Defesa. ―Black Brecht – e se Brecht fosse negro?‖ Figura 13 – Musculatura Cricotireoidea (CT) direita em repouso; imagem 2D obtida de uma máquina de ultrassom GE-Healthcare Logic e Pro e sonda linear de alta frequência (8-12 MHz); varredura no plano transversal paramediano do pescoço; medidas em duas etapas dos parâmetros ultrassonográficos que mensuram o comprimento e o diâmetro Figura 14 – (PPVV) Pregas vocais falsas (fascículos musculares) e Pregas vocais verdadeiras (músculos) em sua distância/abertura entre as PPVV falsas (bordas externas) e a distância/abertura entre as PPVV verdadeiras (bordas internas); imagem 2D obtida de uma máquina de ultrassom GE-Healthcare Logic e Pro e sonda linear de alta frequência (8-12 MHz); varredura no plano transversal na linha média do pescoço; medidas em uma etapa dos parâmetros ultrassonográficos que mensura a distância/abertura Figura 15 – Imagem videoestrobolaringoscópica, feita com videoestroboscópio flexível Scott, mostrando a laringe produzindo som Figura 16 – Exemplos de espectrograma utilizado para análise com o protocolo PAE. As formas laranjas destacam alguns itens que foram observados no espectrograma da participante com Voz Negra: (a) Presença de harmônicos acima de 4.000 Hz; (d) Incremento de energia entre 1000 - 3000 Hz; (f) Presença de harmônicos com pouco brilho; (g) Diminuição de energia ou reduzido número de harmônicos até 4000 Hz Figura 17 – Exemplos de espectrograma utilizado para análise com o protocolo PAE. As formas laranjas destacam alguns itens que foram observados no espectrograma da participante de voz não negra: (a) Presença de harmônicos acima de 4.000 Hz; (k) Presença de harmônicos com trajetória e morfologia irregular (não retilíneo) Figura 18 – Exemplo de dados da análise vocal, oferecido pelo programa VoxMetria (CTS Informática) QUADROS Quadro 1 – Protocolo de análise espectográfica da voz (caso 1) Quadro 2 – Protocolo de análise espectográfica da voz (caso 2) Gráfico 1 – Musculatura Cricotireoidea Voz Negra Gráfico 2 – Musculatura Cricoaritenoidea voz não negra Gráfico 3 – Musculatura Tireoaritenoidea Voz Negra Gráfico 4 – Musculatura Tireoaritenoidea voz não negra Gráfico 5 – Análise espectrográfica com o Protocolo PAE Gráfico 6 – Análise espectrográfica com Protocolo PAE LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Estatística descritiva considerando vozes femininas e masculinas da Musculatura Cricotireoidea (CT) direita em repouso em seu comprimento Tabela 2 – Estatística descritiva considerando Vozes Negras e não negras da Musculatura Cricotireoidea (CT) direita em repouso em seu comprimento Tabela 3 – Estatística descritiva considerando vozes femininas e masculinas das Pregas Vocais (PPVV) falsas em sua distância/abertura Tabela 4 – Estatística descritiva considerando Vozes Negras e não negras das Pregas Vocais (PPVV) falsas em sua distância/abertura Tabela 5 – Estatística descritiva considerando Vozes Negras e não negras femininas e masculinas na Frequência Fundamental (F0) em Hertz Tabela 6 – Estatística descritiva considerando Vozes Negras e não negras femininas e masculinas na medida tradicional jitter em porcentagem Tabela 7 – Estatística descritiva considerando Vozes Negras e não negras femininas e masculinas na medida tradicional shimmer em porcentagem Tabela 8 – Estatística descritiva considerando Vozes Negras e não negras femininas e masculinas na medida tradicional GNE em Decibel LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS USG Ultrassonografia TEN Teatro Experimental do Negro TENSP Teatro Experimental do Negro Paulista TPB Teatro Popular Brasileiro TEPRON Teatro Profissional do Negro PRAAT Software de análise e síntese da fala para análise de acústica vocal PAE Protocolo de análise espectográfica da voz CT Musculaturas cricotireoideas TA Musculaturas tireoaritenoideas CAP Musculaturas cricoaritenoideas posteriores C Cartilagens cricoideas PPVV Pregas Vocais PPQ Period Perturbation Quotient EPQ Energy Perturbation Quotient GNE Glottal-to-Noise Excitation F0 A frequência fundamental SUMÁRIO 1 - INTRODUÇÃO – p. 16 2 - MOVIMENTO 1 – Das questões identitárias – p. 21 2.1 Raça – menos ratio, mais linguagem – p. 21 2.2 Teatro Negro – um Baobá por natureza – p. 23 2.3 Das questões de identidade – p. 32 3 - MOVIMENTO 2 – Parâmetros acústicos e mensurações anatômicas – p. 45 3.1 Método – p. 46 3.2 Ultrassonografia – p. 48 3.3 Videoestrobolaringoscopia – p. 60 3.3.1 Laudos videoestrobolaringoscópicos – p. 61 3.4 Espectrografia – análise acústica descritiva – p. 65 3.4.1 Dados da análise vocal – p. 73 4 - MOVIMENTO 3 – Correlações acústicas, anatomofisiológicas e identitárias – p. 78 4.1 Discussão – sobre a existência ou não de uma diferença entre Vozes Negras e vozes não negras – p. 78 4.2 Possíveis caminhos para o futuro – p. 82 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – p. 85 ANEXOS – p. 93 ANEXO A – Parecer consubstanciado – p. 94 ANEXO B – Termo de consentimento livre e esclarecido – p. 97 APÊNDICE A – Questionário para levantamento das questões identitárias – p. 100 APÊNDICE B – Amostra cartilagem por gênero – p. 101 APÊNDICE C – Gráficos com dados da ultrassonografia em Vozes Negras e não negras – p. 117 APÊNDICE D – Amostra por cor e raça – p. 148 APÊNDICE E – Protocolo de Análise Espectrográfica da Voz (PAE) – p. 151 APÊNDICE F – Parâmetros acústicos. Amostra por cor, raça e gênero – p. 159 16 1 INTRODUÇÃO O objeto de análise – a Voz Negra – foi se formando, primeiro, pela ânsia e inquietação em alcançar, de alguma forma, respostas para o incômodo em ouvir elogios tendenciosos e, por vezes, depreciativos sobre o meu fazer vocal. ―Sua voz não tem a potência de atriz negra‖. ―Cadê a força da sua voz?‖. ―Toda negra tem voz forte!‖. Elogios esses advindos de vozes que tecem comentários colonizados, incrustados em sua maioria no racismo estrutural. E, num segundo momento, o objeto se forma nos meus estudos realizados como trabalhadora na área das artes e, como fonoaudióloga, na área da saúde. As muitas leituras sobre voz falada e cantada traziam informações que respondiam a alguns aspectos vocais, apontados principalmente para os parâmetros vocais, mas deixavam outros totalmente entre nuvens, sempre com um ―se‖ martelando em minha cabeça. Um projeto de estudo é, em seu começo, uma querência e por vezes uma quimera em seu resultado. A feitura desta última aponta para o objeto Voz Negra, aqui grafada com iniciais maiúsculas para homenagear aos que vieram antes de mim. O campo de referência são trechos de São Paulo, com seus bairros, ruas e espaços para teatrar. Os pontos escalados são as diferenças entre as vozes de atrizes e atores negros e as vozes de atrizes e atores não negros, as questões de identidade e os propulsores fisiológicos envolvidos. Alguns objetivos pavimentaram este trabalho, dilatados por outros que, ao longo da formulação da escrita, brotaram: contribuir com o debate da diferenciação vocal de atrizes negras e atores negros em trechos de São Paulo; apresentar possíveis perspectivas identitárias, utilizando questionário aberto criado com bases nos conceitos dos autores Stuart Hall e Kabengele Munanga; identificar diferenças anatomofisiológicas na laringe e adjacências desse órgão entre vozes de atrizes e atores negros e de atrizes e atores não negros, a partir de testes acústicos da voz e exames de ultrassonografia (USG) e videoestrobolaringoscopia que produzem imagens das estruturas do trato vocal e faringo laríngea. Como o primeiro desafio colocado aqui temos o termo ―Voz Negra‖. Sobre o que se fala, quando se fala em Voz Negra? Da raça? Da pessoa? Da estrutura fisiológica? Da cultura? Fala-se de uma rede de relações, da relação de tudo. Neste trabalho, Voz Negra aponta, antes de tudo, para uma noção que busca um sentido ancestral do termo, das experiências transmitidas de geração a geração por laços inquebrantáveis, que é ao mesmo tempo um traço de etnicidade e de identidade cultural, que examina a natureza fundamental da 17 realidade, incluindo a relação entre mente e fisiologia, entre necessidade e possibilidade e que não se prende necessariamente à cor, ao fenótipo ou à etnia da voz. Trata-se também de um conceito semiótico, aqui pensado a partir da conclusão de Hall, em que o argumento fundamental por trás da semiótica é de que todos os objetos culturais expressam sentidos e, por isso, devem utilizar signos. (HALL, 2010). Voz Negra busca, de outro modo, porto na cor e fenótipo, na experiência e memória utilizados como signos que projetam e representam a pessoa. O que procuro é apontar alguns traços, tantas vezes idealizados, sobre suas características vocais e que me permitam apreender o cerne das possíveis diferenças, evitando, desse modo, a constituição das concepções generalizantes, que muitas vezes discriminam, sem a menor compreensão sobre diversidade. O que almejo no percurso desta pesquisa é acentuar, nessas Vozes Negras, um outro saber, em suas variadas posições e funções; apresentar uma outra perspectiva ligada a possíveis legitimidades, de encantamento, de verdades, mas, também, como todo saber, passível de inconclusões, de buracos, de infinitudes. É um texto com um núcleo que parte da fonte da curiosidade, não se quer individualista, cheio de si, ou com um diagnóstico definido, porque prefere contemplar o plural e a diferença em nossa humanidade comum. Esta pesquisa desdobra-se, assim, em três movimentos: no primeiro movimento, ―Das questões identitárias‖, discorro sobre o conceito de raça, com seus atravessamentos, categorizações e pressupostos. Na sequência, para alicerçar a importância do tema escolhido, escrevo também sobre o contexto histórico do teatro negro em trechos de São Paulo. Parto da nascente até desembocar no aguadouro profícuo atual, um Baobá por natureza – árvore forte e longeva, interpretada na identidade social africana de alguns povos, suas raízes como sendo ancestrais e morada das memórias da comunidade e, seu tronco, as crianças e os jovens em crescimento. Pensando na posição da diáspora africana nas américas, acrescento aqui as folhas dessa árvore como filhas e filhos que foram lançados ao mar e que, por vezes, conseguiram fazer desse momento uma criação, uma potência, um existir e um resistir. Para findar o primeiro movimento, trago as questões identitárias sorvendo a essência da mestra Leda Maria Martins e dos mestres Stuart Hall, Kabengele Munanga e Saloma Sallomão. No segundo movimento, ―Parâmetros acústicos e mensurações anatômicas‖, exponho o caminho curvilíneo para a construção da reta ou os desafios da feitura dos exames de ultrassonografia e videoestrobolaringoscopia – análises e descobertas. É importante pontuar que não se trata de produzir comparações ou escalas de nivelamento entre vozes, apontando o dedo e afirmando que uma é melhor ou pior que a outra, o que almejo é demonstrar os achados acústicos e 18 anatômicos. Como a voz analisada soa em determinado momento? Qual é o tamanho, a espessura de cartilagens e músculos? Como foi realizar exames específicos sobre a região faringolaríngea? De fato, existe diferença anatomofisiológica entre as vozes? No terceiro e último movimento, ―Correlações acústicas, anatomofisiológicas e identitárias‖, o vozeamento é alinhavar as questões identitárias e correlacionar com as mensurações anatomofisiológicas e os parâmetros acústicos. Existem relações entre anatomia e cultura? Os exames e a amostragem propostos nesta pesquisa darão conta de responder os questionamentos aqui levantados? 