VIVIANE ARAUJO ALVES DA COSTA PEREIRA A INCOMUNICABILIDADE NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES ASSIS 2007 VIVIANE ARAUJO ALVES DA COSTA PEREIRA A INCOMUNICABILIDADE NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de conhecimento: Literatura e vida social) ORIENTADOR: Dr. José Carlos Zamboni ASSIS 2007 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Pereira, Viviane Araujo Alves da Costa P436i A incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues / Viviane Araujo Alves da Costa Pereira. Assis, 2007 117 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Incomunicabilidade. 2. Rodrigues, Nelson, 1912- 1980. 3. Teatro brasileiro. I. Título. CDD 869.92 VIVIANE ARAUJO ALVES DA COSTA PEREIRA A INCOMUNICABILIDADE NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES Banca examinadora: Presidente: Dr. José Carlos Zamboni Membros: Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Dr. Sérgio Augusto Zanoto ASSIS 2007 Para Luiza, meu momento de eternidade. Agradecimentos Agradecer a todos que, de alguma forma, participaram deste trabalho é um prazer, experimentado com dupla satisfação: concluir um ciclo de quatro anos de estudo sobre a incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues para, em seguida, descobrir a comunicação verdadeira com pessoas queridas que tanto colaboraram para que este momento fosse possível. Agradeço ao Dr. José Carlos Zamboni, orientador desta dissertação de Mestrado. Sua orientação, ao mesmo tempo segura e livre, foi para mim uma prova de confiança, pois mesmo diante das metamorfoses pelas quais passou a pesquisa (e a pesquisadora!), seu incentivo se manteve constante, sem contudo interferir na essência do trabalho. Sou grata pelo profissionalismo que norteou o trabalho conjunto, e pela liberdade, permitida e incentivada no que diz respeito à autoria deste estudo. Quero agradecer imensamente ao Dr. Sérgio Augusto Zanoto pelas sugestões apresentadas durante o exame de qualificação. Também pela orientação da pesquisa realizada em Iniciação Científica, a respeito da obra de Eugène Ionesco. Pelos livros emprestados, pelo tempo dispensado, pelo acolhimento de sempre — e aqui aproveito para agradecer à família deliciosa do Sérgio. Enfim, pela amizade desses anos todos, da qual muito me orgulho. Agradeço à Dra. Maria do Carmo Savietto, cujas sugestões durante o exame de qualificação em muito colaboraram para o resultado final desta dissertação, sobretudo a indicação de Octavio Paz, grata descoberta. Também por ter aberto as portas de sua casa e me orientado, com muita atenção, em momentos de escolhas difíceis. Profissional exemplar para mim, e uma amiga já muito querida. Devo agradecimentos aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, responsáveis eficientes pela infra-estrutura que possibilitou a realização deste estudo. Às professoras de Língua Francesa — Daniela Callipo, Brigitte Hervot, Lídia Maretti, Léa Valese —, agradeço por acompanharem minha trajetória durante a graduação e por participarem, em francês ou não, de meu desenvolvimento como pesquisadora. De certa maneira, aprender francês me levou a Ionesco, que me levou a Nelson Rodrigues, que me trouxe até aqui. Agradeço aos demais professores da Faculdade de Ciências e Letras – Assis/SP, pela sólida base que possibilitaram durante a graduação. Também àqueles cujas disciplinas cursei na Pós, muito obrigada. Walquíria é uma amiga querida, e parte do êxito deste trabalho vem de seu incentivo constante e azul. Agradeço à Wal pelas conversas, trocas de idéias, hospedagem, enfim, pelo carinho de sempre. Quero agradecer à Jacicarla, exemplo de determinação, é uma amiga muito especial que participa de minha trajetória desde a graduação. Também à Tati que, apesar da distância, está sempre presente pois faz parte da minha história — lemos juntas O Estrangeiro. Agradeço à Linda, pessoa admirável e amiga querida. Tânia, agora mais próxima, é a amiga de infância, de adolescência, de toda a vida. A Clara e Maria Luísa, obrigada pelo carinho e pelo acolhimento com que sempre me brindaram. A minha irmã Veridiana, fogem as palavras exatas para agradecer tudo o que tem feito por mim. Mais que irmã, é a amiga de todas as horas, extremamente participativa em todos os meus projetos, digna de toda a minha admiração. Deu-nos Luiza, além do mais, minha sobrinha amada, resgate do sentido da própria existência. Agradeço também ao Leandro, parte dessa família maravilhosa de onde provém tanta alegria. Agradeço aos meus pais Lourdes e Francisco. A eles, devo curvar-me para agradecer o empenho, a dedicação e o amor com que criaram as filhas. Ao meu pai, agradeço pelo exemplo do estudo, do gosto pela leitura. À minha mãe, pelo exemplo de vida, de compreensão, de justiça e verdade. Meu amor eterno a vocês. Alexandre é parte da minha vida, meu momento supremo de comunhão. Agradeço profundamente por todo o respeito, o amor e a atenção do nosso relacionamento. Meu amigo, meu amor, ensina-me todos os dias a alegria e a paciência de viver, uma felicidade sem começo nem fim. Quem não se comunica, se estrumbica. Chacrinha Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Albert Camus PEREIRA, V. A. A. C. A incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues. Assis, 2007. 117 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual Paulista. RESUMO A obra dramática de Nelson Rodrigues representa o início da modernidade no teatro brasileiro, inclusive no que diz respeito à incomunicabilidade, tema recorrente da literatura do século XX. O objetivo deste estudo é verificar, a partir de autores modernos escolhidos, como a literatura e, em particular o teatro de Nelson Rodrigues, retrataram o tema. Na primeira parte, o assunto é abordado em seus aspectos histórico, social, filosófico e, especialmente, artístico. Depois, na segunda parte, dedica-se um capítulo ao dramaturgo e a suas obras, refletindo sobre elas, para demonstrar como a peça O beijo no asfalto se inscreve em uma tradição literária que representa o homem moderno, sua solidão e a dificuldade de comunicação entre ele e o mundo. Palavras-chave: Nelson Rodrigues – Incomunicabilidade – O beijo no asfalto – Literatura brasileira. PEREIRA, V. A. A. C. A incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues. Assis, 2007. 117 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual Paulista. RÉSUMÉ L’oeuvre dramatique de Nelson Rodrigues représente la modernité du théâtre brésilien, surtout en ce qui concerne l’incommunicabilité, thème toujours présent dans la littérature du XXème siècle. Cette étude a essayé de vérifier, à partir des auteurs modernes choisis, comment la littérature, et, en particulier, le théâtre de Nelson Rodrigues, ont abordé ce thème-là. Dans la première partie, le sujet de l’incommunicabilité est envisagé dans ses aspects historique, social, philosophique et, spécialement, artistique. Aprés, dans la deuxième partie, on consacre un chapitre au dramaturge et à ses oeuvres, en y réfléchissant, pour démontrer comment la pièce O beijo no asfalto s’inscrit dans une tradition littéraire qui représente l’homme moderne, sa solitude et la difficulté de communication entre lui et le monde. Mots-clé: Nelson Rodrigues – Incommunicabilité – O beijo no asfalto – Littérature brésilienne. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................... 10 CAPÍTULO I — INCOMUNICABILIDADE: UMA OBSESSÃO MODERNA Introdução à incomunicabilidade ..................................................... 12 A incomunicabilidade na literatura: de Baudelaire a Saramago ...... 19 A incomunicabilidade em obras da literatura brasileira moderna .... 38 CAPÍTULO II — NELSON RODRIGUES O autor .............................................................................................. 51 Panorama do teatro de Nelson Rodrigues sob a ótica da incomunicabilidade A mulher sem pecado ................................................... 55 Vestido de noiva ........................................................... 59 Álbum de família .......................................................... 62 Anjo negro .................................................................... 64 Senhora dos Afogados ................................................... 66 Dorotéia ......................................................................... 68 Valsa n.6 ........................................................................ 70 A falecida ....................................................................... 72 Perdoa-me por me traíres .............................................. 75 Viúva, porém honesta .................................................... 78 Os sete gatinhos ............................................................. 80 Boca de Ouro ................................................................. 81 Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária ............ 84 Toda nudez será castigada ............................................. 87 Anti-Nelson Rodrigues .................................................... 90 A serpente ....................................................................... 93 O beijo no asfalto, “tragédia da incomunicabilidade” ......................... 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................... 110 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................. 115 10 INTRODUÇÃO Nelson Rodrigues (1912-1980), quando começou a escrever para teatro, tinha a intenção de produzir uma chanchada, em razão de um maior retorno financeiro propiciado pela comédia com relação à tragédia. Sua primeira peça, A mulher sem pecado, no entanto, configura-se uma autêntica tragédia. Sem adentrar, por enquanto, o universo criado pelo dramaturgo em sua estréia no gênero, o que desejo ressaltar aqui é a autonomia da literatura, ficcional ou não: pré-concebida como chanchada, a peça, quase por si só, transformou-se na tragédia que já apresenta, em germe, as principais características do autor. Também este trabalho foi imaginado em determinada direção, modificada no decorrer da pesquisa devido a uma certa independência desta. A idéia inicial era identificar na obra teatral de Nelson Rodrigues algumas características da incomunicabilidade presentes na dramaturgia do autor romeno-francês Eugène Ionesco, ponto de partida assumido durante o período de iniciação científica. O universo teatral de Nelson Rodrigues mostrou-se, no entanto, cada vez mais atraente, concentrando em si tal complexidade no nível das relações humanas que o projeto de um estudo comparativo, tal como fora concebido, já não era suficiente. Desejava observar como o autor, em sua dramaturgia, representava o homem, ser social e individual que busca transcender o absurdo de sua existência. A incomunicabilidade veio integrar a pesquisa não como um aspecto conciliador entre homem e mundo, o que pareceria contraditório pela própria essência do termo, mas como parte da própria condição humana. Nas relações que o homem estabelece consigo e com o mundo, há um abismo chamado linguagem, impossível avesso da plena compreensão. Comunicar-se com o outro é apenas um hábito, motivado pelo desejo do outro, mas incapaz de transcender a solidão individual. No teatro de Nelson, as personagens tendem a buscar no outro e no mundo o sentido de sua existência, mas acabam encontrando apenas absurdo e frustração. Um pessimismo existencial marca a produção do autor, que raras vezes se permite criar uma realidade menos crua do que “a vida como ela é...”. 