UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO LEONARDO DE SOUZA MARQUES A COMUNICAÇÃO COMO ALICERCE DOS PROCESSOS DE GESTÃO DAS DIFERENÇAS NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL: uma análise das produções de sentido de uma consultoria especializada BAURU 2023 LEONARDO DE SOUZA MARQUES A COMUNICAÇÃO COMO ALICERCE DOS PROCESSOS DE GESTÃO DAS DIFERENÇAS NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL: uma análise das produções de sentido de uma consultoria especializada Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Artes, Arquitetura, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob a orientação da Professora Dra. Roseane Andrelo. BAURU 2023 Marques, Leonardo de Souza. A comunicação como alicerce nos processos de gestão das diferenças no contexto organizacional: uma análise das produções de sentido de uma consultoria especializada / Leonardo de Souza Marques, 2023 113 f. : il. Orientadora: Roseane Andrelo Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista (Unesp). Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru, 2023. 1. Comunicação organizacional. 2. Diferença social. 3. Gestão da diversidade. 4. Produção de sentido. 5. Mais Diversidade I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. II. A comunicação como alicerce nos processos de gestão das diferenças no contexto organizacional: uma análise das produções de sentido de uma consultoria especializada AGRADECIMENTOS Não poderia começar esse agradecimento sem nomear as pessoas que fizeram com que eu estivesse aqui, ou seja: toda a comunidade LGBTQIAP+ que me incita a pensar, produzir e investigar formas de conseguirmos o mínimo, porque, como disse Urias, uma grande cantora e compositora trans, “o máximo deles é o nosso mínimo”. Então, esse é um agradecimento a todas, todos e todes que lutaram e lutam constantemente. Agradeço ao meu companheiro, Leonardo Gigioli, com quem decidi dividir a vida, as conquistas, as lutas e as felicidades. À minha mãe, Fabiana, que me apoiou na decisão de me tornar, em primeiro lugar, um comunicador. Ao meu pai, José Carlos, por me ajudar nos momentos mais cruciais e à minha irmã, Laís, por ser um modelo de pessoa atenciosa e empática. Aos pais do meu namorado: Mara e Reinaldo, por acompanhar nossa trajetória com tanto carinho. Gratidão aos meus amigos que me escolheram e acolheram em diversos momentos, me mostrando a verdadeira essência da felicidade: Larissa Roberta, Flávia Laragnoit, Camila Queiroz, Yuri Samoramo, Gabriel Gomes, Camilla Florençano, Maiara Marinho, Ranzani, Selena, Gabriel “Laifi”e tantos outros que encontrei nessa jornada. Um agradecimento especial para a professora que me mostrou a “arte de fazer ciência”, Maria Eugênia Porém, a Magê, que me acompanhou no início desta caminhada, em um projeto de Iniciação Científica. Além disso, gostaria de agradecer às outras professoras que me ensinaram como ser um bom comunicador, relações públicas e profissional: Tamara Guaraldo e Célia Retz. Um imenso obrigado para a Raquel Cabral, com quem tive o privilégio de aprender em mais de sete disciplinas, seis na graduação e uma na pós-graduação e que, para a minha alegria, aceitou compor a minha banca de qualificação e exame. Levarei seus ensinamentos e conselhos por onde for. Estendo esse agradecimento para a professora Larissa Pelúcio, que além de contribuir enormemente com esse trabalho, durante a banca de qualificação, me mostrou uma nova forma de pensar ciência, arte e movimentação social e à professora Maria Aparecida Ferrari que auxiliou na finalização desta dissertação, enriquecendo as críticas durante o processo de defesa. Finalizo os meus agradecimentos com o coração “quente” por ser acompanhado/ orientado/ ensinado pela professora Roseane Andrelo, minha admiração por você começou na disciplina de Técnicas de Relações Públicas e nesse processo de mestrado ela só cresceu, você me ensinou a ser um pesquisador melhor, mais criterioso, mais atento e, acima de tudo, um ser humano melhor. Gratidão por aceitar esse desafio que percorremos juntos, foi uma trilha diferente para ambos e não poderia escolher alguém melhor. Poema gay O falo é um fardo o corpo, a farda da farsa, e eu sou o grito, o berro, o urro, o erro minhalma é uma menina e meu corpo uma mentira não sou homem nem mulher um ser que sobra e falta e desencontra num mundo diferente de todos os mundos, o que me conduz é a impossibilidade o que me reduz é a incompreensão olham-me como se eu fosse um bicho de outra espécie e riem e criticam e excluem e odeiam como se eu fosse um pecado, um errado, doente ou sacana. (Glória Horta) RESUMO A diversidade tornou-se um termo em voga nas últimas décadas, presente nas investigações acadêmicas, em projetos políticos, campanhas publicitárias, cartilhas educacionais e diversos outros debates dos campos sociais. Associado ao conflito entre indivíduos em relações desiguais de poder, seu significado também é disputado por ideologias divergentes. A crítica principal à perspectiva da diversidade refere-se ao fato da mesma ser um produto do pensamento universalista, que normaliza corpos e mantém as estruturas de poder, desmantelando as demandas históricas dos movimentos sociais. Em um cenário de produções controversas e intensas disputas de sentido, um dos principais articuladores do termo “diversidade” são as organizações e suas práticas, nesse sentido, desponta uma área de pesquisa e prática particular: a “gestão da diversidade”. Esta pesquisa tem como aspecto central a investigação da ideologia que estrutura os planos de “gestão da diversidade”, reconhecendo as organizações como elementos estruturais da sociedade moderna, que influenciam, para além das relações mercantis, em questões sócio históricas. Nesse sentido, pretendemos responder a uma pergunta: os discursos sobre “gestão da diversidade” pretendem uma nova forma de pensar as relações sociais no ambiente organizacional? Para tanto optamos por analisar a dimensão da organização comunicada de uma das consultorias mais influentes no tema em questão, a Mais Diversidade. Compreendemos que a “gestão da diversidade”, elaborada como uma forma de alcançar a justiça social, deve perpassar as imbricações entre a Comunicação, a partir de sua perspectiva relacional, e os conceitos sobre diferenças sociais, ou seja, a visão de que as demandas sociais são resultados de conflitos e que necessitam de uma renegociação política e estrutural. Para a análise proposta optamos por investigar o blog institucional da organização, uma ferramenta de produção de conteúdo. Os resultados indicam o predomínio da perspectiva da diversidade, a utilização da ideologia gerencial como estratégia de aquisição de clientes, a posição ferramental ocupada pela Comunicação e diversas rupturas discursivas com potencial de transformação social. Palavras-chave: Comunicação organizacional. Diferença social. Gestão da diversidade. Produção de sentido. Mais Diversidade. ABSTRACT Diversity has become a prominent term in recent decades, present in academic research, political projects, advertising campaigns, educational materials, and various other discussions within social realms. Linked to conflicts among individuals in unequal power relations, its meaning is also contested by divergent ideologies. The main critique of the diversity perspective pertains to the fact that it originates from universalist thinking, which normalizes bodies and upholds power structures, undermining the historical demands of social movements. In a landscape of controversial productions and intense battles about the power of meaning, one of the primary proponents of the term "diversity" is organizations and their practices. In this regard, a specific area of research and practice emerges: "diversity management." This research revolves around investigating the ideology that shapes diversity management plans, recognizing organizations as structural elements of modern society that influence socio-historical matters. In this context, we aim to address a question: Do the discourses on "diversity management" intend to bring a new way of thinking about social relations in the organizational environment? To this end, we have chosen to analyze the dimension: “organização comunicada”, by one of the most influential consultancies on this topic, namely, Mais Diversidade. We understand that "diversity management," conceived as a means to achieve social justice, must encompass the interplay between Communication, from its relational perspective, and concepts surrounding social differences. This includes the notion that social demands stem from conflicts and necessitate political and structural renegotiation. For the proposed analysis, we have opted to investigate the organization's institutional blog—a tool for content production. The results indicate the prevalence of the diversity perspective, the utilization of managerial ideology as a client acquisition strategy, the instrumental role assumed by Communication, and various discursive ruptures with the potential for societal transformation. Key-words: Diversity management. Social difference. Organizational Communication. Production of meaning. Mais diversidade. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Esquema de análise das organizações e suas produções de sentido.………………55 Figura 2 - Definição da Mais Diversidade em sua página oficial…………….………………55 Figura 3 - Primeira imagem do site e seções que o subdividem……………………………...59 Figura 4 - Estrutura discursiva da página “sobre nós”.............................................................60 Figura 5 - Segunda parte da estrutura discursiva da página “sobre nós”..................................60 Figura 6 - Estrutura discursiva da página “o que fazemos”......................................................62 Figura 7 - Estrutura da seção interna: treinamentos em diversidade e inclusão……………...63 Figura 8 - Estrutura da seção interna: conteúdos “artigos”......................................................67 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Critérios para a seleção do corpus de pesquisa…………………………………....53 Quadro 2: Critérios de especificação do corpus de pesquisa…………………………………53 Quadro 3: Vocabulário da página principal…………………………………………………...58 Quadro 4: Critério de seleção dos textos……………………………………………………..69 Quadro 5: Artigos sobre gestão da diversidade publicados pela Mais Diversidade………….70 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Temas centrais dos artigos publicados pela Mais Diversidade……………………72 Sumário 1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………....15 2 AÇÕES CONCRETAS E REFLETIDAS………………………………………………..22 2.1 Aproximação com a temática e o objeto de estudo………………………………….23 2.2 Coleta e interpretação dos dados……………………………………………………..23 3 DIVERSIDADE PRA LÁ, DIVERSIDADE PRA CÁ…………………………………..27 3.1 Perspectiva da diversidade ou perspectiva da diferença?..........................................28 3.2 Essas mazelas me definem? A disputa para definir identidade e a diferença……..32 3.3 As diferenças identitárias no ambiente de trabalho………………………………....36 4 ALARGANDO AS INDAGAÇÕES PARA A GESTÃO DA DIVERSIDADE………..41 4.1 Encontrando o outro por meio da comunicação: um processo relacional…………42 4.2 A Comunicação investigando o contexto organizacional…………………………...45 4.3 Comunicação organizacional e suas interfaces para debater a diversidade no ambiente de trabalho………………………………………………………………………..51 4.3.1 Comunicação intercultural e a gestão da diversidade……………………....52 4.3.2 Comunicação organizacional e a gestão da diversidade………...…………..56 5 O QUE É GESTÃO DA DIVERSIDADE PARA AS CONSULTORIAS?.....................60 5.1 A seleção das consultorias analisadas e os caminhos de pesquisa………………….61 5.2 Mais Diversidade………………………………………………………………………65 5.2.2 O primeiro contato: LinkedIn………………………………….…………….…65 5.2.3 Imagens de si no site institucional: Mais Diversidade……………...