ANA MARIA LANGE GOMES PROCESSOS CULTURAIS E LITERÁRIOS NA CONFIGURAÇÃO DAS PERSONAGENS BRÁS CUBAS E NAPUMOCENO ASSIS 2014 ANA MARIA LANGE GOMES PROCESSOS CULTURAIS E LITERÁRIOS NA CONFIGURAÇÃO DAS PERSONAGENS BRÁS CUBAS E NAPUMOCENO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e vida social) Orientador: Dr. Rubens Pereira dos Santos ASSIS 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Gomes, Ana Maria Lange G633p Processos culturais e literários na configuração das perso- nagens Brás Cubas e Napumoceno / Ana Maria Lange Gomes. - Assis, 2014 193 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Rubens Pereira dos Santos 1. Literatura comparada. 2. Literatura brasileira. 3. Litera- tura cabo-verdiana. 4. Assis, Machado de 1839-1908. 5. Almei- da, Germano, 1945 - I. Título. CDD 809 Àqueles que me esperam, de braços abertos, depois de meus cansaços, e comemoram comigo as minhas conquistas. A meus pais dedico mais este cansaço e mais esta conquista. À estrela-bailarina, minha avó Francisca Maciel (in memoriam), quem me guiou e inspirou nos primeiros passos no universo da arte e da escrita. Às novas estrelinhas do céu, que partiram cedo demais, meus primos Guilherme e Ezequiel Lange, “brilha onde estiver”. AGRADECIMENTOS Este trabalho não é singular, é plural. Nenhuma construção é edificada sozinha. Nos meus anos de palco aprendi a importância de um trabalho em grupo e aprendi também que, até aqueles “monólogos” que parecem terem sido realizados sozinhos, precisaram de uma equipe para que tudo saísse como o planejado. Assim sendo, este trabalho, que tantas vezes me colocou sozinha e isolada, só foi possível graças a uma série de pessoas e fatos na minha vida. Gostaria, antes de tudo, agradecer a paciência e o entendimento de todas as pessoas queridas da minha vida, pela minha ausência por muitas vezes, ausência que não escolhi, mas necessária na busca pelos meus sonhos. Os agradecimentos eu principio pela minha família, e não poderia ser diferente, minha base, meu sustento, meu lar. Aos meus pais, Marco Antônio e Teresinha, pelo amor, dedicação e confiança incondicional que sempre me ofertaram. Nenhuma das minhas mais loucas e gratificantes jornadas teria sido possível e mais amena se não fosse a compreensão de vocês; minha eterna gratidão e amor. À minhas irmãs-amigas Ana Paula e Ana Karine, que sem o constante apoio, companheirismo e compreensão, tantas conquistas de minha vida não seriam possíveis. Segundo um provérbio africano, quando um velho morre é uma biblioteca que se queima, assim sendo, aproveitando da metáfora, não poderia deixar de agradecer a minha “biblioteca” particular: Agradecimentos ao meu avô José Gomes (in memoriam) pelo grande exemplo de humanidade, simplicidade e às constantes demonstrações do valor da vida. Ao meu outro avô, o avô das terras do sul, Benno Lange (in memoriam) pela inspiração na arte de construir e edificar coisas, e sempre com a disciplina “alemã”. À minha vó Maria Amélia (in memoriam) a quem não tive o privilégio de conhecer, mas cuja história de vida deixada sempre me encheu de orgulho e afeto; “os bons morrem jovens”. À minha avó Francisca Maciel (in memoriam), pelos ensinamentos, iniciados desde cedo da arte de falar em público e por me conduzir ao mundo da literatura. Àquela que querendo ser professora (e sendo-a pra mim), me tornou uma. Ao meu noivo Fred Bertoluci, que me perdoou pelo tanto que lhe esqueci nestes três anos, e por toda a compreensão e companheirismo que se pode receber de alguém. Ah, é claro, por todo o amor que me oferece, um amor insistente e paciente. Agradecimentos extensivos a sua família, que me acolheu com carinho. Ao Professor Dr. Rubens Pereira dos Santos, meu tão querido orientador, quem sempre humildemente abraçou as minhas ideias e me guiou pelos caminhos da produção científica, mas acima de tudo, pelo tanto que acreditou em mim até quando eu mesma não acreditava. Aos amigos e companheiros do grupo de estudos de africanas, pelas conversas frutíferas e momentos agradáveis, e por dividirem comigo as ansiedades do processo. Agradecimento especial ao meu amigo Clauber Ribeiro, amizade que para mim é uma conquista, sempre com seu jeito franco “me botava na linha” e me ajudou a chegar até o fim deste trabalho, minha gratidão, sobretudo, por sempre estar lá quando eu precisava, e por fazer a arte voltar à minha vida. Também estendo este agradecimento especial à amiga Bruna Almeida, que muito além das constantes contribuições a esta dissertação, desde a fase de projeto, me escutou nas angústias, me amparou com conselhos, compartilhou comigo o hobby, a academia nossa de todos os dias, e me cativou pra toda a vida. À amiga Adriana Marcon, por diretamente ter contribuído com este trabalho, já de longa data, mas principalmente por ser a amiga e companheira de todas as horas, minha família de Assis. Ao amigo Renan Fornaziero, pelas ricas contribuições ao projeto desta Dissertação, e ao amigo Francisco Mariani, pela sua, infelizmente, rápida mais marcante passagem na Terra do Nunca. Às irmãs Edna e Edlei Videira, pela generosidade tão gratuita que fez meu primeiro ano em Assis ser possível. Hoje só estou aqui por este primeiro passo tão bem amparado. Minha eterna gratidão! Ao professor Dr. Júlio César Machado de Paula, pelas leituras atentas, críticas e sugestões que colaboraram para a melhor realização deste trabalho. Ao professor Dr. Márcio Roberto Pereira, que além das valiosas contribuições na qualificação, me incentivou a não desistir de todo o processo quando eu ainda estava na graduação. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, Escritório de Pesquisa e Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, sempre atenciosos e disponíveis quando solicitados. À FAPESP, pelo auxilio financeiro que permitiu minha dedicação a esta dissertação, e às valiosas contribuições dos pareceres. Ao professor Dr. Gilberto F. Martins e a Drª. Sandra Aparecida Ferreira, pelos maravilhosos ensinamentos, mas, sobretudo, pelo profundo carinho e admiração que por eles nutro. Aos professores de toda a minha vida, por me inspirarem, meu profundo respeito e admiração ao trabalho de vocês. Espero que este meu trabalho seja um “fruto bom” dos ensinamentos deixados. Ao querido casal Olga e Ivan Seeling, pelo carinho de sempre, e por serem verdadeiras inspirações. As boas e velhas amizades da infância, que nunca deixaram de estarem lá, apesar de qualquer distância, todas mesmo, mais aqui representadas pelas queridas, Juliana Ruzene, Cecilia Leal e Simony Zago. À querida e inesquecível turma do Alfredão, amigos para sempre. A todos os companheiros de palco, pelo muito que me ensinaram sobre as personagens, em especial à memória de Pedro Rêntero, quem me ensinou ser minha melhor Julieta. A todos os outros, que com palavras de incentivo, paciência e muitas vezes humor tornaram meu caminho mais suave e agradável. E por último, agradeço à arte, à literatura, que muito mais do que simples objeto de trabalho sempre foi para mim um modo de ver e estar no mundo, “Mas afinal, para que serve vosso sonho senão para restaurar a vida e encená-la com arte e poesia.”. “Aconteceu há mil anos? Continua acontecendo. Nos mais desbotados panos, Estou me lendo e relendo.” (Carlos Drummond de Andrade) “A história não é um simples quadro de acontecimentos; é mais, é o verbo feito livro.” (Machado de Assis) GOMES, Ana Maria Lange. Processos culturais e literários na configuração das personagens Brás Cubas e Napumoceno. 2014. 193 f. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. RESUMO Nos últimos anos, o estudo comparativo entre as literaturas em língua portuguesa vem gradualmente conquistando espaço no cenário da crítica literária. Apesar destes avanços, a comparação entre a literatura brasileira e a cabo-verdiana ainda representa uma parcela modesta destes estudos, ademais se restringem, geralmente, à confluência literária entre os autores cabo-verdianos e os escritores brasileiros tidos por regionalistas, ou modernistas, em razão de que estes influenciaram o movimento claridoso de Cabo Verde. Esta dissertação, em contramão a estas tendências, propõe a análise da configuração das personagens principais dos romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), do escritor brasileiro Machado de Assis e O testamento do senhor Napumoceno (1989), título da publicação brasileira, do escritor cabo-verdiano Germano Almeida, destacando a representação da figura do burguês em um contexto em que há o convívio de contradições político-ideológicas no interior das sociedades brasileira e cabo-verdiana, oriundas dos processos de transformações que atravessavam. Para cumprir este desígnio, utiliza-se como aporte teórico-metodológico a fortuna crítica de Machado de Assis e Germano Almeida, bem como algumas das produções literárias de ambos os autores. Além disso, situa-se estes escritores no quadro formativo dos sistemas literários nacionais de seus respectivos países, sublinhando a emergência de um projeto nacional para a consolidação da identidade cultural dos países, avultada no período de produção das obras deste estudo. Com isto, pretende-se, por intermédio da análise das semelhanças e diferenças das personagens Brás Cubas e Napumoceno, identificar alguns movimentos histórico-culturais-literários destes países de heranças coloniais, tais como a independência política e a reflexão sobre a identidade nacional, observando de que maneira estes elementos externos se interiorizam no fazer literário. Desta forma, espera-se ampliar os diálogos literário-culturais destes países, distanciando-se das temáticas das secas, matéria recorrente na comparação destas literaturas, e atentando para os processos da formação colonial, comum ao Brasil e a Cabo Verde, e seu impacto na literatura. Palavras-chaves: Literatura comparada de literaturas em língua portuguesa; Literatura brasileira; Literatura cabo-verdiana; Machado de Assis; Germano Almeida. GOMES, Ana Maria Lange. Cultural and Literary Processes in the Configuration of the characters Brás Cubas and Napumoceno. 2014. 193 f. Dissertation (Master in Letters). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014. ABSTRACT In the last years, the comparative study of the literary in Portuguese language has been gradually achieving focus on the literary criticism. Despite these advances, the comparison between Brazilian and Cape Verdean literature still represents a small part in these studies, moreover, it is usually restricted to the literary confluence between Cape Verdean authors and the Brazilian writers considered as regionalists, or modernists, which have influenced the Cape Verde movement called claridoso. This dissertation, in opposition to these trends, aims at analyzing the configuration of the main characters of the novels The Posthumous Memoirs of Bras Cubas (1881), written by the Brazilian writer Machado de Assis, and The last will and testament of Senhor da Silva Araújo. (1989), by the Cape Verdean writer Germano Almeida, emphasizing the representation of the bourgeois figure in a context where there are the coexistence of the political-ideological contradictions in the Brazilian and Cape Verdean societies, coming from the transformation processes they have gone through. In order to fulfill this purpose, it is used the theoretical and the methodological critical studies from Machado and Germano Almeida, as well as some of the literary productions of both authors. Moreover, these writers take part in the formative literary framework in the national systems of their respective countries, highlighting the emergence of a national project to consolidate the cultural identity of the countries, increased during the production of the novels of this study. Therefore, it is intended, through the analysis of the similarities and differences between the Brás Cubas and Napumoceno characters, to identify some literary-historical-cultural movements in these countries with colonial legacies, such as political independence and reflection on the national identity, in order to observe how the external elements are used internally in the literary writing. Thus, it is expected to expand the literary-cultural discussion of these countries, keeping away the drought theme, a recurrent subject in the comparison of these literatures, and calling the attention to the processes of the colonial formation, common in Brazil and Cape Verde, and their impact in the literature. Keywords: Comparative literature of the literary in Portuguese language; Brazilian literature; Cape Verdean literature; Machado de Assis; Germano Almeida. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Esquema 1 – Articulações na estrutura de composição dos romances .............86 Esquema 2 – Articulação na condição do narrador ..........................................90 Esquema 3 – Estrutura composicional de articulação vida x morte .................91 Esquema 4 – Polifonia em OTSN .....................................................................92 Esquema 5 – Porto: não-lugar ...........................................................................94 Esquema 6 – Dois Napumocenos .....................................................................96 Esquema 7 – Brás Cubas contraditório .............................................................98 Quadro 1 – Referências e menções histórico-sociais nos romances ................114 Quadro 2 - Comparativo das personagens .................................................141-142 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..........................................................................................13 1. Capítulo I - Processos Culturais: Da ideia de Cultura à Formação dos Sistemas Literários ...............................................................................................................................20 1.1 Ideias de cultura em questão.............................................................................................20 1.1.1 Cultura, literatura, identidades e nacionalismo em foco................................................24 1.2. Formação do sistema literário e os Caminhos para uma literatura nacional....................30 1.2.1 Brasil e Cabo Verde: Entrecruzamentos literários e impulsos nacionais.......................42 1.2.2 Machado de Assis e Germano Almeida: Algumas considerações.................................54 1.3 Relações entre Brasil e Cabo Verde .................................................................................67 2. Capítulo II - Processos Literários: Contrapontos e Relações .......................................71 2.1 Ares cosmopolitas e a abertura das elites: Refletindo a presença estrangeira e os impactos locais ........................................................................................................................................71 2.2 Percursos de Ressimbolização: estratégias composicionais e articulações de paradoxos..86 2.3 Do risível ao criticável .....................................................................................................100 2.4 Lapidando a memória nas pedras tumulares: o entrecruzar memória, morte e escrita ....119 3. Capítulo III - Configuração das Personagens ...............................................................130 3.1. As personagens: Entre as fronteiras de paisagens, identidades e tempo .........................130 3.2 O "ethos" do proprietário: Pensando as relações de poder ..............................................142 3.2.1 Das glórias e do dinheiro ..............................................................................................149 3.3 Relações interpersonagens ...............................................................................................158 3.3.1 Interações com o feminino ............................................................................................168 3.4 Que herói sou eu? Refletindo sobre as personagens Brás Cubas e Napumoceno............177 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................180 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................183 13 CONSIDERAÇÕES INICIAIS¹ A palavra processo, definida no dicionário Aurélio (2009) como sendo 1. Ato de proceder, de ir por diante, 2. Sucessão de estados e de mudanças e 3. Modo por que se realiza ou executa uma coisa; método; técnica denuncia as linhas gerais que amparam esta análise. Se por processo se entende uma ação propulsora que compreende uma situação de mudanças e um conjunto de técnicas, refletir os processos ditos culturais e literários na configuração de personagens é reconhecer-lhes a fluidez dos elementos e dos momentos que compõem a trajetória de composição literária, sobretudo quando se aproximam obras de escritores diferentes, de países distintos e períodos cronológicos também díspares. Sabe-se que os processos culturais, políticos e econômicos refletem diretamente na formação e consciência do sujeito como tal, que acompanha, se transforma e modifica esta movimentação. Desta forma, o sujeito atua diretamente nos processos, ao mesmo tempo em que é modificado por eles. A literatura reflete acerca deste sujeito tanto enquanto ser social como enquanto indivíduo, mediando a realidade e resultando num esquema de composição estético- ideológico. Manuel Veiga (apud GOMES, 2008, p.52), ao apontar que “a carta de identidade de uma nação é, antes de mais, a sua cultura” conduz à reflexão de que a literatura, arte da palavra, ao representar a subjetividade humana passada pelo filtro de percepção do autor, e caracterizada conforme o olhar deste escritor perante a interpretação da realidade, contribui no reconhecimento de um grupo social/cultural. Neste sentido: [...] a obra de arte literária é um dado da cultura. A cultura é entendida como o conjunto de conhecimentos, atitudes, atividades, hábitos, recursos, técnicas, sentimentos, pensamentos e sensações de um grupo humano dentro de seu ambiente físico, social e psíquico. (ATAÍDE, 1972, p. 5). Esta ideia de uma identidade nacional e de nacionalismo marcou a construção do sistema literário tanto no Brasil como em Cabo Verde. Para romper com a antiga metrópole lusitana, esses países buscaram a sua identidade a partir de uma afirmação do nacional, de _________________________ ¹Algumas das ideias contidas nestas considerações foram originalmente apresentadas como artigo na Revista eletrônica Crioula, número 13, ano 2013 sob o título: Diálogos entre cultura e formação do sistema literário nacional: O entrecruzar Brasil e Cabo Verde a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas e O testamento do senhor Napumoceno. Disponível em: http://www.revistas.uso.br/crioula/article/view/64222 14 uma construção de sentido de “nação”, narrada, sobretudo pela cultura: [...] as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2001, p.51.) Nesta perspectiva, a literatura teve um papel fundamental na construção e solidificação do processo de ruptura. Segundo Eric Hobsbawm (2008), o termo nacionalismo é fundamental para o sustento da unidade política e nacional, pois é ele que gera a ideia do que se caracteriza por nação. Para que então se pudesse construir uma ideia de nação, em que o povo se reconhecesse parte de uma “comunidade imaginada”, nos termos de Anderson, era necessária a busca pelos elementos nacionais. Esta postura combativa em definir uma identidade coletiva era necessária para estimular o sentimento nacional e com isso desvincular-se por definitivo do colonizador. Para Stuart Hall, “A reafirmação de ‘raízes’ culturais e o retorno à ortodoxia tem sido, desde há muito, uma das poderosas fontes de contra-identificação em muitas sociedades e regiões pós-coloniais e do Terceiro Mundo.” (2001, p. 5). Machado de Assis dizia que “não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se de assuntos que lhe oferece a sua região.” (1994, p.135). No caso cabo-verdiano, por exemplo, “Manuel Ferreira associa a noção de consolidação da literatura com a de contestação à colonização portuguesa.” (ANJOS, 2006, p.135). Tanto Brasil como Cabo Verde tiveram em comum a busca por uma nacionalidade que os desvinculasse da configuração colonial. Este sentimento de pertencimento a uma nação dava-se inclusive por meio da mediação da literatura, e da resistência necessária aos antigos modelos para a obtenção de uma literatura nacional. No entanto, Cabo Verde e Brasil diferenciam-se neste processo por mais de um século. Neste sentido, faz-se importante pensar na evolução da noção de identidade, afinal, “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel” forma e transforma continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2001, p.13). No século XVIII o Iluminismo modificou muito dos pensamentos vigentes da época, trazendo uma mudança de perspectiva e alterando a concepção de sujeito até então conhecida, bem como da própria literatura: 15 Essa mudança de perspectiva se dá a partir de uma série de circunstâncias que cercam o final do século XVIII e praticamente todo o século XIX [...] É também neste momento que o romance se desenvolve e se modifica, coincidindo com a afirmação de um novo público – o público burguês – caracterizado, entre outras coisas, por um gosto artístico particular. (BRAIT, 2006, p.37). O nascimento do ‘indivíduo soberano’, entre o Humanismo renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, representou uma ruptura importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o sistema social da ‘modernidade’ em movimento. (HALL, 2001, p.25). Desta forma, a França, que já servia de ponte entre as artes mundiais e os jovens intelectuais brasileiros, conquistava adeptos na ex-colônia lusa, sendo vista pelos intelectuais da época como o grande modelo, e como sinônimo de erudição. Com isso, ao distanciar-se da metrópole, e na expectativa da definição de uma arte nacional, as ex-colônias precisaram buscar outros referenciais que já haviam se consolidado no âmbito cultural para assim nortear a construção do sentimento de nação e de sua cultura: O colonialismo, assim, é aquele momento em que uma metrópole assume o controle político econômico da colônia; quando ocorre a ruptura dessa relação, as práticas sociais antes exercidas continuam a assombrar e moldar a esfera cultural, como ideologia fantasmagórica, garantindo um ‘neocolonialismo’ na nova ordem política e econômica. O neocolonialismo implantado surge como resposta a um vazio cultural sustentado pela presença autoritária da antiga metrópole, que como parte da empreitada colonialista, visava desprover a população nativa da possibilidade de auto- suficiência. Os colonizadores, após sua retirada política desses países, continuaram a governá-los intelectualmente. Em outras palavras, como aponta Shaobo Xie (1997), os antigos países colonizados enfrentam o neocolonialismo que se instala por meio da hegemonização da economia, tecnologia e ideologia ocidentais. (SAMPAIO, 2008, p. 80-81). Assim sendo, a presença francesa no Brasil colaborou com a tentativa de construção da literatura nacional brasileira servindo de referência, modelo e, como disse Machado de Assis (1879), como principal “influxo externo” para a produção literária e intelectual do país. Portanto, inserida neste panorama, a obra de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), dialoga com as ideias circulantes, não exclusivamente as francesas, discutindo-as, acima de qualquer outro recurso, pela ironia. A personagem Brás Cubas apresenta, ao longo de todo romance, teorias francesas² que eram reproduzidas no território _________________________ ²A presença francesa em Memórias póstumas de Brás Cubas foi motivo de estudos, como o livro de Gilberto Pinheiro Passos, A poética do legado: presença francesa em Memórias Póstumas de Brás Cubas. 