11 Tomando a incomunicabilidade como um dos temas mais caros à modernidade, procurei identificar o teatro de Nelson Rodrigues em confluência com sua época, por reconhecer aí o homem moderno, representado em suas angústias e incompreensões. Assim, o presente estudo se divide em duas partes: incomunicabilidade e Nelson Rodrigues. No primeiro capítulo, dedicado à abordagem da incomunicabilidade, a disposição das idéias segue um percurso que procura atender às suas dimensões histórica, social e filosófica. Histórica, retomando Babel, Revolução Industrial, Guerras Mundiais; social, uma tentativa de apreensão do modo de vida interpessoal naqueles períodos, o que inclui a psicanálise; e filosófica, com várias das correntes de pensamento que cuidaram do tema. Por fim, as artes e a incomunicabilidade, com ênfase nas obras escolhidas por serem representativas do assunto na literatura moderna, estrangeira e brasileira. Nelson Rodrigues tem uma produção dramática bastante ampla. Suas dezessete peças foram organizadas pelo crítico Sábato Magaldi em três grupos: peças psicológicas, míticas e tragédias cariocas, mas é importante ressaltar a unidade do teatro de Nelson, seus temas recorrentes, suas obsessões. Ainda de acordo com o crítico, “a incomunicabilidade, que será um dos temas básicos do teatro do absurdo, permeia toda a obra rodriguiana” (Magaldi, 1992, p. 74). Daí o segundo capítulo, que pretende realizar a leitura panorâmica da produção teatral de Nelson Rodrigues. Sem aprofundar a análise, minhas impressões de leitura dessas peças partem do tema que rege este estudo, a incomunicabilidade. Assim, traça-se um perfil do dramaturgo, amparado na fortuna crítica de sua obra. Escolhida como representativa da incomunicabilidade, destacando-se no todo de sua produção, a peça O beijo no asfalto merece atenção especial na terceira parte do capítulo dedicado a Nelson Rodrigues. Nela, o assunto não é tangencial, mas é a própria intriga, e se faz também forma, na medida em que o autor combina brilhantemente dificuldades de diálogo (base do texto teatral) com a dificuldade maior de se fazer entender. Arandir, o personagem central, vê-se enredado — ou enreda-se — em situação limite e acaba por levar consigo a família; o não-entendimento, o não-querer entender entre os personagens, mais a manipulação dos fatos por meio da palavra selam o destino trágico do protagonista. As implicações da incomunicabilidade no drama, bem como os meios de sua representação, são a matéria da abordagem. 12 Por fim, algumas considerações que procuram retomar os pontos centrais da dissertação. Adianto: o que deveriam ser resultados de pesquisa são, para mim, revelações do pensamento de Nelson Rodrigues, enquanto homem e autor moderno que encontrou no teatro o meio de comunicar-se com o mundo. INCOMUNICABILIDADE: UMA OBSESSÃO MODERNA Introdução à Incomunicabilidade E primeiro o homem criou a linguagem para poder melhor se entender com o outro; e a linguagem, quase um ser autônomo, encarregou-se de separar os homens entre si. Esta dificuldade não impediu que se formassem sociedades ao longo dos séculos, e estas envolvem homens que, mesmo não se compreendendo completamente, mesmo divergindo quanto a objetivos ou crenças pessoais, puderam operar construções em conjunto. O objetivo comum, mais do que fruto das necessidades concretas de determinada sociedade, é o reflexo da superposição do ser social em relação ao indivíduo. Assim, escamoteia-se a incomunicabilidade e inicia-se o longo reinado do decoro, do bem-estar social, de uma linguagem que prima pela razão para que se alcance o ideal comum. É a metáfora da torre de Babel: enquanto os homens se podiam compreender, havia o estatuto do poder coletivo que almejava o absoluto para todos e para cada um – uma torre que chegaria até o céu. Fazendo valer sua onipotência, Deus castigou aqueles homens por sua audácia — o desejo de serem deuses — e fez com que cada pessoa falasse numa língua; assim dissolveu-se o poder de realização do conjunto. Separados pela linguagem, os homens, então solitários e incompreendidos, não tiveram escolha, a não ser abandonar a ambição conjunta e buscar cada um seu ideal. Como ensinamento religioso, Babel simboliza o poder de Deus e sua ira quando afrontado, castigo que deve servir de exemplo e alerta para a vigília constante do princípio Temor a Deus. O mito, porém, fora do contexto religioso, tem servido amplamente como um dos arquétipos da sociedade. O ideal do conjunto é ilusório ou antes, real apenas na 13 medida em que serve a ambições pessoais. Aqueles homens que construíram a torre já falavam línguas diferentes; a Deus coube denunciar e verter em concreto o que era intenção camuflada sob a bandeira do social. O mito da Torre de Babel conjuga, de maneira concisa, universos paralelos, quais sejam o indivíduo e a sociedade, que se integram plenamente para, em seguida, chocarem-se, se afastarem e tornarem a se encontrar, numa relação de interdependência. A sociedade é primordialmente uma instituição formada por indivíduos, logo, diferentes, mas com algo que os une. Assim, o objetivo comum existe de fato, mas, intrínseco a ele, há o desejo pessoal, nem sempre em primeiro plano. Imposições históricas ora privilegiam, ora afastam o eu individual e dessa alternância resultam modelos sociais próprios a cada época. É evidente que o ser humano é individual desde sempre e a incomunicabilidade lhe é inata, visto nascer justamente do que há de mais pessoal e único no homem: seu pensamento. Entendo por incomunicabilidade o abismo existente entre o que um pensa e transmite e o que o outro entende, sendo tanto a mensagem emitida quanto a interpretação do interlocutor regidas por um conjunto de fatores (crenças, desejos, conhecimentos) tão pessoais quanto os próprios indivíduos. Por necessidades de organização e construção, a idéia de conjunto parece ter predominado no Ocidente durante mais de dez séculos contados d. C. até que o Renascimento artístico-filosófico iluminou a idéia de indivíduo. O homem pôde enfim ver- se em sua porção individual, de um lado, e como ser social, do outro, o que lhe concedeu o poder da escolha, logo pessoal, para unir-se aos que lhe eram afins, multiplicando sociedades. Se fôssemos adentrar a história do Renascimento de maneira profunda, a incompletude da abordagem seria mais do que um risco, uma miserável verdade. Mas nada impede que se trace uma linha temática que o ligue à Modernidade, a partir da idéia de indivíduo, que nos longínquos anos de 1500 passa a ser apreendida como uma necessidade orgânica e torna, no século XIX, a aparecer sob nova ótica, num novo modelo social e abrindo novos caminhos. Descobertas científicas e possibilidades de viagem foram fatores que revelaram o potencial humano até então exclusivamente intrínseco, obscurecido pelo teocentrismo e 14 seus limites. O homem, capaz e livre, vê-se na natural obrigação de se desenvolver, de escolher seus caminhos, o que é positivo, mas, por outro lado, descobre-se também sozinho, pois todos os indivíduos têm as mesmas possibilidades que cada um. Reconhecer sua porção única fez com que o homem descobrisse que o outro também é único e, tão próximo ainda da Idade Média, o período da Renascença não permitiu o pleno desenvolvimento do que poderia ser chamado de liberdade individual. O esboço dessa distinção entre o ser individual e o ser social, contidos no mesmo eu, teve enorme influência sobre a posteridade, mas no momento histórico em que se delineou, já estava condenada ao fracasso. Numa época pouco posterior à Inquisição Católica, nada pode ser mais contraditório, ofensivo e suicida do que a ostentação de uma bandeira que prima pela liberdade individual de pensamento. Imposto como necessidade vital, o ser social superpõe-se ao eu único que, por sua vez, abdica da liberdade e do potencial criativo inatos ou, por outra, dissimula seu eu individual, burla regras e sustenta a aparência do ser social como sendo sua própria essência. O âmbito da aparência se relaciona ao fator incomunicabilidade de forma intensa; são quase indissociáveis por antinomia. É que o verbo parecer se liga ao ser social, enquanto ser, ao individual. A máscara social implica a aceitação do eu pelo outro, então o eu, por vezes contrariando suas crenças mais íntimas, deixa de dizer o que pensa. A impossibilidade de compreensão do eu pelo outro resulta na negação da individualidade, prova máxima de adesão à determinada sociedade, o que apresenta como conseqüência fanatismos de toda espécie, sempre baseados na divergência de posturas e valores, gerando intolerância. Impossível desviar, nesse ponto, do parâmetro filosófico que é Platão. A distinção entre essência e aparência se inscreve em sua filosofia por meio da metáfora do mito da caverna, em que a realidade dentro da caverna só é única enquanto ninguém pode ver o que está fora da mesma. A partir do momento em que um indivíduo sai da caverna, toca uma outra realidade, luminosa e impensável quando só havia escuridão. O mundo das idéias é o verdadeiro, dos sentimentos puros, feito de ideais, enquanto que a realidade imediata, sensível, é um esboço, universo de sombras e aparências onde não há verdade. Durante a Idade Média, e além vários séculos, a perfeição do mundo das idéias de Platão se concentrava para os homens de maneira exclusiva e excludente em Deus. A vida 15 na terra seria apenas o ensaio, ainda na escuridão da ignorância, que qualificaria o homem a entrar no céu, e aí sim, ter a si revelada a luz da verdade; poder, enfim, ser. No Renascimento, não é a verdade de Deus que se questiona, mas a importância de cada um na conquista desse paraíso, perdido e prometido, que depende do trabalho individual possível dentro da caverna. Esse primeiro sopro do indivíduo enquanto tal se intensificaria a partir da Revolução Industrial por diversos fatores de origem única: o desenvolvimento. Este, em pluralidade de facetas — o desenvolvimento urbano, científico, econômico, cultural — foi responsável por uma série de transformações que culminaram na formação de um pensamento voltado para a modernidade. A saída do homem do campo para as cidades em formação — e ebulição — acabou por determinar a consolidação das metrópoles e esta mudança geográfica alterou os meios de comércio entre as pessoas, então em muito maior número do que antes, quando os negócios eram feitos entre pequenas sociedades agrárias. Grandes cidades, muitas pessoas e uma infinidade de subjetividades, assim poderia ser grosseiramente sintetizada a moderna disposição social. Outra conseqüência inegável da nova mentalidade foi o surgimento da Psicanálise que, mais que princípio, pode ser considerada como mediadora, uma explicação científica para fatos já existentes. O mérito de Freud é, sobretudo, o de ter apreendido sensivelmente uma série de mudanças de comportamento e pensamento que se anunciavam, pelo menos, desde a metade do século XVIII e de tê-las sistematizado num método científico, visto como revolucionário e, aliado a outros fatores, determinante da história de todo o século XX. É evidente que a Psicanálise pode também elucidar o aspecto da incomunicabilidade intersubjetiva, partindo sobretudo da dimensão inconsciente de cada ser humano. Assim, os desejos ou crenças que se encontram nessa porção de nossa percepção não são acessíveis ao outro que, por sua vez, tem toda uma bagagem psicológica que estimula um tipo de leitura para o que lhe é enunciado. Surge daí um descompasso entre o que o eu diz e o que o outro entende. Porém, o fato de a incomunicabilidade residir em áreas não alcançadas pelo consciente (o subconsciente e o inconsciente) transfere o fenômeno para uma dimensão 16 que, de tão intrínseca, ainda que se justifique, acaba por isolar cada indivíduo em seu eu subjetivo. Ainda que oriundas de um mesmo ponto, duas