…………..65 5.2.3.1 Página: início……………………………………………………………….66 5.2.3.2 Página: sobrenós…………………………………………………………...68 5.2.3.3 Página: o que fazemos……………………………………………………...70 5.2.3.4 Outras páginas……………………………………………………………...74 5.2.4 As produções de sentido da Mais Diversidade………………………………….76 5.2.4.1 O sentido da diversidade para a Mais Diversidade………………………..80 5.2.4.2 Porque aderir à um projeto de gestão da diversidade: o que fala a Mais Diversidade…………………………………………………………………………………...84 5.2.4.3 A comunicação em projetos políticos de diversidade segundo a Mais Diversidade…………………………………………………………………………………...90 5.3 Reflexões…………………………………………………………………………………92 6 Sobre conclusões?……………………………………………………………………….96 REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………101 15 1. INTRODUÇÃO “[...] E eu jamais vou pedir para qualquer um de vocês, por respeito, eu vou exigir! [...] Não é para dizer para alguém “eu aceito você”, ou “eu tolero você”, você não tem o poder de me aceitar ou de me tolerar, eu tiro isso de você. Você vai me respeitar!” (JACKSON, 2019, tradução nossa). “[...] Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?" (TRUTH, 1851 apud PINHO, 2014, n.p). “Eu não sou só uma pessoa trans, uma pessoa preta, eu tenho sonhos, eu tenho desejos, eu quero fazer coisas, eu quero produzir coisas, eu posso falar sobre muitos assuntos, eu posso falar sobre coisas que nem existem [...]” (LINIKER, 2022). Iniciamos a apresentação deste trabalho com três discursos populares. O primeiro foi proferido por Dominique Jackson, atriz, ativista, mulher transexual e preta, ao receber Prêmio Nacional de Igualdade no 23º Jantar Nacional Anual do Human Rights Campaign (HRC). Sua fala está relacionada com a luta do movimento LGBTQIAP+ e demonstra a principal discussão que será abordada nesta dissertação: a escolha pelo termo “luta”. Ressaltamos que essa escolha não é arbitrária, ela possui sentido em si mesma e se relaciona com uma relação conflituosa e política entre grupos com diferentes acessos aos bens sociais1. O segundo discurso foi proferido pela abolicionista Sojourner Truth em uma conferência pelo Direito das Mulheres em Akron, nos Estados Unidos, em 1851. Em sua fala a ativista expõe outra questão que será debatida neste texto: a complexa matriz de opressão decorrente das encruzilhadas identitárias (AKOTIRENE, 2019, n.p), ou seja, a diferença entre as vivências, utilizando o discurso em questão, de mulheres brancas e mulheres pretas2. O último discurso foi retirado de uma entrevista da cantora brasileira, Liniker, e indica um debate que se segue na leitura desta dissertação: qual é o lugar de fala dos corpos subalternizados? E por lugar de fala, acompanhamos as noções de Djamila Ribeiro (2017), que debate: quais são os sujeitos autorizados a falarem? Apenas os subalternos podem falar de seu local social? O que pode o subalterno falar? As discussões apresentadas são fundamentais para apresentar o contexto em que se insere esta pesquisa: a gestão da diversidade nas organizações. 2 Para conhecer o discurso completo, sugerimos assistir a encenação de Kerry Washington das falas de Sojourner Truth, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ry_i8w2rdQY&t=58s 1 Por bens sociais estamos nos referindo aos múltiplos acessos aos campos sociais: educação, cultura, entretenimento, trabalho, religiosidade e etc. 16 Antes de apresentarmos a conjuntura que envolve nosso objeto de estudo cabem algumas considerações: o texto apresentado aqui é redigido em primeira pessoa do plural, pois acreditamos que a prática científica é um ato de transformação e que pretende apontar caminhos para a solução de problemas sociais, para além disso, como pesquisadores, acreditamos que o processo de pesquisa influencia e é influenciado pela nossa posição enquanto sujeitos envolvidos em uma complexa rede de relacionamentos. A pesquisa em questão se inicia a partir do reconhecimento de que as relações entre os diferentes indivíduos têm se tornado, cada vez mais, objeto de investigação do conhecimento científico e têm pautado a agenda de debate da opinião pública, envolvido em um contexto complexo. As relações desiguais referem-se ao encontro, quase sempre conflitivo, entre identidades distintas. Portanto, entrecruzam-se vozes dissonantes, umas clamam por justiça e pelo reconhecimento de suas demandas, outras buscam manter as estruturas hierárquicas e seus lugares benéficos e nesse ambiente bipolarizado existem diversas instâncias não reconhecidas e, ousamos dizer, silenciadas. Atualmente, o principal articulador de sentido, no que se refere à desigualdade, é o termo diversidade. Está presente nos discursos do poder público, nas campanhas eleitorais, nas propagandas publicitárias, em órgãos institucionais, nas práticas organizacionais, na agenda de pesquisa da comunidade científica, ou seja, a palavra “diversidade” consagra-se como um dos termos do léxico global, atravessando todos os campos sociais e construindo uma hegemonia sobre a produção da identidade e das marginalidades. Porém, a perspectiva da diversidade têm sido alvo de intensos debates (que serão apresentados no terceiro capítulo), mas vale ressaltar que a principal articulação refere-se ao fato de que esta opera a partir dos ideais universalistas (MISKOLCI, 2015). Para esta pesquisa de mestrado, adotamos a perspectiva da diferença como articulação que reconhece as lutas políticas e questiona os discursos hegemônicos, nesse sentido, quando nomeamos o termo “gestão da diversidade”, o mesmo será acionado acompanhado de aspas, demonstrando que utilizamos esse termo de forma crítica e não nos filiamos à essa perspectiva. Ao contrário, como será verificado no decorrer desse texto, acreditamos que as noções de diferença social devem suplantar o domínio léxico, semântico e ideológico da diversidade. Nosso intuito é apresentar as duas perspectivas, esmiuçando suas particularidades, articulações de sentidos, limitações e conflitos. 17 No que tange o percurso textual, acreditamos que a própria academia se consagra como ambiente normalizador, que privilegia os corpos brancos, heterossexuais, masculinos e europeus. Nesse sentido, além da analítica presente nesse texto, utilizamos terminologías vinculadas ao movimento LGBTIAP+ que instigam o leitor, além disso, optamos por uma linguagem que valorize a produção feminina, portanto, optamos por incluir o primeiro nome dos autores, sempre quando citados pela primeira vez, para rompermos com uma tradição de apagamento dos saberes femininos e interseccionais. Usamos o termo “sujeitos” e “identidades” como sinônimos, para falar sobre indivíduos - e principalmente corpos - marginalizados. Reconhecemos a produção de assujeitamento, desenvolvida por Judith Butler, porém, não filiamos nossas escolhas a partir desse conceito, por não desenvolvê-lo em nossa dissertação. A proposta deste estudo concerne uma investigação das diferenças sociais no ambiente organizacional. Propomos uma análise das relações de produção das diferenças neste contexto, pois as organizações, para além de influenciarem o sistema produtivo, produzem discursos com “efeitos sociais, culturais, políticos e econômicos nos níveis local, nacional e global” (EDWARDS, 2018, p. 30). No cenário contemporâneo brasileiro, segundo pesquisa realizada pela agência Edelman3, realizada e publicada em 2022, 64% das pessoas acreditam nos sentidos expressos por uma empresa privada e 63% dos consumidores compram ou defendem marcas que dialogam com seus valores, além disso, 65% dos funcionários acreditam no que dizem as altas lideranças de suas empresas . Ao relacionarmos essas duas dimensões (organizações e as diferenças sociais) acionamos uma prática denominada de “gestão da diversidade”. Originada no contexto das revoluções sociais da década de 1980, a partir do trabalho científico da área da Administração, esse projeto político visava, em sua origem, controlar o conflito decorrente da contratação obrigatória de pessoas pertencentes aos grupos subalternizados (mulheres, pretos, pessoas com deficiência…), quando diversas estratégias foram definidas para, como explicam Mário Alves e Luis Galeão-Silva (2004), neutralizar as diferenças entre os indivíduos, gerenciar possíveis crises e manter as estruturas hierárquicas. 3 A pesquisa referenciada se chama “Trust Barometer”, caso queira conhecer outros resultados e acompanhar a metodologia utilizada, a pesquisa está disponível no link: https://www.edelman.com.br/edelman-trust-barometer-2022 18 Com o passar dos anos, diversas críticas, como a dos autores expostos, foram feitas ao discurso hegemônico do modelo tecnocrático e o principal argumento era o fato de que a gestão da diversidade era uma ferramenta que servia aos interesses do capital e do poder dominante, provocando pouca - ou nenhuma - alteração na realidade das identidades marginalizadas. Pudemos perceber o avanço no debate acadêmico sobre o tema da diversidade no contexto organizacional a partir de uma pesquisa de iniciação científica realizada pelo autor desta dissertação4. A investigação em questão se caracterizava como uma pesquisa documental na qual constatamos as principais articulações sobre “gestão da diversidade”, identificando as referências basilares e as epistemologias que acompanham os estudos da áreas de Administração e da Comunicação, caracterizando seus principais encontros, desencontros e negociações. Essa pesquisa foi apresentada como trabalho de conclusão de graduação no ano de 2020 e motivou o desenvolvimento desta dissertação em questão. Dizemos que essa pesquisa originou este trabalho pois, ao investigarmos as principais perspectivas que orientaram o desenvolvimento dos estudos analisados, especialmente os artigos pertencentes à área da Comunicação, notamos que criticavam a ideologia tecnocrática, a mesma que valoriza a diversidade como uma vantagem competitiva e apresentava novas articulações de sentido e novas propostas para os projetos políticos, porém, apesar de pertencerem ao campo da comunicação, poucos artigos elaboram uma perspectiva para a atuação da comunicação no contexto da “gestão da diversidade”, o que fragiliza possíveis imbricações e indica uma incoerência: em um contexto de múltiplas pesquisas que versam sobre a Comunicação Organizacional, como a questão das diferenças sociais ainda é colocada em segundo plano? Nesse sentido, reconhecemos a urgência em investigarmos esse tema a partir das lentes da Comunicação Organizacional a partir da perspectiva relacional da comunicação. Sob o aporte teórico de José Luiz Braga e Vera França é possível reconhecer as organizações como espaços atravessados por diversos corpos, vozes e culturas que se relacionam, produzem e compartilham sentidos em um determinado contexto, nesse caso, nas organizações. Outros autores, como Rudimar Baldissera e Marlene Marchiori, são fundamentais para 4 A pesquisa comentada foi desenvolvida em 2021 e está disponível no repositório da UNESP e pode ser acessada através do link: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/215308/marques_ls_tcc_bauru.pdf?sequence=1 19 compreendermos como as organizações se caracterizam como espaços conflituosos e marcados por interesses dissonantes. Reconhecer a organização como um ambiente no qual se relacionam, conflituosamente, atores sociais distintos representa uma ruptura na ideologia administrativa (que investe na previsibilidade do confronto), mas esse processo permite uma nova forma de sociabilidade, pois, segundo Braga (2012, p. 29), é através do encontro comunicacional entre o Eu e Outro, que nos transformamos. Porém, esse processo é ao mesmo tempo intenso e sutil, o primeiro porque é por meio dele que mudamos nossa percepção do outro e o segundo pois não acontece de imediato, “vamos nos impregnando de pequenas transformações imperceptíveis”. Considerando as transformações epistêmicas propostas pelos campos científicos, em especial, na área da comunicação, ao investigar a “gestão da diversidade”, nos indagamos: os objetivos propostos por essas investigações espelharam novas práticas organizacionais? Ou seja, novos discursos sobre as práticas, os valores e os modelos de gestão entrarão em circulação? A partir do que foi exposto, surge a questão orientadora desta dissertação: verificar se os principais sentidos sobre “gestão da diversidade” se amparam na ideologia tecnocrática, ou seja, valorizam a diversidade enquanto uma ferramenta de diferenciação mercadológica ou se, em algum nível, existem novas significações. Portanto, é valioso compreendermos qual o contexto em que é acionado o termo “diversidade”, pois, uma discussão que preze pela transformação dos grupos marginalizados requer o reconhecimento do conflito e das desigualdades de poder. Para responder esta pergunta, realizamos uma pesquisa teórico-empírica que tem como metodologia a investigação dos sentidos acionados por uma consultoria especializada em “gestão da diversidade”, a partir da dimensão da organização comunicada (BALDISSERA, 2009). Analisar as textualidades de uma organização têm por objetivo esmiuçar a complexa rede ideológica que condiciona o desenvolvimento de projetos de gestão. Nesse sentido buscamos compreender: a) qual a perspectiva que orienta a produção de sentido sobre as diferenças? b) qual a ideologia por trás da valorização da “gestão da diversidade”? c) qual a posição ocupada pela comunicação nesse projeto político? 