16 brasileiro, além de suas próprias teorias filosóficas que, em grande parte, ecoavam as anteriores. Considerada pelos críticos um romance moderno por seu conteúdo e inovação de escrita, Memórias póstumas de Brás Cubas representa um marco tanto na fortuna crítica do escritor quanto para a própria literatura brasileira: A data de 1881 representa, portanto, o início de um novo rumo para o romance machadiano, tendo em Memórias Póstumas um momento de síntese máxima de toda sua reflexão sobre o que seja esse novo modo de conceber o romance, não mais sob estreitos moldes românticos ou realistas, mas inserido em todo um movimento universal transformador da narrativa que vinha da Divina Comédia de Dante (séc. XIV), do Pantagruel de Rabelais (séc. XVI), de Dom Quixote de Cervantes (séc. XVII), de Tristam Shandy de Sterne (séc. XVIII), dos contos policiais de Edgar A. Poe e de Madame Bovary de Flaubert (séc. XIX). (OLIVEIRA, 1995, p.127-128). Além disso, a obra ainda aborda características multiculturais presentes na formação do sujeito e em seu reconhecimento de identidade nacional brasileira. Era difícil se pensar em nacionalidade sem levar em conta os fatores e culturas exógenas que invadiam o país e caracterizavam, sobretudo, a sociedade burguesa da época. Também na construção da nacionalidade cabo-verdiana houve a presença de elementos externos, ocasionada, sobretudo, pela migração constante aos Estados Unidos e do panorama mundial da globalização. Com a ampliação do comércio internacional, do acúmulo de capital e ascensão da burguesia, o capitalismo se consolidou e os Estados Unidos solidificaram-se como um dos novos e maiores impérios mundiais: Ninguém negou que o detentor do maior poder dentro dessa configuração são os Estados Unidos, seja porque um pequeno número de multinacionais americanas controla a produção, a distribuição e, sobretudo, a seleção de notícias em que a maior parte do mundo acredita, seja porque a expansão desenfreada de várias formas de controle cultural originadas dos Estados Unidos criou um mecanismo de incorporação e dependência cujo objetivo é subordinar e se impor não só a um público americano interno, mas também a culturas menores e mais fracas. (SAID, 2011, p.36). Neste cenário, e conquistada a independência em 1975, Cabo Verde e os cabo- verdianos viam-se sem muitas alternativas para o sustento diante de terras improdutivas e da prejudicada condição geográfica insular. A solução continuou sendo a migração para os Estados Unidos, a fim de, além das possibilidades de estudo e de formação, obter renda e sustento para os que ficavam nas ilhas. Diante desta realidade, entender a cabo-verdianidade 17 como algo unificado era praticamente impossível, apesar de a cultura ser o principal fator de união e diálogo entre os cabo-verdianos. As identidades híbridas, portanto, faziam-se cada vez mais representativas neste fluxo migratório e neste panorama de transformações sociais- culturais-políticas, além, é claro, da própria questão racial da mestiçagem marcadamente constituidora do cabo- verdiano: Essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento-descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento- descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo. (HALL, 2001, p. 9). Desta forma, a noção de identidade individual e de identidade nacional sofria com as mudanças que colocavam os indivíduos numa configuração multicultural e fragmentada, pois como observa Stuart Hall “As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do ‘pós-moderno’ global” (HALL, 2001, p.69). Inserida neste panorama, a obra de Germano Almeida O testamento do senhor Napumoceno (1989), traz como personagem central um homem que enriqueceu pelo acaso e que, a partir de sua ida aos Estados Unidos, comentava sua percepção do estrangeiro e de como se deslumbrara por certas coisas deste país. A obra foi publicada originalmente com o título O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo em 1989 e, posteriormente, publicada no Brasil em 1996 com o título O testamento do senhor Napumoceno, o qual se adotará no transcorrer deste estudo. A edição brasileira traz um prefácio de Mário Prata, roteirista da versão fílmica do livro, e um glossário de termos crioulos encontrados na obra. A versão da história para os cinemas foi lançada em 1997 e foi vencedora de melhor roteiro e melhor filme latino no Festival de Gramado de 1997. Sobre o livro, Manuel Ferreira comentou: Há uma sobriedade e uma nobreza ponderáveis, na organização desta narrativa, muito limpa e muito airosa (desculpem lá os ‘universitários de raiz’ este excesso de impressionismo crítico) num andamento e num tom discursivo notoriamente malicioso, para não dizermos maldoso, e que nos faz sorrir naquele jeito e naqueles modos que bebemos em Machado de Assis. Narrador trocistas, com sabedoria para estar dentro da narrativa e ao mesmo tempo como se estivesse fora dela, exibindo, recolhidamente, a sua nata capacidade para a manipulação, é o termo, aliás com imenso gáudio para o leitor, que ama ser manipulado pelo narrador, sinal do seu poder encantatório. (1998, p.216). 18 O crítico indica as ressonâncias de Machado na leitura de O testamento do senhor Napumoceno, sobretudo pelo riso e pela figura de um narrador manipulador, fortalecendo e iniciando as discussões que se pretendem aferir na aproximação das duas obras neste estudo. Com isso, é crível ponderar que as obras aqui expostas para discussões, mesmo separadas por demarcações geográficas e temporais, demonstram um entrecruzar entre Brasil e Cabo Verde no que concerne aos processos culturais e à formação de seu sistema literário, tendo em vista a formação colonialista de ambos os países e a atuação crítica dos escritores na reflexão de uma identidade nacional e dos processos literários, bem como alguns elementos literários passíveis de uma discussão conjunta. Além disso, ao comporem personagens individuais, Machado de Assis e Germano Almeida alcançaram transcendência para discussão do ser social, refletindo, num projeto estético original, as transformações sociais, culturais, políticas e econômicas de uma nação. Estas figuras ficcionais colaboram para a reflexão de todo um período de transformações em âmbito global, concentrados na representação de um anti-herói desmontado pela ausência de atitudes gloriosas e marcadas pelo tom irônico da narrativa. Tendo em mente ainda que: [...] os estudos literários comparados não estão apenas a serviço das literaturas nacionais, pois o comparativismo deve colaborar decisivamente para uma história das formas literárias, para o traçado de sua evolução, situando critica e historicamente os fenômenos literários. (CARVALHAL, 2006, p.86). Têm-se os moldes que enformarão as linhas gerais deste estudo. Em Os Processos culturais: Da ideia de cultura à Formação dos sistemas literários, pretende-se apresentar, primeiramente, a fluidez do conceito de cultura relacionado às concepções ideológicas que norteavam a versão corrente de seu entendimento, destacando neste panorama a importância da cultura para o processo de descolonização. Para tal, se amparará nas reflexões de Terry Eagleton em Ideia de cultura e de Alfredo Bosi em Dialética da colonização. Prosseguindo ainda neste primeiro capítulo, sublinha-se a literatura dentre o conjunto de práticas culturais em sua contribuição para a reflexão e construção de uma identidade nacional. O processo de formação do sistema literário do Brasil e de Cabo Verde será apresentado em linhas gerais pela perspectiva da constituição de uma literatura emancipada dos modelos lusitanos e da consciência e construção da identidade nacional, situando dentro 19 deste quadro geral os escritores e as obras aqui postos em comparação. Sucessivamente apresenta-se uma rápida biografia dos escritores e algumas particularidades e fatos relevantes de cada um, a fim de compreender melhor a composição das obras Memórias póstumas de Brás Cubas e O testamento do senhor Napumoceno. Este capítulo terá por desfecho algumas ponderações sobre a relação entre os dois países, amarrando algumas observações que foram construídas no decorrer deste primeiro momento. No segundo capítulo, Processos literários: contrapontos e relações procura-se destacar os processos literários dos dois romances selecionando, para tal, alguns pontos que, a partir da pesquisa, se sobressaíram para as convergências e divergências entre os romances. O objetivo desta segunda parte é o de se concentrar no fazer artístico dos escritores, após a exposição de alguns fatores sociais envolvidos na elaboração dos romances. O primeiro ponto focalizado neste momento é a reflexão sobre a presença estrangeira e seus impactos locais a partir da abertura promovida pelas elites de cada sociedade em questão, ponderando os ecos desta ocorrência nos romances. Em seguida, contempla-se o que se convencionou chamar de percursos de ressimbolização, destacando as estratégias composicionais e as articulações de paradoxos dos romances. Encerram-se as observações deste segundo capítulo com a acentuação do humor nos romances, característica ressaltada em ambos os escritores, que conduz a algumas reflexões críticas, partindo, finalmente, para observações com relação ao entrecruzar da memória, da morte e da escrita, lembrando que, a morte é ponto de partida das narrativas. Discutida a realização destes dois tipos de processos, os culturais e os literários nos romances, culmina-se na focalização da configuração das personagens centrais, neste terceiro capítulo que se intitula Configuração das personagens. Para tal, destacam-se as relações interpersonagens, as interações com o feminino, o ethos do proprietário inerente às personagens, a sede de glória e dinheiro também presente em ambas e encerra-se com reflexões acerca da figura do herói e de que forma ela se retrata na constituição das personagens. Acredita-se que com este movimento, do geral para o particular, a contextualização inicial contribuirá para aquilo que se pretende realizar, isto é, uma apresentação das personagens principais de Memórias póstumas de Brás Cubas e O testamento do senhor Napumoceno a partir da retração da figura de um burguês num contexto social de contradições, tendo em vista a instauração de um diálogo entre a formação literária brasileira e a cabo-verdiana. 20 1. PROCESSOS CULTURAIS: DA IDEIA DE CULTURA A FORMAÇÃO DOS SISTEMAS LITERÁRIOS 1.1 Ideias de cultura em questão As ideias de cultura acompanham as transformações histórico-sociais-ideológicas do decorrer dos anos refletindo muitas destas mudanças em sua significação. Desta forma, a palavra cultura representa uma complexa rede de conceitos e significados intimamente relacionada ao período e a sociedade em que se produzia uma de suas versões. O conceito de cultura foi amplamente discutido por filósofos, sociólogos e críticos sem que se chegasse a uma ideia fixa e imutável, mas sim, a um processo de representações sócio filosóficas diretamente relacionadas ao período compreendido. Uma das primeiras associações de cultura esteve em sua oposição à natureza. Tanto Eagleton em Ideia de Cultura (2011) quanto Alfredo Bosi em Dialética da colonização (1996) destacam a origem etimológica de cultura indicando seu significado inicial de cultivo. Tendo sua origem, em ambos os casos, da palavra latina colo/colere, que significa eu moro eu ocupo a terra eu cultivo o campo, é possível se pensar neste primeiro instante da significação de cultura no âmbito da agricultura. Ainda, segundo o dicionário Aurélio (2009) do português do Brasil, cultura teria as seguintes acepções: 1. Ato, efeito ou modo de cultivar. 