incomunicabilidades se apresentam, sendo uma explicável pela psicanálise e a outra, pelo fenômeno da existência conjunta. A distinção que proponho consiste em que a primeira centre-se no eu, emissor ou receptor, em todos os níveis de sua consciência, e a segunda, no próprio fenômeno da incomunicabilidade que implica, portanto, o eu e o outro. Enquanto a primeira explica pelo conhecimento, a outra o faz pela ignorância. A incomunicabilidade que busco não se resolve, tem a carga do pessimismo da existência mesma do ser. Trata-se de uma situação que, por emergir da realidade mais cotidiana, não oferece uma margem de erro ou um tempo para analisar, já que exige reação imediata diante do outro, ser existente que só se deixa conhecer na medida em que revela pela linguagem, verbal ou não, sua subjetividade. Mas, enquanto ser social, tanto o eu quanto o outro se revelam por meio de máscaras adequadas a cada situação a que são expostos. Então o que há não é revelação, e sim, ocultação e, desta forma, nada há que garanta a compreensão plena pois, ainda que se investiguem as razões psicológicas para tal ou tal atitude, também estas serão máscaras de leitura. Numa belíssima síntese, Pirandello exprime, por meio do personagem Pai da peça Seis personagens à procura de um autor, a essência da incomunicabilidade enquanto fenômeno interpessoal: Pai – Mas todo o mal está nisso! Nas palavras. Todos trazemos dentro de nós um mundo de coisas: cada qual tem seu mundo de coisas! E como podemos entender- nos, senhor, se, nas palavras que eu digo, coloco o sentido e o valor das coisas como são dentro de mim, enquanto quem as ouve lhes dá, inevitavelmente, o sentido e o valor que elas têm para ele, no mundo que traz consigo? Achamos que nos entendemos... e nunca nos entendemos! (...). (Pirandello, 1977, p. 57) A diferença entre esta abordagem da incomunicabilidade em relação àquela feita pela psicanálise consiste, basicamente, no relevo dado aqui aos conceitos de sentido e valor das coisas, numa visão presente e consciente do pensamento do indivíduo, sem a prioridade de lhes investigar causas passadas armazenadas pelo subconsciente ou inconsciente. E não se trata apenas de sentido, este explicável por meio de dados objetivos, mas também de valor, como resultado íntimo da (re)construção permanente da subjetividade de cada um. 17 A incomunicabilidade e a solidão do indivíduo são características inatas do ser humano, mas só na modernidade elas apareceram problematizadas no âmbito artístico- filosófico. Usufruindo da decorrente liberdade de um novo tempo em ascensão, e da necessidade de refletir acerca de sua condição no mundo, o homem retomou idéias do Renascimento e pôde, novamente e enfim, alçá-las aos parâmetros de (falta de) sentido da vida que, juntamente com a origem do mundo, formaram os pilares da filosofia clássica. Grandes questões, como a existência ou não de Deus, voltaram ao cenário filosófico com ainda mais vigor. A consciência de estar só num mundo povoado de outros eus sós germinou uma filosofia do pessimismo, da descrença, e uma das motivações de tais conjecturas nada reconfortantes foi justamente a incompreensão entre os homens e a intolerância resultante. O antropocentrismo não chega a ser uma opção consciente entre o homem ou Deus, mas a conseqüência de uma filosofia que matou Deus, e, portanto, não há escolha: só resta o homem. No Renascimento, se Deus não tinha morrido, ao menos uma dúvida se instalou no espírito dos homens que se viram como centro de um universo, ainda que particular. Com a Modernidade, a figura divina foi banida, e isso é conseqüência e causa de outras transformações: resulta de uma descrença provocada por guerras e todo tipo de sofrimento que o homem experimentou; e deságua numa falta de escrúpulos bastante difundida a partir do capitalismo. Nas palavras de Kirílov, personagem suicida do romance Os Demônios, de Dostoievski, “se Deus não existe, eu sou deus” (Dostoievski, 2004) — a obra será abordada adiante. A filosofia do niilismo mostra o homem órfão de Deus, ignorante quanto a seu objetivo de vida e agnóstico em relação ao futuro pós-morte, já que não há transcendência possível e só o que resta é a realidade da caverna. Cada ser humano deve ser, portanto, responsável por seus atos; o livre arbítrio não é apenas um direito, mas também um compromisso do homem consigo. Se Deus não existe neste novo tempo, também não há pecado ou punição que não parta do próprio homem, ou do agrupamento destes, chamado sociedade. Para Schaeffer (1985), a modernidade traz à tona o que chamou “linha do desespero”, ruptura bastante abrangente que determina os níveis de relações do ser humano consigo, com o outro e com o mundo circundante. As possibilidades de transcendência do 18 absurdo para os existencialistas, nota, encontrar-se-iam na experiência. Para Jaspers, uma “experiência final”, distanciada de tal maneira da realidade que não pode ser comunicada. De acordo com o pensamento de Sartre e Camus, ainda segundo Schaeffer, basta “um ato de vontade” para legitimar, autenticar a existência do ser humano. Dois caminhos parecem se delinear para o homem que deseja permanecer vivo no mundo da modernidade. O primeiro aponta para a negação da individualidade e a aceitação da aparência, de ser um ser social, o que implica certo anonimato, certo suicídio filosófico (Camus, 1989, p. 47). Nega-se a possibilidade da experiência e continua-se, portanto, abaixo da “linha de desespero”. Quanto ao segundo caminho, enfatiza-se a subordinada “eu sou deus” da formulação de Dostoievski, no desejo de identificar-se individualmente por meio da experiência. Não há a unidade de Deus que organize o caos existente e latejante em que se encontra a humanidade, então cada um deve cuidar de sua vida, única e concreta, como melhor lhe aprouver, por vezes conhecendo, outras ignorando, as conseqüências de suas ações. De um lado, o pessimismo de Schopenhauer; do outro, o de Nietzsche: Em sua ‘visão trágica da vida’, Nietzsche estava seguindo Schopenhauer, mas chegou à conclusões exatamente contrárias. Schopenhauer enfatizava a necessidade de negar a vida – ou a Vontade –, por ser ela uma força terrível e absurda, enquanto a tendência geral do pensamento de Nietzsche inclinava-se de fato para a afirmação da vida (...). (Kuna, 1989, p. 364) A influência que a filosofia de Nietzsche exerceu sobre toda a modernidade é, com efeito, muito grande e sensível ainda hoje. Impossível pensar os movimentos de vanguarda artísticos e o existencialismo filosófico sem a presença quase palpável de Nietzsche, uma aura de niilismo que envolveu o século XX e foi reforçada sobretudo pelas duas Guerras Mundiais, além da Guerra Civil espanhola e a Guerra Fria e, mais atualmente, a Guerra do Vietnã, a do Golfo, as Guerras santas na região da Palestina... A “filosofia da tragédia” de Nietzsche, assim nomeada por Chestov (1926), pode não estar ligada diretamente às guerras, mas é por elas ilustrada, na medida em que não existem soluções de convivência entre os indivíduos e seu destino natural é a solidão. O bem estar da sociedade aparece mais como argumento falseado para declarações de guerra do que como sua própria causa, o egoísmo oriundo do “tudo é permitido”, metamorfoseando-se freneticamente em vários tipos de intolerância. No caos, ou o homem 19 adere a totalitarismos, seguindo a postura social, ou faz uso de sua incomunicabilidade, mantendo-se à margem de disputas sociais. Vivendo sob o clima de lutas, intolerância, o homem do século XX que a arte moderna deverá retratar não acredita mais no poder da comunicação, pois esta fora transformada em meio de manipulação da realidade. Artistas das vanguardas, sobretudo dadaístas e o surrealistas, mostraram-se sensíveis às mudanças que se operaram na sociedade e iniciaram o que o teatro do Absurdo, alguns anos mais tarde, traduziria por uma tragédia da linguagem. A “destruição completa dos meios de expressão” desejava denunciar o quanto a linguagem deixara de ter sentido, servindo apenas como convenção social; sua negação, contudo, “corresponderia ao silêncio absoluto, ao suicídio intelectual” (Hauser, 1972). A “desumanização da arte” (Ortega y Gasset, 2003) pode ser verificada sobretudo nos artistas que compõem os chamados “ismos” do início do século. Ali, separam-se radicalmente homem e arte; mundo e arte. O figurativo já não interessa, ao menos não no modelo romântico que se estende até o impressionismo, bem como seus padrões de beleza, refutados com veemência. (...) o novo estilo, tomado em sua mais ampla generalidade, consiste em eliminar os ingredientes ‘humanos, demasiado humanos’, e reter só a matéria puramente artística. (...) A primeira conseqüência que traz consigo esse retraimento da arte sobre si mesma é tirar desta todo o patetismo. Na arte carregada de ‘humanidade’ repercutia o caráter grave anexo à vida. Era uma coisa muito séria a arte, quase hierática. Às vezes pretendia nada menos que salvar a espécie humana — em Schopenhauer e em Wagner. (Ortega y Gasset, 2003, p. 75-76) Na nova arte, comunicar é menos importante do que a idéia de radicalização dos meios por si mesmos, de modo que o homem é banido da concepção de arte. Picasso, em muitos de seus quadros, desfigura o homem. Ao destituir também o ambiente de sua qualidade figurativa, o pintor harmoniza homem e mundo numa realidade absurda, mas a única possível para abrigá-los assim como se mostram: fragmentados. O elemento dissonante não está dentro de sua obra, já que nela desfez-se a tensão entre homem e mundo, mas na relação entre ela e certo padrão universal de normalidade, de modo que torna, não o homem retratado, e sim o artista, à solidão de sua obra incomunicável. 20 Após esse primeiro momento de ruptura, a figura humana volta a fazer parte da cena, sendo objeto retratado artisticamente, e a tônica passa a ser, então, a relação entre o ser e a realidade, num todo fragmentado que não mais exclui o homem. A ‘humanidade’ é retomada, mesmo que para demonstrar seu avesso, a nostalgia de uma humanidade mítica, ausência que já nasce com o homem. É com base na dualidade homem/mundo, e em tudo o que ela implica, que a arte moderna e, em especial, a literatura, se estrutura. Temática que perpassa a literatura moderna, a tensão entre o homem e o mundo pode se dar em diferentes níveis (Bosi, 1994), chegando mesmo a ora excluir uma, ora outra de suas partes, mas, ainda que incompleto o conjunto, a tensão continuará ali, pulsante, pela ausência da parte amputada. O homem busca comunicar-se com o mundo, onde o indivíduo é necessariamente solitário, e acaba encontrando sua consciência (e sua existência) em meio ao absurdo. A Incomunicabilidade na Literatura: de Baudelaire a Saramago Um breve panorama da literatura moderna demonstra, por um lado, a profunda sintonia entre as transformações ocorridas na história do pensamento desde a Revolução industrial e sua representação artística e, por outro, a força de influência dessa literatura nos tempos atuais. Até que aconteça uma nova revolução, continua-se a sentir os ecos daquela que, embora longínqua, determinou tudo o que se chama de modernidade e além, a contemporaneidade. O poeta Charles Baudelaire é considerado o inaugurador da literatura moderna, tendo sido o termo “modernidade” utilizado e defendido por ele. Só no começo do século XX é que a prosa parece ter assimilado e produzido uma literatura inserida na modernidade, podendo ser ilustrada pela brilhante obra de Kafka, que trata tão de perto o tema da incomunicabilidade. A ficção ensaística de Camus dialoga com os perturbadores romances de Kafka e deve colaborar para a elucidação do conceito ainda rarefeito