20 Portanto, o pressuposto central desta pesquisa é que as organizações possuem articulações capazes de empreender processos de mudança e que podem contribuir para a construção de novas realidades, em especial, para os grupos subalternizados. O objetivo geral é discutir as articulações entre a produção da diferença no contexto organizacional e a comunicação. Para viabilizar essa investigação optamos por escolher uma consultoria, pois trata-se de uma organização que não possui um fim em si mesma, realizando a mediação de um conteúdo entre ela, a sociedade e outra organização. Dois percursos orientam o desenvolvimento deste estudo: a Teoria Fundamentada nos Dados (TF) e a Análise de Conteúdo (AC). A primeira caracteriza-se como um modelo epistemológico de fazer científico, ao prever uma alteração na forma tradicional de realização de uma pesquisa, ou seja, ao invés de realizar o levantamento bibliográfico e depois a coleta e análise dos dados, optamos por inverter essa ordem e realizar os passos de forma cíclica. A AC foi o modelo metodológico escolhido para analisar as textualidades identificadas a partir do objeto. Como esse modelo difere-se da prática tradicional, optamos por alterar a estrutura desta pesquisa - no próximo capítulo, apresentaremos todas as ações concretas e refletidas durante esta pesquisa, explicando o uso da TF e AC para as discussões que se seguem. A técnica utilizada para selecionar o objeto foi: pesquisa por palavras-chave no LinkedIn, sendo ela; “consultoria em gestão da diversidade”, para encontrar as consultorias e filtrá-las. No que diz respeito a análise das textualidades, optamos por selecioná-los através da busca por termos como “diversidade no trabalho”, o percurso metodológico envolveu a leitura exploratória do material, em três etapas: 1 - leitura flutuante, 2 - identificação semântica e lexical, 3 - interpretação dos dados. Neste capítulo utilizamos o termo “hipótese”, reconhecemos que essa palavra possui uma semântica particular na atividade científica, porém, essa palavra foi escolhida - ou traduzida - pela autora que sustenta a Análise de Conteúdo desta dissertação, portanto, mantivemos esse termo e ressaltamos que essa escolha representa uma etapa do percurso metodológico. Esse estudo, como pressupõe a Teoria Fundamentada, não foi construído a partir de hipóteses científicas, elas surgiram no momento da AC. No capítulo 3, iniciamos o debate sobre o contexto em que se insere nosso objeto de estudo. Para essa discussão, realizamos uma leitura de todas as publicações veiculadas em 21 duas revistas dirigidas, fundamentalmente, ao público de gestores e líderes organizacionais, a Revista Exame e a Istoé Dinheiro. No capítulo 4, além de discutirmos sobre a perspectiva comunicacional que orienta o desenvolvimento desta pesquisa, debatemos as relações entre comunicação e organização e as transformações epistêmicas decorrentes das investigações da gestão da diversidade, quando anunciadas pela área da comunicação. No capítulo 5, apresentamos a análise do material empírico, identificando qual perspectiva domina a produção de sentido sobre as diferenças, qual o papel das diferenças e da comunicação nas organizações e as possíveis rupturas discursivas. Finalizamos essa pesquisa com um capítulo conclusivo, que abre algumas indagações sobre o objeto investigado e a atuação da “gestão da diversidade” nas organizações. 22 2. AÇÕES CONCRETAS E REFLETIDAS O desenvolvimento deste estudo se orienta a partir da Teoria Fundamentada/Fundada (TF) a partir das contribuições de Suely Fragoso, Raquel Recuero e Adriana Amaral (2011) e a escolha por essa metodologia se explica pelo volume de dados empíricos e a liberdade que a teoria permite para a investigação e o tratamento destes dados. Como as autoras explicam, a TF prevê a alteração do método tradicional de investigação científica e orienta pesquisadores a ficarem livres de pré-concepções/hipóteses e elaborarem respostas/hipóteses/teorias a partir da imersão/vivência/investigação dos dados empíricos. Fragoso, Recuero e Amaral (2011, p.83) resumem: “A ideia central da TF é, justamente, aquela em que a teoria deve emergir dos dados, a partir de sua sistemática observação, comparação, classificação e análise de similaridades e dissimilaridades”. A TF foi inicialmente elaborada por Barney Glaser e Anselm Strauss, em 1967, e, como nos explica Fragoso, Recuero e Amaral (2011), tinha como objetivo central a aplicação em múltiplas áreas e propunha a dissolução das categorias teoria e dado, teórico e empírico. Para atingir esse objetivo, Glaser e Strauss propuseram a inversão do método tradicional. enquanto na pesquisa científica normalmente tem-se um problema que é confrontado com um referencial teórico e, a partir desse confrontamento, elaboram-se hipóteses que serão testadas em campo, na TF teorização e observação empírica andam juntas. Espera-se que o pesquisador vá a campo liberto de suas pré-noções e que deixe que os dados empíricos lhe forneçam as ideias (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011, p.84). Nesse sentido, as autoras citadas apresentam alguns entusiastas da TF, entre eles, Haig (1995) que afirma que a TF é “a mais completa metodologia de pesquisa qualitativa disponível”. Ao longo da história, a TF se dividiu em duas vertentes básicas, a partir de interpretações distintas de seus dois pensadores originais: a vertente straussiana e a glaseriana. Fragoso, Recuero e Amaral (201, p.86) citam Goulding (1999) para explicar as diferenças entre as duas vertentes, para quem “a vertente glaseriana é mais próxima daquela discutida pelas premissas do livro The Discovery of Grounded Theory, já a straussiana transformou a TF em um complexo, duro e extenso processo de codificação, cuja teoria resultante iria além do fenômeno em questão”. Apesar de discordarem em alguns pontos, a TF se estruturou a partir de premissas básicas e pode ser apresentada como “a emergência das variáveis através do processo de coleta e codificação dos dados. Essas variáveis são denominadas categorias, conceitos e 23 propriedades e vão emergir do processo contínuo e sistemático de coleta e análise” (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011, p.89) Apresentada a principal corrente teórica-metodológica, seguimos para a estrutura da TF. A primeira parte da teoria é a aproximação com o campo. 2.1 Aproximação com a temática e o objeto de estudo As autoras supracitadas iniciam a explicação da primeira etapa da TF discutindo sobre as interpretações clássicas sobre a teoria que, ao contrário do que muitos pretendem, a TF não obriga o pesquisador a ir a campo como uma “tabula rasa”, ou seja, sem qualquer tipo de conhecimento a respeito do fenômeno (HAIG, 1995 apud FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011, p.89). Nesse sentido, é impossível que as experiências anteriores e as vivências do pesquisador não influenciem seu contato inicial com o objeto de estudo. Outro autor que defende o contato inicial, citado pelas autoras que sustentam esse capítulo, é Allen (2003), em sua visão, o contato com a teoria é fundamental para a “sensibilidade teórica” no momento de comparação sistemática dos dados. É impossível que um pesquisador que não seja iniciante consiga entrar em campo sem pré-noções. Se, ao contrário, reconhecer essa experiência e esse lugar de fala como existentes, essa carga de percepções pode influenciar de forma positiva, como forma de gerar uma percepção particular (FRAGOSO;RECUERO;AMARAL, 2011, p.90). A aproximação com a temática apresentada foi explicitada no capítulo anterior, ao explicarmos que a dissertação é decorrente de uma pesquisa de iniciação científica. 2.2 Coleta e interpretação dos dados Na TF, como explicam Fragoso, Recuero e Amaral (2011, p. 92), a fase de coleta e interpretação dos dados acontece de forma concomitante, até o momento de exaustão, ou seja, quando não é possível construir novas categorizações. As autoras explicam que os dados obtidos, com aporte na Teoria Fundamentada, podem ser tanto qualitativos quanto quantitativos, além disso, são aceitas múltiplas fontes e formatos, porém, ressaltam que, de um modo geral, a TF baseia-se em produções textuais. No que tange aos processos de coleta e de interpretação dos dados, a TF não determina um processo específico de atuação, por isso, para a realização deste estudo, optamos por complementar essa orientação epistêmica com o processo metodológico conhecido como Análise de Conteúdo (AC), com base no referencial metodológico proposto por Laurence 24 Bardin (2016) com o apoio de outros interlocutores que discorrem sobre o modelo em questão. Optamos por escolher a AC como ferramenta analítica, pois entendemos a mesma como um processo sistematizado e uma “leitura profunda, determinada pelas condições oferecidas pelo sistema linguístico e que objetiva a descoberta das relações existentes entre o conteúdo do discurso e os aspectos exteriores” (SANTOS, 2012, p. 387). Nesse momento, explicaremos o percurso metodológico da AC e, posteriormente, retomamos as noções elementares da TF. Segundo Ricardo Cavalcante, Pedro Calixto e Marta Pinheiro (2018), a AC é um aglomerado de técnicas de pesquisa que estabelecem uma relação entre as mensagens e os contextos de sua enunciação, para estabelecer inferências sobre os sentidos e as relações construídas a partir das produções comunicacionais. A proposta de Bardin (2016) elabora a Análise de Conteúdo como um conjunto de instrumentos metodológicos composto por três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação. A pré-análise é um momento de organização, no qual realiza-se a escolha dos documentos a serem submetidos na análise, formulam-se hipóteses e objetivos e estabelecem-se indicadores para a interpretação final (BARDIN, 2016). O percurso de investigação do material analisado na pré-análise se sucede: leitura flutuante, escolha dos documentos e formulação das hipóteses e objetivos. O percurso metodológico será exposto em detalhes no capítulo 5, denominado “Os sentidos sobre gestão da diversidade para a Mais Diversidade”, no qual apresentaremos as diversas escolhas que realizamos, durante o desenvolvimento da pesquisa, para definir o objeto de estudo, as textualidades e as categorias de análise. Na última etapa, realiza-se o tratamento dos resultados obtidos e interpretação, ou seja, constrói-se “categorias, diagramas, figuras, modelos que condensam e apresentam as informações obtidas pela análise” (BARDIN, 2016, p. 131). Acrescentamos que o material foi analisado em diversas instâncias e revisitado continuamente durante todo o desenvolvimento da pesquisa, juntamente ao aprofundamento teórico. É neste sentido que despontam diversas teorias e ferramentas que tecem diálogo com o desenvolvimento desta pesquisa e, no decorrer do percurso, vimos a necessidade de analisarmos nosso objeto por lentes, que até então, não foram elaboradas no desenvolvimento 25 do projeto, como a teoria queer5 e a interseccionalidade, que serão apresentadas nos próximos capítulos. Além disso, como aporte para a análise apresentada neste trabalho, realizamos uma investigação documental para compreender quais são os sentidos endossados pela mídia especializada em comunicação organizacional e gestão dos negócios quando anunciam a gestão da diversidade. Identificamos a principal ideologia contida na produção de sentido das revistas Istoé Dinheiro e Exame. Compreendemos a mídia como um interlocutor que influencia na forma como outros interlocutores (pessoas e organizações) entendem e atuam na realidade social, ou seja, ao discursarem sobre práticas de gestão, políticas de igualdade e diversidade e grupos envolvidos em relações de poder, a mídia é capaz de legitimar uma determinada ideologia ou conturbá-lá. Nesse sentido, a investigação proposta, serviu como fundamentação para situarmos nosso objeto de estudo em uma complexa rede de produções discursivas conflituosas. Inicialmente, a análise das revistas sobre “gestão da diversidade” era parte do escopo desta pesquisa e tinha como proposta ser a estrutura contextual da investigação, porém, com o desenvolvimento da dissertação, identificamos a insuficiência da mídia como reveladora de um contexto macro, dessa forma, optamos inseri-la como apoio documental e investigativo. A identificação dos discursos hegemônicos da mídia especializada foi publicada na Revista de Comunicação da FAPCOM - PAULUS, em outubro de 20236. Portanto, utilizamos a epistemologia da Teoria Fundamentada em comunhão com a Análise de Conteúdo para investigar as textualidades produzidas pela Mais Diversidade, uma consultoria especializada em “gestão da diversidade”, nesse sentido, propusemos uma interpretação dos sentidos endossados sobre o tema em questão, a partir da instância da organização comunicada (BALDISSERA, 2009) e fundamentada em quatro eixos: 1 - qual é o sentido atribuído ao termo “diversidade”? 