19 Epahei Oyá! Movimenta o que a terra aquece Busca no vento o acumulado da história Rodopia rodopia Canta dança afaga Com as mãos com os pés Faça folia no corpo braseiro Sacoleja por inteiro Peça licença e agradeça Inaicyre-se enraíze-se Na gira a pergunta aguça Busca busca de novo e mais uma vez Vem entra na roda Abrace o movimento Vilele-se e deixe a dança enlaçar a vida Dê um passo dois e solte a criança na dança Venha abra o lúdico e Caroline-se no ensinar Agora Leda-se aprofunda-te Torna-te negra Saia da roda colonizada que enreda os sentidos A voz da negra soa que soul Vem e ressoa a possível diferença Encuca os caminhos da mente Que sente que as pregas não negras diferem E sim às vezes também fere É muscular o pulsar O abre e fecha das verdadeiras e falsas cordas A ressonância é mais densa há quem pensa No mar identitário a onda bate ora com cautela Ora na espera E o que a voz revela nesse expressar Vai e volta no salutar da luta e da labuta Que movimenta e tenta se aguenta e arrebenta Volta revolta e vive sobrevive Movimenta e não ralenta Grita o grito surdo que envolve Toda a musculatura e suas estranhas entranhas Dança dança viva e educa-te relacione-se Faça o jogo dinâmico e dialético O antes e o depois e lembre-se 20 Agradeça e deixe acesa A vozearia do somos porque um dia os nossos lutaram Gira gira Fala baila embala Com as mãos com os pés Faça folia no corpo vivo Remexa por inteiro Peça licença e agradeça Epahei Oyá! No movimento ancestral Gleiziane Pinheiro 21 2 MOVIMENTO 1 – Das questões identitárias 2.1 Raça – menos ratio, mais linguagem Elucubrar sobre o conceito raça pode, de diversas maneiras, causar atravessamentos que permeiam uma ideia simples, e por vezes utópica, de como as pessoas poderiam digerir de forma natural e saudável a convivência no mundo ou, ainda, apresentar uma ideia difusa que dá abertura para categorizações racistas, elitistas e violentas. O reducionismo desse conceito pode aniquilar a diversidade, a pluralidade e o alcance da vida num prisma da não violência. Pelo viés de alguns escritos do Dr. Kabengele Munanga, que aponta um caminho didático palatável e muito bem sedimentado, o conceito ―raça‖, que etimologicamente vem do latim ratio, significando sorte, categoria, espécie, começa a ser pesquisado, semeado e utilizado para fins que, por vezes, não enriquecem a diversidade cultural geral da humanidade. Munanga coloca que o conceito de raça teve seu estarte na zoologia e na botânica com o objetivo de classificar espécies animais e vegetais. Aponta que tal conceito tem, em seu campo semântico, uma dimensão temporal e espacial que, no latim medieval, designava a descendência, a linhagem, gerando, na França dos séculos XVI-XVII, o conceito de raça que passa efetivamente a atuar nas relações entre classes sociais. Como exemplo, é citado os francos e gauleses que categorizavam habilidades especiais e aptidões naturais para distinguir entre plebe e nobreza. De acordo com Hall 2 , raça funciona como linguagem e os significantes referem-se aos sistemas e conceitos de classificação de uma cultura às suas práticas de produção de sentido. Esse pensar se aproxima mais de como funciona uma linguagem do que como funciona nossa biologia ou nossa fisiologia, raça é mais parecida com uma linguagem do que com a nossa constituição biológica. Raça é uma realidade na qual é possível ver seus efeitos. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro. (Hall, 2010, p. 37). 2 Sociólogo jamaicano que atuou no Reino Unido a partir de 1951 e um dos reconhecidos pensadores dos Estudos Culturais, trabalhando criticamente as relações de poder e de cultura num entendimento sobre o 22 Nesta pesquisa sobre os aspectos anatomofisiológicos e identitários da Voz Negra no teatro em trechos de São Paulo, um dos primeiros questionamentos foi de como poderiam ser estabelecidos critérios objetivos com base na diferença e na semelhança, mas também como apontá-los com olhar crítico e fundamentado na diversidade, na pluralidade, sem instigar os possíveis achados como mais uma ferramenta violenta, baseada na raça, para manipular um pseudo poder, uma hierarquização. E, por isso, a importância da provocação sobre o conceito de raça, que emprega muito mais do que um fator biológico e fisiológico. Segundo Munanga: No século XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor d’água entre as chamadas raças. Por isso, que a espécie humana ficou dividida em três raças estancas que resistem até hoje no imaginário coletivo e na terminologia científica: raça branca, negra e amarela. Apenas menos de 1% dos genes que constituem o patrimônio genético de um indivíduo são implicados na transmissão da cor da pele, dos olhos e cabelos... Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram à conclusão de que a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito aliás cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estancas. Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não existem. (Munanga, 2004, p. 03). Mesmo com probabilidades baixíssimas que acabam por deslegitimar cientificamente o conceito de raça, não significa que todas as pessoas sejam iguais, ou seja, geneticamente semelhantes. Os componentes genéticos são diferentes, mas essas diferenças não são suficientes para classificá-las em raças. A tônica aqui é a flecha apontada para a hierarquização, esse pilar estruturado que reforça um sistema de denominação circunstanciada por ideologias e por uma relação de poder e de dominação. É na diversidade que o alicerce da vida humana é construído e desenvolvido. A diversidade genética é absolutamente indispensável à sobrevivência da espécie humana. Cada indivíduo humano é único e se distingue de todos os indivíduos passados, presentes e futuros, não apenas no plano morfológico, imunológico e fisiológico, mas também no plano dos comportamentos. É absurdo pensar que os caracteres adaptativos sejam no absoluto ―melhores‖ ou ―menos bons‖, ―superiores‖ ou ―inferiores‖ que outros. Uma sociedade que deseja maximizar as vantagens da diversidade genética de seus membros deve ser igualitária, isto é, oferecer aos diferentes indivíduos a possibilidade de escolher entre caminhos, meios e modos de vida diversos, de acordo com as disposições naturais de cada um. (Munanga, 2004, p. 07). O foco desta pesquisa não é esmiuçar a essencialização histórico político social e pseudo biológica do que apontamos como raça, mas não podemos deixar de buscar esse alicerce para um melhor entendimento do levantamento dessa hipótese, de investigar uma possível diferença anatomofisiológica nas Vozes Negras e não negras, sem levantar um 23 posicionamento divisionista, muito embora, na realidade sócio político cultural, as Vozes Negras sejam classificadas como fortes, densas e, por vezes, agressivas. A curiosidade sobre a existência ou não de diferenças na região laríngea e suas adjacências se dá na tomada de consciência de particularidades culturais, artísticas, sociais, políticas e da vivência nos meios teatrais e musicais. O ouvido identifica nuances diferenciadas e, depois de alguns estudos, leitura de artigos e literatura na área da saúde e do campo das artes, fica comprovada a existência de sonoridades diferentes nas Vozes Negras, com parâmetros acústicos que compõem um quadro com características encontradas nelas 3 .¹ É possível que tais particularidades possam se dar exclusivamente por meio da construção de uma identidade ou de fatores como tamanho e espessura de cartilagens e músculos? Estando presentes na formação anatomofisiológica faz com que a Voz Negra de fato se diferencie das vozes não negras? 2.2 Teatro Negro - um Baobá por natureza Preciso iniciar esta parte afirmando que não é a intenção desta pesquisa tecer um estudo aprofundado sobre o Teatro Negro de São Paulo e, sim, um panorama que reflita a importância de se falar da Voz Negra no teatro construído por trechos, de São Paulo. O termo Teatro Negro é colocado aqui numa seara ampla, pensando num conjunto de manifestações originadas de um olhar afrodiaspórico, perpassando a decolonialidade, se (re) apropriando de um repertório cultural e estético de matriz africana, colocando em evidência questões políticas e sociais na vivência de corpos e corpas negras, dando voz a dramaturgias que atravessam as questões, as situações vivenciadas por pessoas negras, e apontando uma experiência que se expressa na recuperação, na resistência e na afirmação da cultura negra. O Teatro Negro no Brasil sempre existiu e, quando escrevo a palavra ―sempre‖, é para arraigar a presença da Voz Negra, do corpo negro, da palavra negra, da criação negra e, sim, junto com tudo isso as inúmeras tentativas do apagamento da arte negra brasileira. 3 ANDRIANOPOULOS, M. V.; DARROW, K., CHEN, J. Multimodal standardization of voice among four multicultural populations formant structures. Journal of Voice, v. 15, n. 1, p. 61-77, mar. 2001. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/11140247_Multimodal_Standardization_of_Voice_Among_Four_Mult icultural_Populations_Formant_Structures e HUDSON, A., HOLBROOK, A. A study of the reading fundamental vocal frequency of young black adults. Journal of speech and hearing research, v. 24, n. 2, p. 197- 201, jun. 1981. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/7265934/. Acesso em: 29 maio 2024. https://www.researchgate.net/publication/11140247_Multimodal_Standardization_of_Voice_Among_Four_Multicultural_Populations_Formant_Structures https://www.researchgate.net/publication/11140247_Multimodal_Standardization_of_Voice_Among_Four_Multicultural_Populations_Formant_Structures https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/7265934/ 24 Miriam Garcia Mendes apresenta, em sua obra ―O negro e o teatro brasileiro‖, um estudo com as aparições estereotipadas das personagens negras no teatro, a partir do século XIX. A pessoa negra é colocada no papel de subjugada, passível de maus tratos e de violências físicas e emocionais, atreladas a achaques construídos para o escárnio de uma plateia de maioria não negra, que invisibiliza a pessoa negra como atriz ou ator. A pessoa do negro aparecia ainda em algumas peças como figurante, ou exercendo qualquer função subalterna, irrelevante, não podendo ser considerada como personagem, posição que exige uma distensão no tempo e na ação dramática, para caracterizar-se como tal. De modo geral e dentro dos esquemas acima mencionados é que eram criadas as personagens negras na dramaturgia brasileira do período que vai, mais ou menos, de 1889 a 1910. (Mendes, 1993, p. 29). Nas décadas de 20 e 30, a condição imposta para atrizes e atores negros segue o mesmo molde violento da estereotipia. Não existe espaço para a construção de uma personagem fora dos preceitos dos colonizadores. Na década de 40, uma pessoa negra se incomoda com a seguinte cena: na peça escrita por Eugene O’Neill, Emperor Jones, uma pessoa não negra interpreta o papel principal pintada de negro. Esse despautério chamou a atenção de Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro (TEN). E é nessa criação, em 1944, que se dá o início de um caminho que é documentado e que se sedimenta de forma imprescindível para ser consultado como fonte para pesquisas, como a minha. O TEN propunha-se a fazer um teatro engajado, com a integração da pessoa negra na sociedade brasileira, com a valorização da contribuição negra na cultura brasileira e para mostrar a existência de uma intelectualidade negra que poderia alimentar os palcos com uma dramaturgia negra que apresentasse o povo negro em toda a sua complexidade humana, com atrizes e atores negros assumindo o protagonismo. Além disso, também investia na formação e educação básica da população negra brasileira, com ações políticas sociais, organização de seminários, congressos, produção de jornais e revistas, tudo isso com a pretensão de valorizar as expressões negras, essas ações aconteceram principalmente no Estado do Rio de Janeiro. (Nascimento, 2004, p. 13). Em 1946, surgiria, no Estado de São Paulo o Teatro Experimental do Negro Paulista (TENSP), que teve, como um de seus fundadores, o socialista Geraldo Campos de Oliveira, amigo de Abdias do Nascimento. O TENSP não era uma filial, mas sim um desdobramento do TEN carioca alinhado com as questões ideológicas abordadas e tinha, em seus planos, um projeto de educação e profissionalização teatral conjugado com o ativismo negro antirracista. 25 Na fala de Geraldo Campos de Oliveira em entrevista concedida para o jornal da época ―Folha da Manhã‖, esse desejo é expresso. Tudo faremos para interessar escritores e teatrólogos que escrevam trabalhos para o nosso teatro. Peças que tenham o negro, sua vida, seus dramas e suas tragédias, como ponto fundamental, em que a vida do negro seja a essência. (―Novas possibilidades‖, 30/9/1945, p. 22). A expansão e o desenvolvimento dos grupos e companhias negras de teatro de São Paulo não se dá sem um alicerce forjado anteriormente. Essa trajetória é uma continuidade histórica que antecede o século XIX e passa pelo TENSP e outros grupos, como o Teatro Popular Brasileiro (TPB), fundado por Solano Trindade em 1950, e o Teatro Profissional do Negro (TEPRON), criado, em 1970, por Ubirajara Fidalgo. Temos, na cena contemporânea do Teatro de São Paulo, companhias que seguem contribuindo, transformando e fomentando o trabalho que nossos ancestrais iniciaram. Na sequência, destacarei alguns coletivos e grupos de teatro de algumas regiões/trechos de São Paulo com produções que falam sobre questões sociais e políticas, marginalização do negro, relações afetivas, identidade da mulher negra, enegrecimento dos chamados ―clássicos‖ do teatro e sobre o uso de uma gestualidade afrodiaspórica ligada a uma ritualística que conta histórias da mitologia africana. O grupo Clariô, de Taboão da Serra, município da região metropolitana de São Paulo, é formado por atrizes e atores negras e não negras. Alguns espetáculos premiados do grupo são: "Hospital da Gente" 4 , de Marcelino Freire, tratando exatamente da condição das mulheres das periferias do Brasil de hoje, e "Urubu Come Carniça e Vôa!", de Miró da Muribeca, tratando de seus homens 5 . 4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ecO6VKt6o4w. Acesso em: 29 maio 2024. 5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rQZV2YpQn_o. Acesso em: 29 maio 2024. https://www.youtube.com/watch?v=ecO6VKt6o4w https://www.youtube.com/watch?v=rQZV2YpQn_o 26 Figura 1 – Grupo Clariô de Teatro ―Hospital da Gente‖ Fonte: créditos da fotografia. Moisés Moraes (2008) Figura 2 – Grupo Clariô de Teatro ―Urubú come carniça e vôa‖ Fonte: créditos da fotografia. Guma (2011) 27 As Capulanas Companhia de Arte Negra, sediada no bairro Jardim São Luís, é formada somente por atrizes negras. Alguns espetáculos do grupo são: ―Sangoma‖ 6 , ―Ialodês – Trilogia da Mulher Negra – Uma ficção afrofuturista‖, ―Solano Trindade e suas negras poesias‖. Figura 3 – As Capulanas Companhia de Arte Negra. ―Ialodês – Trilogia da Mulher Negra – Uma ficção afrofuturista‖ Fonte: créditos da fotografia. Guma (2016) Figura 4 – As Capulanas Companhia de Arte Negra. ―Solano Trindade e suas negras poesias‖ Fonte: créditos da fotografia. Guma (2007) 6 Registro do espetáculo ―Sangoma‖. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fi8SfiLAe98&list=PLA33DOrecQefCMqv8DtlgUQ02ktknIg-A. Acesso em: 11 jun. 2024. https://www.youtube.com/watch?v=Fi8SfiLAe98&list=PLA33DOrecQefCMqv8DtlgUQ02ktknIg-A 28 O coletivo Os Crespos, composto por atores e atrizes negras, têm, em seu repertório, espetáculos teatrais, intervenções performáticas, curtas-metragens e quatro publicações da ―Legítima Defesa – Uma Revista de Teatro Negro‖. Alguns espetáculos do coletivo são: ―De Mãos Dadas com Minha Irmã‖ 7 , ―Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas‖ 8 e ―Os Coloridos‖. Figura 5 – Revista Legítima Defesa. Foto da capa: Espetáculo Sortilégio (1957), em montagem do Teatro Experimental do Negro (TEN) Fonte: Acervo Ipeafro (2021) Figura 6 – Coletivo Os Crespos. ―Os Coloridos‖ Fonte: créditos da foto. Mariana Ser (2015) 7 Registro do espetáculo ―De mãos dadas com minha irmã‖. ―Obá é uma heroína que saiu de sua terra em busca de água. Ela vai enfrentar a um mundo hostil que seca‖. Disponível em: https://youtu.be/PoA3GbuzN14. Acesso em: 29 maio 2024. 8 Registro do espetáculo ―Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas‖. ―O espetáculo teatral solo da Cia Os Crespos investiga as relações entre afetividade, negritude, gênero e o impacto da escravidão na nossa maneira de amar.‖. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=INGgl3Z8G8o. Acesso em: 29 maio 2024. https://youtu.be/PoA3GbuzN14 https://www.youtube.com/watch?v=INGgl3Z8G8o 29 O Coletivo Negro, formado por atrizes e atores negros, desde 2008 realiza montagens importantes para a cena teatral paulista. Alguns espetáculos do coletivo são: ―Ida‖ 9 , ―Revolver‖ 10 , ―Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens‖, ―Gota D’Água Preta‖. 11 Figura 7 – Coletivo Negro. ―Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens‖ Fonte: créditos da foto. Diogo Gonçalves de Andrade (2018) Figura 8 – Coletivo Negro. ―Gota D’Água Preta‖ Fonte: créditos da foto. Evandro Macedo (2019) 9 Registro do espetáculo ―Ida‖. O espetáculo "IDA", do Coletivo Negro fala de escolhas, desejos, mudanças, construção simbólica, imaginário construído, violência simbólica, empoderamento, necessidade de posicionamento e construção social da MULHER NEGRA. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WOQ3F8AKtSo. Acesso em: 29 maio 2024. 10 Teaser do Coletivo Negro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0eI2yLFvQnk. Acesso em: 29 maio 2024. 11 Registo do processo criativo de Gota D’Água Preta. ―Olha a voz que me resta‖. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5oQ9yj1asiY. Acesso em: 29 maio 2024. https://www.youtube.com/watch?v=WOQ3F8AKtSo https://www.youtube.com/watch?v=0eI2yLFvQnk https://www.youtube.com/watch?v=5oQ9yj1asiY 30 A Companhia dos Inventivos, formada por atrizes e atores negros e não negros realiza, desde 2004, um trabalho que fala sobre ética comunitária, famílias alargadas e práticas ancestrais herdadas e reatualizadas na cidade. Alguns espetáculos da companhia são: ―Nzinga‖, ―Maria Auxiliadora‖, ―Um Canto para Carolina‖ 12 . Figura 9 – Companhia dos Inventivos. ―Nzinga‖ Fonte: créditos da foto. Sérgio Fernandes (2023) Figura 10 – Companhia dos Inventivos. ―Maria Auxiliadora‖ Fonte: créditos da foto. Zé Barretta (2024) 12 Registro do espetáculo ―Um canto para Carolina‖, pela Circulação Inventiva. A ação fez parte do projeto: ―Cia dos Inventivos em revista II. Parte: um ensaio sobre o artivismo brasileiro‖. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rKVb7-W0BHM. Acesso em: 29 maio 2024. https://www.youtube.com/watch?v=rKVb7-W0BHM 31 Figura 11 – Companhia dos Inventivos. ―Um Canto para Carolina‖ Fonte: créditos da foto. André Hoff (2018) Coletivo Legítima Defesa é um grupo formado, desde 2015, por artistas, atrizes e atores negros que realizam uma ação poética e política entendida como um ato de ―guerrilha estética‖ e se colocam em diálogo com outras vozes que também reflitam e representam a negritude. Alguns espetáculos do coletivo são: ―A missão em fragmentos – 12 cenas de descolonização em legítima defesa‖ 13 e ―Black Brecht – e se Brecht fosse negro?‖. Figura 12 – Coletivo Legítima Defesa. ―Black Brecht – e se Brecht fosse negro?‖ Fonte: créditos da foto. Cristina Maranhão (2017) 13 Registro do espetáculo ―A Missão em Fragmentos. 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa‖. ―Três emissários da Convenção Francesa viajam no inverno de 1798/99 para a colônia inglesa, a Jamaica, para ali organizarem uma revolta dos escravos‖. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=hpXyNQjj7z8. Acesso em: 29 maio 2024. https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=hpXyNQjj7z8 32 Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022, a população de pessoas pretas e pardas é de 40,95% no Estado de São Paulo 14 . Com um número tão expressivo de possíveis espectadores e criadores de teatro, é muito importante ressaltarmos o quão fundamental é o trabalho dos coletivos, grupos e companhias de teatro, que estão há tantos anos estudando, especializando-se nas artes do corpo e da voz, escrevendo, abordando assuntos de cunho político, social e cultural. Colocam assuntos afrodiaspóricos no centro da pauta, dialogando com códigos cênicos vinculados às referências da matriz cultural africana, montando dramaturgias de pessoas negras como Grace Passô, Dione Carlos, Jhonny Salaberg, Rodrigo França, Jê Oliveira, Lucélia Sérgio e tantas outras escritas de narrativa negra. É nesse teatro, Baobá por natureza, que tantas vozes ecoam com matizes sonoras diferenciadas, pulsando com identidades que significam e que se ressignificam no viver Ubuntu, eu sou porque nós somos. 2.3 Das questões de identidade O termo ―identidade‖ vem mudando de significado ao longo dos anos. Hoje os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos interferem diretamente na maneira de pensar e agir de acordo com o que se entende por ele. [...] Em 1950, a identidade de alguém era aquilo que o distinguia, não o que o ligava aos outros. Vejamos a diferença: um relatório policial diria que ―a vítima é do sexo masculino, negra, heterossexual, pertencente a uma determinada associação católica, mas sua identidade permanece desconhecida‖. (Appiah, 2010, p. 17). Appiah apresenta três dimensões quando se fala de identidade. A primeira diz respeito às identidades sociais, que dependem de rótulos para sua existência. A segunda fala sobre uma identidade que é normativa, na qual existem normas de identificação e normas de tratamento. Nesse sentido, elas criam regularidade comportamental. Geralmente não são aceitas por todos e, muitas vezes, há curiosas disputas a respeito delas. Para entendimento dessas dimensões, Appiah apresenta exemplos negativos, como: ―homens heterossexuais não devem apaixonar-se uns pelos outros, negros e brancos não devem envergonhar suas respectivas etnias, judeus e muçulmanos não devem comer carne de porco‖ e exemplos positivos: ―os homens devem abrir as portas para as mulheres, homens homossexuais devem revelar-se publicamente, os negros devem apoiar ações afirmativas‖. A terceira dimensão 14 IBGE. Panorama Censo 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/mapas.html?localidade=&recorte=N3. Acesso em: 29 maio 2024. https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/mapas.html?localidade=&recorte=N3 33 deriva da segunda: ―por existirem normas de identificação, pessoas que, pelos rótulos, se identificam como X, agem às vezes segundo o próprio rótulo‖ (Appiah, 2010, p. 19). Nesse ponto, as identidades evidenciam-se como subjetivas, porque podem desempenhar um papel nos atos e pensamentos. É nesse contexto que brota, dialogando com todas essas dimensões do conceito de identidade e continuando numa espiral de mudança, a ideia de traçar uma linha identitária no cerne das questões ligadas à negritude. Ora, uma vez que o conceito percorre tantas nuances, por que não identificar e expor um pensamento com viés na Voz Negra no Teatro de regiões de São Paulo? Nesta pesquisa foram realizadas entrevistas, partindo da premissa de ser uma trabalhadora(or) do teatro, com questões abertas que abordam os pensares e sentires sobre identidade. Dentre as questões formuladas, as relações cotidianas e a construção de uma identidade, principalmente a identidade negra, são colocadas como foco, porque as pessoas negras têm sido expostas a situações de humilhação, por meio de mecanismos de reprodução ideológica que valorizam as características identitárias das pessoas não negras, sempre de maneira positiva, como sendo a ideal, a socialmente aceitável. Como fica a construção da identidade da atriz e do ator negros? A identidade é um processo em constante progressão e transformação e, por isso, uma pessoa não está presa a uma única forma ao longo da vida. Sua identidade não é fixa e imutável. No entanto, como se dá essa mudança na perspectiva da trabalhadora(or) negra dentro do teatro paulista? Hall propõe, no caso de identidades negras diaspóricas, pensá-las como atravessadas por dois eixos simultâneos: um de similaridade e continuidade e, outro, de diferença e ruptura. No questionário para levantamento das questões identitárias, Vozes Negras e não negras do teatro, em resposta sobre sua identidade vocal, dizem o seguinte: 1. Quais são as características da sua voz? Eu acho que tenho uma voz um pouco... Eu acho que é fácil de compreender quando eu me comunico, mas eu tenho a tendência a não projetar tanto, ela é uma coisa para dentro. Então eu tenho essa preocupação de expressar a minha voz pra fora, pra falar alto. E aí acaba que eu sinto que as vezes esse falar alto, é mais pra fugir desse lugar da voz pra dentro assim. (R., participante negra). Acho que eu tenho uma voz grave e alta. (L., participante negra). Eu acho que minha voz, ela é mais grave do que aguda, é uma voz forte. Muita gente já me falou que eu tenho uma voz forte, uma voz presente assim. E eu acho que, com o tempo, eu comecei a gostar mais dela por conta disso, porque eu acho que é um dado muito forte da minha personalidade, dessa voz assim mais impostada, sei lá. Eu acho que é isso, assim é o que eu entendo da minha voz. 34 (A., participante negra). É, eu acho que ela é uma voz grave. Eu acho que de articulação eu devo ter 70%, dicção 60, não sei, de projeção eu daria um 80, 90%, vai. (P., participante negra). A minha voz, ela é mais rouca, mais forte. Acho que eu posso definir dessa maneira, não sei. (S., participante negra). Minha voz varia entre uma voz um pouco mais grave e aguda. Tem bastante é, eu esqueci a palavra certa, mas tem uma textura grande de agudos e graves. Acho que às vezes fica com uma leve rouquidão pela manhã, uma coisa mais cansada por causa do cigarro, principalmente. E é isso, tenho uma dificuldade de pensar direito como minha voz soa pra fora. (T., participante não negra). Eu considero a minha voz trabalhada, uma voz profissional, uma voz clara, no sentido de nítida. As pessoas compreendem bem o que eu falo, acredito que tem um bom volume, uma boa emissão vocal e é isso. (O., participante não negra). Minha voz é aguda, a minha voz é lenta, a minha voz é... ela acompanha o meu nível emocional de estresse, essa é uma característica que eu acho dela, então se eu estou muito ansioso, eu vou falar mais rápido, mas geralmente ela é uma voz lenta, calma, tranquila, é... que não se exalta com frequência. Aguda, sim, e que se cansa com facilidade. E acho que tá bom. (J., participante não negra). É média, consigo fazer várias vozes. Consigo brincar com vozes muito graves, muito agudas, arranhadas e sem sentir dor. Minha voz é de desenho animado. (F., participante não negra). A minha voz ela é estridente, aguda, eu falo rápido, não tenho muito tempo de pausa entre uma fala e, outras vezes, quando eu fico muito emocionada, principalmente, e quanto mais emocionada eu vou ficando, eu vou falando mais rápido e mais agudo. Só que antigamente a minha voz ela era, ela sempre foi muito aguda e, durante uma fase da minha vida, eu fui questionada sobre isso por umas pessoas, amigos. Porque parecia, soava, como uma voz infantilizada, e isso incomodava as pessoas. E aí o que que eu comecei a fazer? Foi um exercício para trazer a minha voz mais para o grave, principalmente na fala, e mais pausada, para passar talvez uma impressão de que eu fosse uma pessoa mais centrada, mais sensata. E isso aí, inclusive eu falo na minha pesquisa sobre isso. E no meu rito também, que você viu. E só que hoje em dia tenho essa consciência, eu percebo que eu evito de pensar nisso. Hoje eu utilizo o grave para falar bastante, tipo agora eu não estou falando na região tão aguda, mas às vezes eu quero falar desse jeito aqui, então eu falo mais agudo e está tudo bem e utilizo isso mais para a fala e no canto eu canto mais no agudo mesmo, e às vezes eu quero cantar mais no grave porque eu acho bonito, mas acho que é isso, as características da voz. (D., participante não negra). 2. Qual é a sua identidade vocal, pensando nos aspectos culturais, sociais e políticos? Por exemplo: aspecto cultural - sotaque, fluxo de fala; aspecto social - maneirismos, gírias, territorialidade; aspecto político - discursiva, vocabulário, oratória. Como posso dizer isso? Eu acho que eu tenho uma voz periférica, eu diria, por conta que é isso, tem esse lugar mesmo do que é o lugar da quebrada, desse jeito mais informal de tentar se comunicar, um jeito de modulação de altura para que as pessoas, ah para não ser violento e para ser violento, em alguns momentos para ser entendido nesse lugar mesmo, sabe? E eu acho que é discursivo, acho que é isso, se eu entendi, acho que é isso. 35 (L., participante negra). Eu acho que eu tenho muita influência da onde eu moro, então, às vezes, falo bastante gírias e acredito que também o fato de ser negra, acho que isso influencia, né? Que a gente tem um jeito único de falar e... Eu falo bastante gíria, sinto que eu tenho bastante o ―R‖, então quando eu falo eu sinto que o ―R‖ ele é bem presente, acho que é por conta da região também que eu estou. Ah, eu também não... Eu sou de São Paulo, mas eu tenho um convívio desde criança com muita gente do nordeste, de várias cidades, e, durante, quando era criança, as pessoas pensavam que eu era de lá, porque eu tinha essa tendência de pegar para mim os sotaques das pessoas que vinham dessas regiões e aí ficava uma mistura junto com paulista, junto com essas gírias, já usei muito mano, já usei muito tio, durante um tempo, então eu acho que é mais ou menos isso. (R., participante negra). Hum, poxa, isso é complexo, eu acho que a minha voz tem muito do que eu sou, que é, eu acho que eu me reconheço hoje como uma mulher preta, uma mulher periférica, então ela vai, é, ela está muito ligada a isso. Assim, o modo como eu falo, as gírias, né, que você trouxe como exemplo, ela está muito ligada a um, a um território. Eu sou de Francisco Morato e aí, é um lugar periférico em São Paulo, né, no Estado de São Paulo. Então? Acho que tem um tanto do interior e um tanto desse lugar da periferia da metrópole. Assim, eu acho que tem uma grande mistura, tem uma mistura também muito com o lugar dos meus pais, que eles são nordestinos, então tem essa descendência também. Eu acho que tem muita coisa que eu pego deles no modo de falar. E pensando nesse lugar do aspecto político, é uma voz que está sempre em lutas assim, não é? É isso, uma voz que sempre teve que se impor muito para poder ser ouvida, uma voz que precisa entender esses lugares de se fazer ouvir. (A., participante negra). É, eu sou natural da Bahia, mas eu fui criado em São Paulo, então o sotaque do nordeste não é tão presente. Apesar de eu conviver, né? Que minha família, meus pais