de incomunicabilidade. Por fim, o teatro moderno, que precisou de mais tempo para a assimilação das inovações artísticas, por se tratar de uma arte que envolve, além da 21 literatura, a representação. Eugène Ionesco, dramaturgo mais coerente ao absurdo do Teatro do Absurdo, revela potencializadas essas inovações. A seguir, veremos como alguns autores da literatura moderna retrataram o fenômeno da incomunicabilidade. Em obras de Baudelaire, Camus, Dostoievski, Saramago, Kafka, Beckett e Ionesco, procuro reter a imagem de um conceito; os autores e obras citados constam de meu repertório pessoal, não se pretendendo, pois, estabelecer um “cânone” da incomunicabilidade, mas sim impressões a respeito de textos representativos. As dificuldades de comunicação do ser humano mostradas artisticamente constituem a base para este estudo e norteará a análise do teatro de Nelson Rodrigues. Na modernidade, o ser humano individual, ou inexiste por ter se amalgamado à massa uniforme que pensa em conjunto (trata-se da inexistência do eu não-pensante, do eu individual ao se tornar multidão), ou cala e, à margem, transita entre a solidão e a incomunicabilidade, transformado assim no anti-herói moderno. Ambas possibilidades foram bastante retratadas na literatura do século XX; de um lado, personagens nada extraordinários que levam uma vida medíocre — geralmente ilustrada pelo emprego público — a quem, um dia, um acontecimento altera a ordem natural das coisas. De outro lado, personagens anti-heróicos em sua essência que, desde o início, são apresentados como marginais para a sociedade. Quanto aos primeiros, um cotidiano banal é interrompido por algo extraordinário. Obrigado a lidar com o problema, o personagem questiona então sua vida e hábitos, e, mais profundamente, o próprio sentido da vida. Antes de acontecer a ruptura, no entanto, a incomunicabilidade não incomoda esse tipo de falso herói, por ter se tornado parte natural de sua vida: o casamento reduzido às conversas banais, ao bom-dia todos os dias; no emprego, as informações essenciais para se desempenhar um bom trabalho; em reuniões de amigos, generalidades da vida cotidiana. Alterada a ordem da vida do personagem por um acontecimento imprevisto, ele logo questiona o invólucro em que vivia e a falta de verdade em suas relações, com as quais deve romper a fim de se encontrar. O qualificativo falso empregado acima para designar esse tipo de herói é apenas o eco da falsa epopéia do personagem que, acreditando em seus pequenos ideais de felicidade, fecha-se para o mundo e não vive, portanto, mais do que a saga de todo ser vivo: nascer, crescer, frutificar e morrer. O imprevisto, que não precisa ser fantástico, aparece 22 para desmascarar o falso herói diante de si mesmo, tal um espelho que vem lhe mostrar sua verdadeira face, e é então que começa sua saga como herói. Meursault, personagem do romance O Estrangeiro, de Albert Camus, é, no início da narrativa, o homem absurdo que ainda não sabe disso. Um funcionário médio que cumpre com suas obrigações e não demonstra grande entusiasmo pela vida; para ele, tudo “tanto faz”: a morte de sua mãe, o namoro com Marie, a promoção oferecida. O protagonista é retratado como um ser neutro em sua banalidade, em seu automatismo; não possui uma marca pessoal ou, por outra, sua marca é a indiferença. Quando preso por assassinato, na segunda metade do romance, a ausência de tudo, principalmente da liberdade, faz com que ele considere o nonsense em que havia vivido até então. É a consciência de existir que faz a existência real (Campbell), tal como em Descartes: “Penso, logo existo”. Para Meursault, refletir é o melhor emprego a fazer de um tempo longo e obscuro passado dentro da cadeia e, mais, uma necessidade, um impulso. É a partir daí que chega a algumas conclusões interessantes e começa a modificar- se, construir-se. O hábito de fumar, por exemplo, vira o hábito de não fumar: tudo são hábitos, convenções, aos quais o ser humano tende a se prender para que haja algum sentido em estar no mundo. Avalia o poder da retórica durante seu julgamento e reconhece o valor das aparências. O personagem é, por fim, condenado, não pelo assassinato em si, mas por não corresponder às exigências da sociedade, por sua indiferença para com valores estabelecidos como bons e verdadeiros. Condenado dentro da história, Meursault pode representar o julgamento de Camus em relação ao homem que, negando convenções, nada propõe que as substitua. Falta ao personagem uma vontade qualquer, algo mais verdadeiro do que as ações automáticas executadas dia após dia. Assim, o promotor brilhantemente acusa o réu, afirmando que ali se trata de um demônio que nada leva na alma e que deve responder por essa acusação; o assassinato seria apenas circunstancial. Meursault reconhece que a atuação do promotor foi melhor do que a do advogado de defesa. A incomunicabilidade presente no romance O Estrangeiro traduz os conflitos existentes entre o protagonista e o que o cerca, tanto personagens secundários quanto a própria sociedade, em seu tempo e espaço. A relação de Meursault com a mãe, por exemplo, aparece como algo vago, quase nulo; Marie perturba-se com a personalidade do 23 namorado, tenta pressioná-lo mas não encontra senão desapego, o mesmo demonstrado na prisão. Ora, como haveria de se fazer compreender quando o auto-conhecimento ainda andava distante? O momento da tomada de consciência é precedido por inventário minucioso do que teria sido a vida de Meursault até então e a falta de comunicação coincide com a falta do quê comunicar, uma vez que poucas coisas lhe importavam de fato. Já na segunda metade do romance, o protagonista revela uma mudança capital, mas não repentina; é antes construção que se dá aos poucos. O fato de ser narrador de sua história permite-lhe mostrar, sem contar, a mudança que a falta de liberdade provocou em seu ser. É então que a narração flui de maneira mais contínua, do ponto de vista de um narrador envolvido com sua história, que outrora era apenas um observador de suas próprias ações. Entre as reflexões que este narrador em construção apresenta, ao menos uma está diretamente relacionada ao tema da incomunicabilidade. Trata-se de uma notícia de jornal, que funciona no romance como um misto de anedota e parábola. Anedota pelo tom irônico empregado pelo narrador diante de uma tragédia; parábola na medida em que expõe um ensinamento, resultado este de um novo modo de pensar. Bem como o personagem da notícia, transcrita abaixo, também Meursault é condenado por sua incomunicabilidade. Entre a esteira e o estrado, encontrara, com efeito, um velho pedaço de jornal, amarelecido e transparente, quase colado ao tecido. Relatava um acontecimento, cujo início faltava, mas que devia ter sucedido na Tcheco-Eslováquia. Um homem partira de uma aldeia tcheca para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico, regressara, casado e com um filho. A mãe dele e a irmã tinham um hotel na aldeia. Para fazer-lhes uma surpresa, deixara a mulher e o filho em outro estabelecimento e fora visitar a mãe, que não o reconheceu quando ele entrou. Por brincadeira, tivera a idéia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o seu dinheiro. De noite, a mãe e a irmã assassinaram-no a marteladas e atiraram o corpo no rio. Na manhã seguinte, a mulher viera ao hotel e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A mãe se enforcara. A irmã atirara-se num poço. Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverossímil. Por outro lado, era natural. De qualquer forma, achava que o viajante o merecera até certo ponto, e que nunca se deve brincar assim. (Camus, 1995, p. 83) Meursault sabe que a omissão acabará por condená-lo e, mesmo assim, mantém sua postura, que consiste justamente em não se posicionar, uma espécie de não-postura; de certa maneira, ele se suicida. O personagem encarna parte do pensamento de Camus exposto no ensaio filosófico O Mito de Sísifo. 24 A vida sem sentido e absurda da modernidade, em que nenhum caminho é satisfatório, remete ao mito de Sísifo, condenado pelos deuses a rolar uma pedra montanha acima, mesmo sabendo que ela cairá e tudo deverá recomeçar, num esforço inútil e eterno. Albert Camus, no ensaio mencionado, trata da questão básica do absurdo e a relação deste com o suicídio; recorre, pois, à mitologia para refletir um arquétipo da condição humana, a saber, a falta de sentido da existência. Após considerar possíveis motivos para que alguém chegue ao extremo de pôr fim à própria vida, Camus acaba por negar tanto o suicídio físico quanto o ontológico, por não representarem, nem um nem outro, saída digna ou mesmo eficiente. Assim como viver é inútil, morrer também o é. Quanto ao suicídio físico, parece bastante claro o que significa: na atitude extremada de negar a vida, o homem se mata. Mas essa não é a única maneira de suicidar- se; anular a individualidade e continuar a viver, sem convicções ou vontades, está em acordo com o que se chamou suicídio ontológico. O homem deixa de ser sujeito de sua vida e não age sobre ela, mas permite que fatores tais que tempo, espaço e sociedade se combinem para moldar sua essência. “A existência precede a essência”, afirmou Sartre, que também disse que “o homem está condenado a ser livre”, reflexões que fundaram o Existencialismo, presentes na obra O Existencialismo é um humanismo. A existência seria, então, resultado de escolhas conscientes, constantes e obrigatórias. Suicidar-se no âmbito ontológico pode ser entendido como o ato de negar o livre-arbítrio e, ao invés de escolher, resta ao homem apenas aceitar o que lhe é imposto, tal um ser vazio que se preenche aos poucos. Reside justamente no princípio do livre-arbítrio o humanismo da filosofia de Sartre, pois já que Deus não existe, o homem deve decidir por si e pelos outros homens, de modo que cada um é responsável por sua existência e pela humanidade. Assim, o escolher individual funcionaria como espelho para que outros pudessem também optar livremente; o homem é o modelo para o homem e cada um é, portanto, deus. A partir da idéia de que há possibilidades várias a todo momento, cada ação ganha em expressividade no sentido de formar a essência do ser humano; todos os movimentos são fundamentais no processo de construção do eu. Valores vão se formando de acordo com a experiência de praticá-los no dia a dia, e não devem ser simplesmente aceitos 25 enquanto padrões de bondade ou justiça, numa falaciosa essência. Esse aceitar sem refletir, sem experimentar, faz parte da constituição do ser vazio, não do verdadeiro homem. Quando Meursault atira no árabe, ele o faz sem pensar, movido sobretudo pelo calor que o incomoda, uma circunstância. A transformação que a falta de liberdade opera faz com que ele se perceba como homem, um indivíduo completo. Isso não quer dizer, no entanto, que vá se tornar melhor para os padrões morais da sociedade; Meursault continua sendo o homem absurdo, cujas escolhas — e a incomunicabilidade é uma delas — o libertam e condenam. Libertam, na medida em que o personagem não se corrompe nem assume idéias alheias para se salvar; acaba condenado por manter sua postura. No poema O Estrangeiro, de Charles Baudelaire (tradução nossa), que tão bem dialoga com a obra de Camus, um exemplo de homem absurdo, alheio a valores morais estabelecidos pela sociedade e a incomunicabilidade entre ele e seu interlocutor, responsável este por chamar estrangeiro ao homem que não pode compreender: O ESTRANGEIRO — Quem amas mais, homem enigmático, diga lá. teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? — Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. — Teus amigos? — Vós vos servis