2 - Porque aderir a um projeto de “gestão da diversidade”? 3- Quais são as posições ocupadas pelos atores envolvidos na relação entre identidade e diferença no contexto organizacional? 4 - Qual a posição ocupada pela comunicação nesse projeto? 6O artigo em questão se chama: A ideologia da gestão da diversidade, publicado por Roseane Andrelo e Leonardo Marques, em 2023 e pode ser acessado aqui: https://fapcom.edu.br/revista/index.php/revista-paulus/article/view/658 5 Estudos queer é o nome dado à uma corrente de investigação social que emergiu nos Estados Unidos, na década de 1980, em oposição aos estudos sobre minorias e gêneros, como nos conta Richard Miskolci, 2009. 26 Por fim, finalizamos essa dissertação com uma conclusão, que têm por objetivo abrir novos caminhos para a atuação da “gestão da diversidade”, ou como apresentaremos no próximo capítulo: projeto político pautado na diferença social, enquanto área do conhecimento acadêmico e prática organizacional que pretenda uma sociedade mais justa e igualitária para todos e todas. 27 3. DIVERSIDADE PRA LÁ, DIVERSIDADE PRA CÁ Iniciamos o desenvolvimento teórico desta dissertação partindo das noções sobre o conceito de diversidade. Em nosso cotidiano é muito comum nos depararmos com este termo em algum momento do dia: em uma matéria jornalística, em um anúncio publicitário, em uma campanha promovida por uma organização, enfim, em diversas instâncias da sociedade. Como exposto por Michel Nicolau Netto (2017), o tema da diversidade se impõe em nosso cotidiano e marca a nossa construção e percepção do mundo. O autor explica que o discurso da diversidade transpôs suas aplicações tradicionais nos debates acadêmicos da antropologia e em debates de instituições políticas, como a Unesco, para se tornar um léxico global, acionado por diversos atores sociais. A multiplicidade de acionamentos ao termo da diversidade reverbera em uma disputa de sentidos, como explicado por Armand Mattelart (2005), na qual se envolvem múltiplos atores, com valores estéticos, éticos e políticos antagônicos, uma relação conflituosa que condiciona a construção dos conceitos relacionados ao termo da diversidade. Eles mostram como o “mercado das palavras” tende a se alinhar com as “palavras do mercado” (MATTELART, 2005, p.11). Portanto, encontramos no termo da diversidade um agenciamento das políticas econômicas e administrativas, visão compartilhada por Nicolau Netto (2017, p. 57): “a valorização da diferença no mercado simbólico faz com que ela seja mobilizada por interesses, que não se resumem ao econômico, mas adotam a lógica econômica da produtividade da diferença”. Com os levantamentos, fica uma questão: por que existe uma disputa tão intensa, por setores antagônicos, na construção de sentido do termo da diversidade? O termo diversidade acompanha noções que estruturam as relações humanas na contemporaneidade, como o conceito de cultura. “O tema, por muito tempo escamoteado da cultura e das culturas constitui um desafio maior do confronto entre modos de perceber, conceber e constituir o vínculo universal” (MATTELART, 2005, p. 14). Para além do exposto, e mais valioso aos objetivos da pesquisa que se segue, concordamos com Nicolau Netto (2017), ao enunciar que o conceito de diversidade é o principal construtor das dinâmicas relacionais entre identidade e grupos sociais. A diversidade, como terminologia, possui um significado próprio, muitas vezes oculto ou normalizado, mas que aciona um projeto político particular, que influencia nas dinâmicas identitárias e nas relações de subordinação, porém, enquanto perspectiva de compreensão das 28 realidades de grupos historicamente subalternizados, ela não é única. Confrontam-se alguns enquadramentos, Nicolau Netto (2017) apresenta o multiculturalismo e a exceção cultural, além destes incluímos neste trabalho a perspectiva da diferença, à qual nos filiamos. Nas próximas seções, buscaremos compreender as particularidades das duas principais perspectivas anunciadas: a diversidade e a diferença, verificando qual a ideologia acionada por cada perspectiva, a fim de compreender como as relações identitárias são (re)produzidas, negociadas e disputadas na sociedade. Compreender os limites, a proposta política e o objetivo central de duas perspectivas conflituosas nos permite esmiuçar o contexto organizacional e alicerçar a construção de planos e projetos de transformação social. Portanto, nas seções que se seguem, pretendemos explicitar a perspectiva adotada por este trabalho e suas contribuições para a comunicação organizacional e a gestão de grupos sociais envolvidos em relações de poder desiguais. 3.1 Perspectiva da diversidade ou perspectiva da diferença? Falar em diversidade é falar do outro, daquele que lhe é externo, do diferente. E, no léxico global atual, esse diferente é diverso, porém, essas produções de sentido estão envolvidas em processo de disputa que, em muitas vezes, escondem uma característica particular do embate da diversidade, a contradição. Na introdução deste capítulo comentamos que um dos principais atores sociais envolvidos no debate da diversidade é a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco, que, segundo o site institucional da organização, busca construir a paz por meio da cooperação internacional em educação, ciências e cultura. A organização possui uma atuação que valoriza a diversidade cultural, a qual considera sob ataque e, com objetivo de promovê-la e alcançar seus pressupostos organizacionais, e já lançou diversas cartilhas e declarações. Em 2002 a Unesco lançou uma declaração universal sobre a diversidade cultural. Destacamos a seguinte passagem: “afirmando que o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais” (UNESCO, 2002, s.p). Em sua declaração, composta por 12 artigos, a Unesco (2002) aspirava despertar os sentimentos de solidariedade e o reconhecimento da diversidade cultural partindo da unicidade da categoria humana, ou seja, a Unesco busca despertar o sentimento de 29 “pertencimento a uma única família humana”. E, em 2009, a Unesco lançou um relatório chamado “Investir na diversidade cultural e no diálogo cultural”. Neste material, a organização apresenta alguns indícios das noções atribuídas ao conceito de diversidade, entre elas, destacamos a seguinte passagem: “a diversidade cultural não é somente um bem que se deve preservar. É também um recurso que é necessário promover, nomeadamente em domínios normalmente distintos” (UNESCO, 2009, p.3). A partir da passagem anterior, observamos um aspecto econômico da cultura e, nos parágrafos que se seguem, iremos explicar o principal debate em torno da perspectiva da diversidade cultural: o apelo à valorização de produtos e serviços e a manutenção das estruturas de poder. Para iniciar essa discussão teórica, reconstruímos as origens da diversidade cultural. O debate sobre diferenciação marca as estruturas discursivas da sociedade moderna. Renato Ortiz (2017) remonta as marcas da diferença desde os autores do século XIX, que discursavam sobre a divisão do trabalho e, nesse percurso, o autor identifica diversos contrastes, tais como: cidade/campo e comércio/indústria. Essa digressão é importante pois revela a principal característica da diversidade como diferença: ela não possui essência, ou valor em si mesma, se constituindo a partir de uma situação histórica (ORTIZ, 2017, n.p). Retomamos a afirmação que o discurso da diversidade é capaz de ser, ao mesmo tempo, promotor da diferenciação e ordenador das relações de poder: Assim, o racismo afirma a particularidade das raças, para em seguida ordená-las segundo uma escala de valor. Por isso, é importante compreender os momentos em que o discurso sobre a diversidade oculta questões como a desigualdade – sobretudo diante da insofismável assimetria entre países, classes sociais e etnias (ORTIZ, 2017, n.p). Essa característica polissêmica e, muitas vezes, contraditória do discurso da diversidade remete à origem do termo a partir da perspectiva universalista. “O universalismo pautou a construção de democracias em termos políticos em que a cidadania foi pensada como única porque projetada em uma sociedade imaginada como homogênea” (MISKOLCI, 2015, s/p). Diante do que foi comentado, a diversidade foi idealizada como elemento mantenedor das estruturas de dominação, ao elaborar, como exposto por Richard Miskolci (2015), uma cultura frágil e estática, com relações de poder horizontais. Portanto, a enunciação da 30 diversidade buscava, ao reconhecer a existência de grupos sociais subalternizados, preservar as relações de poder e as normas sociais, culturais e o código de leis vigente. A crítica à perspectiva da diversidade se estende: “na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas” (SILVA, 2000, p.73). Homi Bhaha (1998) entende a diversidade cultural como objeto epistemológico, fundado em uma retórica radical, que compreende a cultura por meio de enunciações pré-datadas, fechadas, intercambiáveis, protegidas por uma identidade coletiva única. Para as autoras Anete Abramowicz, Tatiane Rodrigues e Ana da Cruz (2011), a perspectiva da diversidade evoca, para discutir as questões de identidade e cultura, o ato de tolerância e essa escolha não é arbitrária, pois tolerar não intensifica disputas sociais, pelo contrário, tolerar mantém intactas as estruturas de dominação. Em resposta aos conceitos universalistas da diversidade cultural, diversos autores, assim como Miskolci (2015), defendem a adesão à perspectiva da diferença: A perspectiva das diferenças reconhece que os dilemas das nações contemporâneas são resultado de conflitos entre as instituições estabelecidas e a emergência de demandas dos já citados grupos sociais, portanto ela aponta para a necessária renegociação política e cultural que pode criar sociedades mais justas (MISKOLCI, 2015, s/p). Em seu cerne, a perspectiva da diferença reconhece a “existência de conflitos e desigualdades que exigem a transformação social e política de nossa sociedade” (MISKOLCI. 2015, s/p). Em resumo, a perspectiva da diferença pretende superar as fragilidades impostas aos conceitos de diversidade e, acima de tudo, buscam problematizar as noções de identidade e diferença. “A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que a sua definição - discursiva e linguística - está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas: elas são impostas” (SILVA, 2000, p. 81). Reinterpretando os escritos de Bhabha (1998), pensar em perspectiva da diferença remete analisar as tentativas de dominação cultural, na qual uma cultura se impõe sobre outras; é analisar essa suposta supremacia construída a partir do momento de diferenciação. Como nos explica Tomas da Silva (2000), enunciar a identidade e a diferenciação é construir uma fronteira de sentidos entre “nós” e “eles”, é nomear quais grupos são incluídos e quais grupos são excluídos, é dizer quem tem acesso aos bens sociais. 