2. O complexo dos padrões de comportamento das crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais, etc., transmitidos coletivamente, e típicos de uma sociedade. 3. Os conjuntos dos conhecimentos adquiridos em determinado campo. 4. Criação de certos animais, esp. microscópicos. Desta forma, ao se pensar tanto na origem etimológica quanto nas acepções em uso no português do Brasil da palavra cultura é possível perceber que o sentido primeiro relacionado à agricultura não se perdeu no tempo. Neste primeiro uso, cultura representava, portanto, a ação do homem sobre a natureza, a sua dominação sobre ela, podendo modificá-la a seu favor. O desenvolvimento do cultivo do solo para obtenção de alimentos se configurava em uma vantagem cultural transmitida para as outras gerações. Cultura seria então, nesta perspectiva, aquilo que sofreu modificações e não se encontra em seu estado bruto, natural, também carrega em seu sentido a capacidade humana de se transmitir informações e conhecimentos às outras gerações. 21 Terry Eagleton discute nossa aproximação com a natureza: Nós nos assemelhamos à natureza, visto que, como ela, temos de ser moldados à força, mas diferimos dela uma vez que podemos fazer isso a nós mesmos, introduzindo assim no mundo um grau de autoreflexividade a que o resto da natureza não pode aspirar. (EAGLETON, 2011 p. 15). O ser humano coloca-se em posição privilegiada dentro do conjunto natureza, destacando-se dos animais pela sua capacidade de “autoreflexividade”, além disso, o homem na Bíblia é colocado como imagem e semelhança de Deus, assim sendo, é o mais próximo do divino. Neste sentido, o cultivo não estaria apenas no campo das transformações materiais que se impõe à natureza, mas indicaria um caminho das transformações do espírito, própria e diferencial do ser humano, agindo ele mesmo sobre si. Desloca-se a ideia de cultura do universo estritamente material para um campo também espiritual, transformando - se em sua significação na sociedade: ‘Cultura’ denotava no início um processo completamente material, que foi depois metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão de átomos. (EAGLETON, 2011, p. 10). A ampliação de significado de cultura de simples atividade, cultivo de alguma coisa, animal, plantas para também cultura vista dentro dos aspectos espirituais esteve intimamente relacionada às transformações sociais e perceptivas do ser humano. O conceito de cultura caminha com as transformações da sociedade, o que é em si mesmo a própria cultura. Assim como toda cultura particular tem a sua história, a história de cultura é a própria história da humanidade, explicando com isso sua diversidade de entendimento e constantes modificações de sentido. Desta forma, o conhecimento sobre o que vem a ser cultura é um conhecimento transmitido e atualizado entre as gerações, não permanecendo o mesmo. É importante ter isto em vista para se entender as multiplicidades de concepções bem como as transformações sociais e ideológicas abordadas em conjunto com a conceituação de cultura. O termo cultura, no sentido de cultivo, não ficou restrito à compreensão das mudanças causadas na natureza pela ação do homem, mas passou também a designar uma espécie de formação espiritual, adquirindo significação metafórica de cultivar a mente e o espírito de uma pessoa. Consequentemente, a colonização foi entendida como sendo uma forma de 22 “cultivar” os nativos de uma terra. Igualmente no sentido primeiro de cultura, e com a raiz comum a palavra colono, o ato de colonizar liga-se à ideia de exploração de um solo ou de seu povoamento. Assim sendo, como aponta Alfredo Bosi, “A ação colonizadora reinstaura e dialetiza as três ordens: do cultivo, do culto e da cultura.” (1996, p. 19). Uma corrente filosófica que influenciou o que se pensava sobre cultura foi o iluminismo, que ocorreu na Europa, com maior expressão na França, no século XVIII. Este movimento defendia o uso da razão sobre os pensamentos teocêntricos vigentes na época. Defendia a liberdade e emancipação do homem. Neste período a cultura era vista como civilização e progresso, palavras muitas vezes utilizadas como sinônimos. A tensão entre cultura e civilização como apontou Eagleton (2011, p. 20) dizia muito da rivalidade entre a Alemanha e a França no período mencionado, afastando-se, portanto, a Kultur alemã da cultura como civilização para os franceses. No Brasil, sabe-se que a França representava um modelo para os jovens intelectuais da época, século XIX, constituindo-se como referência cultural e modelo de erudição. O próprio Machado de Assis destacou a presença deste país como principal “influxo externo” para a produção literária e intelectual do país. Sabe-se que o centro do Iluminismo foi a França, por conseguinte, o Brasil recebeu as marcas deste movimento, sobretudo, na figura dos intelectuais da época que participavam das revoltas anticoloniais no final do século XVIII, dentre os quais estavam os escritores Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga. Convém ainda destacar que o Iluminismo promoveu impactos na vida política e intelectual mundial, como por exemplo, contribuiu para fomentar os movimentos de emancipação, dentre eles a Declaração da Independência dos Estados Unidos, bem como da expansão dos direitos civis. Evoca-se que o Brasil conquistou a sua independência no início do século XIX, mais precisamente em sete de setembro de 1822. A ideia de cultura neste contexto, de um modo geral, era a “nossa ligação sentimental a um lugar, nostalgia pela tradição, preferência pela tribo, reverência pela hierarquia.” (EAGLETON, 2011, p.48). Assim sendo, despontava no cenário mundial a consciência de um nacionalismo. Em um outro momento a cultura também influenciou e foi influenciada pela questão do nacional. No século XX, quando ainda muitos países viviam a condição colonial, iniciou- se um vigoroso momento de guerras pela emancipação nacional, destacam-se neste momento, os processos de independência na África e na Ásia, e dentre estes, a luta de Cabo Verde, que se emancipou em cinco de julho de 1975. 23 Para Terry Eagleton, a cultura, como ideia, passou a ser importante em quatro pontos de crise histórica: 1) quando se torna a única alternativa aparente a uma sociedade degradada; 2) quando parece que, sem uma mudança social profunda, a cultura no sentido das artes e do bem viver não será mais nem mesmo possível; 3) quando fornece os termos no quais um grupo ou povo busca sua emancipação política; 4) e quando uma potência imperialista é forçada a chegar a um acordo com o modo de vida daqueles que subjuga. (2011, p.41- 42). Com esta perspectiva, no quadro da emancipação política, a cultura atuou não apenas como fomento para as batalhas, mas também no processo de reconstrução dos países pela corrente do nacionalismo, que por sua vez, enraizava-se na ideia de cultura. Assim: “[...] a cultura é vital para o nacionalismo de maneira que, digamos, a luta de classes, os direitos civis ou o combate à fome não chegam a sê-lo.” (EAGLETON, 2011, p.42), “[...] de qualquer modo, a cultura encarnada e socializada tem um papel cada vez mais central a desempenhar na construção de um futuro para as nações pobres." (BOSI, 1996, p.18). Tanto no sentido de que está no núcleo do nacionalismo, como no de que traduz a criação imaginativa que se faz de uma sociedade ou povo, a cultura, representa um produto coletivo, uma consciência grupal. Desta forma, não se produz cultura com isolamento: É, assim, tanto pessoal como social: a cultura é uma questão do desenvolvimento total e harmonioso da personalidade, mas ninguém pode realizar isso estando isolado. Com efeito, é o despontar do reconhecimento de que isso não é possível que ajuda a deslocar cultura de seu significado individual para o social. A cultura exige certas condições, e já que essas condições podem envolver o Estado, pode ser que ela também tenha uma dimensão política. A cultura vai de mãos dadas com o intercurso social, já que é esse intercurso que desfaz a rusticidade rural e traz os indivíduos para relacionamentos complexos, polindo assim suas arestas rudes. (EAGLETON, 2011, p. 21). Se os países que percorreram o caminho da libertação da condição colonial forem relembrados nestas reflexões, ampliam-se as observações para entender que, além deste caráter social da cultura, acresce o caráter multicultural destes países, já que, desde a nascente, eles foram a combinação de diversas culturas misturadas: Quem procura entender a condição colonial interpelando os processos simbólicos deve enfrentar a coexistência de uma cultura ao rés-do-chão, nascida e crescida em meio às práticas do migrante e do nativo, e uma outra 24 cultura, que opõe à maquina das rotinas presentes as faces mutantes do passado e do futuro, olhares que se superpõem ou se convertem uns nos outros.(BOSI, 1996, p. 36). Além disso, “[...] todas as culturas estão envolvidas umas com as outras; nenhuma é isolada e pura, todas são híbridas, heterogêneas, extraordinariamente diferenciadas e não monolíticas.” (SAID, 2011, p. 29). Assomando-se ainda que “[...] nenhuma cultura humana é mais heterogênea do que o capitalismo.” (EAGLETON, 2011, p. 29), não é possível entender cultura no Brasil e em Cabo Verde, sobretudo nos dias de hoje, por uma ideia de homogeneidade. Dentro deste perfil híbrido de composição, as discussões do nacional contribuíram muito para a noção do caráter multicultural destas sociedades, afinal: Mas o que esse ‘desvio através de seus passados’ faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2006, p. 43). Assim, neste exercício de se criar e recriar, de se tornar, a cultura concedeu armas para estes países ex-colônias para se inventarem ou reinventarem, configurando-se como o principal meio pelo qual a identidade nacional podia ser sentida neste solo de contradições. E ainda mais, pelo seu aspecto de fluidez, a cultura em processo de andamento, está sempre a permitir as mudanças, à vista disso, em seu interior cabe a possibilidade de uma nova realidade e de um novo entendimento desta realidade. 1.1.1 Cultura, literatura, identidades e nacionalismo em foco A carta de identidade de uma nação é antes de mais, a sua cultura. (Manuel Veiga). A estrutura política de uma nação afeta sua cultura e, por sua vez, é afetada por essa cultura. (T.S. Eliot). O ato de se definir a literatura e pensar sobre sua função foi, desde o início de seus estudos, objeto de controvérsias. Segundo Antonio Candido (1972), 25 A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade. (p. 53). Para Victor Aguiar e Silva, “a literatura é uma arte que utiliza como meio de expressão a comunicação, a linguagem verbal, uma específica categoria de criação artística, um conjunto de textos resultantes desta atividade criadora, uma instituição do sócio-cultural” (1990, p.38- 39). Em ambas as definições propostas, a literatura aparece associada à esfera da criação, e a traduz sob o signo da linguagem, sendo em primeiro momento, a arte da palavra. Em outro nível, a literatura aparece conjugada a um dado social, caracterizando-se como um item da cultura. Neste tocante, é possível ainda enquadrar a reflexão de Alfredo Bosi (2006a) de que "A atividade literária, assim como toda obra de arte, ultrapassa toda especificidade individual e se torna um instrumento de enorme importância para a formação e a caracterização da cultura de um povo.”