de uma palavra cujo sentido me é até hoje desconhecido. — Tua pátria? — Ignoro sob qual latitude ela está situada. — A beleza? — Amá-la-ia prontamente, deusa e imortal. — O ouro? — Odeio-o tanto quanto vós a Deus. — Então que amas tu, singular estrangeiro? — Amo as nuvens... as nuvens que passam... ao longe... ao longe... as maravilhosas nuvens! No poema em prosa de Baudelaire temos, antes de qualquer outra coisa, o duplo significado de l´étranger, que é tanto estranho quanto estrangeiro. Não é necessário optar: estranho e estrangeiro, o personagem do poema é um ser sozinho diante de um interrogatório a respeito de valores que não são seus. 26 Família, pátria, dinheiro, nada disso parece importar a este homem singular e (in)diferente. O único valor que lhe atrai é a beleza, a qual “amaria prontamente”, mas o próprio tempo do verbo indica suposição, distância: a beleza não está ali, junto dele e, portanto, não pode amá-la. Por fim, eis que se descobre o verdadeiro objeto de amor do estrangeiro: as nuvens que passam além. Um poema que remete ao mundo das idéias de Platão, sem dúvidas, mas também marcado pela incomunicabilidade, na medida em que não há entendimento possível entre o inquiridor e o estrangeiro. Este, aos olhos daquele, é “singular”, “enigmático”, porque não compartilha dos valores mais caros à humanidade enquanto multidão. A diferença se encontra justamente na indiferença demonstrada pelo estrangeiro em relação às coisas do mundo sensível, preferindo a beleza e as nuvens que se encontram além. Baudelaire marca o início da literatura moderna e isso se deve a vários fatores; a distinção entre o ser social e o indivíduo, mostrada acima, é um deles. Há, além disso, inovações de forma, como a estrutura da prosa servindo ao lirismo e às sonoridades da poesia e, nos temas, o sentimento profundo de solidão do homem em meio ao surgimento de multidões e a representação das metrópoles — produtos da Revolução Industrial. O poema O cisne traz a representação artística da nova Paris, cidade de concreto e asfalto onde o cisne agoniza. A tradução é do poeta Ivan Junqueira: O CISNE A Victor Hugo I Andrômaca, só penso em ti! O curso de água, Espelho pobre e triste onde já resplendeu, De teu rosto de viúva a majestosa mágoa, O Simoente falaz que ao teu pranto cresceu, Agora fecundou minha fértil saudade, Como eu atravessasse o novo Carrossel. Morto é o velho Paris (a forma da cidade Muda bem mais que o coração de uma infiel); Só em pensamento vejo os campos de barracas, Os fustes aos montões, as cornijas rachadas, Os muros de um verniz verde, as ervas opacas, O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas. 27 No outro tempo existiu neste ponto um aviário; Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário Manda ao ar silencioso obscuro furacão, Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas Dos seus pés atritando o pavimento iníquo, Arrastava no chão as grandes plumas claras. Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico, Suas asas banhou na poeira, num desmaio, E dizia a sonhar com seu lago natal: “Água, não choverás?” Não trovejarás, raio?” Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal, Às vezes para o céu, como um homem ovidiano, Para o céu de um azul cruel e tão irônico, Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano, Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico! II Paris mudou! Porém minha melancolia É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos, Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria, Minhas lembranças são mais pesadas que socos. Também diante do Louvre uma imagem me oprime: Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz, Exilado que ele é, ridículo e sublime, Roído de um desejo infindo! Como em vós Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo, Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno, Junto a tumba vazia, em langor doloroso Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno! Vou pensando na negra a fanar cor de terra: Busca de pés na lama e de olhar tão bravio Ausentes coqueirais que sua África encerra Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio; Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor, Onde soem mamar, como de boa loba, Nos órfãos a mirrar mais secos de que a flor! E na floresta, que meu pobre corpo trilha, Soa como buzina uma velha lembrança. Penso no marinheiro esquecido numa ilha... Nos vencidos de sempre e nos sem esperança! A primeira parte do poema mostra a mudança operada pela Revolução Industrial, que transformou Paris numa cidade de asfalto e poeira, onde o eu-lírico vê o cisne se 28 debater em busca de água; na segunda parte, a seqüência de reflexões e lembranças que a visão do cisne desencadeou no espírito do poeta. A imagem do cisne, evocada pelo poeta, é triste: “seus pés atritando o pavimento iníquo” enquanto as “plumas claras” se sujavam ao arrastarem no chão; o animal, com sede, não encontra água. É a este animal que o poeta chama “mito estranho e fatal”, representativo – daí ser mito – do homem moderno, condenado a viver no mundo sem Deus (“enquanto envia a Deus seu riso sardônico!”). A ironia desse questionamento reflete a angústia do indivíduo que não tem a quem dirigir suas preces; reflete, enfim, a absoluta solidão do ser humano. Na segunda parte, as lembranças do eu-lírico se mesclam às reflexões que a imagem do cisne despertou. “Ridículo e sublime”, o cisne é um “exilado” em meio à multidão, com o qual o poeta tende a se identificar, pois mostra-se também oprimido, batido por lembranças de algo que já não existe. A obra de Baudelaire está repleta de estrangeiros, seres sozinhos que não têm com quem se comunicar, e nesse poema, em especial, além da imagem do cisne, temos a da negra, “atrás do muro imenso, o da bruma e do frio”, barreira que a separa de seu lugar, seu povo. Na cidade, que o poeta chama de “floresta” na última estrofe, seu ser mostra-se incompleto (“meu pobre corpo trilha”), pois seu pensamento não está ali, e sim “no marinheiro esquecido numa ilha.../ nos vencidos de sempre e nos sem esperança!”. O cisne, a negra, o marinheiro, personagens que têm em comum a sina de serem exilados, condenados ao silêncio por estarem fora de lugar; a incomunicabilidade, para eles, se dá pela existência do “muro” que separa o homem do meio. Já para o eu-lírico, o próprio poema é o exercício da comunicação e outra é a barreira que o separa do mundo: o tempo. As lembranças que constróem o poema são de uma época de completude e simplicidade; porém, “morto é o velho Paris”, e a constatação de que o tempo passou faz de recordar um ato inevitável — pois as imagens simplesmente vêm — e, ao mesmo tempo, doloroso — já que surgem revestidas de melancolia. Na literatura contemporânea, pode-se pensar em alguns personagens de romances de José Saramago que, como os estrangeiros de Baudelaire e mais próximos ainda de Meursault, do romance de Camus, eram seres vazios (falsos heróis) até o momento da ruptura, quando começa a saga do herói. O romancista português, contudo, reveste os 29 dramas de seus personagens com uma roupagem mais humanista e menos racionalizante, talvez porque distanciado temporalmente do sentimento do entre e pós-guerras e do existencialismo que dominava o pensamento na época de Camus e Sartre. Talvez, ainda, em decorrência de se tratar aqui de literatura, e não propriamente de filosofia. No romance História do cerco de Lisboa, a ruptura se dá quando o personagem central, um revisor, acrescenta um não significativo à obra com a qual trabalha no momento. Este lampejo de insubordinação transforma a vida do protagonista, que se vê envolvido em uma história nova: a que ele acabou por criar. Como conseqüência de seu ato aparentemente irresponsável, surgem emoções às quais não estava habituado, tais como o amor e a insatisfação. Ao afirmar que “os cruzados não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa”, Raimundo nega a história e opta por construir uma outra, de acordo com a sua recém formulada verdade. É então que principia a saga do herói, na medida em que existe a consciência de se arriscar por algo em que acredita, mesmo sabendo não ser essa a verdade histórica. Em passeios por Lisboa, imagina a nova versão desenrolando-se diante de seus olhos e passa a reconstruir a cidade, bem como a si mesmo, por meio da literatura. Ao mesmo tempo, sofre com as cobranças do grupo que representaria o poder da sociedade, circunscrito no romance ao ambiente de trabalho. Individualizado por escolha própria, o personagem não mais se adapta às exigências de auto-anulação que a sociedade lhe imputara e que vinha aceitando até então. Contudo, a figura feminina que aparece como um castigo na personagem de chefe, logo superior na hierarquia e representativa da sociedade, é a mesma que provoca em José o despertar do sentimento afetivo. Em processo aparentemente paradoxal, a mesma ruptura que lhe permitiu apaixonar-se também instaura um novo tipo de incomunicabilidade: a do relacionamento amoroso. Mais uma vez, o protagonista é levado a adotar máscaras sociais, a fim de aproximar-se da mulher amada. O comportamento forçado e estratégico, que o obriga a pintar os cabelos, por exemplo, aos poucos se naturaliza e vem a constituir um desdobramento da personalidade de Raimundo, algo que ficara obscurecido por determinada postura vigente até então, mas que já não satisfaz, tendo que ser reformulada. Assim, a transformação do personagem se dá por motivações antagônicas: de um lado, a 30 negação de certas verdades comuns para substitui-las pela verdade pessoal; do outro, a aceitação de parâmetros sociais necessários para se chegar a um objetivo maior. No romance de Saramago, primeiro existe o despertar de uma consciência para depois haver a possibilidade do livre-arbítrio. Raimundo descobre que a vida em sociedade é necessária, e pode ser benéfica, mas para isso o indivíduo deve se permitir uma reconstrução constante, que demanda coragem para escolher sempre. Afirmar sua existência e chegar, enfim, a trilhar o caminho do herói foram atitudes que exigiram do protagonista mais do que seu talento de revisor; em vez disso, Raimundo passou a ser autor de sua história. Há, porém, personagens apresentados logo como anti-heróis, na medida em que não se identificam com ideais de subserviência e bondade e que são, por opção, marginais em relação à sociedade. São loucos, bêbados, ou tão somente diferentes do grupo social que os cerca, e que os considera loucos, bêbados... Vivem, em geral, no submundo impessoal das pensões ou então não moram, mas transitam por espaços vários; não se importam com a família, ou simplesmente não têm uma, nem sólida relação amorosa; são seres sozinhos e, se há angústia, há também o orgulho de ser assim, de não se render. Desta maneira, a incomunicabilidade se liga ao anti-heroísmo como quase uma condição, mais do que como sua conseqüência: o anti-herói é, antes de tudo, o incompreendido pela sociedade e que não quer se fazer compreender, dificulta suas relações, pois sua postura e sua filosofia de vida necessitam de solidão. É então que, dentro da narrativa, sua presença repele os outros personagens, despertando neles sentimentos tais que compaixão, ódio, mágoa. No romance Os Demônios, de Dostoievski, existem, pelo menos, três anti-heróis importantes: Stépan Trofímovitch, Nikolái Vsevolódovitch e Kirílov, três suicidas. Relato de uma época de revolução, a obra traça um panorama dos níveis de relações que se usava estabelecer e do caráter/pensamento humano em transformação. A começar por Stépan Trofímovitch, este se apresenta como um professor, homem de idéias revolucionárias, sim, mas