31 A barreira construída entre os diferentes é estabelecida a partir da binarizaração dos elementos de diferenciação, como explicado Jacques Derrida, citado por Silva (2000), esse processo de construir duas identidades distintas: masculino/feminino, branco/preto, heterossexual/homossexual, vem acompanhado da valorização de um em detrimento do outro. Analisar processos de identidade e diferença perpassa por questionar o binarismo e esmiuçar as relações de poder. Avtar Brah (2006) complementa as noções de diferenças culturais ao identificar que, dentro de marcadores de diferenciação, existem necessidades particulares e, portanto, inexiste uma homogeneidade dentro de grupos identificados como culturalmente distintos. Constantemente, campos sociais procuram “impor noções estereotipadas de ‘necessidade cultural comum’ sobre grupos heterogêneos com aspirações e interesses sociais diversos. Frequentemente deixam de tratar da relação entre a ‘diferença’ e as relações sociais de poder em que ela pode estar inscrita” (BRAH, 2006, p. 337). Essa passagem é extremamente valiosa para o nosso estudo pois, frequentemente, os campos sociais buscam aglomerar grupos sociais subalternizados, não com objetivos políticos de união/compartilhamento/resistência, mas com o intuito de universalizar-los, escondê-los e controlar suas demandas sociais/sexuais/relacionais. Por fim, resumimos as diversas críticas apresentadas às noções de diversidade com a seguinte passagem: “falar de diversidade quase como o mesmo que falar da diferença produz o esvaziamento da diferença, pois tem por objetivo retirar a diferença da diversidade, ou seja, quando se fala de diferença é para que ela não faça de fato, nenhuma diferença” (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011, p. 93). Podemos entender então que a palavra diversidade representa uma noção construída por Jacques Derrida, o conceito de que um signo precisa ser repetível, ou seja, para que o sentido acionado por um signo se construa em cultura, ele precisa ser compreendido de forma quase sempre igual. Porém, essa construção simbólica conduz a um apagamento das instâncias sociais e políticas nas quais se originaram as diferenças sociais. Vale ressaltar que algumas visões da diversidade propiciam (re)negociações de sentido, o que explicamos melhor a partir de Nicolau Netto (2017), que reconhece a produção da diferença, a partir do discurso da diversidade, como uma disputa de produção simbólica e avança concepções universalista, como a de Mattelart (2005), que considerava a diversidade 32 como entidade amorfa. Além disso, Nicolau Netto (2017) reconhece que a posição social ocupada pelos agentes do discurso da diversidade influencia nas produções de diferença. Temos aqui uma problemática: caracterizando o termo da diversidade como léxico global, é impossível compreender nele transformações de sentido que apontem para as disputas de poder enunciadas pela perspectiva da diferença? Devemos apenas considerar que todos os campos sociais, ao enunciar esse termo, operam a partir de construções neoliberais e apolíticos? Longe de responder essa pergunta, nos atemos ao seguinte exposto: “O oximoro da diversidade é um emblema da contemporaneidade. Cabe ao esforço intelectual desvendar sua expressão e sua ambiguidade” (ORTIZ, 2017, n.p). Como comentamos, não pretendemos aqui abandonar uma perspectiva em detrimento da outra, porém, concordamos com Ortiz (2017) e pretendemos, através das incursões no objeto, identificar essas nuances que podem, através do discurso da diversidade, promover a manutenção das estruturas de poder, a negação das disputas sociais e a valorização mercadológica das identidades. Inclusive, abordamos nesta seção sobre as noções de diferenciação e identidades, no próximo tópico iremos, com o auxílio dos Estudos Culturais, apresentar como os processos midiáticos se relacionam com a construção de identidades e diferenças. 3.2 Essas mazelas me definem? A disputa para definir identidade e a diferença O último reduto Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado, onde parece alimentar-se um mecanismo que de dentro de nós próprios se apostasse em escorraçar-nos, repelir-nos, algo cuja natureza nos é estranha e que não raro ocupa toda a nossa identidade. Vamos assim sendo confinados a um domínio que se exaure, a um território em progressiva retração, que em breve se limita às mãos, inevitavelmente, concentramos então tudo o que nos resta. Na pele é um modo de dizer: na roupa, nos adornos. São os brincos, as pulseiras, os anéis o que por vezes nos sustém, o que garante a nossa integridade, o último reduto rechaça e de que a pele, a plataforma a que, alarmados, 33 então nos agarramos, é igualmente o carburante, numa duplicidade idêntica à de um livro cujas páginas entrassem e saíssem do espírito de quem o escrevesse. (NAVA, 2002, p.171) Esta seção aborda a temática das identidades, em especial suas negociações com a mídia hegemônica. Nesse cenário, ao pensarmos nos grupos subalternizados, estamos evocando reflexões que partem, como expresso no poema anterior de Luís Miguel Nava, do corpo, que por sua vez, já amplamente analisado por Gilles Deleuze, se ressignifica a partir da linguagem. Na seção anterior abordamos sobre as disputas de construção da identidade e da diferença. Para o desenvolvimento deste estudo e a fim de compreender parte do contexto sobre “gestão da diversidade”, recolhemos diversos artigos publicados, sobre o tema em questão, em dois veículos de mídia tradicional, duas revistas destinadas a gestores e públicos de interesse das organizações. Optamos por ler e entender essa dimensão contextual para visualizarmos como se constroem as representações da diferença social na organização em um cenário de midiatização. Pois, como nos explica Antônio Fausto Neto (2008, p.93), “a cultura midiática se converte na referência sobre a qual a estrutura sócio-técnica-discursiva se estabelece, produzindo zonas de afetação em vários níveis da organização e da dinâmica da própria sociedade”. José Luiz Braga (2012) nos explica essas afetações em vários níveis, o autor defende que a midiatização crescente é responsável pela sobreposição de circuitos sociais. Anteriormente, os circuitos sociais operavam segundo a sua própria lógica e negociavam questões com outros circuitos através de fronteiras bem delimitadas, com o alargamento da midiatização propicia envolvimentos dialógicos, nos quais os circuitos se relacionam de forma mais complexa. Os diferentes campos sociais, no seu trabalho de articulação com o todo social, desenvolvem táticas e usos para as tecnologias disponíveis, moldando-as a seus objetivos. Ao experimentarem práticas mediáticas, ao se inscreverem, para seus objetivos interacionais próprios, em circuitos midiatizados, ao darem sentidos específicos ao que recebem e transformam e repõem em circulação (BRAGA, 2012, p.45). Os Estudos Culturais contribuem para compreender como as identidades e as diferenças são disputadas em cenário de midiatização. Nesse contexto, dialogamos com 34 algumas autoras e autores, tais como: Ana Carolina Escosteguy, Kathryn Woodwart, Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva, entre outros. Estudar as representações midiáticas é compreender que os veículos de comunicação possuem centralidade na forma como os sistemas irão organizar, agrupar e categorizar as relações entre os sujeitos (HALL, 2016). Dialogando com a citação anterior, Woodwart, (2003,n.p.) ressalta que, na disputa de sentidos sobre as representações, a mídia nos indica as posições que devemos ocupar, de qual lugar podemos falar e nos posicionar, além disso, responde questões fundamentais na experiência de vida: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Fica evidente, pois, que a construção das identidades está estritamente relacionada com os sistemas de representação, entre eles, a mídia. Nesse contexto compartilhamos da visão de Woodwart (2003, n.p), na qual a autora exprime que “todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído”. Para Silva (2000), essas relações de poder implicam na forma como são classificadas e ordenadas a vida em sociedade, ou seja, hierarquizar e privilegiar determinados grupos sociais em detrimento de outros e Judith Butler (2015) nos ilustra que essas ordenações condicionam quais vidas nos valem uma lágrima e quais não. Sem a pretensão de estratificar a definição de Estudos Culturais, Richard Johnson (2020) apresenta algumas características investigativas, uma delas é a discussão sobre publicação e poder. Utilizando uma exemplificação do consumo de revistas para o público feminino jovem, o autor elabora como as formas públicas de cultura e as formas privadas se relacionam de maneira complexa, (re)produzindo identidades. Nesse exemplo, o autor debate como as revistas recolhem elementos das culturas privadas femininas e redistribuem essas formas de cultura em circulação na sociedade, enunciando o que é de garota e o que não é. As pesquisas contemporâneas na perspectiva dos Estudos Culturais deslocaram o eixo central de investigação para as relações entre os produtos culturais e a construção da identidade e da subjetividade, como nos explica Escoteguy (2020), extrapolando o conceito de classe como elemento crítico central. A autora redesenha algumas transformações sobre os Estudos Culturais contemporâneos e a sua relação com a mídia hegemônica. “Os Estudos Culturais compreendem os produtos culturais como agentes de reprodução social, sua 35 natureza complexa, dinâmica e ativa nas construções da hegemonia” (ESCOTEGUY, 2020, p. 146-147). Escoteguy (2020) compreende que a perspectiva dos Estudos Culturais estuda as complexas relações pelas quais os meios de comunicação de massa sustentam e reproduzem as estruturas sociais dominantes. Para a autora, essa relação não é estratificada, mas como comentamos, complexa, composta por negociações, encontros e desencontros, ou seja, ora a cultura popular resiste e enfrenta a cultura hegemônica ora aceita e condiciona estruturas de dominação. Portanto, estudar as relações da mídia hegemônica na construção de diferenças e identidades perpassa por reconhecer esses enfrentamentos entre culturas distintas, esse intercâmbio de relações de poder que, ao se apropriarem de elementos culturais, reconstroem novas formas, novos sentidos de dominação, complexificando as hierarquias sociais e subalternizando diferença/diversidades. Com o exposto até aqui, observamos que os Estudos Culturais se preocupam com as intensas relações de poder, especificamente a construção da diferença e das identidades, porém já demonstramos que as culturas estão imersas em encontros complexos, de negação, afirmação, disputa e negociação. Nesse sentido, como pretende Silva (2000), a perspectiva apresentada desponta com o questionamento das representações construídas através dos meios de comunicação massiva, portanto, investigam as estruturas representativas que dão suporte às noções de identidade e diferença. Compreender as estruturas discursivas sobre diferença e enunciação é tarefa complexa, que pode remeter, novamente, em processos de fixação das identidades complexas, como nos explica Silva (2000, p.92). Para contornar essa problemática o autor recorre às noções de performatividade, de Butler (1999), que substitui a ênfase na construção da diferença e identidade a partir da descrição para o conceito de “tornar-se”. Discursando a partir da categoria “sexo”, Butler (1999) constrói um pensamento explicando os marcadores de diferenciação. A partir de uma prática discursiva e uma dinâmica de poder estabelece-se a materialidade do corpo. “Ele é uma das normas pelas quais o "alguém" simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 1999, n.p). Nesse sentido, a performatividade deixa de ser elaborada como um acionamento individual, uma nomeação do 36 próprio indivíduo sobre si mesmo, mas se impõem através de estruturas discursivas, produtos de poderes regulatórios e normalizantes. Fazendo uma leitura de Butler, Silva (2000) sintetiza o conceito de performatividade e os relaciona com as construções discursivas: Ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendo uma situação existente, um “fato” do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente estamos apenas descrevendo (SILVA, 2000, p.93). Portanto, circunscrevemos esse estudo apresentado em um panorama complexo, envolto em relações de poder, representações midiáticas, performatividade e cultura. As discussões apresentadas – e futuras – relacionam-se não apenas com forma e conteúdo, mas com lógicas de produção, ideologias, impactos e apropriações culturais. Com o arcabouço teórico apresentado até aqui, pretendemos, na seção seguinte, estabelecer alguns panoramas que envolvem o nosso objeto de estudo - as relações entre diferenças no ambiente de trabalho. Para identificar os discursos presentes em outras instâncias, como a mídia, e o papel exercido pela comunicação no tema em questão. 