são baianos da gema, então o sotaque eu não sei, eu acho que é que é neutro, né? Também fui, convivi durante um tempo no interior de São Paulo, tenho esse sotaque do interior, mas hoje eu identifico como neutro. Não chega a ser aquele sotaque paulistano, mas é que me considero neutro. E outra coisa que você falou de vícios, né? Questão cultural, questão é política, né? Discursiva, vocabulário, oratória é território que quer ser. É uma identidade que eu acredito, que eu herdei da minha mãe, da voz, aquela pessoa que fala muito rápido. E isso eu não sei se passou pra mim, mas é uma coisa que também tenho. Esse vício de falar rápido é às vezes não articular muito bem, falar, falar, falar, falar numa velocidade rápida que com o teatro eu consegui mais podar, mas ainda acho que eu, que eu falo um pouco rápido. Agora eu tô me concentrando pra não falar rápido, mas provavelmente eu falo, eu falo rápido. (P., participante negra). Olha, político, acho que minha voz ela é um pouco contida. Pela estrutura, conhecimento. É por questão de espaço é da onde eu... Eu, ah, me considero bem paulista, paulista, com um sentimento de Pirituba, que é aquela coisa mais regional, mais tranquila. Acho que tem um pouquinho disso, talvez essa coisa muito louca que é ser paulista, correria, mas também traz um pouco da tranquilidade que é o bairro. (S., participante negra). Eu sou paulistano, então eu tenho um sotaque específico de São Paulo, mas eu sou a pessoa que viaja muito, graças a Deus, então eu tenho uma, por ser ator, acredito que eu tenho uma facilidade e uma tendência a prestar muita atenção em outros tipos de fala e trazer isso para mim. Então eu acho que a minha fala hoje, apesar do sotaque paulistano, é uma grande mistura, eu tenho muitos maneirismos de Minas, porque já morei em Minas, eu tenho muitos maneirismos do Sul porque que minha família é do Sul e tenho algumas gírias, algumas curvas melódicas do Rio de Janeiro, por ter muitos amigos do Rio de Janeiro. Eu acho que minha voz hoje ela é bem com essas características. Nos aspectos políticos acho que eu tenho uma voz discursiva assim, com o vocabulário técnico, 36 especialmente relacionado às artes, que é o meu campo de estudos, é o que eu mais leio, é o que eu mais consumo, então eu tenho o meu vocabulário técnico específico sobre isso que também é político. (O., participante não negra). É, acho que a minha voz varia muito de que local eu estou, com quem eu estou conversando, então isso difere muitas vezes. Isso difere principalmente num ponto de vocabulário e forma de falar, eu percebo isso, eu gosto de falar de maneira, nossa, agora eu vou usar tipo popular, então normalmente eu não gosto de trazer palavras cheias de requinte na forma que eu vou me expressar, mas não é que eu não saiba usá-las, então, dependendo do lugar, eu vou usá-las por algum motivo mais específico, para ter mais destaque ou para ser mais levada a sério, né? Sou, tenho uma voz bem paulistana, às vezes eu tento tirar um pouco desse nasal, mas eu sei que eu tenho. Acho que é uma voz bem articulada também, acho que eu articulo bem as palavras, acho que é isso. (T., participante não negra). Tá, a minha voz ela é uma voz muito paulistana, característica do meu, eu acho que ela tem essa característica é, e acho que tem um quê da zona norte de São Paulo, que é o meu ―R‖ de norte, de porta aberta, que eu acho que tem a ver com isso, porque não sinto de família assim, é uma coisa que me parece do lugar onde eu nasci, que ali, vivi na zona norte a infância inteira, então acho que essa é uma primeira característica dela, assim, desse regional, desse lugar é, mas acho que é isso, o sotaque que eu entendo é o meu sotaque paulistano, é de mano, é esse tipo de sotaque. Eu acho que a minha voz, ela tem uma característica professoral, então, também por ser professor há muitos anos, eu acho que a minha voz é completamente é, ela tem esse tom de ser explicativa e tentar ser muito clara, tentar ser muito precisa, muito articulada para o bom entendimento, então acho que é uma preocupação quando eu falo, quando eu explico, de ser professor mesmo assim. Tinha pensado mais uma coisa da coisa do meio... mas eu acho que eu iria por aí assim, porque acho que eu não vejo, é isso assim do quesito hereditariedade ou raça, ou... Eu não consigo identificar nada assim, não saberia dizer. (J., participante não negra). Minha voz eu considero uma voz alta e essa voz alta acho que tem a ver com a periferia de São Paulo, às vezes parece nervosa, brava, mas é uma característica de como a gente conversa na periferia. A minha voz, eu penso que ela é uma mistura de um sotaque paulistano, mas meio paulista do interior, por conta das pessoas que conviveram comigo e eu convivi nos bairros de periferia, misturado com um mineiro também, mas aí eu tenho uma característica assim, tem vocabulários que eu uso em determinados lugares, principalmente no encontro com amigos e amigos da infância, tem um vocabulário que eu utilizo dentro da minha profissão, que é o teatro e tem o vocabulário acadêmico que eu uso, às vezes, e estou procurando usar cada vez menos, mas eu uso. Acho que com o passar do tempo e dos anos, coisas que eu só podia falar no meu bairro, hoje eu consigo falar, por exemplo, como professor. É, mas eu diria que é isso, é uma voz alta e que aparenta uma certa braveza, mas acho que é uma voz também, em termos políticos, uma voz, eu vou chamar assim, eu acho que eu consigo ter uma certa continuidade no que eu estou falando. (F., participante não negra). Eu sou uma pessoa baiana, do interior de Vitória da Conquista, lá da Bahia, é de um bairro mais periférico da cidade. Lá é uma cidade que fica um pouco próximo de Minas, então meu sotaque ele não é tão carregado para o lado mais de Salvador, que puxa um pouco diferente os ―Ss‖ e os acentos também, mas assim é um pouco mais mineiro, porém quando eu estou em Minas as pessoas não me reconhecem como mineiro, lógico, mas também quando eu estou em Salvador não reconhecem como baiano e quando eu estou em São Paulo..., é fica na dúvida, de onde é que eu sou, então a minha, enfim, o meu lugar, né?, de fala assim, é engraçado, porque eu tenho muito de uma Bahia interiorana, que é a Bahia que eu falo até em vários textos que eu escrevo, a Bahia do pão de queijo é a Bahia do terno de reis, que canta músicas estilo carpideiras e lavadeiras com tons anasalados, eu falo bastante também anasalado e canto nesse lugar e eu acho bonito, mesmo que as pessoas não achem. E o que mais sobre essa parte é, então assim, eu sou uma pessoa que falo bastante a depender do lugar, eu falo muito, é onde eu me sinto mais à vontade, porém, tem certos lugares que eu me sinto silenciada e aí eu evito de falar nesses lugares porque eu sei que ninguém vai querer ouvir e eu já percebo pelas expressões, então eu prefiro simplesmente ficar no silêncio e isso me incomoda, porque como é que eu narro a minha voz, né? Como é que eu vou colocar a 37 minha voz, imprimir a minha voz e falar sobre a minha história, sobre minha trajetória? A minha mãe, ela foi uma, ela é uma mulher que... ela veio da zona rural da Bahia, então a minha mãe trabalhou na lavoura sempre e a minha mãe não, não aprendeu a ler, porque é uma imposição do pai, depois do irmão, depois do marido. E quando ela teve a oportunidade, os filhos, ela teve cuidado dos filhos, então ela nunca pôde colocar a voz dela também em vários lugares e, vendo a minha mãe nesse lugar, que é muito difícil, eu evitei de não falar em muitas situações, eu tentei no máximo colocar a minha voz, falar, então assim, eu tentei criar também caminhos para que isso pudesse ser, né?, aceito, tipo é, eu entrei na faculdade, né?, fazendo mestrado, tudo isso conta como você fala, como você quer se expressar. E eu não gosto muito de ficar falando, tipo, falas acadêmicas, mais difíceis, palavras que as pessoas não entendem. Eu gosto de falar palavras que chegam em todas as pessoas, então isso faz com que as pessoas não me, não me deem tanta credibilidade, porque elas não... é como se você tivesse que falar muito, né?, num lugar requintado assim, cheio de palavras difíceis para você ser reconhecido. E aí eu sinto que, como eu não faço isso, é meio ―ah, é popular demais e as pessoas não valorizam‖, infelizmente tem esse lado assim e eu me incomodo. Eu estou no momento que eu me incomodo muito de não poder falar, sabe? Quando eu posso falar, eu fico, eu me sinto bem, apesar que eu fico muito excitada, né? Eu vou, a minha emoção vai cortando o meu fluxo de pensamento, de pensamento, mas eu acho que é importante, principalmente com uma mulher, eu sou uma mulher, né? Eu sou nordestina e eu estou num lugar que é um lugar, assim, diferente da minha, da minha origem. Eu nasci em Campinas, mas eu não morei em Campinas, eu fui para Bahia com um ano de idade, então toda a minha referência é desse, dessa Terra, sabe?, que acredita no Deus, que dança, que dança, que canta, que fala, que tem uma liberdade muito grande, é, na infância também, de brincadeiras, de roda, de cantos, então o que eu sinto é que toda a minha experiência vocal e de vida, ela vem também por causa da minha infância né?, é que assim a minha mãe, ela tentou fazer ao máximo que eu pudesse ter uma infância de brincadeiras, de eu poder me colocar também, mas a gente sabe que a gente é boicotado, eu acho que eu falei bastante. (D., participante não negra). 3. Dentro do conceito de identidade ligado aos aspectos culturais, sociais e políticos, você acredita que a sua voz tenha uma imagem pré-concebida, padronizada e generalizada pelo senso comum? Se sim, cite um exemplo. Acho que sim, mas eu acredito que eu vou, fui moldando um pouco a minha forma de me comunicar em determinado, principalmente em determinados espaços. Eu sinto que quanto mais eu falo ―certo‖, tô fazendo aspas, quanto mais eu falo ―certo‖, é mais fácil de eu ser aceita em determinados espaços, então, durante, até minha adolescência, assim, eu falava, tinha tendência de falar muitas gírias e eu sinto que eu fui moldando isso, tirando essas gírias, mas ainda tem alguns vícios de linguagem, eu uso muito, sabe, muito tipo, às vezes, mas sim, a resposta é sim. (R., participante negra). Sim. De feirante, das pessoas que falam na feira, já ouvi muito isso. Falam assim: ―ah, o M. tem voz de feirante‖. (L., participante negra). Acho que tem, é um grande estereótipo na verdade, que sempre carreguei, que é esse lugar de parecer uma pessoa sempre muito brava, muito é, eu sinto, às vezes que as pessoas se assustam, por conta desse lugar, da imposição ou desse modo mais forte, mais firme, né? Eu sempre, eu acho que eu sempre tive esse lugar vocalmente, e aí a galera, a voz em conjunto com o rosto, assim, em conjunto com a personalidade ela acaba correspondendo ou tendo esse estereótipo de que a pessoa está brava ou a pessoa é mais agressiva, assim é eu acho que esse é um dos exemplos que eu acabo sendo enquadrada nessa sociedade que a gente vive. (A., participante negra). Eu acredito que sim, porque por eu ser um homem alto, alto, das pessoas... por uma pessoa forte, as pessoas vão, vão, vão idealizar que minha voz é uma voz grave normalmente, né? Não se surpreende quando eu falo de uma coisa assim, no dia a dia assim, eu vou falar com alguém. Acho que nunca me falou, ―nossa, sua voz é fina‖, não tem essa surpresa assim. (P., participante negra). 