nem bárbaro, nem entusiasta de ações extremadas, o que se justifica devido à idade um tanto avançada e a sua condição de agregado. Com o auxílio da amiga Varvára Petrovna, o personagem tem tudo de que precisa para sobreviver e poderia, assim, levar uma vida tranqüila junto aos livros e aos raros amigos. Entretanto, 31 sua profunda inquietação não se resolve materialmente e lida com culpas das quais não é capaz de se livrar: em relação ao filho, que abandonou e cujas terras vendeu; para com a amiga, a quem ama sinceramente, mas não consegue confessar-lhe e que, além disso, paga suas contas. Onde residiria o heroísmo de personagem aparentemente tão acovardado? Ora, é na solidão ou na companhia do narrador-ouvinte que Stépan Trofímovitch revela a nobreza de seus sentimentos e a crença em determinados valores. Escolhera a incomunicabilidade como opção de vida por não se identificar com convenções; como resultado, tratou de censurar-lhe a sociedade como alienado e ultrapassado. Por fim, numa atitude entre débil e corajosa, foge de casa e das pessoas que o cercam. Tal como um suicídio, a fuga do personagem é movida por extremas coragem e covardia. Tendo escolhido a incompreensão, vai embora sem falar com ninguém, numa espécie de vingança silenciosa contra as humilhações que sofrera, mas não parece haver aí uma intenção má, e sim a supremacia da vontade de ser livre por completo. Sim, pois a liberdade de pensamento do personagem não condizia com a prisão material e afetiva em que Varvára Petrovna o havia posto, a qual ele aceitava gritando baixo para que a amiga não o ouvisse. Lampejo tardio de auto-suficiência, a fuga revela a infantilidade do personagem, numa relação temporal circular, em que o velho volta a ser criança. A irresponsabilidade acaba por levá-lo à morte. Mas não teria sido de fato esta a intenção de Stépan Trofímovitch? Sob a aparente inconseqüência, poder-se-ia esconder uma escolha consciente do personagem, guiado pelo livre-arbítrio há tanto buscado, que lhe permite, entre outras coisas, aceitar a idéia de Deus. A incomunicabilidade em que se encerrou Stépan Trofímovitch, e na qual o encerraram, leva-o ao suicídio físico, mas não ao filosófico; ao contrário, é justamente na fuga que o personagem parece exercer o pleno domínio de seu pensamento. Quanto a Nikolái Vsevolódovitch, trata-se aqui de um anti-herói que se apresenta como tal desde o início da história, com desvios de caráter os mais variados, mas que possui uma qualidade nebulosa e cativante. Sabe-se que é violento, inconstante, arredio a valores tradicionais, como família, amor, mas algo há nele que aproxima as pessoas e chega 32 mesmo a criar uma dependência, como se ele fosse o centro e os demais personagens orbitassem ao seu redor. Escondido sob o clã de entusiastas, Nikolái demonstra intimamente a solidão em que se encontra, sobretudo no polêmico capítulo em que se confessa (capítulo que chegou a ser suprimido pelo autor), entre a auto-piedade e o orgulho de sua individualidade. Quando revela suas baixezas mais profundas é que o personagem faz surgir a coragem dos heróis, o que não o exime de suas características anti-heróicas e, portanto, das expectativas em relação ao seu comportamento. A confissão, por princípio um ato de comunicabilidade, emerge justamente de seu oposto: a incomunicabilidade sufocante que até então dominava as relações de Nikolái com o mundo e consigo próprio e que, após a confissão, voltará à posição em que estava. Assim, o momento de compreensão plena do personagem dura um capítulo para, logo em seguida, desfazer-se novamente em máscaras sociais mais ou menos descartáveis. Na derradeira afirmação de sua individualidade, Nikolái Vsevolódovitch se suicida, mas aqui não parece tratar-se de irresponsabilidade ou fuga pura e simples, mas sim de um ato de convicção. Tendo se exilado ao máximo, nem assim o personagem pôde evitar que crimes fossem cometidos por sua causa; culpa irremediável em vida, encontrou saída no suicídio, e o fato de decidir por esta opção diminui o peso do castigo para substituí-lo pela idéia de alívio, numa relação causa-conseqüência menos lógica, mais pessoal. Quando decide se matar, Kirílov o faz para afirmar a vida e é, portanto, sua consciência de existir que o leva ao suicídio, mesmo sabendo que sua morte servirá a objetivos que não são seus, mas, para ele, já não importa. O terceiro suicida do romance de Dostoievski difere-se dos outros por ser, talvez, o mais próximo do herói trágico, pois, segundo Camus (1989, p. 130), “não é, assim, o desespero que o impele à morte, mas o amor ao próximo como a si mesmo”. Enquanto os outros se mataram por razões pessoais, Kirílov buscava sua libertação e a da humanidade. Kirílov não crê na existência de Deus e afirma que Jesus teria vivido e morrido por uma mentira; o personagem que diz “se Deus não existe, eu sou deus”, em certa medida, também é Cristo. A divindade de que se trata é, portanto completamente terrena. ‘Procurei durante três anos’, diz Kirílov, ‘o atributo da minha divindade e o encontrei. O atributo da minha 33 divindade é a minha independência’. Percebe-se, daí em diante, o sentido da premissa kiriloviana: ‘Se Deus não existe, eu sou deus’. Tornar-se deus é apenas ser livre sobre esta terra, não servir um ser imortal. É sobretudo, indiscutivelmente, extrair todas as conseqüências dessa dolorosa independência. Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Para Kirílov, como para Nietzsche, matar Deus é converter-se a si próprio em deus — é realizar nesta terra a vida eterna de que falam os Evangelhos. (Camus, 1989, p. 129) A vida sem Deus da modernidade é refletida pelo caos para o qual não há solução; a ação é tão inútil quanto a espera por algo ou alguém que não virá. Na peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, o que se pode ver é a representação desse estado de espírito do homem moderno que aguarda inutilmente, em angústia inerte, a salvação personalizada no Mestre que nunca aparece. Vladimir e Estragon, incapazes de agir sozinhos, param suas vidas em função de uma esperança pouco delineada; não sabem quem é o mestre, nem ao certo por que anseiam tanto por ele, mas o fazem resignados e absurdos. O absurdo da existência é demonstrado nesta peça carregada da aura niilista do período que compreende a Segunda Guerra Mundial. Godot, protagonista invisível do drama, cujo nome remete a Deus (god, em inglês) — mas que, na verdade, era o nome de um amigo de Beckett —, encarna no imaginário das personagens a esperança de uma transformação e o retorno a um centro, de modo a restituir o sentido do mundo. Vladimir e Estragon, os mendigos que esperam Godot, no entanto, não parecem ter consciência de sua situação; representativos da ótica pessimista do autor, os personagens são ainda mais emblemáticos do absurdo dados o otimismo e a ignorância com que aguardam o Mestre. Firmes no objetivo a que se propuseram, os personagens não se deslocam espacialmente, permanecendo atados ao lugar do esperado encontro; o tempo, por sua vez, não é estático e continua a passar, o que pode ser observado pelas folhas que brotam na árvore, parte do cenário. A combinação entre a unidade de espaço e a passagem do tempo colabora para o efeito de nonsense do drama, na medida em que isola os personagens e os condena eternamente à existência absurda. Beckett é um dos expoentes do chamado Teatro do Absurdo, do qual também participa Eugène Ionesco. A idéia de um movimento de vanguarda, entretanto, não partiu dos autores, mas do crítico Martin Esslin que deu o nome a um novo tipo de dramaturgia, exercitada sobretudo na França nos anos 50. Parentescos de pensamento e forma foram os 34 critérios utilizados pelo estudioso para agrupar os dramaturgos do absurdo, sistematizando assim o gênero. Considerada um marco inicial do Teatro do Absurdo, a peça A cantora careca, de Ionesco, apresenta, com efeito, alguns pontos de contato com Esperando Godot, de Beckett. A personagem que dá título à obra, por exemplo, não está presente no drama e é apenas mencionada, de passagem, em determinado momento. Porém, não se trata aqui de representar a espera inútil do salvador, mas de nonsense mesmo, a demonstrar que o título nada tem a ver com a matéria do drama. Trata-se da decrepitude da linguagem, referida acima, que demonstra a descrença do autor em relação ao ser humano e seu poder de comunicação com o outro. O resultado, ao invés de trágico, configura-se cômico, uma vez que representará a afirmação de uma arte não-comunicativa, contrária, portanto, à seriedade. Para elucidar a questão no teatro de Ionesco, cito as palavras de Ortega y Gasset a respeito da comicidade na arte moderna: “E não é que o conteúdo da obra [de arte moderna] seja cômico — isto seria recair num modo ou categoria de estilo ‘humano’ —, mas sim que, seja qual for o conteúdo, a própria arte se torna chiste.” (Ortega y Gasset, 2003, p. 76). Dessa maneira, o que se vê em cena em A cantora careca são autômatos, no lugar de homens, cuja linguagem demonstra a própria inutilidade. E qual seria, então, a matéria, o assunto em torno do qual gira a ação? Na peça de Ionesco, não há propriamente uma intriga, mas sim uma sucessão de diálogos desprovidos de sentido que formam, contudo, um ritmo indicativo da mecanicidade nas relações humanas. É assim que o casal Smith dá seu lugar ao casal Martin no final da peça, e este retoma o início, demonstrando o quanto o ser humano, desprovido de consciência, é substituível, e cai no vazio do círculo vicioso. Logo na primeira cena, percebe-se claramente a incomunicabilidade que se mostrará a tônica nos demais diálogos. No início, ainda não muito absurdo, Sr. e Sra. Smith conversam em sua casa; embora haja falas, a comunicação inexiste, pois a mulher monologa sobre assuntos corriqueiros, como a comida e a vizinhança, enquanto o Sr. Smith estala a língua, lendo seu jornal. A instituição família já aparece, portanto, ridicularizada nos papéis convencionais de marido e esposa que, embora vivam juntos, estão longe de se compreender. 35 Assim também o revelador — e extenso — diálogo entre Sr. e Sra. Martin, uma tentativa de se reconhecerem, mesmo sendo casados. Segue trecho do diálogo que forma a cena 4: SR. MARTIN — Desde que cheguei a Londres, moro na rua Bromfield, minha cara senhora. SRA. MARTIN — Que curioso, que estranho! Eu também, desde a minha chegada a Londres, moro na rua Bromfield, meu caro senhor. SR. MARTIN — Que curioso, mas então, mas então, talvez nós tenhamos nos encontrado na rua Bromfield, minha cara senhora. SRA. MARTIN — Que curioso; que estranho! É bem possível, afinal! Mas eu não me lembro, meu caro senhor. SR. MARTIN — Eu moro no número 19, minha cara senhora. SRA. MARTIN — Que curioso, eu também moro no número 19, meu caro senhor. SR. MARTIN — Mas então, mas então, mas então, mas então, talvez nós tenhamos nos visto naquela casa, minha cara senhora? SRA. MARTIN — É bem possível, mas eu não me lembro, meu caro senhor. (IONESCO, 1993, p. 45-47). A cada novo dado que indica o relacionamento do casal, soam como refrão as frases de espanto proferidas por um e outro: “Que coincidência!”, “Que curioso!”. Inicialmente desconhecidos, aos poucos descobrem que moram na mesma rua, na mesma casa, dormem no mesmo quarto... mas, já depois de revelado o laço que os une, permanecem desconhecidos. Trata-se de uma impressão inicial do mundo, marcada pela constatação da superficialidade que rege as relações do ser humano, consigo próprio e com o outro. Em A Cantora careca, as personagens, desprovidas de consistência interior, são as máscaras, ou autômatos, que simplesmente continuam a atuar segundo regras mais ou menos habituais de convivência. O absurdo das relações no teatro de Ionesco ainda não apresenta nesta primeira peça o tom engajado que terá em O Rinoceronte, quando o universo de máscaras que separa o ser social de sua essência individual é abordado pelo dramaturgo. Na peça O Rinoceronte, de 1958, Ionesco leva à cena um homem em conflito, mas não são as questões pessoais do personagem que sobressaem à leitura/encenação da peça, e sim o conflito geral que opera não uma simples transformação, mas a metamorfose de toda uma sociedade. Enquanto Bérenger, o homem em questão, busca uma evolução individual 36 que vai do menos para o mais civilizado, a sociedade à sua volta faz o caminho contrário e, como conseqüência inconsciente, nasce uma civilização irracional. Para Pronko (1963, p. 133), “a significação de O Rinoceronte é bastante clara. Ionesco deplora aí a falta de independência, de livre pensamento, de individualidade que levam inevitavelmente ao totalitarismo, sob qualquer forma.” Bérenger se encontra em situação complicada, pois está apaixonado por uma colega de trabalho que, por sua vez, encanta-se pelo advogado do escritório. Bérenger, desleixado e constantemente alcoolizado, poucas chances tem de conquistar Daisy. Seu dilema consiste em modificar-se para, talvez, vir a aproximar-se da garota e poder, enfim, declarar- lhe seus sentimentos. Cabe ao amigo Jean ensinar ao protagonista como se transformar em um ser social: é preciso pentear-se adequadamente, usar gravata, ir ao museu. O próprio Jean se considera parâmetro de homem: “Valho tanto quanto você; e até, sem falsa modéstia, valho mais que você. O homem superior é aquele que cumpre seu dever”, ao que Bérenger retruca: “Que dever?” Mas o que deveria ser uma aula de civilização é interrompida bruscamente devido a fato nada banal: um rinoceronte aparece, torna a aparecer e mata o gato de uma senhora. A discussão, no entanto, toma direção inesperada e centra-se não no fato em si, mas na nacionalidade do rinoceronte e sua “cornidade”: seria asiático ou africano? uni ou bicórnio? O absurdo do debate é realçado pela presença do Lógico, que busca explicar, por meio de sua especialidade, as particularidades do animal. Ao primeiro rinoceronte que surge, seguem outros, e logo se descobre que estes são pessoas transformadas em animais, fato sem explicação. Um a um, todos os personagens se rendem à rinocerite, uma peste contagiosa e, ao mesmo tempo, atraente. Todos, menos Bérenger. Se, por um lado, a sociedade passa a considerar normal o fato de alguém virar rinoceronte, o mesmo não se pode afirmar a respeito do protagonista, que permanece firme em sua posição de homem, não partidário dos rinocerontes. A questão beira o domínio da política, mais precisamente do tipo de regime político totalitário: uma ideologia começa a se alastrar e, por diferente que seja, ganha adeptos, defensores, enquanto as vozes dissonantes vão sendo encurraladas ao limite de suas forças. 37 Dessa maneira, Dudard, o jurista por quem Daisy nutria admiração, acaba por aderir à rinocerite, espontaneamente, por mais que afirmasse a intenção de manter a lucidez. Restam Daisy e Bérenger, no idílio amoroso que remete à criação do mundo; são, assim, os únicos seres humanos e só então a confissão de Bérenger é possível. No entanto, a convivência faz-se mais e mais difícil; em vez do paraíso, é a peste que os rodeia e acaba por separá-los. Daisy também quer ser rinoceronte. Único homem numa sociedade formada por rinocerontes, Bérenger, no final da peça, encontra-se mais sozinho do que o estivera antes. No monólogo final, questiona a validade da linguagem, da normalidade, da própria existência, mas nega a febre irracionalizante para afirmar sua condição de humano, demasiado humano. E, no entanto, ele é o monstro, por não urrar ou gemer como um rinoceronte, por não ter com quem se comunicar. A incomunicabilidade entre os homens é denunciada desde o início da peça, quando o ainda falso herói Bérenger busca aderir à sociedade, tomando Jean como modelo de indivíduo, mas nem mesmo este acredita na essência do que prega. Assim, insiste para que o protagonista vá ao museu, mas nega o convite para ir junto, pois fará a sesta, ou encontrará os amigos na brasserie. A zoomorfização universal revela, de maneira menos sutil, algo inerente à sociedade e que, portanto, já existia desde o início da peça, a saber, a necessidade de se igualar ao outro. Os personagens deste drama podem (...) se transformar em rinocerontes impossíveis de se distinguir um do outro, pois eles eram indiscerníveis desde o começo, incapazes de pensar ou se exprimir individualmente. (Pronko, 1963, p. 137). Antes da rinocerite, ainda no primeiro ato, o personagem central é o homem absurdo que, sem motivos, continua a viver: “A solidão me pesa. A sociedade me pesa.”, diz ele a Jean. Contudo, ao se defrontar com a irracionalidade coletiva, que agrega todos num mesmo tipo, adquire uma razão para sua existência, que é lutar pela liberdade de ser um indivíduo. Bérenger passa então a herói, não no modelo trágico, pois se trata aqui de teatro do Absurdo, mas como anti-herói moderno, que não se adapta, é marginal em relação à sociedade, e, contudo, defende um ideal para toda a humanidade. Nas palavras de Bérenger, sobre as quais cai o pano, “Je ne capitule pas!”. 38 Em ensaio sobre o absurdo, o crítico Léo Gilson Ribeiro apresenta algumas características marcantes que permeiam as obras de Beckett e Ionesco: (...) Beckett e Ionesco se entregam à constatação da existência do beco sem saída, do protesto ético ineficaz e da impotência do teatro como meio de transformação social da comunidade humana. Presos ao degredo interior da solidão do ser humano, da sua incomunicabilidade e da carência de valores espirituais que o mantenham vivo (fora da acepção puramente biológica deste termo), estes sombrios dramaturgos são os documentadores da angústia de uma humanidade sobre a qual se ergue o cogumelo negro da explosão atômica. Mas, como afirmam os próprios críticos marxistas, principalmente Lefebvre, seria uma injustiça atribuir-lhes o mérito de ter somente renovado a técnica do teatro, a sua linguagem e a sua concepção cênica, cabe-lhes maior valor ainda: é preciso reconhecer sua realização artística de alto nível e até mesmo o valor ideológico da própria negação, do próprio niilismo e do seu vazio. (Ribeiro, 1964, p. 133-134). Solidão, absurdo, vazio, negação: é especialmente necessário pensar na obra de Kafka a fim de formar um juízo acerca da incomunicabilidade. Em O Processo, Kafka nos apresenta Joseph K..., protagonista de um drama que não se explica, sujeito a várias interpretações por mecanismos diferentes. Pode-se ler a obra pelo viés psicanalítico e encontrar em K... o alter-ego de Kafka, sua relação com família e sociedade, seus ideais a respeito de justiça e verdade; ainda, ressaltar os símbolos que participam da narrativa, de modo a decodificá-los e apreender o sentido pretendido pelo autor. A obra de Kafka, entretanto, é território do absurdo, tanto mais na medida em que o próprio herói age com naturalidade diante das estranhas situações que se lhe apresentam, sem procurar desvendar- lhes sentidos obscuros ou mesmo buscar dentro de si respostas que possam elucidar o mistério de seu processo: apenas vive o processo. Joseph K... acorda um dia e é surpreendido pela intimação a responder um processo, mas não sabe do que se trata. Ninguém responde às perguntas que faz, apenas os guardas passam a vigiá-lo e disso K... tem consciência: já não é mais um homem livre. Durante o processo, o personagem procura advogados, tenta defender-se, sem saber de quê; no entanto, é preciso, pois se trata de um julgamento. Ao final, K... é condenado e morre, “como um cão” (Kafka, 2003, p. 211). O estilo sutil, o silêncio, as omissões, tudo isso colabora para que também o leitor permaneça na ignorância, acabado o romance, o que não 39 o impede de angustiar-se em lugar do personagem, que continuou impassível ao longo de sua trajetória. A incomunicabilidade nessa obra é estridente, é o próprio grito de terror, silenciado pelo herói. O processo absurdo em que nada é enunciado, os silêncios como respostas, a incompreensão do personagem por parte da sociedade: elementos que denunciam a incomunicabilidade e fazem aumentar a tensão da narrativa, pois espera-se que o suspense se resolva e o enigma seja esclarecido, mas nada disso acontece. Apenas a busca incessante de K... por repostas, percebendo, cada vez mais nitidamente, que não as terá. A lei (o sentido de sua existência?) constitui um domínio cuja entrada lhe é negada. Contudo, o herói não deixa de procurá-la; durante o julgamento, defende-se diante da assembléia, mesmo sabendo que qualquer tentativa nesse sentido é inútil. Inocente, K... é julgado e condenado à morte, pois a sociedade não o compreendeu; mais que isso, não o quis compreender, nem permitiu que ele se defendesse. Não se trata da incomunicabilidade como conseqüência; em O Processo, ela parece ser o objetivo, a regra geral do mundo que primeiro exclui, depois aniquila o indivíduo, sobretudo aquele que se mostra consciente de sua não-culpa. A liberdade, princípio fundamental da existência, se transforma em prisão sem grades, pois vigiada a todo momento pela sociedade. A comunicação, como meio de compreender o outro, é substituída por silêncios, mal- entendidos, reticências que acabam por isolar o herói em sua busca solitária, até a morte. Joseph K... não se suicida, mas aceita o final imposto como natural dentro das circunstâncias. Durante a defesa, o herói desmascara a sociedade, acusando a corrupção e a hipocrisia de um mundo que deseja julgar a ele, que é inocente. Ao afirmar seu eu individual, K... tem decretado o trágico destino, resultado de um processo absurdo que não admite verdades fora de seus padrões convencionais. Ao invés de se corromper também, acompanhando a sociedade, o herói mantém suas convicções, mesmo que deva dar a vida pela liberdade de pensamento. A morte do herói representa a confirmação da superioridade de seus valores, sua verdade que, se não serviram para salvá-lo da condenação (ao contrário, precipitaram-no rumo a ela), ao menos fundamentaram a crença do homem em si mesmo, em seu ser individual sobre as tentações do mundo. 40 A Incomunicabilidade em Obras da Literatura Brasileira Moderna No Brasil, a Semana de 22 foi, de fato, o marco da modernidade, mas a questão da incomunicabilidade não se relaciona intimamente com os experimentalismos de então, podendo ser encontrada com enfoque mais nítido em obras de autores da chamada segunda fase do modernismo, entre os quais Murilo Mendes na lírica e Clarice Lispector na prosa. Quanto ao teatro, e aí chega-se ao ponto central que me levou até aqui: Nelson Rodrigues, inaugurador do teatro brasileiro moderno, talvez mesmo do próprio teatro brasileiro. A escolha do conto “Tentação” de Clarice Lispector, como representativo da incomunicabilidade, deu-se pelo avesso. Em muitos de seus textos, a autora explora o tema, mas o que atraiu minha atenção para este conto foi o relevo dado à incomunicabilidade a partir da perfeita comunicação — comunhão mesmo — entre uma menina e um cachorro. Duas solidões se encontram e compreendem muito além da racionalidade (Paz, 1992, p. 175). O que primeiro aproxima os personagens é o fato de serem ambos ruivos, espécie geneticamente minoritária em terras brasileiras. Ao vermelho dos cabelos da menina e dos pêlos do basset, junta-se a claridade do sol das duas horas que os torna ainda mais ruivos, e mais cúmplices. Além de realçar o ponto comum entre os dois, o sol afugenta quem porventura pudesse atrapalhar o momento mágico de identificação. Logo no início do conto, somos informados de que a rua estava vazia. A dona do cachorro é quase inexistente; mas é a sua presença, e mais uma vez o sol, que obrigam basset e menina a se separarem. Do contrário, continuariam sendo um do outro. O mesmo sol que os uniu os afastava indefinidamente. A identificação, além de imediata, é mútua. E sem proferir palavras, nem um nem o outro, deu-se o perfeito entendimento entre ambos. Nem mesmo o narrador sabe o que foi dito ali, mas está certo de que houve compreensão. O ato de plena comunicação muda entre os personagens desorienta o leitor que, ao mesmo tempo, compreende e não compreende o que se passou. Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos. 41 No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. (Lispector, 1964, p. 68). A incomunicabilidade se esconde no passado e no futuro das personagens. No momento em que são flagrados, o presente da narrativa, já não estão sozinhos; nas palavras de Nelson Rodrigues, “o amigo é um momento de eternidade”. Mas o final do conto anuncia a continuação de uma realidade que os isola do mundo, cada um em seu lugar e posto. Tanto antes quanto depois do encontro, basset e menina serão apenas basset e menina, sós, incomunicáveis. Tal a menina e o cachorro do conto de Clarice, no poema “O rato e a comunidade”, de Murilo Mendes, percebe-se a incomunicabilidade entre pessoas próximas, enquanto o eu-lírico se une, na quarta parte, a um desconhecido por meio da solidão que os isola, sim, mas é o ponto comum de suas existências e, portanto, os aproxima. O RATO E A COMUNIDADE 1 O rato apareceu Num ângulo da sala. Um homem e uma mulher Apareceram também, Trocaram palavras comigo, Fizeram diversos gestos E depois foram-se embora. ? Que sabe esse rato de mim. E esse homem e essa mulher Sabem pouco mais que o rato. 2 42 Passam-se meses e anos perto de nós, Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à mesa, Comentam a guerra, os telegramas, Discutem planos políticos e econômicos, Promovem arbitrariamente a felicidade coletiva. Conhecem nosso paletó, camisa e gravata, Nosso sorriso e o gesto de mover o copo. Têm medo de nos tocar, não conhecem nossas lágrimas ? Que sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade. Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são participantes. ... Subúrbios longínquos, esses homens. 3 Entretanto cada um deve beber no coração do outro. Todos somos amassados, triturados: O outro deve nos ajudar a reconstruir nossa forma. O homem que não viu seu amigo chorar Ainda não chegou ao centro da experiência do amor. Para o amigo não existe nenhum sofrimento abstrato. Todo o sofrimento é pressentido, trocado, comunicado. ? Quem sabe conviver com o outro, quem sabe transferir o coração. Ninguém mais sabe tocar na chaga aberta: Entretanto todos têm uma chaga aberta. 4 Desconhecido que atravessas a rua, ? Que há de comum entre mim e ti. A mesma solidão e a mesma roupa. Procuras consolo, mas não podes parar. És o servo da máquina e do tempo. Mal sabes teu nome, nem o que desejas deste mundo. Procuras a comunidade de uma pessoa, Mas não a encontras na massa-leviatã. Procuras alguém que seja obscuro e mínimo, Que possa de novo te apresentar a ti mesmo. 5 A mulher que escolhemos, a única e não outra Dentre tantas que habitam a terra triste, Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia, Eis o mundo que nos é de novo apresentado Por intermédio de uma só pessoa. 43 Esta é a que rompe as grades do nosso coração, Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo. E nada será restaurado no seu genuíno sentido Se a mulher não retornar ao seu princípio: É a máquina instalada dentro dela que deveremos vencer. Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce, Os homens pela mão da antiga mediadora Abrirão outra vez um ao outro os corações que sangram. Um mundo povoado de existências dispersas e a dificuldade de se construir uma relação verdadeira com o outro, diante dos obstáculos que o tempo e o espaço representam, assim me parece o poema de Murilo Mendes. ?Há uma solução para a incomunicabilidade, ao menos um vestígio de otimismo. O eu-lírico apresenta no amor a possível comunhão, livre de desentendimentos e máscaras. Na primeira parte do poema, a figura intrusa do rato é igualada ao homem e à mulher, estes que tentaram estabelecer uma conversação com o eu-lírico, mas que o conhecem tanto quanto o animal. Assim, não há comunicação, mas apenas a troca de palavras e gestos, desprovidos de significado verdadeiro, pois que baseados em convenções. O caráter superficial da comunicação é condenado na segunda parte, quando o eu-lírico enumera uma série de possibilidades de diálogo tão comuns quanto previsíveis, como os assuntos políticos e econômicos que formam tradicional matéria de debates. No entanto, denunciando certa mágoa, o poeta questiona a verdade dessas relações, que não se interessam pelos sentimentos mais profundos experimentados pelo eu interior (“?Que sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade.”) Existencialista, em certa medida, o eu-lírico aponta a importância do espelhamento na construção da subjetividade, o que faz pensar na função humanista do pensamento de Sartre; construindo-se a si próprio por meio da experiência e exercendo seu livre-arbítrio, o indivíduo, ao mesmo tempo que chega à sua essência, colabora para a construção pessoal de outros indivíduos, e, mais geral, da humanidade. Frente a um desconhecido, o poeta se pergunta o que os une e chega à conclusão: “a mesma solidão e a mesma roupa”. Na modernidade, regida pelo “tempo” e pela “máquina”, o homem se iguala a todos os outros na submissão a regras e necessidades imperativas, formando a “massa-leviatã”; por outro lado, pode buscar sua verdade — que o torna individual, logo diferente dos outros — no retorno ao que é “mínimo”, essencial. 44 A essência, aqui, se apresenta com a forma da mulher, mas não a mulher moderna, que também é máquina, e sim por aquela de um outro tempo, “submissa e doce”, encarnada melhor no papel tradicional de mãe que de amante. A reconstrução da individualidade se assemelha a um novo nascimento, e este parto exige a presença da mulher, esperança de entendimento pleno entre um e outro ser, não especificamente pelo laço familiar, mas por meio de uma ligação espiritual anterior à superficialidade do mundo. Ensaio em versos, o poema apresenta uma série de questionamentos a respeito da existência e aponta na dualidade homem/mundo o centro de convergência das perguntas para as quais não há respostas. Assim, tanto o rato quanto o homem participam da sociedade, numa relação de complementaridade, mas são sozinhos, enquanto seres individuais, e nesse nível não há possibilidade de comunicação verdadeira, em parte devido ao duo tempo-espaço (im)próprios da modernidade, mas também à ausente consciência de ser além dos limites impostos pela comunidade. Da dualidade formada pelas instâncias complementares corpo e alma, Manuel Bandeira constrói seu poema “Arte de amar”: ARTE DE AMAR Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. O mundo das idéias de Platão toma aqui a forma de Deus, ou lugar “fora do mundo”, único ambiente possível para a satisfação da alma. No esboço representado pelo mundo sensível, “as almas são incomunicáveis” e só os corpos podem se entender. A “Arte de amar” de Bandeira não deve ser uma receita, uma lição a seguir; é antes a constatação dos níveis de intensidade do homem. Fugindo dos simplismos qualitativos que poderiam classificar como melhor ou pior cada tipo de entendimento, o poema mostra que corpo e alma são diferentes e têm desejos 45 também diferentes. A realização da alma exige outros meios que não os desta dimensão, o que não quer dizer superior; subvertendo um pensamento convencional, a alma aparece como empecilho para a “felicidade de amar”. O eu-lírico transfere o amor para o plano material, o que faz do sentimento algo tangível e, mesmo, concreto, de modo que a incomunicabilidade — atributo exclusivo das almas — deixa de existir na relação entre corpos que fundamenta o amor. A angústia da separação entre corpo e alma encontra equivalência na dimensão tempo-espacial na obra O sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. É como se aqui o tempo fosse o responsável por quebrar a unidade primeira, existente num tempo mítico, já perdido, de comunhão entre corpo e alma, ser e mundo. No poema “Os ombros suportam o mundo”, o presente é a única possibilidade da existência, pois os valores humanos, artefatos de um remoto passado, perderam o sentido e a função de sustentar a humanidade. OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada espera de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. 46 A vida apenas, sem mistificação. Em igual medida, tudo é inútil: Deus, o amor, vida, morte. O homem, no presente de sua existência, está irremediavelmente só e o eu-lírico tem consciência de que sua palavra, chamando por Deus ou pelo amor, de nada adiantará, pois não se trata apenas da ineficácia da linguagem, da porção racional do ser; é que “O coração está seco.” O tempo esvaziou a alma do homem de seus valores mais caros e nada propôs que os pudesse substituir. Usando a segunda pessoa, o eu-lírico fala consigo como se dialogasse com o outro. Esse “tu” — assim como o personagem José, do poema “José” — traduz a solidão máxima do poeta que, incomunicável, não abre a porta de seu mundo; parece acostumado a ser sozinho, pois já não sofre nem espera. As esperanças se esvaíram junto com a luz, o que não o impede, no entanto, de ver (“mas na sombra teus olhos resplandecem enormes”), ou por outra, de continuar a viver, no escuro e só. Poderia o homem optar pela morte, ante o absurdo de uma existência que implica falta de esperança, de sentido, de comunhão. Justificar-se-ia ainda a escolha por meio da inevitabilidade da morte, fato básico inerente à toda forma de vida, que pode funcionar como argumento do suicida. Para o eu-lírico, constituiria o suicídio uma fuga dos “delicados” (seriam covardes?) aos horrores do mundo, sem em nada modificá-los: “as guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/ provam apenas que a vida prossegue”. Como para Camus, em seu ensaio sobre o suicídio, “não adianta morrer”, pois a morte não constitui solução satisfatória para o absurdo de existir. A passagem do tempo não pesa mais do que o mundo que, por sua vez, “não pesa mais do que a mão de uma criança”. Assim, o problema de viver — no escuro, na solidão, na desesperança — é algo que se pode suportar, desde que seu tempo seja o presente. Do mesmo modo que os valores do passado deixaram de fazer sentido, também o futuro (a velhice ou a morte) não serve como parâmetro em relação ao momento presente. A realidade é neste tempo e neste espaço; “a vida é uma ordem”, e nenhuma fuga ou “mistificação” pode salvar o homem de sua condição. Condenado a viver no mundo sem Deus, o ser humano deve encontrar no aqui e agora de sua existência motivos que a façam valer, mas é preciso ter consciência da inutilidade de quaisquer valores. Para o poeta, a única certeza está na própria vida. 47 No poema “Mundo grande”, continua a reflexão do poeta em sua busca pelo “sentimento do mundo”: MUNDO GRANDE Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos. Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande. Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale. Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos — voltarão? Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam.) 48 Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio. Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de qu