3.3 As diferenças identitárias no ambiente de trabalho Como destacado, o objetivo desta seção é construir um panorama a respeito do tema das diferenças no contexto organizacional, isso requer compreender que os sentidos se alicerçam na sociedade a partir dos diálogos e dos relacionamentos entre os seus diversos atores, como: os movimentos sociais, a prática científica, a mídia tradicional e os demais produtores de sentido (organizações, leitores, especialistas…). Assim, um interlocutor promove interações de compreensão da realidade por meio de prática comunicativa (produção textual, conversa, entrevista…). Temos, como ponto de partida, o cenário acionado por Miqueli Michetti (2017) que, em seu levantamento histórico, identificou que a origem dos debates em torno do tema da diversidade remetem à década de 1960, no momento em que as organizações estadunidenses inseriram a contratação de grupos minoritários, processo resultante da atuação de movimentos sociais e de disputas políticas, que pressionaram a instauração de leis destinadas a garantir a igualdade de oportunidades de educação e emprego, as chamadas ações afirmativas. 37 A idéia (sic) de ação afirmativa baseia-se na compreensão de que os fenômenos sociais não são naturais, mas resultado das diversas interações sociais; assim, haveria necessidade de intervenção política na reversão do quadro de desigualdade que se observa em uma dada sociedade (ALVES; GALEÃO-SILVA, 2004, p.22). Através das ações afirmativas os Estados Unidos pretendiam superar os problemas sociais de grupos subalternizados construídos durante a história. A partir desse momento, as novas contratações complexificam as disputas de sentido no contexto organizacional, ao demandarem o reconhecimento de suas subjetividades e igualdade nas políticas de gestão (salário, oportunidades de desenvolvimento profissional, satisfação pessoal, assistência social e afins). Esse fenômeno, recente na organização, ocasionou uma ruptura nas práticas gerenciais e demandou uma resposta administrativa. Mediante esse cenário, as organizações passaram a desenvolver, como expresso por Michetti (2017), projetos com o objetivo de evitar o conflito, absorvendo-o através do que se chamou de “gestão da diversidade”. Portanto, em meados da década de 1980, o tema da diversidade se torna pauta da área de gestão. Inicialmente foram desenvolvidos treinamentos específicos para controlar os grupos sociais subalternizados e, ao mesmo tempo, começou-se um processo de disputas por representação social em cargos de chefia. No ambiente acadêmico, Alves e Galeão-Silva (2004, p. 21) condicionam a origem do termo a um estudo inaugural de R. Roosevelt Thomas (1990), publicado pela Harvard Business Review. O artigo experimental penetrou o campo acadêmico da administração e reverberou na construção epistemológica da gestão da diversidade, apresentando-a enquanto um conjunto de programas internos baseado na meritocracia em substituição às ações afirmativas, com forte defesa de sua adoção para gerar vantagem competitiva, valor econômico e inserir as disputas sociais e as diferenças e identidades em variáveis controláveis, a fim de evitar o conflito. A partir dessa exposição, sobre as origens acadêmicas e práticas da gestão da diversidade, temos como questão: os preceitos apresentados ainda impactam nos sentidos circulados na mídia hegemônica e, consequentemente, produzem um apagamento das características conflituosas envolvidas na disputa pela diferença? Para identificar as noções articuladas no tema da diferença no ambiente de trabalho, realizamos um levantamento documental de duas revistas destinadas a práticas organizacionais: Exame e Istoé Dinheiro. A pesquisa em questão foi desenvolvida como uma 38 etapa metodológica desta dissertação e será publicada na Paulus, a Revista de Comunicação da Fapcom, em 2023. Em resumo, destacamos que a mídia tradicional circula produções de sentido que operam a partir da lógica administrativa em comunhão com a perspectiva da diversidade. Os textos analisados defendem a contratação de grupos marginalizados como uma estratégia de competitividade e lucratividade, ao vincular as diferenças sociais como uma ferramenta de criatividade e apoio na produção de serviços/produtos adequados a públicos específicos. E, como afirmam Miskolci (2015) e Alves e Galeão-Silva (2004), a perspectiva funcionalista da diversidade não promove uma atualização nas relações de poder, ao contrário, a gestão pautada nessa ideologia opera como ferramenta de manutenção das hierarquias dominantes. A Comunicação, enquanto área de conhecimento capaz de conturbar estruturas hegemônicas e produções discursivas não foi enunciada, ao contrário, para a mídia especializada em “gestão da diversidade” a comunicação se caracteriza como uma ferramenta de apoio para a execução de planos de gestão, ou seja, para a comunicação resguarda algumas materialidades, tais como: canais de apoio/denúncia, manuais de linguagem neutra, códigos de conduta, entre outros. Nesta investigação buscamos identificar o papel dos atores sociais envolvidos em relações conflituosas, para a mídia hegemônica o grupo subalternizado tem uma posição particular: iniciar os debates sobre o tema a partir de suas experiências e vivências, em contradição, ao grupo dominante cabe uma atuação de “salvador”, ou seja, aquele que reconhece, depois que o subalternizado demonstrou, as injustiças sociais e constrói um planejamento estratégico para lidar e incluir o diferente. Retomamos que lidar e incluir é o oposto de modificar relações de poder ou atualizar estruturas de justiça e direitos. Podemos compreender essa passagem ao visitarmos algumas críticas desenvolvidas por teóricos queer que apontam a contradição do pensamento heterossexual em práticas dissidentes, como a atuação dos movimentos sociais para possibilitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo este uma instituição originada na prática heterossexual, não seria o caso de pensarmos uma outra instituição? Não queremos alongar esse debate, é mais valioso, para o objetivo deste trabalho, identificarmos como opera a perspectiva da diversidade: através do reconhecimento e da extensão de direitos para a manutenção das estruturas de poder. 39 Incluímos nesse panorama a dissertação apresentada por Bruno Ferreira (2020), que analisou os sentidos endossados pelo Guia Exame da Diversidade, uma publicação que ilustra como as organizações podem incluir mais pessoas diversas e exemplos de programas bem-sucedidos. O Guia Exame da Diversidade é uma iniciativa da revista Exame, em parceria com o Instituto Ethos, que documentou e analisou as práticas que envolvem a gestão da diversidade das organizações. Ferreira (2020) cita o próprio GED (2019), para explicar suas diretrizes: a) inclusão de mulheres; b) negros; c) pessoas com deficiência e d) LGBTI+. A pesquisa apresentada analisa uma publicação destinada ao contexto organizacional. Após a primeira edição outros atores sociais se envolveram com o projeto, são eles: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, Movimento Mulher 360 e Rede Empresarial de Inclusão Social (REIS). Vale ressaltar que, em 2021, os parceiros apresentados e o Instituto Ethos retiraram sua participação no Guia, após polêmica envolvendo os métodos de avaliação7: a revista Exame priorizou questões editoriais invés da metodologia definida. A primeira problematização de Ferreira (2020) se refere à simplificação das categorias apresentadas, em sua visão o GED reduz os grupos subalternizados ao analisá-los apenas considerando: mulheres, negros e negras, LGBTI+ e PCDs. No que tange os sentidos endossados pelo GED para a promoção da diversidade no ambiente de trabalho, o autor identificou três categorias que dialogam com a primeira simplificação. Em sua pesquisa Ferreira (2020) apresenta os seguintes valores: a) diversidade como ativo econômico; b) diversidade como elementos para o fomento à criatividade e a inovação; c) diversidade atrelado às metas organizacionais. Porém, como pressupõem diversos autores, existe um espaço de interlocução e transformação nesses encontros desiguais. Para Ferreira (2020), o impacto e a influência de poder podem ser questionados no ambiente digital a partir do agendamento público do tema, que se tornou destaque em uma publicação. “Dessa forma os sujeitos podem demandar discussões ou, até mesmo, a atenção à temática e, através dessas manifestações que também foram evidenciadas na análise do GED, as organizações podem definir se irão ou não atender” (FERREIRA, 2020, p. 99). 7 O Instituto Ethos publicou uma matéria especial para explicar melhor o caso, disponível no link: https://www.ethos.org.br/cedoc/instituto-ethos-e-parceiros-retiram-participacao-no-guia-exame-de-diversidad e https://www.ethos.org.br/cedoc/instituto-ethos-e-parceiros-retiram-participacao-no-guia-exame-de-diversidade https://www.ethos.org.br/cedoc/instituto-ethos-e-parceiros-retiram-participacao-no-guia-exame-de-diversidade 40 Com essa reconstrução contextual pretendemos identificar as diretrizes que alicerçam os sentidos construídos acerca do tema apresentado. Portanto, o objetivo central desta seção foi realizar um aprofundamento contextual para compreender como se estruturam as relações sociais no ambiente organizacional. O levantamento das publicações sobre gestão da diversidade, em comunhão ao mapeamento acadêmico do assunto em questão, permite esmiuçar as características de reconstrução das estruturas de dominação e auxilia na identificação de particularidades na produção de sentido. As práticas discursivas escondem ideologias controversas, porém, são em suas brechas, ou seja, nos encontros comunicativos, nas circulações midiáticas, nas disputas de sentido que se rompem tradições, que se (re)organizam as dinâmicas simbólicas de poder. Diante disso, temos a seguinte indagação: as consultorias especializadas em diversidade apresentam uma nova forma de pensar o ato político de valorização das diferenças sociais no contexto organizacional? Quais são as noções atribuídas ao diferente? Existe uma valorização da comunicação como processo de transformação social? Para responder a última indagação apresentaremos, no próximo capítulo, transformações epistêmicas e revoluções de sentido ao compreendermos e analisarmos a temática da diversidade no ambiente de trabalho a partir da perspectiva relacional da Comunicação. 