. (p.37). Assim sendo, guardadas as especificidades de cada autor na realização de sua “manipulação técnica”, a literatura, como toda arte, cumpre função de configurar a cultura de um determinado povo. Ainda por este ponto de vista têm- se que: a noção de que a literatura, ao partir de uma atitude criativa empenhada, constitui um documento da sua época, tanto mais expressivo quanto mais deprimentes forem os fenómenos visados, não é inocente, do ponto de vista ideológico: ela significa, em primeira análise, que a criação literária integra- se numa superestrutura que traduz uma forma de consciência social e que sobretudo resulta (...) da base socioeconómica que lhe subjaz; daí que se possa afirmar que ‘a arte é o índice exacto do estado mental, do valor cultural dum povo. Não afirma simples existências, qualifica-as’. (REIS, 1983, p. 46-47). Como se nota, não existem conceitos fechados e conclusões definitivas, em razão de que a literatura não é um fenômeno independente, mas marca-se histórica e culturalmente. Logo, “Trata-se de uma prática sócio-cultural que, enquanto um ato histórico, não possui uma essência estática e, por isso, é capaz de adquirir funções diferenciadas ao longo da história”. (KIRCHOF, 2008, p.32), e desta forma, a fluidez de sua definição e a polêmica por trás dela compreende-se por esta perspectiva. 26 Assim sendo, no que tange às observações aqui propostas, a literatura não apresenta uma definição rígida, mas deve ser compreendida como uma concepção dinâmica que tanto possui sua especificidade de arte da escrita, como corresponde a um dado cultural: O conjunto dessas considerações aponta para uma idéia de cultura como modelo auto-reflexivo de um grupo social, do qual a literatura - ou, em sentido mais amplo, a produção escrita - participa tanto na qualidade de formação simbólica quanto na condição de sistema social cultural específico. (OLINTO e SCHOLLHAMMER, 2003, p. 75). A literatura convencionou-se um instrumento de potência na ânsia da emancipação cultural de países, e da própria constituição da nação, guardando em seu processo de feitura e discussões o entrecruzamento de questões como nação e identidade nacional. Benedict Anderson, em 1983, ao formular a questão da nação, e designá-la como uma “comunidade imaginada”, ressaltou o papel dos romances nesta construção coletiva, e complementa que a nação é um objeto de aspiração consciente a ser buscado. Destarte, é possível se pensar que os escritores, sobretudo os do período das guerras pela libertação, e do período de independências, intencionavam a “invenção” de uma nação e este era um projeto que não só se refletia na literatura, como por muitas vezes era o próprio projeto literário a ser realizado. O escritor argentino Ernesto Sabato uma vez ponderou que: "Um escritor nasce em França e acha, por assim dizer, uma pátria feita: aqui ele deve escrever fazendo-a ao mesmo tempo", (SABATO, 1983, p. 144 apud PERRONE-MOISÉS, 2011, p. 183). Esta visão da prática literária perfez os “Pioneiros–crioulos” de Anderson, ou seja, os países os quais, assim definiu Benedict Anderson, compartilhavam do idioma e da ascendência da metrópole imperial contra a qual lutavam. Neste sentido, as elites dos países, sobretudo as elites tidas por “intelectuais”, detentoras do conhecimento e de domínio linguístico, exerceram um papel fundamental na construção do ideário nacional, sendo elas as mediadoras no processo de formação da nação, ou ainda, da instituição do nacionalismo. Acresce que, o escritor de uma época e país específicos, pode ser pretensiosamente mais engajado ou não, dependendo de seu grau de envolvimento com as questões circulantes e de sua posição ideológica. Mas afinal, o que pode ser entendido por Nação? Este é mais um daqueles conceitos de difícil definição e de debates contínuos, no entanto, algumas definições podem ser apresentadas. Para o já citado Benedict Anderson, Nação é “uma comunidade política imaginada - imaginada como sendo intrinsecamente limitada e ao mesmo tempo soberana.” (ANDERSON, 2011, p.49). Já para Ernest Renan: 27 Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, para dizer a verdade, não são mais do que uma, constituem esta alma, este princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no presente. Uma é a possessão em comum de um rico legado de lembranças; outra é o consentimento actual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer a herança indivisa que se recebeu. O homem, Senhores, não se improvisa. A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo passado de esforços, de sacrifícios e de dedicações. (2011, p.42). Por estas perspectivas, o nacionalismo também se configuraria como um produto cultural, dinamizando-se no espaço e no tempo. A literatura então, como um dado de cultura, integra em si processos de representação do nacional e das identidades: As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (veja Penguin Dictionary of Sociology: verbete "discourse"). As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2001, p.50-51). Portanto, apenso a este conceito de nação está, igualmente problemática, as definições identitárias. Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade (2001), já sugere que, quanto às identidades deveríamos percebê-la como um processo em andamento, e assim, preferir o termo identificação à identidade, para que, então, não se cogite em coisa acabada. Outro ponto que reflete é sobre a constituição da identidade, que para Hall seria uma soma daquela que já a temos como indivíduos e daquela construída a partir da visão do outro. E se toda identificação pressupõe um elemento externo, o Outro, este processo nos países aqui postos em comparação, Brasil e Cabo Verde, significou em um primeiro momento, uma identidade a partir da diferença com o colonizador, daquilo que não se é para o entendimento do que se pode ser: Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença. Poderíamos nos perguntar sobre o porquê desta insistência em buscarmos uma identidade que se contraponha ao estrangeiro. Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos um país do chamado Terceiro Mundo, o que significa dizer que a pergunta é uma imposição estrutural que se coloca a partir da própria posição dominada que nos encontramos no sistema internacional. (ORTIZ, 1994, p. 7) 28 Segundo Renato Ortiz, nossa “insistência” em buscar esta identidade pela oposição ao outro é um dado de uma realidade econômica e histórica desprivilegiada, que pressupõe uma condição de subalternidade. Para que então se pudesse concretizar uma descoberta identitária, seria necessário se (re)formular com base neste contraponto com o Outro. Este estrangeiro, no caso, foi, no primeiro momento, para o Brasil e Cabo Verde, o colonizador português. Desta forma, a literatura procurou realizar este transcurso acudindo-se em uma origem que não seria a mesma suposta pela metrópole, e produzindo uma identidade cultural fundamentada em um elemento nativo. Tendo em mente que: [...] é o momento de reconhecermos que toda identidade é uma construção simbólica (a meu ver necessária), o que elimina, portanto as dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade do que é produzido. Dito de outra forma, não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos. (ORTIZ, 1994, p.8). Soma-se ao processo de identificação do Brasil e Cabo Verde, percorrido pelo texto literário, as dificuldades de uma constituição reconhecidamente multicultural. Não só a composição de uma identidade já pressupõe uma pluralidade, como ela é nestes casos específicos do brasileiro e do cabo-verdiano, uma realidade alicerçada num conjunto de fatores existentes no seio destas sociedades. Primeiramente, ambos os países advêm de uma realidade colonial que pôs em contato diversas raças a integrarem a identidade nacional. Segundo, a emigração de pessoas de várias partes do continente europeu para o Brasil, com destaque para os alemães e os italianos, lhe acrescentou, ao contato com essas culturas, mais força a formação multicultural. Em Cabo Verde, o movimento da diáspora, sobretudo para Portugal e os Estados Unidos, fez surgir um novo tipo de homem cabo-verdiano, o homem retornado, que já era em si reflexos de mais de uma cultura. Também a emigração de muitos judeus para as ilhas representou mais uma forma de contato cultural constituinte do cabo- verdiano. Todos estes elementos acarretam em dois países com uma identidade multicultural formativa assumida, e assim aproximados por este ponto comum, bem como por traços formativos díspares, guardados em suas especificidades. Diante deste cenário, a atitude cultural no Brasil e em Cabo Verde, no sentido de apontar para os caminhos da construção simbólica da Nação, bem como para a instauração dos processos de identificação, não só era presumível como necessária. 29 A literatura foi para estas duas nações, provavelmente, o maior instrumento de (re)descoberta nacional. Um herói revolucionário, considerado por muitos como o “pai” da nacionalidade guineense e cabo-verdiana, Amílcar Cabral¹, costumava dizer sempre que “a luta de libertação é antes de tudo o mais um ato de cultura” (1976 apud LOPES, 2011, p.190). Esta perspectiva atribuía à cultura valor de resistência perante a dominação estrangeira, em razão de que: [...] a cultura é manifestação vigorosa, no plano ideológico ou idealista, da realidade física e histórica da sociedade que é dominada ou a ser dominada. A cultura é ao mesmo tempo o fruto da história de um povo, pela influência positiva ou negativa que exerce sobre a evolução das relações entre o homem e seu ambiente, entre os homens ou grupo de homens dentro da sociedade, bem como entre diferentes sociedades. (CABRAL, 1970, p.2 apud VAMBE e ZEGEYE, 2011, p. 37). Reconhecendo na cultura africana um caráter heterogêneo, Cabral propôs uma união destes povos por crer que a unidade no combate permitiria que se acentuassem as semelhanças pelo ponto de vista da condição colonial, já que os problemas identitários associados às questões das fronteiras artificiais no continente africano (com a colonização algumas fronteiras impostas pelo regime conjugaram em um mesmo terreno tribos rivais, que não possuem identificação entre si) só expressariam as divergências e tensões locais. Com as detecções das semelhanças a luta contra o opressor comum era possível pela elaboração de estratégias coletivas de revolta. A figura de Amílcar Cabral é importante não só para se compreender em que terreno de ideias cresceu a literatura cabo-verdiana, como também para constatar a relação e a expressão da cultura no processo de instituição da identidade nacional, na cena da dominação colonial. Compreende-se que: [...] a cultura é o maior desafio da nação global. Foi a cultura que impulsionou o nosso povo à luta para a independência, à construção da _________________________ ¹Amílcar Cabral foi um herói revolucionário da independência dos povos africanos, fundador e líder do Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Foi covardemente assassinado no dia 20 de janeiro de 1973, por alguns de seus próprios companheiros. Cabral contribuiu com escritos críticos bem como alguns textos literários, também combatia nos campos de batalha, unindo, na figura dele mesmo, a ideia de luta armada e luta cultural como uma combinação essencial para a efetiva libertação. 30 liberdade, da democracia, de estado de direito. Foi a cultura que gerou, alimentou e alimenta a nossa crioulidade, a nossa morabeza, a nossa língua, a nossa democracia, e é vista tanto no solo pátrio como na terra longe. Foi a cultura que conferiu ao povo das ilhas força e tenacidade para edificar o estado de direito, para amentar a qualidade de vida, para construir o desenvolvimento e plasmar um humanismo com o resto da nação global cabo-verdiana. (VEIGA, apud MENDES, 2007, p.12). Neste caso, e lembrando que não só em Cabo Verde como também no Brasil, a cultura foi força motriz da fundação do nacionalismo e da identidade nacional, entrecruzando-se em processos dinâmicos de realização e concepção. E é, portanto, neste terreno, que se pensará a literatura, os escritores, e em um recorte mais específico, as personagens Brás Cubas e Napumoceno dos romances Memórias póstumas de Brás Cubas e O testamento do senhor Napumoceno, dos escritores Machado de Assis e Germano Almeida. 1.2 Formação do sistema literário e os Caminhos para uma literatura nacional A história da literatura é uma tarefa sempre em andamento, cabendo a cada geração refazê-la e completá-la. (Afrânio Coutinho). Não recuso o passado, penso que somos a continuação do que fomos. (Germano Almeida em entrevista concedida a Maria M. L. Guerreiro, 1995). Em Formação da literatura brasileira (2000), Antônio Candido propõe uma noção de sistema literário, no qual as obras seriam abordadas “[...] integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando no tempo, uma tradição.” (CANDIDO, 2000, p.24). Ainda para o crítico, existe a preocupação em se distinguir o conceito de manifestações literárias do de literatura, justificando, a partir desta conceituação diferenciada, a escolha do que ele denominou no livro de “momentos decisivos” da literatura brasileira: Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e por que se qualificam de decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindo manifestações literárias de literatura propriamente dita, considerando aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes de uma fase. (CANDIDO, 2000, p.25). 31 Dentre esses denominadores comuns de que trata Antonio Candido, estão três elementos que o crítico destaca, que seriam, 1) conjunto de produtores mais ou menos conscientes de seu papel; 2) conjunto de receptores; 3) mecanismo transmissor (“de modo geral, uma linguagem traduzida em estilos.”) (2000, p.23). A esses três elementos Candido ainda acrescenta a ideia de continuidade quando as atividades dos escritores se integram ao sistema, posto que, “[...] ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária. [...] Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização.” (2000, p.24). Por estas perspectivas, ao tratar da formação do sistema literário de Brasil e Cabo Verde, considera-se estes elementos, com destaque a ideia de continuidade, na qual se localiza os escritores desta análise, Machado de Assis e Germano Almeida, pelo papel que exerceram na transformação de algumas temáticas e/ou de recursos estéticos até então empregados na literatura de seus respectivos países. Desta forma, amparando-se na noção de processo, que pressupõe uma sucessão de estados e mudanças, e de sistema literário de Candido, as modificações, apontadas como diferencial dos escritores estudados no panorama literário de seus países, não serão abordadas por como sendo rupturas, mas sim, analisadas pelo ponto de vista das renovações histórico-sociais que influenciaram na acepção de cultura e, por conseguinte, a literatura, no período de produção das obras destes autores. Cumpre-se, neste contexto, sublinhar a presença do nacionalismo neste processo de formação do sistema literário nacional para ambos os países, lembrando que, como aponta Antonio Candido, o nacionalismo é fruto de condição histórica, e, portanto, importa no sentido de que os elementos externos atuam nos elementos internos das obras, aludindo, então, a outra obra de referência do mesmo crítico literário, Literatura e sociedade, na qual expõe que: “Sabemos ainda que, o externo (no caso o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.” (1975, p. 13). Desta forma, neste contexto, a atuação de Machado de Assis e Germano Almeida no sistema literário de seus países, mesmo sendo a obra do primeiro do século XIX e a do segundo do século XX, está diretamente relacionada a um período em que se emergia a necessidade de consolidação da identidade nacional, dispondo na literatura a chave deste processo. Tendo-se ainda que, “Como fenômenos históricos, os períodos literários transformam- se continuamente à produção e recepção de textos alteram constantemente o equilíbrio do sistema literário.” (SILVA, 1990, p. 148), as modificações promovidas pelos escritores desta 32 análise seguiram a lógica de processo intrínseca à própria prática da interação literária, iniciando novas tendências de impulsos inovadores dentro do quadro literário de seus países. A aproximação entre estes escritores pela participação inovadora no panorama literário de Brasil e Cabo Verde, bem como pela contribuição na reflexão de identidade cultural nacional que proporcionaram, obtém respaldo nas observações de Benjamim Abdala Junior, para quem há que se considerar a possibilidade de trânsito entre os sistemas literários em língua portuguesa. Assim sendo, “As formas literárias das culturas de língua portuguesa circula, assim, permitindo a apropriação singular, com relevo histórico, de um imaginário intercambiado” (ABDALA JUNIOR, 2008, p.30). Esta espécie de trânsito entre os sistemas literários de língua portuguesa pressupõe a formação de um macrossistema, que partiria da seguinte concepção: Qualquer texto literário em português parte de uma linguagem modelada desde a Idade Média europeia, num processo contínuo de aproximações e diferenciações que motivou o contexto comunicativo que se estabeleceu a partir dos tempos coloniais. É dentro dessa dinâmica da comunicação em português, que envolveu historicamente constantes semelhantes da serie ideológica, que podemos apontar para a existência de um macrossistema marcado como um campo comum de contatos entre os sistemas literários nacionais. Quando aproximamos os sistemas nacionais é por abstração que chegamos a esse macrossistema que se alimenta não apenas do passado comum, mas também do diverso de cada atualização concreta das literaturas de língua portuguesa. (ABDALA JUNIOR, 2008, p.35). É esta comunicação que permite rastrear na comparação entre Machado de Assis e Germano Almeida um passado colonial comum, e um anseio compartilhado pela busca da formação e consolidação de uma literatura nacional distanciada dos moldes portugueses. Maria Aparecida Santilli em Africanidade. Contornos literários. (1985), também atesta para a existência deste movimento comunicativo entre as literaturas em língua portuguesa: O processo de vasos comunicantes que a língua/cultura portuguesa deixou armado com mais, ou menos desobstruções ao longo deste século, enquanto canais de fluxos literários, talvez ora seja um dos pertinentes caminhos da pesquisa, em torno das chamadas literaturas ‘de expressão portuguesa’. O rodízio de motivos se constituíra, quem sabe, uma das fórmulas de aferir entre elas, sobre o cruzamento de seus gens primitivo e adventício, o pressuposto de cada unidade, também respaldando por essas sucessivas transfusões que a circulação promove, costurando-as uma às outras, em sua diversidade. (SANTILLI, 1985, p.8 grifo da autora). 33 Nota-se que para a autora o intercâmbio literário é categorizado por “processo de vasos comunicantes” e destaca que, mesmo partindo de um instrumento comum que é a língua portuguesa, estas literaturas manifestam suas particularidades e assim, pela interação, elas circulam “costurando-as umas às outras, em sua diversidade”. Sublinhada as possibilidades comunicativas entre as literaturas de língua portuguesa, convém percorrer as especificidades do sistema literário brasileiro e cabo-verdiano em seus movimentos formativos e obras representativas, situando e realçando a participação dos escritores Machado de Assis e Germano Almeida. Para a discussão e apresentação do sistema brasileiro faz-se necessário retomar a distinção elaborada por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira: Momentos decisivos, acima mencionada, entre manifestação literária e literatura propriamente dita. A partir desta definição, o crítico justifica sua escolha para iniciar a historiografia literária brasileira pelo Arcadismo, amparando-se na ausência, nos períodos anteriores, da tríade autor- obra-público. Este ponto de início da literatura brasileira acabou por se configurar uma polêmica no cenário da crítica literária, já que em 1989, Haroldo de Campos publicou uma obra com o título de O Sequestro do Barroco na Formação da literatura Brasileira: O caso Gregório de Mattos, constatando a exclusão do barroco na formação da literatura brasileira e desconforme com a retirada do poeta Gregório de Mattos do processo formativo, visto que: Gregório de Mattos foi sem dúvida uma das maiores figuras de nossa literatura. [...] Um dos maiores poetas brasileiros anteriores à Modernidade, aquele cuja existência é justamente mais fundamental para que possamos coexistir com ela e nos sentirmos legatários de uma tradição viva, parecendo não ter existido literariamente ‘em perspectiva histórica’. (CAMPOS, 1989, p.9-10). O estudioso, neste cenário de debates, adverte que “Se há um problema instante e insistente na historiografia literária brasileira, este problema é ‘a questão de origem’.” (1989, p. 7). Assim sendo, o ponto inicial da nossa literatura transita entre diferentes opiniões, sobretudo, pela difícil tarefa de se definir uma produção nacional, nascida e desenvolvida em uma nação com a consciência de sua existência, e dos elementos e períodos que de fato ressoaram neste processo. Esta problemática da origem é um problema característico de nações coloniais por seu vínculo com uma metrópole que dita regras político-econômico- culturais. Por tais motivos, geralmente o momento de independência e consolidação cultural destes países está associado à ruptura com os modelos impostos e apreendidos da metrópole, concomitante ao processo de formação da consciência nacional. 34 Alfredo Bosi, em seu livro História Concisa da literatura brasileira (1978), também discute a questão das origens: O problema das origens da nossa literatura não pode formular-se em termos de Europa, onde foi a maturação das grandes nações modernas que condicionou toda a história cultural, mas nos mesmos termos das outras literaturas americanas, isto é, a partir da afirmação de um complexo colonial de vida e de pensamento. A colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o ‘outro’ em relação à metrópole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupada [...] A colônia só deixa de o ser quando passa a sujeito da sua história. Mas essa passagem fêz-se no Brasil por um lento processo de aculturação do português e do negro à terra e às raças nativas; e fêz-se com naturais crises e desequilíbrios. (BOSI, 1978, p.13). Destaca-se nestas observações de Bosi, a circunstância que considera determinante para a dissolução da colônia, quando esta “passa a sujeito de sua história”. Esta reflexão conscientiza para a importância de uma atitude atuante, convertendo-se da condição de “objeto” para “sujeito”. Como se pode observar, a origem de nossa literatura foi objeto de discussões entre os estudiosos da área. Polêmicas à parte, já que não se tem o intuito de resolver e dissolver a problemática, mas antes sim, de constatar estas divergências acerca de nossas origens, o que se pode rastrear de comum, salvo questões de nomenclaturas e metodologias, aos estudos da historiografia literária brasileira é a preocupação em se distinguir uma literatura de características nacionais da literatura praticada ainda nos moldes europeus de temáticas não locais, amparada no cenário político e econômico de cada época. E esta sim é uma divisão que importa aqui ser abordada, uma vez que considera e atesta as heranças do colonialismo na formação de nossa literatura. Se há a necessidade de se classificar e distinguir a literatura em dois períodos, um colonial e outro nacional, é porque o Brasil, enquanto colônia, apresentava uma atividade literária que, ou não se produzia aqui, ou que se fixava em modelos ainda portugueses, ao passo que em determinado momento, e com a influência de fatores sociais e históricos, esta arte adquiriu contornos nacionais e nacionalistas. Cabe ainda ressaltar que, apesar de em algumas historiografias o marco da literatura nacional coincidir com a independência do país, estes não são processos similares, tampouco ocorreram de forma concomitante. Apesar do brado da independência e da autonomia político-econômica, a emancipação das letras decorria de uma formação e consciência 35 nacionais mais solidificadas que independiam de datas oficiais, mas sim de um processo árduo de maturação conquistado lentamente. Machado de Assis em seu texto O passado, o presente e o futuro da literatura, que publicou aos dezenove anos, em 1858 em A Marmota, discute justamente esta distinção entre as independências, sublinhando a imprescindibilidade de um processo na busca pela emancipação intelectual: Uma revolução literária e política fazia-se necessária. O país não podia continuar a viver debaixo daquela dupla escravidão que o podia aniquilar. A aurora de Sete de Setembro de 1882, foi a aurora de uma nova era. O grito do Ipiranga foi o — Eureka — soltado pelos lábios daqueles que verdadeiramente se interessavam pela sorte do Brasil, cuja felicidade e bem- estar procuravam. O país emancipou-se. A Europa contemplou de longe esta regeneração política, esta transição súbita da servidão para a liberdade, operada pela vontade de um príncipe e de meia dúzia de homens eminentemente patriotas. Foi uma honrosa conquista que nos deve encher de glória e de orgulho; e é mais que tudo uma eloqüente resposta às interrogações pedantescas de meia dúzia de céticos da época: o que somos nós?[...] Mas após o Fiat político, devia vir o Fiat literário, a emancipação do mundo intelectual, vacilante sob a ação influente de uma literatura ultramarina. Mas como? É mais fácil regenerar uma nação, que uma literatura. Para esta não há gritos de Ipiranga; as modificações operam-se vagarosamente; e não se chega em um só momento a um resultado. (ASSIS, 1994, p. 787-789). Como o crítico e escritor coloca não basta simplesmente declarar-se livre, a liberdade é uma conquista atingida com o tempo, e, neste sentido, a emancipação literária é mais penosa que a política, ou pelo menos o foi em nosso processo de descolonização. O ponto na literatura brasileira que mais parece buscar esta emancipação é o período árcade. É no Arcadismo, que desponta no cenário literário brasileiro a busca pelo elemento local, trazendo a figura do índio para tema literário, mas de um índio que era visto como o bom selvagem e descrito em características europeizadas, algumas vezes aparecendo como homem branco civilizado. Dentre as epopeias nativistas deste período estão as obras Caramuru (1781) de Santa Rita Durão e O Uraguai (1769) de Basílio da Gama. O Uraguai, precedendo o gênero épico na literatura brasileira, contribuiu na elaboração de outros poemas épicos de conterrâneos e contemporâneos, entre eles Vila Rica de Cláudio Manoel da Costa, e Caramuru de Santa Rita Durão. Além de cantar o heroísmo indígena, Basílio da Gama incide sobre os padres jesuítas o papel de vilão. Destaca-se a obra de Basílio da Gama por sua importância na literatura brasileira ao introduzir o gênero da épica e praticar o exercício de a ela dar traços de brasilidade. 36 Já na narrativa de Santa Rita o herói é Diogo Álvares Correia, náufrago português quem recebeu o epíteto de Caramuru dos Tupinambás, responsável pela primeira ação colonizadora na Bahia. A obra expõe a descrição da terra e de alguns costumes indígenas, e eis então seu ponto alto, porém é muito mais da inspiração religiosa do que parecer se horrorizar com a postura jesuítica. Em ambos os textos pode-se pensar então que os autores dispunham de uma nítida intenção de cantar a epopeia do descobrimento refletindo a nacionalidade que estava nascendo. Percebe-se como, salvo as diferenças ideológicas quanto à catequização, Basílio da Gama e Santa Rita Durão elegeram o índio para símbolo nacional, iniciando um processo que se desenvolverá em outros momentos e escolas literárias brasileiras. Além de mencionar estas obras, convêm ainda aduzir alguns fatos históricos do século XVIII, uma vez que contribuem na elucidação do cenário que envolve a produção bibliográfica desta época e aponta direções na formação de sentimento e de uma consciência nacional. São eles, a Revolta em Vila Rica contra o estabelecimento das Casas de Fundição em 1720, o reconhecimento por parte da Inglaterra da independência dos Estados Unidos, depois de oito anos de guerra em 1783, o início da Revolução Francesa e com ela a propagação de suas ideias de liberdade e igualdade que influenciaram vários movimentos de independência, a incluir o Brasil, e a eclosão da Conjuração Mineira em 1789, o enforcamento de Tiradentes em 1792 e a reprimenda e execução de alguns participantes da Conjuração Baiana que se oponha ao governo português em 1798. Em uma espécie de síntese que se pode formular sobre esta escola e o momento nacional, expõe-se o seguinte trecho da História concisa da Literatura brasileira (1978) de Bosi: No Arcadismo brasileiro, os traços pré-românticos são poucos, espaçados, embora às vezes expressivos, como em uma ou outra lira de Gonzaga, em um ou outro rondó de Silva Alvarenga. Em nenhum caso, porém, rompem o quadro geral de um Neoclassicismo mitigado, onde prevalecem temas árcades e cadências rococós. E sem dúvida foram as teses ilustradas, que clandestinamente entraram a formar a bagagem ideológica dos nossos árcades e lhes deram mais de um traço constante: o gôsto da clareza e simplicidade graças ao qual puderam superar a pesada maquinaria cultista; os mitos do homem natural, do bom selvagem, do herói pacífico; enfim certo mordente satírico em relação aos abusos dos tiranetes, dos juízes venais, do clero fanático, mordente a que se limitou, de resto a consciência libertária dos intelectuais da Conjuração Mineira. (BOSI, 1978, p. 66-67). 37 Esta consciência libertária de que se refere Alfredo Bosi é o estopim de nossa consciência nacional, aquele mesmo movimento que o próprio crítico mencionou em outro momento, a transição de “objeto” colonial para sujeito da História. Já Antonio Candido realiza um compêndio entre períodos, estendendo-se até Romantismo, para assinalar os temas que comandavam a literatura da época, e destacando neste momento, a formação da literatura brasileira enquanto sistema: Quatro grandes temas presidem à formação da literatura brasileira como sistema entre 1750 e 1880, em correlação íntima com a elaboração de uma consciência nacional: o conhecimento da realidade local; a valorização das populações aborígenes; o desejo de contribuir com o progresso do país; a incorporação aos padrões europeus. (CANDIDO, 2000, p.75). Desta forma, adentra-se, e com mais força, nesta outra escola, o Romantismo, “a elaboração de uma consciência nacional”. Sabe-se que, com o advento do Romantismo no Brasil, historicamente marcado no ano de 1836 com a publicação da obra Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães, surgiu a preocupação da criação da literatura autenticamente nacional, aquilo que foi visto por Antonio Candido como sendo “um ato de brasilidade”3. Para Afrânio Coutinho (2003), foi no Romantismo “que se constituiu o nervo desse processo que determinou a autonomia da literatura brasileira” (p.29). Mas não só o Romantismo angariou impulso para o patriotismo e a construção nacional, outro fato de importância política também norteou a “tomada de consciência nacional”, refere-se à Independência do país em 1822. Para Antonio Candido: A Independência importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idéia romântica, para a qual contribuiu pelo menos com três elementos que se podem considerar como redefinição de posições análogas do Arcadismo: a) desejo de exprimir uma nova ordem de sentimentos, agora reputados de primeiro plano, como orgulho patriótico, extensão do antigo nativismo b) desejo de criar uma literatura independente, diversa, não apenas uma literatura de vez que, aparecendo o Classicismo como manifestação do passado colonial, o nacionalismo literário e a busca de modelos novos, nem clássicos nem portugueses davam um sentimento de libertação relativamente à mãe-pátria; finalmente c) a noção já referida de atividade intelectual não apenas como prova de valor do brasileiro e esclarecimento mental do país, mas tarefa patriótica na construção nacional. (CANDIDO, 2000, p.12). _________________________ 3“A posição do escritor e a receptividade do público serão decisivamente influenciadas pelo fato de a literatura brasileira ser então encarada como algo a criar-se voluntariamente para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como um ato de brasilidade”. Antonio Candido in: Literatura e sociedade, 1975, p. 80. 38 Além deste fator histórico, que como já se viu contribuiu para a manifestação do nacionalismo, outros eventos, também de ordem cultural, modificaram e marcaram o espírito da época. Antes da Independência, a família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro no ano de 1808 fugindo à invasão dos soldados de Napoleão, este fato é de indiscutível importância à vida nacional, uma vez que, Dom João VI promoveu iniciativas e reformas culturais, políticas e econômicas na nação, tais quais, a abertura dos portos às nações unidas, facilitando o comércio e intercâmbio cultural, a criação da Imprensa, possibilitando o aparecimento de jornais e revistas, a inauguração da primeira casa de teatro no Brasil, a fundação dos cursos de Cirurgia, Economia Política e Comércio entre outros cursos de nível superior, são algumas das mudanças deste período e que iria em 1822 culminar na Independência do país. Com a efervescência do nacionalismo no país, e a difusão das práticas culturais, a escola romântica marcaria o processo de autonomia literária brasileira e da construção da identidade nacional, além de, para o crítico Antonio Candido, iniciar a formação do sistema literário nacional. Deste modo, o resgate da figura do índio retoma como temática nacional, concomitantemente a exaltação da natureza para se ocuparem em retratar a brasilidade, e neste quadro destacam-se os escritores Gonçalves Dias e José de Alencar. O poeta Gonçalves Dias exaltou o sentimento de honra e valentia do índio, baseando- se no “bom selvagem” de atitudes heroicas, guerreiras e de fidelidade aos deveres em poemas como I-Juca-Pirama, Canção do tamoio, Os Timbiras, além de ajuizar o homem branco como responsável pela exploração indígena. Esta mesma retratação da figura indígena a o fez José de Alencar em romances como Iracema, Guarani. Machado de Assis escreveu críticas às obras de José de Alencar, em 1866 na Semana Literária, uma seção do diário do Rio de Janeiro, comentou Iracema e em 1887, em um prefácio de uma edição de O Guarani, discutiu a obra. Dentre as observações que teceu, redigiu as seguintes palavras no texto sobre Iracema: Felizmente, o tempo vai esclarecendo os ânimos; a poesia dos caboclos está completamente nobilitada; os rimadores de palavras já não podem conseguir o descrédito da idéia, que venceu com o autor de "I-Juca-Pirama", e acaba de vencer com o autor de Iracema. (ASSIS, 1994, p.850). Nota-se com que ânimo recebeu Machado de Assis a obra indianista de Alencar e ainda como a considera notável ao lado de I-Juca-Pirama de Gonçalves Dias. Neste cenário é que o escritor da primeira fase aparece, com seus romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874) Helena (1876), e Iaiá Garcia (1878), alguns contos, peças teatrais, algumas 39 poesias e críticas literárias. Foi neste período que Machado de Assis travou conhecimento com alguns escritores românticos como Casimiro de Abreu, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, entre outros. Sobre a escola Romântica, Machado discutiu a questão do nacional em vigor no momento, predominantemente de dimensões localistas, ponderando em seu texto Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de Nacionalidade que "Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade do vocabulário e nada mais." (ASSIS, 1994, p.807). A partir destas observações tem-se que o projeto de obra nacional de Machado de Assis não compreendia uma literatura restrita a contemplar os assuntos locais, afinal, “[...] manifesta-se às vezes uma opinião que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local.” (ASSIS, 1994, p.803). Ainda neste quadro que compõe o Romantismo brasileiro convém ressaltar a importância de uma outra obra literária, Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida, que inauguraria uma outra espécie de imagem nacional, a “dialética da malandragem”, como convencionou chamar Antonio Candido em texto crítico de mesmo nome, que ressoará mais adiante em Macunaíma de Mário de Andrade: Digamos então que Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma e que Manuel Antônio com certeza plasmou espontaneamente, ao aderir com a inteligência e a afetividade ao tom popular das histórias que, segundo a tradição, ouviu de um companheiro de jornal, antigo sargento comandado pelo major Vidigal de verdade. [...] Noutras palavras: há no livro um primeiro estrato universalizador, onde fermentam arquétipos válidos para a imaginação de um amplo ciclo de cultura, que se compraz nos mesmos casos de tricksters ou nas mesmas situações nascidas do capricho da "sina"; e há um segundo estrato universalizador de cunho mais restrito, onde se encontram representações da vida capazes de estimular a imaginação de um universo menor dentro deste ciclo: o brasileiro. (CANDIDO, 1993, p.70, 77). Esta personagem, Leonardo pataca, ajuda a retratar muito dos costumes fluminenses da época, e constrói o típico popular do anti-herói, “Lá não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia” (CANDIDO, 1993, p. 88), que, como já se comentou, ecoará em outro anti-herói nacional, o herói sem nenhum caráter, Macunaíma, representação do hibridismo de nossa identidade nacional. 40 Ainda dentro da questão do nacionalismo, cumpri mencionar a ausência da figura do negro na formação identitária literária nacional: [...] os escritores românticos descobriram o elemento nativo para promovê-lo a símbolo nacional. [...] o romantismo de Gonçalves Dias e Jose de Alencar se preocupa mais em fabricar um modelo de índio civilizado, despido de suas características reais, do que apreendê-lo em sua concretude. Por outro lado, nada se tem a respeito das populações africanas; o período escravocrata é um longo silêncio sobre as etnias negras que povoam o Brasil. (ORTIZ, 1994, p.18-19). Os negros poucas vezes foram mencionados como elementos de composição da brasilidade, eles não foram, junto aos índios, utilizados como símbolos nacionais para proclamar o patriotismo que se achegava, e, dentre as parcas aparições na literatura nacional encontram-se como vítimas do sistema escravocrata, como é o caso de poemas de Castro Alves, de quem O Navio Negreiro é o mais conhecido, e também de obras de Machado de Assis, como o conto Pai contra Mãe, e ainda em Memórias póstumas de Brás Cubas. Destaca-se, portanto, na obra de Machado de Assis, esta inserção da retratação do negro na literatura, que, ainda em sua primeira fase literária já se realizava. Cabe ainda, apontar que o escritor tinha a sua maneira peculiar neste exercício literário: Não há floreios, nem uso de meias palavras. Machado não transforma o negro em herói ou ser extraordinário nem o pinta com as cores miseráveis da ideologia dominadora. Ele o apresenta como ser humano que é, sujeito em sua condição de oprimido. Sem fazer apologia, mas de forma sutil, o autor, a seu modo desnuda a realidade senhorial e revela uma sociedade em que a condição econômica define o indivíduo, determina sua exclusão ou aceitação. Uma sociedade que, sob uma fachada moderna e liberal, oculta as bases do sistema colonial, o escravismo, o clientelismo, como explica Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas. (TRÍPOLI, 2006, p. 118). Como se pode identificar nas observações acima, o escritor expõe a realidade negra no Brasil sem fixar sua temática na dor ou em heroísmo, antes ele apresenta o sistema, desmascara a sociedade e principalmente, discute o egoísmo humano, a humanidade, a exploração do homem pelo próprio homem. De sua primeira fase para sua fase mais amadurecida, como se costuma apontar, esta temática adentra-se com vigor e tem em Memórias póstumas de Brás Cubas um exemplar bem realizado e arquitetado, tanto em termos estéticos quanto em reflexões filosófico- ideológicas. 41 E é justamente esta obra que é apontada como divisor de águas de seu conjunto literário, além de marcar o início do realismo no Brasil, ao ano de 1881, data de sua publicação. O escritor e crítico, já em 1879, na crítica A nova geração, percebia o desgaste dos temas e da estruturação que o romantismo representava e previa a necessidade do surgimento daquela “nova geração”: Já é alguma coisa. Esse dia, que foi o romantismo, teve as suas horas de arrebatamento, de cansaço e por fim de sonolência, até que sobreveio a tarde e negrejou a noite. A nova geração chasqueia às vezes do romantismo. Não se pode exigir da extrema juventude a exata ponderação das coisas; não há impor a reflexão ao entusiasmo. De outra sorte, essa geração teria advertido que a extinção de um grande movimento literário não importa a condenação formal e absoluta de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e fica no pecúlio do espírito humano. Mais do que ninguém, estava ela obrigada a não ver no romantismo um simples interregno, um brilhante pesadelo, um efeito sem causa, mas alguma coisa mais que, se não deu tudo o que prometia, deixa quanto basta para legitimá-lo. Morre porque é mortal. ‘As teorias passam, mas as verdades necessárias devem subsistir’. Isto que Renan dizia há poucos meses da religião e da ciência, podemos aplicá-lo à poesia e à arte. A poesia não é, não pode ser eterna repetição; está dito e redito que ao período espontâneo e original sucede a fase da convenção e do processo técnico, e é então que a poesia, necessidade virtual do homem, forceja por quebrar o molde e substituí-lo. Tal é o destino da musa romântica. Mas não há só inadvertência naquele desdém dos moços; vejo aí também um pouco de ingratidão. A alguns deles, se é a musa nova que o amamenta, foi aquela grande moribunda que os gerou; e até os há que ainda cheiram ao puro leite romântico. (ASSIS, 1994, p. 810). É preciso ainda assinalar que Machado não via a morte do Romantismo porque julgava este movimento inútil, mas sim, por detectar a existência do processo, que suplantava outras formas de representação literária pela evolução de uma percepção crítica, e porque a “a poesia não é, não pode ser repetição”, assim como toda a arte. Esta noção de processo e continuidade na formação do quadro literário manifestou-se também em outra crítica de Machado, a já citada Instinto de nacionalidade (1873), na qual ele observa que este sentimento nacional, o qual denomina por “instinto de nacionalidade” é uma manifestação continuada das escolas e autores predecessores: Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como 42 aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. (ASSIS, 1994, p.801). Repara-se que com estas observações Machado antecipa a noção de continuidade literária apontada por Antonio Candido como elemento constitucional de sistema literário, reconhecendo, na prática do fazer literatura, a tradição. Machado de Assis, dentre seus romances, obras literárias e críticas, pensou e repensou a literatura nacional, tornando-se importante elemento da fundação da tradição da literatura no Brasil e da discussão da obra “autenticamente” nacional: Trata-se de estudá-lo, não na perspectiva de um episódio de origem, projetando luz sobre toda a sua obra, como se fosse um projeto alternativo, mas como episódio em que Machado procura delimitar um estatuto para a sua assinatura resistindo à lei nacional. É o momento em que a reflexão machadiana sobre a questão da nacionalidade literária desarticula a retórica solidária do projeto nacional legado pelo romantismo, quebrando o laço entre a realidade brasileira entendida como realidade fundadora e a literatura, demarcando-se, em consequência, não apenas do projeto nacional, mas de todo o projeto em literatura: o episódio brasileiro do nome de Machado é o momento em que, para se erguer acima do quadro literário nacional, Machado lança a indeterminação sobre o esforço de construção de uma literatura nacional. (BAPTISTA, 2003, p.42). Com esta transcrição evidencia-se de que forma Machado de Assis inscreveu seu nome na história da literatura nacional discutindo, seja nas críticas ou em seu fazer literário, os rumos da literatura no país, e assinalando o “instinto de nacionalidade” de nossa recém- formada tradição literária, em um exercício de nacionalismo, que, como salienta Coutinho “ressalta da fecundação exercida pelo espírito universal no magma nacional” (1968, p.36-37). 1.2.1 Brasil e Cabo Verde: Entrecruzamentos literários e impulsos nacionais Saltando do Realismo para o Modernismo, ainda nos rastros do continuum literário a cantar e reinventar a nossa identidade nacional sublinha-se a relevância de um evento que iria redefinir a percepção do nacional, a Semana de 22. A Semana de 22, ou Semana de Arte Moderna, ocorreu em São Paulo em 1922, com duração de cinco dias. Ela representou uma renovação de linguagem e do cenário artístico e cultural. O evento marcou o início do modernismo no Brasil e se tornou referência cultural do século XX. Não à toa, este acontecimento e as renovações propostas influenciaram a 43 formação da literatura nacional de Cabo Verde, sobretudo, o momento literário designado por claridoso. Deste movimento destacam-se os escritores Oswald de Andrade e Mário de Andrade, ambos de estimável contribuição para a reflexão do elemento nacional. Sobre Oswald de Andrade: O caso de Oswald de Andrade é, a este propósito, particularmente significativo. Ao declarar os poemas reunidos na colectânea Pau-Brasil, publicada em 1924, como tendo sido escrito ‘por ocasião da descob