38 Olha, eu acredito que a minha voz ela não é, não sei, ela, ela, eu acredito, hoje talvez eu tenha, eu venha me desprendendo disso, mas eu acredito que muita das vezes ela foi muito pro senso comum, muito numa direção padronizada das coisas, das minhas influências. Então hoje eu venho me influenciando, querendo, na verdade, eu quero me influenciar por coisas que eu quero, não pelo que a sociedade está me impondo, então eu venho, eu venho buscando outras influências que vem repercutindo também na minha voz. (S., participante negra). Eu não tenho certeza, eu poderia arriscar, assim, que tem a ver com esse lugar de, de saber variar minha voz de acordo com onde eu vou, principalmente porque às vezes eu vou falar um pouquinho mais doce, de um jeitinho um pouco mais aceito, outras vezes vou falar um pouco mais grave sim, para botar um pouco, enfim, sala de aula, quando vem a Edna modas também para conversar de um outro jeito, que às vezes eu preciso ser mais dura e por isso eu trago um outro arquétipo para voz, para poder limpar um pouco essa imagem de uma menina, que eu acho que às vezes tem uma imagem de uma vozinha de garota demais, que junta com a minha, com meu visual, com a minha idade. Então, às vezes, a voz vem num lugar diferente para quebrar um pouco com isso. (T., participante não negra). Sim, eu acho muito que a minha voz tem é, eu acho que é isso, primeiro penso, por exemplo, em questões de trabalho, então vou até dar o exemplo de agora, assim, que é, tô trabalhando como diretor, então as pessoas têm medo de que eu não consiga fazer um trabalho bom, porque eu não tenho uma voz que vai se impor, uma voz que vai, que vai gritar, falar mais forte, então as pessoas acham que eu não posso fazer um bom trabalho como diretor porque talvez eu não tenha uma voz de comando do que elas preconcebem como voz de comando. E acho que para mim tem uma questão também, de ser gay e de ter uma voz aguda, eu acho que as pessoas também têm uma preconcepção disso, é em relação a isso, assim, de ser um homem gay e ter uma voz aguda e o lugar onde as vezes me encaixam. Não só aguda, né? Mas no jeito de falar uma voz do que a gente entende como um pouco mais feminilizada em alguns momentos assim, mas eu acho que sim, acho que existe uma ―pré‖ concepção, um ―pré‖ conceito em relação a isso também. (J., participante não negro). Acho que sim, mas é um sim, meio sim, não, é um SIM. É... eu acho que pela profissão que eu exerço, tenho um certo padrão esperado, mas o que eu acho que eu não correspondo exatamente a esse padrão não, mas sim, acho que pela cor da minha pele, também tem um certo padrão esperado, e muitas vezes as pessoas, algumas pessoas, se assustaram em saber que eu sou da periferia, pela maneira como eu consigo articular as palavras, por exemplo. (F., participante não negro). Ah, eu acho que é principalmente essa questão, né? Da voz muito aguda que traz, infelizmente, traz assim uma impressão de uma voz infantilizada de uma pessoa que é, não tem controle, né? Que vai falando, falando, falando e vai subindo o tom, é como se fosse uma pessoa desequilibrada, às vezes já ouvi essas palavras, ―a sua voz é muito infantilizada‖, ―ah, parece que você está em desequilíbrio‖, ―ah, você está nervosa, histérica‖, então, assim, isso eu acho que é, né? Bem forte para uma pessoa ouvir, só porque o tom da voz está no agudo assim. Então, por exemplo, falando mais em tom mediano, é essa, essa fala que eu estou tendo agora, nesse tom, passo a impressão para as pessoas, pelo que eu sinto, que é uma voz de uma pessoa mais equilibrada que eu estou falando, eu estou tentando até a minha respiração, agora está um pouco mais, não é já ofegante, então isso já causa uma impressão, mas se eu mantenho num grave pausado, respirado com uma gesticulação leve, isso já traz uma outra, uma informação para a pessoa que está recebendo que já não vai me colocar no outro lugar, porque se eu começo a falar desse jeito assim, muito excitada, fala nossa, é uma pessoa imatura também, isso eu já ouvi, então isso é pesado. (D., participante não negra). Acredito que sim, é, eu divido, vou responder essa pergunta com dois quesitos. É, a minha voz profissional, eu percebo que eu mudo, por trabalhar, por fazer fono há muito tempo, tenho um lugar do profissional que eu ativo um outro lugar. A minha voz cotidiana tem o lugar, por eu ser homossexual, então eu tenho umas curvas melódicas que são muito características e que as pessoa já reconhecem na fala, então, quando eu estou num ambiente que não é profissional, que não está 39 relacionado às artes, tem essa questão identitária de fácil reconhecimento, devido à minha sexualidade. (O., participante não negro). 4. Pensando na sua voz, você já foi abordada com comentários estereotipados? Por exemplo: ―Nossa! Pensei que sua voz fosse mais forte, porque você é negra‖ ou ―Sua voz não é potente e densa, mas deve ser porque você não é negra‖. Próxima disso, sim, próxima disso no sentido de... eu sou uma pessoa negra, mas eu sou tímida e acredito que durante muito tempo eu falava muito baixo ou muito, ou de um jeito muito como eu posso dizer... manso, talvez essa não seja a melhor palavra. E a negra, né?, estereotipada, tem aquele lugar de ser expansiva, de falar alto, quase gritando, e eu nunca tive disso, então eu tenho, eu já escutei as pessoas falarem que eu falo bonito ou que a minha voz é gostosa de ouvir. E aí eu acredito que eu escuto esse tipo de comentário pelo fato de ser uma mulher negra e fugir desse estereótipo de mulher barraqueira, né? (R., participante negra). Já, mas em conversas muito informais, assim, de falar isso: ―Ah, o M., mas também, né?, o cara é preto, né?, porra, por isso tem a voz alta, né?‖ Entende? (L., participante negra). Acho que nesses exemplos, assim, é..., não consigo pensar em nada parecido, acho que nunca teve alguém que falou da voz nesse lugar. Acho que já teve, por exemplo, já tive aulas de canto em que a professora falava que é isso, ―a sua voz é mais brilhante, tenta atingir esse lugar‖, é..., ―tenta conquistar esse lugar‖, eu acho que a abordagem foi mais assim, do que uma afronta diretamente. (A., participante negra). Olha, eu tenho experiências mais da adolescência e infância, não sei se cabe, é porque eu acredito que, nesse período, minha voz não era tão grave, então eu já ouvi muita, muita coisa. ―Nossa, essa voz é fina, né?‖ E não sei o quê, aquelas coisas da escola e tudo mais, pesavam muito em cima disso também, assim, por conta da voz, mas aí conforme eu fui amadurecendo, né?, crescendo, enfim, eu acho que, que isso não soa como um problema. (P., participante negra). Ah, mas eu acho, eu acho assim, uma coisa que é muito forte, que a minha cor chama, ―ah você é negra, você canta?‖ Óbvio que eu gosto de cantar, mas nos colocar nessa voz de sempre e, assim,... bem, é internacional, ainda mais internacional. Então acho que existe essa pressão, ainda mais para quem gosta, mas está num outro, outro local da região, enfim, e essa é minha voz, eu não tenho uma voz americanizada, não tenho, enfim, é mais ou menos por esse caminho. E, sim, já me colocaram em caixas. (S., participante negra). Já, já, com certeza é justamente por causa disso, de parecer uma menininha... ―ai, achei que sua voz fosse muito mais doce‖, muito mais agudinha ou o contrário também de você... ―Você é larga, né?‖. ―Achei que você tivesse muito mais grave quando você fala, quando você se comunica ou cantando, você tem uma voz grave falando, mas você canta agudo, sim‖. (T., participante não negra). Não, em relação à voz não. Já ouvi em relação ao meu jeito, de maneira geral, que é o preconceito disfarçado de não preconceito que é... ―Nossa, você nem parece gay porque você não fala desse jeito! Você não se comporta desse jeito!‖ Acho que tem relação com a voz, mas o comentário específico vocal eu não me recordo. (J., participante não negro). Não. (F, participante não negro). 40 Já ouvi isso. É, então eu sou bem aguda e, enfim, tem uma voz nesse lugar que a gente já está ouvindo aqui minha voz há um tempinho, é, eu já em exercícios de voz, assim, por exemplo, ah, eu estou fazendo exercícios e falar ―ah, mas eu não, esse agudo eu alcanço, mas eu gostaria que tivesse mais um brilho assim. Ah, mas você? Então você sabe que você não é uma pessoa negra, então você não tem uma voz com extensão de uma pessoa, tipo uma Beyonce, não é de uma cantora preta‖. (D., participante não negra). Não, nunca recebi esse tipo de comentário. (J., participante não negro). 5. Para você existem diferenças em uma Voz Negra e uma voz não negra? Sim. Eu acho que, acho que a influência social chega muito forte. É, a minha mãe, por exemplo, é uma mulher negra e ela fala de um jeito muito único, ela fala de um jeito que me lembra umas preta veia assim de antigamente, como é que eu posso dizer?... que ela usa muito... é, às vezes ela tira o ―R‖ das palavras, eu acho que é um jeito único que vem dessa, dessa herança da forma como ela foi aprendendo a se comunicar. E é algo que eu fui tirando da minha identidade assim, porque era, é algo visto como não sabe falar direito, não sabe se expressar bem. E aí eu tinha esse pensamento também, se eu quisesse aceitar acessar outros lugares, precisava falar correto. (R., participante negra). Sim. Quero justificar. É, ah, eu acho uma potência e tem uma coisa que eu percebo na voz negra, que tem uma coisa com o grave, mas tem uma coisa com a limpeza, muitos cantores negros quando tem muita potência, você percebe que é limpo, sai uma voz limpa que parece que não bate em nenhum lugar e ela sai, ela vai pelo ar. (L., participante negra). Eu cada vez mais devo acreditar que sim, que tem uma diferença. Eu acho que pela contundência, assim, é mais do que por qualquer outro aspecto, mais nesse lugar da significação, né? Do que essa voz significa, do que ela está falando, do que ela precisa falar. Eu acho que para esse lugar de te romper silenciamentos, então acho que tem, eu..., às vezes eu..., eu... às vezes acho que a galera branca, assim, tem uma flacidez, fala de qualquer jeito ou pode falar qualquer coisa. É, e enquanto pessoa negra, a gente tem que medir muito bem as nossas palavras, entender muito bem o que a gente fala. É, para não se perder na nossa própria luta, assim, para, sei lá..., eu acho que está tudo sempre com muito significado, sabe? A gente tem que saber muito bem o que a gente está falando, do jeito que a gente fala, com quem a gente fala. Então acho que tem diferença, sim. (A., participante negra). Tecnicamente, eu acredito que que deva existir, mas eu não tenho essa, essa visão assim, completa, assim que eu posso falar, nossa, se eu tivesse aqui numa sala, sem ver a pessoa, eu não sei se eu saberia identificar, assim, ela falando, sem ver tipo uma tela preta aqui, ela falando, eu não sei se eu saberia identificar, se ela é uma pessoa negra ou branca. Não tenho essa visão técnica. (P., participante negra). Olha. É uma coisa assim. É uma coisa que eu acho que vai muito do, da criação. E, porque a gente olha... talvez eu não consiga, talvez eu não consiga te responder se eu consigo identificar uma Voz Negra para uma voz branca, mas tem uma coisa diferente aí, de ambiente, de cultura social, de onde vem a criança e depois vai se desenvolver. Isso eu sei, só não sei dar nomes. (S., participante negra). Eu posso pensar no que vem na minha cabeça quando eu penso numa Voz Negra e eu acho que isso não vai, não responde exatamente o que a gente vai encontrar, mas acho que nas Vozes Negras a gente vai ter uma presença um pouco maior de caixa torácica, talvez? Principalmente cantando, sinto um pouco mais robusto, mas acho que isso não é uma realidade total, assim, não é um decreto, né? E vozes brancas também, acho que talvez tenha um lugar, eu acho que, principalmente cantando, o que eu penso essa diferença, não na fala, mas que é uma voz um pouco mais anasalada, 41 um pouco mais... ―limpo‖, não vou usar, porque não é ―limpo‖, mas um pouco menos de textura, mas que essa é a diferença que eu posso pensar assim, mas acho, não é exata. (T., participante não negra). Existem diferenças para mim. Existem. Eu não consigo pontuar, é. sei lá,... com base em qualquer tipo de estudo, mas, para mim, às vezes é muito fácil identificar, por exemplo, uma cantora ou um cantor negro e diferenciar de uma voz de um cantor branco. Estou fazendo o musical do Elvis agora, né? Então, é muito claro que existem características de brilho, de potência, de, é..., de uma voz cantada, dos atores e atrizes negros e dos atores e atrizes brancos assim, sem identificar, talvez em alguns pontos ali auditivamente, mas dizer de alguma forma mais específica, não. (J., participante não negra). Sim, ah, mas sim, sim. Eu percebo muito isso, é, eu percebi isso na prática algumas vezes, assim de... é... estando com pessoas negras e não negras no mesmo espaço, por exemplo, de criação vocal. Eu percebi isso muitas vezes, mas é um achismo meu, não tenho certeza. Assim, tô falando, eu só percebi isso em condições em que estavam sendo criadas coisas musicais, sonoras. Na vida, assim, não. (F., participante não negra). Existem, existe uma expectativa quando ou como... eu vou falar sobre responder pensando em atores. Quando eu vou assistir atores negros e atores não negros, há uma expectativa que o ator e a atriz negra tenha uma voz mais potente, com mais força do que o ator, que não é, não se considera negro, o que a gente quando olha, não identifica como sendo. Sim, existe uma construção cultural nossa, no nosso país, de que o ator negro ele é o ator que que vai preencher com a voz, ele é o ator que vai ter a voz mais potente dentro do teatro brasileiro. Então, essa expectativa, ela é culturalmente ensinada, ela é culturalmente levada e mesmo que o discurso, que a gente leia muito, eu, eu não sou uma, não me considero uma pessoa negra, leio muito, tenho, busco estar dentro de contextos não racistas, é sinto que está impregnado na minha cultura, na forma como eu enxergo a cultura, então há uma expectativa não consciente que a voz negra vai ser diferente. (O., participante não negra). Assim, isso nunca passou pela minha cabeça de observar isso, de pensar sobre isso. Lógico que a gente tem referências na música, por exemplo, de cantoras pretas, que têm uma extensão incrível que faz whistle com a voz, tipo várias cantoras fazem. Só que, assim, convivendo com as pessoas, eu já vi pessoas também pretas que não cantam nada e está tudo bem. E as pessoas botam uma cobrança em cima dessas pessoas como se elas tivessem que ter uma extensão vocal de uma cantora profissional, né? De uma cantora gospel, que muitas vezes é um estilo de canto que é, que elas aprendem né?. A pessoa não nasce de um dia para o outro, não é? Acorda cantando... e isso, independente da pessoa, eu acredito nisso. E, assim, convivo com muitas pessoas e eu nunca tinha parado para observar isso, lógico que a gente fala, nossa, aquela mulher canta maravilhosamente bem, olha a extensão vocal dela. E geralmente a gente tem referências de cantoras pretas, mas também, nunca foi uma coisa que eu ficasse pensando sobre isso assim, porque eu já vi o que eu te falei, né? Já vi vários tipos de vozes, vozes que cantam, que não cantam, que são afinadas, que não são afinadas. E até na fala, assim, de uma fala, de uma colocação da voz, que às vezes a pessoa até pensa em colocar a voz num lugar, mas, assim, há uma cobrança tão grande. Tô falando em relação às mulheres pretas, né? Que é tão grande a cobrança que não tem com as mulheres brancas, pelo que eu percebo. (D., participante não negra). As falas aqui registradas diferem no entendimento e no sentimento sobre a questão identitária. Por meio das entrevistas feitas para esta pesquisa, é possível observar que as Vozes Negras utilizam, em determinados momentos, sonoridade mais grave, que, por vezes, tem a leitura de uma voz que expressa uma intenção de braveza, de rudeza e que funciona como um mecanismo de defesa ou como uma tentativa de imprimir uma respeitabilidade. Já, 42 nas vozes não negras, essa voz é direcionada com uma preocupação menor no quesito defesa, o foco desse falar percorre com mais afinco um outro universo, que é o de moldar essa voz de acordo com o que se quer alcançar de aceitabilidade, de ajustes sociais ou de convencimento. Em minha análise, percebo que a Voz Negra precisa se defender na maior parte do tempo e que a voz não negra se preocupa muito menos com essa questão, mesmo quando vem das periferias de São Paulo. Tenho que pontuar, aqui, também que, de um modo geral, o fator periferia e o fator homossexualidade influenciam na construção da identidade vocal, tanto em Vozes Negras como nas vozes não negras. E que, por vezes, um padrão de violência e preconceito, mesmo que de maneira velada, estão presentes no olhar de quem ouve e de quem constrói o falar, a identidade dessa fala. Surge, como uma questão de proteção, o cuidado em elaborar, em sair de uma construção de fala apontada como simples ou errada gramaticalmente, e a preocupação em alcançar patamares mais elevados ditados na sociedade, muitas vezes representando um preconceito linguístico enraizado. Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, ―errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente‖, e não é raro a gente ouvir que ―isso não é português‖. (Bagno, 2002, p. 40). A identidade vocal política social é construída com uma porção de fatores ambientais, sentimentais, da criação familiar, dos espaços de trabalho, de lazer, de convivência com o outro, da territorialidade e do olhar lançado sobre as maneiras de falar, com ou sem preconceito. Essa identidade se molda de dentro para fora e de fora para dentro. A Voz Negra, ao soar em um ambiente, em muitos momentos, já será cercada de pressupostos e cobranças, pelo simples fato de ser uma voz saindo de um aparelho fonador de uma pessoa negra. Segundo a pesquisadora e escritora Leda Maria Martins: No Brasil, a linguagem cotidiana oferece um dos melhores, ou piores, exemplos desta prática, por meio de um código específico que define a significância convencional e ideológica do signo negro. Através do uso sistemático de vocábulos, provérbios e expressões populares, cuja carga semântica está, simbólica e arbitrariamente, carregada de conotações pejorativas, o racismo brasileiro exercita-se numa linguagem violenta, que inscreve o preconceito como norma e marca seu objeto referencial como símbolo negativo, veiculando um saber e uma verdade internalizados na práxis social. (Martins, 1995, p. 36). Nos relatos reunidos a partir do questionário aplicado nesta pesquisa, o olhar das falas violentas e estereotipadas estão presentes no vocabulário e na construção do pensamento. Como uma participante coloca, ―somos culturalmente ensinadas‖, a esperar uma voz com características de alta qualidade e, na maioria das vezes, com cobranças alicerçadas em padrões de excelência raros. Então, além da linguagem violenta apontada por Martins, soma- 43 se essa fala, que pode impactar de forma destrutiva no desenvolvimento da identidade vocal, social, política e na construção da autoestima dessa pessoa negra. A voz não negra trará outras questões que também terão a sua importância, no entanto, o fator racismo, neste estudo, tem maior peso. A proposta, nesta pesquisa, não é colocar a diferença como mais um gancho para práticas racistas e, sim, apontar que possivelmente existem diferenças e que tais diferenças podem corroborar para uma determinada construção identitária. As identidades etnorraciais nem sempre são definidas por normas de comportamento e características. São essencialmente contrastantes - e esse é um dos importantes achados da antropologia moderna -, exigem uma fronteira com outras etnicidades para que se estabeleça a sua importância. (Appiah, 2010, p. 28). A questão identitária pode perpassar questões ligadas à anatomofisiologia e a parâmetros acústicos, uma vez que vozes negras podem ter características distintas em relação a vozes não negras. Esse é um dos pontos que esta pesquisa visa elucidar. Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política de diferença. (Hall, 2010, p. 21). Quando se fala em identidade vocal, o que se espera é um conjunto de características que pertencem exclusivamente a uma pessoa, por exemplo, ―N‖ tem uma voz aguda, estridente, cambaleante, feminina, com articulação precisa e velocidade de fala lentificada. Vejamos que aqui foram apontados parâmetros vocais no campo da objetividade e da subjetividade. Nesse apontamento é possível rotular essa voz de acordo com inferências antropológicas e acrescentar novas características, tais como, uma voz de mulher estressada, chata, enfadonha e indecisa. É notória a rotulação com traços preconceituosos e calcados em visões machistas e repressoras. Primeiramente, as identidades sociais dependem de rótulos para a sua existência – um velho insight proveniente da teoria sociológica rotuladora de algumas décadas atrás. Isso porque as pessoas reagem aos outros e pensam sobre si mesmas por meio desses rótulos. Vocês pensam nas pessoas como baianos ou bósnios ou batistas e então reagem a eles como tais; vocês pensam em si mesmos como brasileiros e fazem (ou não) certas coisas porque é isso que vocês pensam ser. (Appiah, 2010, p. 18). A Voz Negra tem sido rotulada de acordo com parâmetros já estudados por diversos pesquisadores. Estudos comparativos realizados por norte-americanos analisam parâmetros 44 que apontam diferenças anatomofisiológicas entre mulheres negras / homens negros e mulheres não negras / homens não negros. Os falantes negros, se comparados a falantes brancos de mesmo sexo e idade, apresentam em geral, frequência fundamental modal média mais grave e maiores inflexões vocais durante leitura e fala espontânea, principalmente, em direção aos agudos. (Hudson e Holbrook, 1981, p. 197). Fundamentalmente, tais diferenças causam, por vezes, pré-julgamentos que colocam a Voz Negra em um patamar que pode ser inalcançável, comentários que em sua maioria estão aquém da realidade, por exemplo, cante uma música da cantora norte americana Whitney Houston, ou de Elza Soares, ou da cantora Beyoncé Knowles Carter. Essas mulheres negras têm técnicas e qualidades vocais raras, potencializadas por anos de dedicação e estudo, não é razoável, quando em uma determinada situação é anunciada a profissão de uma mulher negra como atriz e/ou cantora, e é exigido esse alto padrão, simplesmente pela existência do fator negritude. Essas atitudes podem ser devastadoras se a identidade individual não estiver bem alicerçada, e aqui não está colocado o olhar da identidade na acepção dada pelo Estado, aquela baseada na carteira de identidade, no passaporte, nas características biométricas e sociais, nas impressões digitais, e na data de nascimento. Isso está baseado em dados e esse é o caminho escolhido pela estrutura governamental do Estado. O que aqui está posto é o quão desestruturador pode vir a ser a cobrança de uma excelência que nem sempre está presente na identidade étnica cultural. É fato que existem atrizes negras que não cantarão ou falarão com a qualidade e com os padrões ditados como premissas de excelência da negritude na classe artística. Nem todo corpo negro terá aspectos anatomofisiológicos e parâmetros vocais suficientes para alcançar o que é estipulado para uma identidade vocal negra de ―qualidade‖. E, sim, temos pessoas negras que não produzem uma nota hiperaguda ou um grave encorpado ao interpretar uma poesia ou cantar uma canção, simplesmente pelo fato da sua constituição anatômica não permitir tal feito. Essas premissas estão tão enraizadas nos pensamentos, que muitas pessoas nem sequer param para refletir o quanto isso pode adoecer ou tolher a construção identitária de uma pessoa negra. Utilizo o termo ―identidade‖ para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ―interpelar‖, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições de sujeitos que as práticas discursivas constroem para nós. (Hall, 2010, p. 111-112). 45 3 MOVIMENTO 2 – Parâmetros acústicos e mensurações anatômicas Ao ler o artigo ―A anatomia do negro sul-africano‖ 15 , do médico sul-africano P. H. Boshoff, publicado em 1945, o desenvolvimento do tema passou a ter uma possível concretude. Será que realmente existe uma significativa diferença na anatomia da laringe de Vozes Negras? Em seu estudo, ele dissecou 102 laringes de negros africanos (88 homens e 14 mulheres) e 23 laringes de europeus e usou os achados como padrão para a comparação. Segundo Boshoff, cada espécie revelou algum grau de variação individual e foi relativamente fácil estabelecer uma norma, um padrão, para a laringe das pessoas negras sul-africanas. De modo a confirmar as observações em relação ao suprimento/irrigação de sangue e nervos nas dissecações de rotina nas laringes do negro, adicionalmente foram dissecadas outras 10 laringes de outros sujeitos negros, entendo aqui que foram negros de regiões próximas à África do Sul. Nesse artigo, é descrita a anatomia da construção laríngea típica do negro em relação a: cartilagens, músculos, nervos e pregas vocais. Boshoff comprovou, naquele momento, que a musculatura da laringe do negro sul-africano é um órgão mais poderoso do que aquele do caucasiano. Esses músculos, existentes nas duas raças, são maiores, mais fortes e muito frequentemente de organização (encaixe) mais complexa no negro. A única exceção a esse fato deve-se à ausência do músculo ariepiglótico no negro sul- africano, mas isso é compensado pela presença de deslizamentos musculares exagerados. Esses deslizamentos musculares, que são comuns no negro sul-africano, mas, na maioria das vezes, está ausente no caucasiano, ajuda a fortalecer os movimentos do aparato vocal do primeiro. Eles também produzem movimento em certas partes da laringe em que o caucasiano não move ativamente, por exemplo, o apêndice ventricular no negro pode ser ativamente comprimido pela parte superficial do músculo tireoaritenóide superior. (Boshoff, 1945. Tradução própria.). Um outro ponto importante para o estudo é a diferença na sonoridade, que já foi abordada em diversas pesquisas, apontando fatores linguísticos e acústicos, como no trabalho de Andrianopoulos, Darrow e Chen, de 2001, 16 que relata a não-aleatoriedade das diferenças acústicas e articulatórias encontradas. Pensa-se que sejam reassociadas às frequências ressonantes naturais do formante, estruturas atribuídas a fatores fisiológicos, culturais e 15 Original em inglês. BOSHOFF, P. H. The anatomy of the South African Negro larynx. South African Journal of Medical Sciences, v. 10, n. 2, 1945. Disponível em: https://eurekamag.com/research/025/677/025677927.php. Acesso em: 09 jun. 2024. 16 ANDRIANOPOULOS, M. V.; DARROW, K., CHEN, J. Multimodal standardization of voice among four multicultural populations formant structures. Journal of Voice, v. 15, n. 1, p. 61-77, mar. 2001. https://eurekamag.com/research/025/677/025677927.php 46 linguísticos, associados aos falantes das culturas e raças, afro-americanos, caucasianos e chineses, analisadas no estudo aqui referido. Uma amostra aleatória estratificada de 20 homens e 20 mulheres pareadas por fatores fisiológicos e marcadores linguísticos culturais foi examinada para determinar diferenças na frequência fundamental e características espectrais durante o prolongamento de três vogais: [a], [i] e [u]. A divisão de etnicidade e gênero incluiu quatro conjuntos de cinco indivíduos do sexo masculino e cinco do sexo feminino, compostos por falantes caucasianos e afro- americanos de inglês americano padrão, falantes nativos de hindi indiano e falantes nativos de chinês mandarim. Foram encontradas diferenças de grupo estatisticamente significativas para os principais efeitos de cultura, raça e gênero. As diferenças acústicas encontradas são atribuídas a fatores biomecânicos, fisiológicos, culturais e linguísticos. (Andrianopoulos, Darrow e Chen, 2001. Tradução própria). Neste capítulo, proponho lidar com a anatomia e com os parâmetros acústicos do aparelho vocal de atrizes negras e não negras e de atores negros e não negros, com atenção especial às diferenças nas cartilagens e musculaturas da laringe e às possíveis diferenças acústicas na produção do som. Foram realizados exames de videoestrobolaringoscopia, ultrassonografia laríngea, além do método de coleta de dados para as análises acústicas, sobre os quais versaremos e apresentaremos achados. 3.1 Método Este estudo qualitativo descritivo exploratório foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS/SP) com o parecer de número 5.751.878 (Anexo A). Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (Anexo B). Foram analisadas 08 amostras do aparelho vocal de pessoas adultas negras e não negras, de ambos os sexos, na faixa etária entre 25 e 47 anos, em clínica de otorrinolaringologia na cidade de São Paulo, em abril de 2024, sendo dois grupos: um com 04 vozes negras, 02 do gênero feminino e 02 do masculino e, outro, com 04 vozes não negras, 02 do gênero feminino e 02 do masculino. Os critérios de elegibilidade para a seleção das (dos) participantes desta pesquisa foram: ser atriz ou ator profissional em atividade e residir em trechos, em regiões de São Paulo. Todas as vozes foram submetidas a três tipos de análises: (1) mensuração e comparação anatômica a partir de imagens ultrassonográficas da cartilagem cricoidea (C), dos músculos cricotireoideos (CT), tireoaritenoideos (TA), cricoaritenoideos posterior (CAP) e das pregas vocais (PPVV) falsas e verdadeiras; (2) laudo videoestrobolaringoscópico e (3) 47 análise acústica da emissão com direcionamento para a espectrografia e dados da análise vocal. A análise anatômica com mensuração e comparação concentrou-se na extração das medidas em repouso e em produção vocal nas alturas grave e agudo, realizadas por médica especialista em radiologia a partir de exames de ultrassonografia. Essas medidas foram estruturadas em planilha no programa Excel, tabelas geradas no programa IBM SPSS 17 e em gráficos criados no programa Jamovi 18 . A análise videoestroboscópica foi baseada em exames realizados por médica otorrinolaringologista com emissão de laudo com informações sobre ondas, fechamento glótico, posição de base de língua agudos e paredes faríngeas. A análise acústica do sinal vocal foi realizada no programa VoxMetria 19 e abrangeu extração das seguintes medidas acústicas: frequência fundamental, jitter, shimmer, correlação e Glottal-to-Noise Excitation (GNE), além da análise acústica descritiva a partir de espectrogramas, que foram analisados com a utilização do Protocolo de Análise Espectrográfica da Voz (PAE). O julgamento perceptivo-auditivo foi realizado por fonoaudióloga com 08 anos de experiência neste tipo de procedimento. A amostra vocal de cada participante consistiu na emissão sustentada da vogal /ε/, em intensidade e frequência confortáveis, para a inspeção visual no espectrograma, e nos dados da análise vocal. A vogal /ε/ foi escolhida por ser uma vogal oral, média, aberta e não arredondada, utilizada nos exames nasofibrol