41 4 ALARGANDO AS INDAGAÇÕES PARA A GESTÃO DA DIVERSIDADE Em sua origem, a gestão da diversidade remete a um objeto de estudo do campo da Administração de Empresas. Seu surgimento está relacionado, segundo Michetti (2017, p.121), a um objetivo de “integrar a diversidade”, uma resposta às ações afirmativas, um conjunto de leis que obrigava a contratação de corpos dissidentes (mulheres, pessoas pretas, LGBTs…). Como apresentado no capítulo anterior, os estudos inaugurais pretendiam uma unificação do conceito de diferença e desigualdade: “a diferença e a desigualdade entre indivíduos e grupos passam a ser concebidas como diversidade, que será operada, então, como uma dimensão técnica do mundo do trabalho” (MICHETTI, 2017, p.123). A unificação das duas dimensões apresentadas pretendia controlar e gerenciar os conflitos decorrentes de relações desiguais. Ou seja: “deslocar a questão de um conflito político, incontrolável, para uma variável interna, funcional e controlável” (ALVES; GALEÃO-SILVA, 2004, p.27). As principais justificativas para a valorização da gestão da diversidade, em oposição às ações afirmativas, residem no discurso de que essas ferem a meritocracia e a livre iniciativa. Nesse percurso despontam discursos e práticas organizacionais relacionados ao neoliberalismo e o papel do Estado para com as demandas sociais, ao se desestruturar a atuação política, transfere-se as responsabilidades sociais para um novo interlocutor, as organizações. Vale ressaltar que as empresas se apresentam de forma contraditória nessa temática, em primeiro momento suas práticas discursivas apontam para a construção de identidades neutras na questão da desigualdade social, ou seja, que não participam/participaram desse processo histórico, para, em seguida, venderem-se como interlocutores atentos às demandas dos grupos marginalizados. Para fortalecer o discurso de responsabilidade social as organizações começam a investir em pesquisas/práticas e estudos da área da gestão, com o objetivo de, segundo Michetti (2017, p.123), "incorporar a diversidade aos recursos humanos da empresa, para com isso reduzir custos, atrair talentos, sensibilizar para as novas culturas; aumentar a criatividade e a inovação na empresa”. Portanto, a gestão da diversidade, quando relacionada aos estudos inaugurais do campo da Administração de Empresas, atendia aos interesses do poder hegemônico, por meio de manuais de como gerir a diversidade os acadêmicos construíram um arcabouço de práticas e epistemologias que dialogam com uma “ideologia tecnocrática que retira contexto da 42 diferença, sua história e seu lugar social, não são discutidos; há apenas um conjunto de técnicas para lidar com um fato tomado como absoluto”(ALVES; GALEÃO-SILVA, 2004, p.27). Adotar a perspectiva tecnocrática é, segundo Michetti (2017, p.130), firmar-se a uma premissa que as diferenças sociais produzem pessoas com pensamentos distintos e habilidades únicas, acepção problemática na visão da autora, pois essa percepção condiciona a construção das diferenças sociais como valiosas - fundamentais - e desconstrói o processo de oposição existente na relação entre indivíduos, ou seja, encobre-se o fato que a diferença entre as identidades baseia-se na relação de poderes desiguais e, para além disso, estrutura as vivências subalternizadas como experiências úteis ao capital e ao sustento organizacional. Indo na contramão da ideologia tecnocrática - e filiando-se a base transformadora da perspectiva da diferença - temos a compreensão da comunicação como um processo relacional, de encontro entre interlocutores distintos, envoltos em relações desiguais. Nesse sentido, acreditamos que para atualizar relações desiguais é necessário reconhecer as limitações da ideologia tecnocrática. Para alcançar esses objetivos é fundamental que um objeto do mundo empírico passa por uma transformação epistêmica, que pode ser no interior de seu campo de conhecimento inaugural, ou na absorção de um outro campo do conhecimento, com propósitos, arcabouços teóricos e indagações distintas, é o caso das investigações sobre gestão da diversidade a partir da Comunicação relacional, acionada nas últimas décadas. 4.1 Encontrando o outro por meio da comunicação: um processo relacional A comunicação faz parte da vida de cada indivíduo, independente de sua vontade. Manifesta-se de diferentes formas, impregnadas de significados, que necessitam ser interpretadas/ reinterpretadas. A comunicação implica em trocas, atos e ações compartilhadas, pressupõe interação, diálogo e respeito mútuo do falar e deixar falar, do ouvir e escutar, entender e fazer-se entender e principalmente do querer entender (SCROFERNEKER, 2006, p.47). Quando se fala em procurar as relações entre comunicação e diversidade no ambiente de trabalho é necessário, antes, discorrer sobre qual comunicação estamos falando. Nesse sentido, o fragmento que inicia a discussão do capítulo indica a perspectiva adotada, vale ressaltar que não pretendemos defini-la como a mais correta, mas apresentar as noções às quais nos filiamos, ou seja, a perspectiva relacional. Para França (2016, p. 155), “a comunicação compreende objetos, ações, indivíduos – trata-se de prática, de uma ação humana”. Braga (2011, p. 66) entende a comunicação como um processo interacional, que 43 organiza trocas e produções de sentido entre indivíduos. Marques e Martino (2015, p.33) consideram que a comunicação é um “tipo específico de relação social”. França (2016, p. 158) define a comunicação a partir da perspectiva relacional, como um “um processo de globalidade, em que sujeitos interlocutores, inseridos em uma dada situação, e através da linguagem, produzem e estabelecem sentidos, conformando uma relação e posicionando-se dentro dela”. Marco de Souza (2013, p.5) explica o modelo praxiológico de Quéré (1991), o qual França (2016) traduz como relacional, da seguinte maneira: “nesta perspectiva, a comunicação é antes de tudo uma ‘ação’ por meio da qual os indivíduos criam um mundo em comum. Mais do que uma atividade de cognição, o ato comunicativo é uma atividade social, que diz de um contexto situacional e historicamente marcado”. Para Dominique Wolton (2022, p.52), “a comunicação é sempre um risco e uma aposta, que depende também de um receptor que, evidentemente, perturba as condições de troca. E com o receptor intervém igualmente o papel do contexto”. Segundo Michel Maffesoli (2003), comunicação é uma partilha, uma relação que acontece entre o “eu” o “outro” e o mundo. Dialogando com os autores expostos, Lucrécia Ferrara (2008, p.5) compreende a comunicação como um ato que “coloca em dúvida o ser em comum como característica substancial e ontológica do ser, para evidenciar o estar em comum como ação partilhada, trocada individual e coletivamente na construção de um ambiente comunicativo”. Por meio do que foi apresentado, a comunicação é uma instância de encontro entre uma ou mais identidades/interlocutores, um processo comunicativo que perpassa a produção de sentidos através dessa ação compartilhada, portanto, ao colocar em dúvida o ser, confrontam-se alteridades. “O encontro com o outro, em sua dimensão comunicacional, estética e política, se expressa sempre de forma agonística, na qual um indivíduo incita e interpela o outro por meio da dúvida, do estranhamento, do convite à interlocução” (MARQUES; MARTINO, 2015, p.34). Mas, o que é comunicar o outro em encontro com a sua alteridade? Para França (2016, p.162), relacionar-se com a experiência do outro é um processo reflexivo, no qual, a partir de um objetivo (afetar o outro de alguma maneira) eu me afeto, em um movimento circular de dupla afetação. Esse processo reflexivo é abordado por Braga (2012), para quem a comunicação é responsável por produzir algo novo, em um encontro contínuo, sutil e gradual, que modifica os interlocutores em relação. O autor nomeia esse processo de transformação mútua: 44 Creio também que as mudanças parecem funcionar melhor em reverberação mútua. Não basta que, tendo alguém dito alguma coisa, um processo/efeito se faça em mim, que me modifica, porque eu estava aberto a essa modificação. Parece-me mais interessante pensar que, em interações sucessivas, as pessoas reverberam umas sobre as outras, “se escutam” mutuamente – e, por processos incrementais, se modificam a partir de aportes múltiplos e entremeados. Assim como, historicamente, se modificam as instituições (BRAGA, 2012, p.5). Para Marques e Martino (2015, p.37), pensar o encontro entre alteridades, a partir da comunicação, é “sentir o outro, não apenas entendê-lo na formação de um entendimento comum, mas também na partilha de uma sensibilidade comum”. Adotamos, portanto, que a comunicação compreende a interação entre interlocutores (BRAGA, 2012; FRANÇA, 2016). Além disso, as interações são múltiplas, de distintas formas e intercambiáveis, como nos explica França (2016), são, portanto, dinâmicas e incontroláveis, porque se (re)afetam quando em circulação, ou seja, ao transformar seus interlocutores esses também reordenam as interações e seus produtos simbólicos, mas além de tudo isso, comunicar é encontrar as identidades, construir-se enquanto sujeito e compreender o outro. Para Maffesoli (2003, p.13), “a comunicação é que nos liga ao outro” e complementamos: É na relação com o outro que aprendemos a nos ver como ele nos vê – o que amplia nosso autoconhecimento e alarga o leque de escolhas em nossas tomadas de posição. As expectativas sociais nos fazem repensar nossas opções e influem na construção de nossa ação e papel no mundo. Também o compartilhamento de elementos da realidade, possibilitado pelo saber do outro, nos estimula e nos modifica. Enfim, é na e através da comunicação que não apenas afetamos o outro, como nos construímos como sujeito social (FRANÇA, 2016, p. 163). Segundo Maffesoli (2003, p.13), a comunicação é o processo pelo qual “percebemos que não podemos nos compreender individualmente, mas que só podemos existir e compreendermo-nos na relação com o outro”. Para Baldissera (2004, p. 86-7), o sujeito, em relação comunicativa, “é construtor e construção, tece e é tecido nos processos histórico-socioculturais, objetiva-se pela consciência de si mesmo, cria, mas sofre sujeição, experimenta a incerteza, é egocêntrico e tem autonomia-dependência, sofre constrições e contingências, e auto-eco/exo-organiza-se”. Do exposto concluímos que a comunicação é um processo que negocia os sentidos e as percepções sobre o mundo que nos cerca, nos relaciona com o outro e, ao mesmo tempo, nos (re)constrói, nesse sentido, é evidente a sua convergência com a temática das identidades e dos marcadores de diferenciação. Portanto, pensar em políticas de acesso aos bens sociais, 45 de emancipação e de dignidade requer uma análise da relação comunicativa e a idealização de um encontro entre as alteridades. Com esse propósito, despontam nas pesquisas da área da comunicação autores que associam investigações sobre as relações comunicativas e a construção de identidades e marcadores sociais utilizando saberes interdisciplinares, tais como: interculturalidade, interseccionalidade, coabitação, teoria queer, feminismo, masculinidades, entre outros estudos que envolvem relações de poder. Neste capítulo iremos apresentar algumas dessas epistemologias que são aplicadas no contexto organizacional e que dialogam com os dados observados na pesquisa empírica, nos atentamos ao contexto organizacional pois, como explica França (2001, n.p), uma pesquisa em comunicação, a partir da perspectiva relacional, deve considerá-la: “um processo de produção de sentido, que se encontra por meio de uma materialidade simbólica e que acontece em um determinado contexto”. Portanto, para o objeto investigado, vale refletirmos sobre as relações entre a comunicação, os saberes interdisciplinares e suas aplicações no ambiente organizacional como uma proposta de transformação das realidades marginalizadas. 4.2 A Comunicação investigando o contexto organizacional Antes de iniciarmos as discussões sobre as diferenças sociais no contexto organizacional, precisamos posicionar as investigações sobre a relação entre a comunicação, sob aporte apresentado, e as organizações. Iniciamos pelas articulações sobre o ambiente organizacional, o contexto no qual ocorrem as práticas comunicacionais investigadas nesse estudo. Em um primeiro momento, a definição de organizações pode parecer algo dado, de simples explicação, afinal somos rodeados por organizações, elas estão presentes no cotidiano e em diversas instâncias da vida: religiosa, financeira, educacional, entretenimento, entre outras. Com essa percepção inicial das organizações, acompanhamos diversos sentidos que são acionados, em maior ou menor grau, pelos interlocutores organizacionais, acadêmicos e gestores: a racionalização e a escalabilidade produtiva. Adentrando essa perspectiva, Gareth Morgan (1996) utiliza uma metáfora para explicar os sentidos que são acionados para as organizações. Em sua obra, o autor enuncia que as organizações são elaboradas como máquinas, compostas por inúmeras engrenagens que, apesar de trabalharem juntas, não estão relacionadas, ou seja: a sociedade fragmentou a produção em micro trabalhos e apagou a conexão entre elas. Nesse percurso, construiu-se as organizações como estruturas fixas, rígidas e independentes dos fenômenos sociais. 46 Ora, isso não é realidade, como apontam os estudos em Comunicação Organizacional, as empresas são sistemas complexos e permeáveis que exercem, em um determinado contexto, uma ação, ou um conjunto de ações, que influenciam a sociedade em escala local, nacional ou global. Portanto, uma organização: não se reduz, pois, a estruturas físicas (quando existentes), equipamentos e/ou recursos financeiros. Compreende, sim e principalmente, pessoas em relação, laborando para que os objetivos comuns e claramente definidos sejam atingidos. Tem-se, novamente, a noção de relação como central, isto é, assim como a ideia de relação constitui-se basilar para a comunicação, também o é para a noção de organização (BALDISSERA, 2009b, p.6). Segundo Fábia Lima (2008, p.5), “as organizações sociais tornam-se sujeitos complexos que, na esteira do movimento de globalização dos mercados, tornam-se verdadeiros gigantes corporativos, operando em nível planetário”. Além disso, como explica Baldissera (2009b, p.1), “as organizações (sistemas abertos) são interdependentes do entorno ecológico, social e cultural, e historicamente (re)construídas em contextos específicos”. Para Ivone de Oliveira e Maria Aparecida Paula (2010), as organizações contemporâneas são atores sociais, que influenciam as dinâmicas globais e que possuem princípios e objetivos definidos, além disso, como interlocutores, as organizações precisam de reconhecimento na esfera pública. Na visão de Mariana Carareto, Renata Calonego e Roseane Andrelo (2021, p. 230), “as organizações tornam-se meio e resultado da estrutura social, política e econômica”. Para Maria Eugênia Porém e Tamara Guaraldo (2020, p. 196), podemos compreender as organizações “como um fenômeno psicossocial, político e cultural constituído por meio da interação” e complementam: “são ações, comportamentos, atitudes, valores, crenças, técnicas e habilidades individuais e/ou coletivos que dão vida às organizações”. Portanto, temos como eixo orientador o fato de que as organizações são compostas por indivíduos em processos comunicativos, que se relacionam com o outro, ou os outros e, portanto, produzem diferentes sentidos que são colocados em circulação na sociedade, ou seja, a comunicação funda as organizações, constituindo-a, por isso, deve ser elaborada a partir de uma posição central, como um processo que a sustenta. Investigar as organizações, a partir dos olhares epistemológicos e da perspectiva relacional da Comunicação, é identificar que as mesmas são atores em processo relacional com a sociedade e são compostas e transformadas por diferentes vozes em encontro comunicativo. Nesse sentido, desponta uma subárea de estudo da comunicação, a 47 comunicação organizacional (BALDISSERA, 2009). Maria Ângela Mattos (2008) apresenta um breve estado da arte das pesquisas acadêmicas que tematizam a comunicação organizacional, a autora faz um recorte da sua origem na academia estadunidense e brasileira. No Brasil a comunicação organizacional nasce no âmbito empresarial, através de profissionais especializados no assunto, para, em seguida, ser institucionalizada nos cursos de Comunicação, em especial, de Relações Públicas. Segundo Mattos (2008), a origem da atividade no contexto brasileiro condicionou a agenda inicial de formação e pesquisa, dialogando com princípios e objetivos da área da administração, que tensionava a comunicação enquanto uma ferramenta de apoio, com conhecimentos técnicos necessários à execução de ações específicas. Observamos, através da revisão bibliográfica da literatura produzida no Brasil em comunicação organizacional e Relações Públicas, que a produção científica, até o presente momento, estabelece poucas articulações com a questão epistemológica do campo da comunicação discutida nos fóruns de debates, a exemplo da Compós (Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação), da Intercom e de outras entidades (Oliveira; Paula, 2005, p. 2). A mudança de perspectiva foi gradual, tanto no cenário estadunidense quanto no contexto brasileiro. Reis e Costa (2007), citados por Mattos (2008), apresentam que as orientações gerenciais começaram a ser superadas na década de 1970, nos Estados Unidos, quando pesquisadores da comunicação organizacional deixaram de considerar a organização com algo dado e a comunicação como uma variável e abriram-se para outras perspectivas e abordagens, os autores destacam a centralidade do estudos de significado e das abordagens: cultural e interpretativa. As transformações investigativas contribuíram para um processo particular do campo da comunicação organizacional, que acompanha as tendências de sua área primordial. Para Mattos (2008, p. 26), “os estudiosos de comunicação têm investido na construção de um saber comunicacional autônomo, ainda que relativo, em relação aos outros campos de conhecimento”. Os esforços da área da comunicação de produzir um conhecimento particular, que não rejeite os saberes interdisciplinares mas que encontre, nas investigações do objeto comunicacional, uma proposição única dessa área (BRAGA, 2004; FRANÇA, 2006), reverberou nos estudos da comunicação organizacional e autoras e autores têm se debruçado para investigar as organizações, tendo em vista a centralidade do processo comunicacional. Desponta a comunicação organizacional, pautada na perspectiva relacional, na qual 48 investiga-se os processos “de construção e disputa de sentidos no âmbito das relações organizacionais” (BALDISSERA, 2008). Na visão de Lima (2008, p.4), a comunicação organizacional refere-se a investigações que “partem de um contexto de interações, trazendo estas – as interações - para o centro de análise, como instituintes dos processos comunicacionais, dos interlocutores e da própria sociedade”. Oliveira e Paula (2010) concordam que a comunicação organizacional, pensada sob aporte da perspectiva relacional, supera as limitações impostas pela ideologia gerencialista e defendem que, a partir dessa orientação, é possível estabelecer investigações que contemplem todos os atores envolvidos no processo comunicacional e que seja capaz de analisar como essas interações se encontram/desencontram/negociam sentidos. Investigar os processos comunicativos que acontecem nas organizações, a partir da perspectiva relacional/interacional, é reconhecer, como pretendem Porém e Guaraldo (2020, p.197), o protagonismo da comunicação na (re)construção da realidade, tanto organizacional, quanto social, em um contexto que as organizações e seus interlocutores participam ativamente da produção de sentido na sociedade. As autoras apresentam um questionamento fundamental para as noções de comunicação organizacional: “É possível observar uma organização ou “o todo” como algo em si, fora das partes? De outra maneira, seria possível compreender uma organização separando-a da comunicação?”. E respondemos esse questionamento na mesma linha que as autoras: acreditamos na inseparabilidade dos termos “comunicação” e "organização". Nesse sentido, essa pesquisa filia-se a um entendimento da comunicação organizacional como uma subárea da comunicação que, para além de investigar a organização como uma construção comunicativa, pretende analisar como o relacionamento entre interlocutores, no contexto apresentado, (re)constrói relações identitárias e atualiza as relações de poder. Compreendemos as organizações como espaços marcados por disputas de poder, no qual o conflito é inerente e - estruturante - das relações comunicativas e todo investimento sobre a comunicação organizacional, seja na prática de investigação acadêmica ou como atividade profissional em contexto específico, precisa “rearticular os objetivos de unificação dos sujeitos, numa espécie de grande orquestra em harmonia, para redes e cenas de dissenso capazes de expor assimetrias, deslocando enquadramentos ideológicos que continuam a permitir a naturalização de opressões” (MARQUES; OLIVEIRA, 2020, p.11). A partir do paradigma da complexidade de Morin, Baldissera (2007) nos tem apresentado como as 49 dinâmicas identitárias são marcadas por tensões dialógico-recursivas8 e que, paradoxalmente, “as organizações investem-se de expectativas sociais pautadas por um determinado horizonte identitário de ordenamento e controle” (BALDISSERA; MAFRA, 2019, n.p). O que foi exposto no parágrafo anterior demonstra que o principal objetivo das organizações, em especial da área da gestão, é construir um ordenamento das relações desiguais - e identitárias - construindo um ambiente neutro, unificado, coeso e livre de dissensos, porém, esse movimento de ordem é ineficaz e tende ao fracasso, pois esta mesma perspectiva de controle origina as dinâmicas de oposição. é possível observar, como num campo de forças, um conjunto de silêncios, de não-ditos, de projeções de ordem motivadas pela própria desordem, enfim: na identidade, gritam/esmurram-se/chocam-se inúmeros desafios à estabilidade/permanência/continuidade das interações organizacionais, imprimindo um movimento complexo de vitalidade às organizações na medida em que, paradoxalmente, as mesmas tornam-se ameaçadas em sua própria existência (BALDISSERA; MAFRA, 2019, n.p). Para Marques (2022), as políticas de gestão praticadas nos contextos organizacionais entendem as disputas, as diferenças e os conflitos como contrárias à manutenção, à eficiência e à produtividade no ambiente de trabalho, sendo preciso evitá-las para a construção de uma cena de diálogo. Porém, a autora, com o objetivo de deslindar as relações comunicativas no contexto em questão, defende que é impossível realizar uma incursão sobre as interações no ambiente organizacional sem considerar que a maioria delas é “marcada pela hostilidade, pela desvalorização dos interlocutores e seus argumentos, pelas assimetrias de status entre os participantes e pelo não reconhecimento do outro como moralmente digno de ser um interlocutor” (MARQUES, 2022, p.92). Por tudo isso, dedicamos uma empreitada que pressupõe investigar as complexas relações identitárias no contexto organizacional, compreendendo como a relação comunicacional entre os diferentes interlocutores atualiza as relações de poder na sociedade. Para isso, compreendemos, com base em Baldissera e Mafra (2019), que os processos interacionais confrontam-se com associações complexas de indivíduos diferentes, que acionam uma pluralidade de sistemas de valor e moralidade, bem como fazem emergir distintas e particulares disputas por reconhecimento, justiça e acesso aos bens sociais. 8 Baldissera (2007) explica como o encontro entre identidades transforma e é transformado, constrói e é construído, é deslocado e desloca, ampliando e/ou retraindo seu conteúdo simbólico, em dinâmica complexas. 50 Nesse percurso, advogamos por um entendimento da comunicação que se paute na criação de um lugar comum. Para Marques (2022), esse lugar comum precisa caracterizar-se como um ambiente que revele brechas/lacunas de ação política que construa semelhanças que não apaguem as diferenças e singularidades, mas que reverbere em momentos de comunhão/troca (como pressupõe a comunicação), “o trabalho da criação política do “nós” requer a modelagem de um comum. O “comum” é, ao mesmo tempo, o que une e o que separa, o consenso e o dissenso, a rendição e a resistência” (MARQUES, 2022, p.94). Utilizando o aporte teórico da perspectiva interacional/relacional da comunicação, com base em França (2006) e Braga (2012), Baldissera ampliou as discussões sobre as dinâmicas comunicativas em contextos organizacionais e as ferramentas analíticas que elaborou em 2009, com base na perspectiva da complexidade de Morin (2000 - 2002). Baldissera (2009, p.118 - 119) construiu três dimensões para analisar o fenômeno da CO, em sua visão, essas diferentes instâncias auxiliam pesquisadores a esmiuçarem as complexas produções de sentido das organizações, que acontecem dentro e fora de suas estruturas. Os pontos elaborados pelo autor são: