UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DIEGO HERMÍNIO STEFANUTTO FALAVINHA A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: uma análise de como o Poder Judiciário pode contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira FRANCA 2013 DIEGO HERMÍNIO STEFANUTTO FALAVINHA A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: uma análise de como o Poder Judiciário pode contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Borba Marchetto FRANCA 2013 Falavinha, Diego Hermínio Stefanutto A judicialização da saúde e o controle judicial de políticas pú- blicas : uma análise de como o Poder Judiciário pode contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira / Die- go Hermínio Stefanutto Falavinha. – Franca : [s.n.], 2013 193 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Patrícia Borba Marchetto 1. Controle da constitucionalidade. 2. Direito à saúde – Brasil. 3. Poder judiciario. 4. Eficácia e validade do direito. I. Título. CDD – 341.27 DIEGO HERMÍNIO STEFANUTTO FALAVINHA A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: uma análise de como o Poder Judiciário pode contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente: _______________________________________________________________________________ Profa. Dra. Patrícia Borba Marchetto 1º Examinador:___________________________________________________________________________ 2º Examinador: ___________________________________________________________________________ Franca, ___, de ___________________ de 2013. Aos meus pais, ao Pedro e à Laura. AGRADECIMENTOS É uma tarefa complica oferecer agradecimentos de maneira tão formal e suscetível a esquecimentos de pessoas importantes que influenciaram na produção deste trabalho. No entanto, também seria impossível não eternizar algumas delas. Começo em primeiro lugar a agradecer meus pais, Hermínio e Ana, por ensinarem os primeiros passos, oferecerem suporte para todas as minhas realizações e pelo amor incondicional que me conferiram, sendo verdadeiros amigos e companheiros de vida. A Natália, por fazer parte desta conquista, por anos de verdadeiro afeto, compartilhando memoráveis momentos e conversando dos mais variados assuntos, demonstrando ser uma verdadeira companheira capaz de comungar amizade e amor em uma única relação. A todos meus familiares, Avós e Avôs, Tios e Tias, Primos e Primas, os quais me proporcionaram inúmeros momentos de felicidade, pois nada melhor que ir almoçar na casa dos avós e relembrar dos tranquilos momentos da infância e de que não se precisa de muito para viver, apenas felicidade. Aos amigos Bruno, Pedro, Diego, Ilissa, Marin, Caio, Emili, Estevan, Lyon, exemplos de pura amizade, que sempre proporcionam prazerosos momentos de descontração, essenciais para ‗fugir‘ de alguns momentos de tensão inerentes a vida acadêmica. Fica muito mais fácil caminhar ao lado de vocês, muito obrigado. Brunão, ‗valeu‘ por ser o irmão que eu não tive. A Professora Doutora Patrícia Borba Marchetto, por me aceitar como seu orientando, demonstrando ser uma pessoa de grande conhecimento (em todos os sentidos), sempre disposta e atenciosa em sanar dúvidas e apoiar meus projetos, sendo grande incentivadora em momentos difíceis. Aos primeiros ‗professores‘ que cruzaram meu caminho e me auxiliaram, direta ou indiretamente na escolha da área acadêmica, Saulo Stefanone Alle e Carlos Eduardo de Freitas Fazoli. Aos Professores que conheci no mestrado, em especial, Carlos Eduardo de Abreu Boucault, Eduardo Saad Diniz, Elisabete Maniglia, Paulo César Corrêa Borges. Neste mesmo sentido, agradeço ao Doutor Herivelto de Almeida, por ter me ensinado a escrever as primeiras peças processuais e sempre estar disposto a conversar sobre os mais variados temas, sempre com um crítico olhar que lhe é peculiar. A todos os colegas do mestrado que foram fundamentais tanto do ponto de vista acadêmico quanto pessoal e com certeza tornaram Franca uma cidade mais acolhedora. 7 Não poderia deixar de mencionar o Arlei e o Rogério que ao seu modo, contribuíram de maneira significativa para o deslinde deste trabalho. No mesmo sentido, ofereço agradecimentos ao Rafael e ao João Emílio. Por fim, agradeço à Professora Doutra Lydia Neves Bastos Telles Nunes que contribuiu positivamente para o término desta dissertação ao fazer importantes críticas e apontamentos na banca de qualificação, agradeço a CAPES pela bolsa concedida e a todos os funcionários do UNESP/Franca, em especial, Ícaro, sempre disposto a ajudar nas dificuldades burocráticas do curso e, Laura, por auxiliar de maneira importante na revisão da formatação e referências deste trabalho. 8 FALAVINHA, Diego Hermínio Stefanutto. A judicialização da saúde e o controle judicial de políticas públicas: uma análise de como o poder judiciário pode contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira. 2013. 193 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Franca, 2013. RESUMO O fenômeno do crescente número de demandas que começaram a ingressar nos tribunais, nos últimos anos, pleiteando bens ou serviços da saúde (medicamentos, cirurgias, próteses, etc.) ao lado de suas decisões, que frequentemente concedem tais pedidos, obrigando o governo a cumpri-las, rotulou-se de ‗judicialização da saúde‘ e pode desestabilizar os orçamentos públicos e influenciar negativamente em políticas públicas. Desta forma, o Poder Judiciário é alvo de inúmeras críticas que duvidam da sua possibilidade de contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira. O objetivo desse trabalho é compreender se o Poder Judiciário, no Brasil, é o principal responsável pela existência de uma 'judicialização da saúde' excessiva capaz de onerar o governo e a sociedade através de decisões judiciais que determinam a prestação de bens e serviços da saúde (medicamentos, cirurgias, próteses, internações, etc.) de forma desmedida para grande parte dos indivíduos que buscam os tribunais, gerando desequilíbrio nas políticas públicas existentes e gastos desnecessários ao governo. Para alcançar o objetivo, o trabalho buscou criar subsídios para responder os seguintes questionamentos: i) A intervenção do Poder Judiciário na saúde é responsável por causar uma 'judicialização da saúde' excessiva capaz de gerar vultosos gastos para o governo e desequilibrar políticas públicas?; ii) O Poder Judiciário deve continuar a interferir nas demandas que envolvam o direito social à saúde com intuito de garanti-lo e efetivá-lo?; iii) Em caso afirmativo, quais os meios de auxiliar o Poder Judiciário nas decisões sobre o direito à saúde e exercer um efetivo controle judicial de políticas públicas? Com o desenvolvimento dos capítulos, foi possível observar que o Poder Judiciário não é o único responsável pelo desordenado processo de judicialização, porém, para contribuir de maneira positiva na efetivação do direito à saúde deve buscar meios para adequar suas decisões as complexas lides que envolvem o direito social à saúde, olvidando a criação de um controle judicial de políticas públicas. Palavras-chave: poder judiciário. judicialização. saúde. controle. políticas públicas. FALAVINHA, Diego Hermínio Stefanutto. A judicialização da saúde e o controle judicial de políticas públicas: uma análise de como o Poder Judiciário pode contribuir para a efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira. 2013. 193 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Franca, 2013. RIASSUNTO Il fenomeno del crescente numero di richieste che inizia a frequentare i tribunali in questi ultimi anni, sostenendo prodotti oi servizi di salute ( farmaci, chirurgia, protesi, ecc.) Accanto ai loro decisioni, che spesso concedono tali richieste, costringendo il governo a soddisfarle è etichettato ' intervento giudiziario della salute ' e può destabilizzare i bilanci pubblici e negativamente influenzare la politica pubblica. Così, il potere giudiziario è il bersaglio di numerose critiche che mettono in dubbio la loro capacità di contribuire alla realizzazione del diritto alla salute nella società brasiliana. Lo scopo di questo studio è quello di comprendere se la magistratura, in Brasile, è il primo responsabile per l'esistenza di un ' intervento giudiziario in materia di salute' eccessivo grado di carico del governo e della società attraverso le decisioni giudiziarie che determinano la fornitura di beni e servizi sanitari ( farmaci, chirurgia, protesi, ospedale, ecc.) così dilagante per la maggior parte delle persone in cerca di tribunali, creando squilibrio nella politica esistente e spese inutili al governo. Per raggiungere l'obiettivo, lo studio ha cercato di creare sussidi per rispondere alle seguenti domande: i) L'intervento del magistratura è responsabile di causare un intervento giudiziario eccessivo grado di generare spesa consistente per il governo e disturbare l'ordine pubblico?; ii ) la magistratura dovrebbe continuare a interferire con le richieste che coinvolgono il diritto sociale alla salute, al fine di garantire e attualizzarlo?; iii ) In caso affermativo, che cosa vuol dire di assistere la magistratura a decidere il diritto di salute e di esercitare un controllo giurisdizionale efficace delle politiche pubbliche? Con lo sviluppo dei capitoli, si è osservato che la magistratura non è l'unico responsabile per il processo disordinato di legalizzazione, tuttavia, contribuire positivamente alla realizzazione del diritto alla salute, deve trovare il modo di adattare le loro fatiche decisioni complesse che coinvolgono diritto sociale alla salute, dimenticando la creazione di una politica pubblica giudiziaria. Parole-chiave: magistratura. giudiziaria. salute. controllare. politiche pubbliche. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 CAPÍTULO 1 ENQUADRAMENTO TEÓRICO SOBRE CONSTITUIÇÃO E DIREITOS SOCIAIS, E A FORMAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL..............................................................................................15 1.1 Para uma compreensão sobre o conceito de Constituição.............................................15 1.2 Estado Democrático e Social de Direito Brasileiro........................................................21 1.3 Fundamentos e objetivos da Constituição da República Federativa do Brasil...........24 1.4 Direitos Sociais..................................................................................................................26 1.4.1 Compreensão do custo dos direitos..................................................................................26 1.4.2 Os direitos sociais no cenário jurídico-social brasileiro.................................................28 1.4.3 Os Direitos Sociais no Direito Constitucional brasileiro................................................34 1.5 Formação do direito à saúde no cenário brasileiro e sua positivação na Constituição de 1988...............................................................................................................................36 1.5.1 O Conceito de Saúde........................................................................................................40 1.5.2 Os Princípios Constitucionais do Direito á Saúde..........................................................42 1.5.2.1 Teoria dos princípios: perspectivas e teoria adotada neste tópico.................................43 1.5.2.2 A fundamentalidade.......................................................................................................44 1.5.2.3 A responsabilidade estatal.............................................................................................44 1.5.2.4 O acesso universal e igualitário, a gratuidade e a integralidade...................................45 CAPÍTULO 2 COMPREENSÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS, SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E AS RAZÕES PARA UM CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS.............................................48 2.1 Políticas Públicas...............................................................................................................48 2.1.1 Compreensão e conceituação das políticas públicas.......................................................48 2.1.2 A Formação das Políticas Públicas.................................................................................53 2.1.3 Políticas Públicas e o Estado Democrático e Social de Direito Brasileiro.....................55 2.1.4 A relação entre discricionariedade, políticas públicas e sociedade................................56 2.2 A Política Pública de saúde no Cenário brasileiro: perspectivas teóricas e práticas..58 2.2.1 O Sistema Único de Saúde e sua perspectiva constitucional...........................................58 2.2.2 Diretrizes do Sistema Único de Saúde.............................................................................62 2.2.2.1 A unicidade....................................................................................................................62 2.2.2.2 A regionalização e a hierarquização..............................................................................63 2.2.2.3 A descentralização.........................................................................................................64 2.2.2.4 Participação da sociedade.............................................................................................65 2.3 As razões para um controle de políticas públicas na área da saúde.............................67 CAPÍTULO 3 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A FORMAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO CENÁRIO BRASILEIRO...........................................................................................74 3.1 Breve introdução a temática da 'judicialização da política' no caso brasileiro...........74 3.2 Judicialização da política.................................................................................................76 3.2.1 O que significa 'judicialização da política'? O(s) sentido(s) aplicado(s) no Brasil e a possibilidade de uma compreensão nacional..................................................................80 3.2.2. 'Judicialização da política' e 'ativismo judicial': breve aproximação............................83 3.3 A Judicialização da Saúde................................................................................................85 3.3.1 Compreensão no cenário brasileiro.................................................................................85 3.3.2 Críticas à intervenção do Poder Judiciário na área da saúde e dos demais direitos sociais..............................................................................................................................89 3.3.2.1 Análise das críticas sob a perspectiva da teoria da separação dos poderes...................93 3.3.2.2 Análise das críticas sob a perspectiva da ineficiência estatal e da corrupção.............101 3.3.2.3 Análise das críticas sob a perspectiva da saúde como bem mercadológico................110 3.3.2.4 Análise das críticas sob a perspectiva das decisões do STF e do STJ.........................118 3.3.2.4.1 Decisões do STF.......................................................................................................116 3.3.2.4.2 Decisões do STJ.......................................................................................................119 3.4 O Poder Judiciário e a inexistência de um controle judicial de políticas públicas...122 CAPÍTULO 4 REFLEXÕES PARA A CRIAÇÃO DE UM CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS CAPAZ DE AUXILIAR NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NA SOCIEDADE.............................................124 4.1 Mecanismos para deslocar as demandas relativas à saúde do Poder Judiciário para outras esferas decisórias................................................................................................126 4.1.1 Atuação extrajudicial da Defensoria Pública e Pedido Administrativo........................126 4.1.2 Atuação extrajudicial do Ministério Público.................................................................129 4.1.3 Conferências de saúde e Conselhos de saúde................................................................131 4.2 Formas de auxiliar o Poder Judiciário a decidir de maneira mais coerente.............135 4.2.1 Acesso à Justiça.............................................................................................................137 4.2.2 Meios de identificação de demandas mal intencionadas...............................................139 4.2.3 Diálogo entre atores sociais...........................................................................................141 4.2.3.1 Noções gerais sobre teorias do diálogo e métodos dialógicos: reflexões sobre sua aplicação no cenário brasileiro para auxiliar demandas individuais e coletivas relativas à saúde........................................................................................................142 CONCLUSÃO.......................................................................................................................150 REFERÊNCIAS....................................................................................................................160 ANEXOS ANEXO A – Decisões do STF...............................................................................................180 ANEXO B – Decisões do STJ...............................................................................................190 11 INTRODUÇÃO A busca pela efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira perfaz um longo caminho de afirmação histórica e social perpetrado por lutas sociais. O movimento sanitário iniciado na década de 1970 foi um dos principais responsáveis por pressionar a máquina estatal a reconhecer o direito à saúde. Influenciando na elaboração do texto constitucional de 1988, foi capaz de positivar o direito à saúde e criar uma política pública universal, gratuita, integral e de responsabilidade do Estado, baseada num Sistema Único de Saúde (SUS), diferente dos moldes segregatórios implantados pelo velho regime. A nova ordem constitucional apresenta o plano de construção de um Estado Democrático e Social de Direito, preocupado com o estabelecimento de uma igualdade material, baseada no primado da dignidade da pessoa humana e na promoção de justiça social. Com base nessas diretrizes a Constituição de 1988 fortaleceu algumas instituições (Poder Judiciário, Ministério Público) e criou outras instituições (Defensoria Pública) com o objetivo de albergar um sistema de controle político, social e jurídico do Estado para promoção dos dispositivos constitucionais. Com o fortalecimento do Poder Judiciário, a sociedade que antes buscava meios políticos para pressionar o Estado a reconhecer e garantir seus direitos, como no caso da saúde, passou a vislumbrar na seara judicial uma possibilidade de efetivá-los ante a omissão governamental. Recorrer ao Poder Judiciário para garantir algum direito, em especial o direito à saúde, tornou-se algo frequente na sociedade brasileira e tudo eclodiu pelo grande resultado ocasionado na busca judicial de medicamentos para o Human immunodeficiency vírus/ Acquired Immunodeficiency Syndrome (HIV/AIDS). Em meados dos anos 1990, muitas ações buscavam fornecimento de medicamentos do coquetel anti-retroviral. O Estado pressionado juridicamente pelos tribunais, a fornecer tais medicamentos, e pela sociedade em geral, que clamava pela criação de política pública eficiente para tal enfermidade, acabou desenvolvendo um programa de distribuição gratuita de medicamentos. A partir deste momento, as ações judiciais requisitando medicamentos e demais bens e serviços da saúde em todas as áreas obtiveram um aumento exorbitante que condicionadas ao seu sucesso promovido pelos tribunais, que quase sempre concedem tais pleitos sob o preceito de estarem garantindo o direito à saúde, acabou por gerar uma excessiva 12 e desmedida ‗judicialização da saúde‘ capaz de influenciar negativamente no orçamento público e desestabilizar políticas públicas existentes. O Poder Judiciário passou a sofrer inúmeras críticas e é nessa perspectiva que o presente trabalho tem como objetivo compreender se o Poder Judiciário é o principal responsável pela existência de uma 'judicialização da saúde' excessiva podendo onerar o governo e a sociedade brasileiros através de decisões judiciais que determinam a prestação de bens e serviços da saúde (medicamentos, cirurgias, próteses, internações, etc.) de forma desmedida para grande parte dos indivíduos que buscam os tribunais, gerando desequilíbrio nas políticas públicas existentes e vultosos gastos desnecessários ao governo. O objetivo está pautado nas seguintes indagações: i) A intervenção do Poder Judiciário na saúde é responsável por causar uma 'judicialização da saúde' excessiva capaz de gerar vultosos gastos para o governo e desequilibrar políticas públicas?; ii) O Poder Judiciário deve continuar a interferir nas demandas que envolvam o direito social à saúde com intuito de garanti-lo e efetivá-lo?; iii) Em caso afirmativo, quais os meios de auxiliar o Poder Judiciário nas decisões sobre o direito à saúde e exercer um efetivo controle judicial de políticas públicas? A hipótese de trabalho baseia-se em que o Poder Judiciário não é o único responsável por uma ‗judicialização da saúde‘ excessiva e que deve continuar intervindo na área da saúde através de um controle judicial de políticas públicas, organizado e capaz de efetivar o direito à saúde de maneira condizente com as necessidades sociais e os dispositivos constitucionais. Para alcançar o objetivo e buscar a pertinência da hipótese o trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, buscou-se tratar de conceitos elementares sobre constituição, direitos sociais e direito à saúde, enquadrando teoricamente as perspectiva de constituição a ser utilizada ao longo do trabalho, dentro de uma realidade capaz de amoldar as dimensões, jurídica e política, possíveis de serem trabalhadas com o direito à saúde. Também, o estudo dos direitos sociais foi de demasiada importância para compreender noções básicas como seu lugar na ordem constitucional, sua característica política, sua efetividade como forma de justiça social e os custos dispensados para todos os direitos. Com essa abordagem sobre os direitos sociais, adentrou-se de maneira satisfatória e com boa base teórica na análise específica do direito à saúde e sua formação no cenário brasileiro, tendo como ponto de partida as lutas empreendidas pelo movimento sanitário até seu reconhecimento constitucional e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). 13 No segundo capítulo, buscou-se analisar as compreensões teóricas e práticas sobre políticas públicas e o Sistema Único de Saúde (SUS), buscando a gênese elementar do que realmente é uma política pública, traçando sua relação com a ordem constitucional vigente com intuito de propiciar uma reflexão mais aprofundada sobre a complexa realidade das políticas públicas, sua relação com o Direito, em especial, com os tribunais. Partilhando do estudo das políticas públicas, adentrou-se na análise das premissas básicas do Sistema Único de Saúde – SUS, pois se trata da política pública base para trabalhar o tema ‗judicialização da saúde‘. Ao final do capítulo, com os conhecimentos adquiridos ao longo do trabalho, demonstrou-se as razões e a necessidade de um controle de políticas públicas, assinalando, que o Poder Judiciário também faz parte desta sistemática de controle. Observa-se que o foco dos dois primeiros capítulos foi trabalhar com conceitos básicos e extremamente necessários para o regular desenvolvimento do trabalho, pois compreender a formação do direito à saúde na sociedade brasileira, a complexa noção de políticas públicas e as premissas básicas do Sistema Único de Saúde (SUS) consubstanciam as posteriores análises sobre a atuação do Poder Judiciário na área da saúde. No terceiro capítulo, a concentração do trabalho foi em desenvolver uma análise do significado de ‗judicialização da saúde‘ no cenário brasileiro, abarcando as iminentes noções de ‗judicialização da política‘ e ‗ativismo judicial‘, mostrando-se a necessidade de compreensão de tais concepções numa perspectiva nacional e coerente com nosso ordenamento jurídico. Satisfeitas as premissas teóricas, partiu-se para apresentação das principais críticas realizadas pela doutrina em relação ao Poder Judiciário e a ‗judicialização da saúde‘, sendo posteriormente embatidas com quatros análises: i) Análise das críticas sob a perspectiva da teoria da separação dos poderes; ii) análise das críticas sob a perspectiva da ineficiência estatal e da corrupção; iii) análise das críticas sob a perspectiva da saúde como bem mercadológico; e, iv) análise das críticas sob a perspectiva das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tais análises serviram para demonstrar que existem outras influências negativas ao fenômeno da ‗judicialização da saúde‘, além da má atuação do Poder Judiciário, que apesar de ser reconhecido, neste trabalho, como um importante ator social para controlar políticas públicas, não possui um controle judicial de políticas públicas organizado e capaz de garantir e efetivar o direito à saúde na sociedade. No quarto e último capítulo, ante as análises formuladas nos capítulos antecedentes, vislumbrou-se a necessidade de apresentar algumas reflexões para cooperar na formação de um controle judicial de políticas públicas realmente capaz de contribuir com a 14 efetivação do direito à saúde na sociedade brasileira. Optou-se pela apresentação de ‗reflexões‘, pois a criação de um modelo extrapolaria os limites técnicos de uma dissertação. Assim, apresentou-se a necessidade de utilização de mecanismos capazes de deslocar as demandas relativas à saúde do Poder Judiciário para outras instâncias decisórias e da criação de medidas, baseados no acesso à justiça, na identificação de demandas mal intencionadas, no incentivo da tutela coletiva e no diálogo entre os atores sociais para auxiliar o Poder Judiciário a decidir as demandas relativas à saúde de maneira mais coerente e nos ditames da ordem constitucional vigente. Todo o desenvolvimento da pesquisa busca fornecer subsídios para contribuir com a discussão sobre a intervenção do Poder Judiciário na área da saúde e sua possibilidade de ser um ator social funcional dentro dos parâmetros constitucionais estabelecidos, capaz de contribuir na construção do programa constitucional de um Estado Democrático e Social de Direito. Logo, busca-se sempre sua adequação e não seu afastamento do controle das políticas públicas, pois a participação adequada de cada ator social (sociedade civil, Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Legislativo, Poder Executivo, etc.) é de fundamental importância para a construção de uma sociedade mais livre, justa e igualitária, nos ditames do texto maior. Para não se estender a questões desconectadas do trabalho, encerra-se a presente introdução informando que o tema abordado encontra-se delimitado no projeto de pesquisa desenvolvido pela Professora Doutora Patrícia Borba Marchetto denominado ―Bioética e Tutela da Vida‖, que visa, entre outras investigações, a análise das políticas públicas na área da saúde e sua implicação na bioética, tendo como objetivo contextualizar a necessidade da atividade legislativa e da intervenção do Poder Judiciário na área da saúde visando a garantia da prevalência da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana. A referida linha de pesquisa trabalha com o referencial teórico da bioética global, da bioética social e da bioética de intervenção1, as quais extrapolam os questionamentos estritamente relacionados com a atuação da medicina e partem para uma conjuntura da necessidade da efetivação do direito à saúde como um todo na sociedade. Desta forma, a presente pesquisa contribui sobremaneira para as reflexões bioéticas por tratar de formas de efetivar o direito à saúde na sociedade brasileira. 1 Para maiores informações vide: Leite e Marchetto (2012 e 2011), Marchetto et al (2012), Falavinha et al (2012) e Oliveira (2011). 15 CAPÍTULO 1 ENQUADRAMENTO TEÓRICO SOBRE CONSTITUIÇÃO E DIREITOS SOCIAIS, E A FORMAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL 1.1 Para uma compreensão sobre o conceito de Constituição Compreender o significado de constituição pode aglutinar inúmeras expressões, conceitos e classificações. Para este trabalho que trata de um tema contemporâneo relacionado ao controle judicial de políticas públicas a investigação desse conceito é de suma importância para a compreensão das relações entre política e direito. O que se procura neste momento não é apenas analisar classificações e conceitos estáticos do que seria uma constituição, mas entender sua importância como documento jurídico e político de um Estado e de uma Sociedade buscando a colocação da teoria constitucional e da própria constituição como uma forma emancipatória de efetivação dos direitos na sociedade. Na compreensão do conceito de constituição há necessidade de perceber a existência de elementos que se projetam além de uma lógica estritamente jurídica e dogmática, observando suas influências históricas, políticas e sociais formadas pelo processo de luta e afirmação histórica ocorrido até a positivação do texto constitucional. Assim, há necessidade de dialogar os direitos postos constitucionalmente com a realidade brasileira e suas minúcias sociais pautadas em um cenário de evidente desigualdade e miséria, buscando a conformação de uma teoria constitucional para além da hermenêutica dogmática constitucional formalista, visando a possibilidade de cooptar posicionamentos práticos que sirvam para efetivar o texto maior na sociedade brasileira. Neste sentido: A memória da luta que desencadeou mudanças no plano social e no próprio Direito é rapidamente diluída em meio aos debates formalistas do Direito, ainda que com sérias intenções e propósitos emancipatórios. Parece-nos que as discussões no âmbito das teorias constitucionais que percorrem a problemática da relação entre direito (Constituição) e política, por vezes, dão pouca relevância à relação ambígua entre política e direitos humanos, bem como ao efeito simbólico dos direitos humanos. O jurista constitucional, pouco familiarizado à gramática da ação política nos termos até aqui tratados, convence-se facilmente de que o texto constitucional já recebeu todo o conteúdo político possível e que o necessário agora para a efetividade das normas está no campo da normatividade e da hermenêutica constitucional. A tensão que ainda se processa na realidade entre a ação política e a política enquanto 16 administração do conflito e dos interesses, bem como os elementos que atuam em favor da perda dos significados políticos dos direitos fundamentais, parecem ignorados por tais intérpretes constitucionais. Daí não causar estranheza a defesa feita por vários teóricos brasileiros, por exemplo, de um tribunal constitucional que pudesse substituir o poder constituinte. Esse último conceito é, também, uma das formas jurídicas abstratas que serve para ocultar a matéria-prima da política. (SEVERI, 2011, p. 126). A divergência de concepções conceituais sobre a constituição e das aplicabilidades das teorias constitucionais para efetivação de seus dispositivos normativos existe a muito tempo e já foi responsável por acirradas batalhas teóricas. Uma forma de visualização desse embates foi o conhecido Debate de Weimar ocorrido entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, na primeira parte do século XX, onde se discutia com quem deveria ficar a guarda da constituição. Assim, a ideia de que uma constituição se apresenta como um conjunto de normas organizadoras e estruturantes de qualquer ordenamento jurídico, dentro de uma lógica capaz de promover a limitação do poder estatal e estabelecimento da supremacia das leis, se amolda na perspectiva da teoria pura do direito (KELSEN, 1999) onde se apresenta exclusivamente a serviço da lógica jurídica, servindo de base para elaboração de normas infraconstitucionais e para seu posterior controle (guarda) através do Tribunal Constitucional, demonstrando-se clara a separação da política e do direito. A perspectiva de constituição atribuída a teoria pura do direito kelseniana demonstra a formação de um direito constitucional puro, científico e exclusivamente jurídico, no qual questões políticas, sociológicas, antropológicas, históricas, filosóficas entre outras, não fariam parte da compreensão e aplicação das normas constitucionais, o direito (constituição) advém do Estado e se torna autossuficiente. Em contraponto a esta concepção de Schmitt (2007) defendeu que a constituição é política e não jurídica, sendo impossível a separação do direito e da política. Carl Schmitt, conhecido como filósofo do nazismo incumbia a necessidade de guarda da constituição, para o presidente do Reich, que no caso era Adolf Hitler, não estando amparado por qualquer limite jurídico1. Lassale (2006), bem antes do debate de Weimar, no final do século XIX, já dava sinais da sua preocupação em compreender o que seria uma constituição, 1 Apesar da infeliz opção ideológica, sua contribuição foi importante para expandir a compreensão do conceito de constituição para além dos limites jurídicos formais. Neste sentido, Bercovici (2004) e Mascaro (2013). 17 Inicio, pois, minha palestra com esta pergunta: que é uma Constituição? Qual é a verdadeira essência de uma Constituição? Em todos os lugares e a todas horas, à tarde, pela manhã e à noite, estamos ouvindo falar da Constituição e de seus problemas constitucionais. Na imprensa, nos clubes, nos cafés e nos restaurantes, é este o assunto obrigatório de todas as conversas. E, apesar disso, ou por isso mesmo, formulada em termos precisos esta pergunta: qual será a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição?, estou certo que, entre esses milhares de pessoas que falam da mesma, existem muito poucos que possam dar-nos uma resposta satisfatória. (LASSALE, 2006). As preocupações Lassaleanas impulsionaram a criação do conceito sociológico de constituição demonstrando sua função política na sociedade, mas com uma fundamentação diferente da apresentada por Schmmitt, baseando-se na constituição como advinda de relações políticas e sociais analisando-as através de exemplos relacionados com os fatores de poder presentes na sua realidade social como monarquia, aristocracia, burguesia, banqueiros, instituições jurídicas, rei e exército, chegando a seguinte conclusão: Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar. Nesta conferência quis demonstrar de um modo especial o valor que representa o Exército como fator decisivo e importantíssimo do poder organizado; mas também existem outros valores como sejam as organizações dos funcionários públicos, etc., que podem ser considerados também como forças orgânicas do poder de uma sociedade. Se alguma vez os meus ouvintes ou leitores tiverem que dar seu voto para oferecer ao país uma Constituição, estou certo que saberão como devem ser feitas estas coisas e que não limitarão a sua intervenção redigindo e assinando uma folha de papel, deixando incólumes as forças reais que mandam no país. (LASSALE, 2006). Na perspectiva sociológica de constituição trazida por Lassale é possível compreender uma relação entre Direito, Política, Sociedade e Poder. Havendo influências diversas na própria composição de suas normas e do desenvolvimento dessas normas por um complexo de instituições e indivíduos que estão sob sua égide. Essa rede de poder que influencia a constituição desde seu nascedouro não pode deixar de ser compreendida e considerada para a teoria constitucional, principalmente quando tratamos de questões relativas a efetivação de direitos. 18 A constituição não pode ser considerada uma matéria acabada na sociedade, os processos de luta originados para sua gênese devem ser pautados durante a sua vigência para conceder caracteres mais concretos para a efetividade dos seus direitos positivados. Heller (1968) reconhece a necessidade de buscar uma relação de efetividade constitucional a partir das relações sociais, buscando uma inerente convergência da política com o direito, contrariando as ideias Kelsenianas de exclusão das influencias sociais e políticas do direito, buscando a conformação de um ‗dever ser social‘: [...] o logismo normativo que representam Kelsen e a sua escola, ao contrapor ser e dever ser, de caráter jurídico, ao ser, de caráter social, sem que entre eles exista de modo algum relação, considerando o primeiro como um dever ser independentemente de toda ordem e de toda observância, atende única e unilateralmente à normatividade e esquece que todo o dever ser social se relaciona constantemente com um querer humano e que as normas sociais não são afirmações teóricas, mas exigências dirigidas à vontade do homem. (HELLER, 1968, p. 224). Se o poder constituinte originário é a base política2 revolucionária para criação de uma constituição promulgada que buscará atender os anseios sociais buscados através de lutas e inconformações com o poder estabelecido, a compreensão dos direitos positivados como normas constitucionais e as suas posteriores teorias não podem deixar de sopesar a relação fecundativa entre política e direito. Na realidade brasileira é possível identificar essa relação nas normas constitucionais que estabelecem políticas públicas. Os artigos 196 à 200 e o artigo 60, inciso I e §3º, este últimos inserido pela emenda constitucional n.º 53, de 19 de dezembro de 2006 (BRASIL, 2006), instituíram no âmbito normativo constitucional as políticas públicas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), as quais foram derivadas de anseios e necessidades sociais, principalmente a criação do SUS que foi fruto de longa militância do movimento sanitarista brasileiro iniciado por volta dos anos 70. 2 Neste sentido: Negri (2002, p. 7) afirma que ―Falar de poder constituinte é falar de democracia. Na era moderna, os dois conceitos foram quase sempre correspondentes e estiveram inseridos num processo histórico que, com a aproximação do século XX, fez com que se identificasse cada vez mais. Em outros termos, o poder constituinte não tem sido considerado apenas a fonte onipotente e expansiva que produz as normas constitucionais de todos os ordenamentos jurídicos, mas também o sujeito desta produção, uma atividade igualmente onipotente e expansiva. Sob este ponto de vista, o poder constituinte tende a se identificar com o próprio conceito de política, no sentido com que este é compreendido numa sociedade democrática. Portanto, qualificar constitucional e juridicamente o poder constituinte não será simplesmente produzir norma constitucionais e estruturar poderes constituídos, mas sobretudo ordenar o poder constituinte enquanto sujeito, regular a política democrática.‖ 19 Desta forma, utilizar qualquer compreensão de Constituição baseada apenas em aspectos técnicos jurídicos para efetivação de direitos sem a consideração de aspectos políticos e sociais é buscar uma efetivação fora da realidade do cenário brasileiro. Lidar com a temática do controle judicial de políticas pública implica a necessidade de considerar a Constituição em seus aspectos políticos e jurídicos. Assim, O erro do jurista puro ao interpretar a norma constitucional é querer exatamente desmembrá-la de seu manancial político e ideológico, das nascentes da vontade política fundamental, do sentido quase sempre dinâmico e renovador que de necessidade há de acompanhá-la. (BONAVIDES, 2008, p. 461). E esses aspectos políticos e jurídicos não podem ser cegamente importados de teorias alienígenas desconexas da história da formação de cada Constituição. Cada sociedade contém minúcias próprias que devem ser consideradas para a elaboração de uma teoria constitucional que busque realmente efetivar os direitos positivados no texto maior. [...] a Teoria da Constituição deve ser entendida na lógica das situações concretas históricas de cada país, integrando em um sistema unitário a realidade histórico política e a realidade jurídica. O direito constitucional recupera, assim, segundo Pedro de Vega García, as categorias de espaço e tempo e adquire dimensões concretas e históricas. A Constituição não pode ser entendida como entidade normativa independente e autônoma, sem história e temporalidade próprias. Não há uma Teoria da Constituição, mas várias teorias da Constituição, adequadas à sua realidade concreta. A Constituição não deve apenas estar adequada ao tempo, mas também ao espaço. Sem entender o Estado, não há como entender a Constituição, o que desqualifica a constante hostilidade da Teoria da Constituição contra o Estado. As Constituições deixaram de ser entendidas como obra do povo para transformarem-se em criaturas de poderes misteriosos, metafísicos até. Sintomático é o fato, denunciado por autores como Olivier Beaud e Pedro de Vega García, que a teoria do poder constituinte, como máxima expressão do princípio democrático e como questão central da teoria constitucional, foi relegada ao silêncio pela Teoria da Constituição. O poder constituinte refere-se ao povo real, não ao idealismo jusnaturalista ou à norma fundamental pressuposta, pois diz respeito à força e autoridade do povo para estabelecer a Constituição com pretensão normativa, para mantê-la e revogá-la. O poder constituinte não se limita a estabelecer a Constituição, mas tem existência permanente, pois dele deriva a própria força normativa da Constituição. (BERCOVICI, 2004, p. 22). http://www.scielo.br/pdf/ln/n61/a02n61.pdf 20 Para compreender a Constituição nos sentidos político, sociológico e jurídico partindo de uma concepção estruturante 3 como forma de aplicação de seus preceitos normativos em conformidade com os anseios sociais é necessário considerar sua história através das lutas que a formaram, das relações de poder e de capital que a influenciam e as instituições e institutos jurídicos a partir de uma lógica emancipadora de efetivação dos direitos. Para se conformar com o tema deste trabalho, que trata do controle das políticas públicas e o direito à saúde, só uma concepção de Constituição, nos moldes do parágrafo anterior, pode ser utilizada, para não cair em análises estritas que não serão capazes de compreender os fenômenos sociais e jurídicos envolvidos como um todo. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) deve ser compreendida nesses aspectos para buscar sua conformação social. Não basta transformá-la apenas em uma carta de direitos distante da realidade social, pois a positivação de direitos é apenas um reforço jurídico normatizado a partir de valores já expressados e desejados na sociedade (BARROS, 2003, p. 404-405). A necessidade de ruptura com sistema totalitário militar anterior se deu pelo desgaste social e impossibilidade de manutenção da ordem estatal e social ocasionada por pressões originárias de vários setores da sociedade. As pressões sociais que apontavam para a necessidade de uma nova constituição e um novo regime impulsionaram a convocação da Constituinte de 1987 através da Emenda Constitucional n.º 26, de 27 de novembro de 1985, à Constituição vigente de 1967, estabelecendo no artigo 1º a necessidade de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte4. A Assembleia Constituinte foi um cenário propício para todos os setores sociais que reclamavam a necessidade de mudança da ordem totalitária imposta e os mais 3 Conceituação de constituição utilizada por José Afonso da Silva (2006, p. 39) ―Busca-se, assim, formular uma concepção estruturante, que a considera no seu aspecto normativo, não como norma pura, mas como norma em sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico. Trata-se de um complexo, não de partes que se adicionam ou se somam, mas de elementos e membros que se enlaçam num todo unitário. O sentido jurídico de constituição não obterá, se a apreciarmos desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamento do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais: a constituição.‖ 4 Neste sentido:― Art. 1º Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.‖ (BRASIL, 1985). Alguns doutrinadores discordam da expressão Assembléia Nacional Constituinte, preferindo conceituar como Congresso Constituinte, ante a inexistência de uma real ruptura com viés revolucionário, mas sim de um acordo político que inaugurou a Constituinte de 1987, neste sentido: Ferreira Filho (2009, p. 31-32) e José Afonso da Silva (2011, p. 88-90). 21 conservadores que não pretendiam efetuar grandes mudanças institucionais nos país. Assim, apesar das estruturas dos Poderes se manterem quase intactas, advindas de uma transição negociada com o poder posto (SILVA, J. A., 2011, p. 89) para manutenção de um sistema que continuaria a preservar a ―hegemonia política conservadora‖ (MASCARO, 2008, p. 180)5, a CF/88 é um marco histórico na construção de um paradigma normativo jurídico-político pautado na construção de um Estado Democrático e Social de Direito que possui no cerne de suas preocupações a dignidade da pessoa humana, a igualdade material e direitos fundamentais e sociais, verdadeiros projetos constitucionais iniciados durante as pressões sociais, positivados na carta constitucional e que necessitam ser efetivados de uma maneira satisfatória para toda a sociedade6. 1.2 Estado Democrático e Social de Direito Brasileiro A consolidação de um Estado Democrático de Direito vem disposto no artigo 1º da CF/887 e se traduz como um fundamento do regime democrático adotado pelo Estado brasileiro, significando a postura normativa de quebra com o regime autoritário anterior. Uma das perspectivas possíveis de compreender o Estado Democrático de Direito brasileiro da CF/88 é a inauguração efetiva de um Estado Social, contrariando a tentativa da Constituição de 1934 que apesar de sua importância normativa ficou encurralada nos meandros das crises políticas que se desenrolavam8. 5 Neste sentido: ―Se a Constituição Federal de 1988 representa uma tentativa de expurgo da política autoritária, cujos lastros de cidadania praticamente inexistiam e cujo desrespeito aos direito humanos era notório, a hegemonia política conservadora que sucede o movimento de redemocratização representa, ao lado de ganhos simbólicos ou alguns ganhos legislativos, um pleno assentamento nos grupos políticos que, historicamente, sustentam-se em relações de cunho autoritário, nas forças policiais dos Estados da Federação, na política do abandono social e na cooptação de elites judiciárias a favor de interesses políticos.‖ (MASCARO, 2008, p. 180). 6 Neste sentido: ―Do ponto de vista histórico, a Constituição de 1988 representa o coroamento do processo de transição do regime autoritário em direção à democracia.‖ (SARMENTO, 2010, p. 102). 7 Neste sentido:―Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...]‖ (BRASIL, 1988) 8 A Constituição brasileira de 1934 teve grande importância na quebra do paradigma ‗liberal normativo‘ para o ‗social normativo‘ nos dispositivos constitucionais, assim: ―A Constituição de 1934 inaugurou o constitucionalismo social no Brasil. Rompendo com o modelo liberal anterior, ela incorporou uma série de temas que não eram objeto de atenção das constituições pretéritas, voltando-se à disciplina da ordem econômica, das relações de trabalho, da família, a questão social e da cultura. A partir dela, pelo menos sob o ângulo jurídico, a questão social não poderia mais ser tratada no Brasil como ‗caso de polícia‘, como se dizia na República Velha, mas sim como ‗caso de Direito‘.‖ (SARMENTO, 2010, p. 31). No entanto, pelo grande momento de tensão política em razão da ausência de representatividade partidária, a repressão de partidos comunistas tidos como subvergentes a ordem e a intenção Getulista de implantar um Estado com viés fascista, fez sua pouca vigência até 1937 não contemplar a concretização do Estado Social no Brasil. ―Foi curtíssima a vida da Constituição de 1934: promulgada em julho de 1934, ela vigorou apenas até novembro de 1937, quando foi outorgada a Carta de 1937, dando início ao Estado Novo. Os componentes liberais e democráticos da Constituição de 1934 não resistiram á radicalização do regime e do clima social da época.‖ (SARMENTO, 2010, p. 35). 22 Estado Social que não significa, por óbvio, Estado Socialista, apesar de grande influência das lutas sociais pautadas pelos trabalhadores no início do século XX para reconhecimento de direitos sociais, que possuíam em suas ideologias a influência das idéias marxistas. Canotilho (2003, p. 385) retrata a passagem da ideologia liberal para a social: Se o capitalismo mercantil e a luta pela emancipação da sociedade burguesa são inseparáveis da conscientização dos direitos do homem, de feição individualista, a luta das classes trabalhadores e as teorias socialistas (sobretudo Marx, em A Questão Judaica) põem em relevo a unidimensionalização dos direitos do homem egoísta e a necessidade de completar (ou substituir) os tradicionais direitos do cidadão burguês pelos direitos do homem total, o que só seria possível numa nova sociedade. Independentemente da adesão aos postulados marxistas, a radicação da idéia de necessidade de garantir o homem no plano econômico, social e cultural, de forma a alcançar um fundamento existencial-material, humanamente digno, passou a fazer parte do patrimônio da humanidade. A conformação de um Estado Democrático de Direito sob a perspectiva de um Estado Social, objeto da CF/88 é a conformação do princípio democrático aliado a necessidade de colocar os direitos sociais como forma de buscar a igualdade material nas relações sociais, uma idéia de promoção de justiça social. A opção pelo modelo econômico capitalista baseado no livre comércio e outras perspectivas liberais observáveis a partir da leitura do artigo 170 e seus incisos na CF/889 não exclui a preocupação com questões sociais e coletivas, determinantes dos fundamentos e objetivos da Constituição, que serão analisados adiante, capazes de operar como forma de equilíbrio entre o exagerado individualismo capitalista liberal e a harmonização igualitária social, buscando a promoção de uma justiça social capaz de promover a igualdade material na sociedade. O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implementar: é que ele 9 Neste sentido: ―Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.‖ (BRASIL, 1988). 23 conserva a sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia. Daí compadecer-se o Estado social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais. (BONAVIDES, 2011, p. 184). Perez Luño (2007, p. 193, tradução nossa) também evidencia a inserção dos direitos sociais e as perspectiva do Estado Social como forma de buscar um equilíbrio igualitário real na sociedade através da tensão entre concepções de direitos com funções diferentes, mas complementares, com a finalidade de promover um bem-estar social, assim, Os direitos sociais surgiram na transição do Estado liberal para o Estado social de Direito [...] No Estado social de Direito os poderes públicos assumem a responsabilidade de proporcionar para todos os cidadãos as prestações e serviços públicos adequados para atender suas necessidades vitais [...] . O Estado Democrático de Direito brasileiro obedece a esses contornos básicos entre a escolha de um modelo econômico capitalista e a disposição de contornos sociais para buscar a igualdade material. Tal perspectiva no plano teórico normativo constitucional serve para balizar todo o sistema originado das intenções propostas na CF/88 advindas de anseios de diversos setores da sociedade na construção da redemocratização do país a partir de 1985. Entretanto, vale lembrar duas perspectivas correntes no cenário brasileiro que dificultam a instauração plena do Estado Democrático de Direito e suas diretrizes sociais. Primeiro, Faoro (2001) com sua ainda atual concepção patrimonialista do Estado brasileiro, demonstra que a confusão dos interesses públicos com os interesses privados é evento permanente na contemporaneidade do Brasil sendo capaz de influenciar em decisões políticas que deveriam ter como elemento norteador a normatividade constitucional baseada nas premissas sociais construídas historicamente na sociedade brasileira e que acabam tomando contornos individuais em detrimento da sociedade. Segundo, Bercovici (2005, p. 45-68) que demonstra a necessidade de uma inte- gração social, econômica e política para se alcançar a superação do subdesenvolvimento para uma real transformação e concretização plena do Estado Democrático de Direito, como dis- posto no texto da CF/88, no entanto, essa integração se tornou dificultada por um antagonis- mo existente no cenário brasileiro entre a criação de situações econômicas que visam conce- 24 der prevalência a interesses privados e corporativos e situações sociais baseadas em um Esta- do interventor, favoráveis ao desenvolvimento do país. No sentido de evitar a cooptação do capital e dos interesses individuais em preva- lência aos da sociedade é que a compreensão dos fundamentos, objetivos, direitos fundamen- tais e sociais inaugurados no cenário brasileiro na Constituição de 1988 devem operar para a efetiva construção de um Estado Social e Democrático de Direito. 1.3 Fundamentos e objetivos da Constituição da República Federativa do Brasil Os fundamentos e os objetivos da CF/88 estão dispostos nos artigos 1º e 3º do texto constitucional. Os fundamentos são cinco: i) soberania; ii) cidadania; iii) dignidade da pessoa humana; iv) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e, v) o pluralismo político. Os objetivos são quatros: i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; ii) garantir o desenvolvimento nacional; iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988)10. A função dos fundamentos e os objetivos constitucionais é servir de norte para a efetividade do programa constitucional estabelecido pela CF/88, pautado na construção de um Estado Democrático e Social de Direito (SILVA, J. A., 2006; BONAVIDES, 2008). Os fundamentos e os objetivos operam uma importante relação com os direitos sociais, incluindo o direito à saúde (objeto deste trabalho), pois trazem elementos basilares para guiar as opções políticas na promoção de tais direitos. A dignidade da pessoa humana se satisfaz como grande princípio do Estado Democrático de Direito brasileiro e coloca-se como uma obrigação política e jurídica de que todo indivíduo possui direito às condições mínimas de digna existência humana. Seu conceito é aberto e indeterminado, mas capaz de condicionar a necessidade de uma efetividade concreta das normas da CF/88, assim Sarlet ( 2007, p. 62) a defende como [...] qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes 10 Não é objetivo deste tópico e nem consta como interessante ao trabalho aprofundar as pormenoridades de cada fundamento e objetivo da CF/88, mas, sim, mostrar a necessidade de serem levados em consideração nas opções políticas a fim de efetivar as demais normas constitucionais, em especial, os direitos sociais. 25 mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Desta forma, os direitos à alimentação, à saúde e à educação devem ser orientados na perspectiva de uma efetivação digna para toda a sociedade, considerando que a dignidade da pessoa humana é ―[...] um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem.‖ (SILVA, J. A., 2006, p. 105). Essa forma de atingir tais direitos dentro de uma conformidade digna na sua efetivação coaduna com os objetivos dispostos no artigo 3º da CF/88. Desta feita, assiste razão Bonavides (2008, p. 380-384)11 ao afirmar que o que falta para a CF/88 é sua efetivação, pois todos os direitos já estão positivamente garantidos e a ordem constitucional é favorável para sua concretização, mas que certas vezes ficam esquecidos em promessas normativas constitucionais que nunca se tornam realidade e deturpados por uma ―crise da estatalidade social‖, onde operam a Sociedade, o Estado e o Governo. As opções políticas devem estar consonantes a matéria constitucional, não por mera obrigação jurídica, mas por conformidade com uma construção idealizada nos movimentos da sociedade que pressionaram a mudança do regime totalitário para o regime democrático. Não satisfazer os objetivos Constitucionais é subverter um desejo histórico e afirmado na CF/88 aos interesses patrimoniais e individuais de forma prejudicial e que não encontram respaldo nas diretrizes constitucionais. A exemplificação dessa situação é conformada pela preocupação na hora do governo alocar recursos de maneira coerente para criação de políticas públicas que efetivem direitos sociais dentro das perspectivas fundamentais e objetivas da CF/88 ou na hora de pessoas ligadas ao Estado não buscarem formas corruptoras de enriquecimento em detrimento do social, entre diversas outras possibilidades que serão trabalhadas ao longo do texto. De qualquer forma, a utilização dos fundamentos e objetivos constitucionais deve estar em consonância com aspectos históricos, relativos aos motivos que levaram tal direito a 11 Neste sentido: ―[...] o grande problema do momento constitucional brasileiro é o de como aplicar a Constituição. Esta questão porém não cabe unicamente ao Direito Constitucional resolver, mas deve ter por igual a audiência da Ciência Política.[...] (BONAVIDES, 2008, p. 381.). E ainda: ―Os direitos existem de sobra, com tamanha abundância na esfera programática que formalmente o texto constitucional resolveu com o voto do constituinte todos os problemas básicos de educação, saúde, trabalho, previdência, lazer e, de último, até mesmo a qualidade de vida [...] Com efeito, na Constituição de 1988 as promessas constitucionais ora aparecem cunhadas em fórmulas vagas, abstratas e genéricas, ora remetem a concretização do preceito contido na norma ou na cláusula a uma legislação complementar e ordinária que nunca se elabora.‖ (BONAVIDES, 2008, p. 382). 26 conquistar sua positivação, sociológicos e políticos, baseados na compreensão atual da sociedade e suas necessidades, e, por fim, jurídico, como forma de orientação normativa constitucional e umas das opções da sociedade para garantia de seus direitos. Por isso se faz necessária a compreensão dos Direitos Sociais, do Direito à Saúde e das Políticas Públicas para colocá-los de forma satisfatória perante o Poder Judiciário para a criação de um controle judicial adequado e coerente com as necessidades sociais. 1.4 Direitos Sociais 1.4.1 Compreensão do custo dos direitos Os direitos sociais possuem uma notória compreensão de serem constituídos como direito prestacionais ou positivos que para serem efetivados necessitam exclusivamente da ação do Estado dependente de recursos financeiros (SILVA, J. A., 2006; BONAVIDES 2008; FERREIRA FILHO, 2009). A dispensa de recursos financeiros seria exclusivamente para a promoção dos direitos sociais, pois os direitos individuais, tidos como negativos, para serem efetivados bastaria uma não ação do Estado. De fato, direitos ‗custam dinheiro‘ e a denominação ‗direitos‘ deve ser conformada em sentido amplo, abarcando uma totalidade de direitos, individuais e sociais, nos ditames do estudo realizado por Holmes e Sunstein (1999) no livro The Cost of Rights – why liberty depends on taxes. A tese lançada em 1999 traz importante estudo sobre o custo dos direitos, ao analisar que tantos os direitos negativos – tidos como de primeira geração, ligados a uma perspectiva liberal – quanto os direitos positivos – genericamente intitulados de segunda geração, ligados a perspectiva social – exigem a disposição de recursos financeiros para serem efetivados. Logo, qualquer direito, seja ele individual ou social, demanda gastos e planejamento para serem efetivados perante a sociedade. Direitos como voto, propriedade, registro civil, entre outros, devem possuir grandes estruturas para serem garantidos. Tribunais, cartórios, servidores, magistrado, entre os diversos profissionais e mais os próprios instrumentos de trabalho e a construção de espaços, são prioritários para a efetivação de tais direitos individuais. O comum e pouco explorado ensinamento de que direitos negativos não exigem 27 custos do Estado, não merece prosperar, Holmes e Sunstein (1999, p. 234-235) em uma tabela de gastos relacionados com o governo norte-americano apontam que o sistema de justiça gasta cerca de US$ 5.224.000.000 e a proteção de direitos relativos à propriedade cerca de US$ 6.622.000.000 (HOLMES ;SUNSTEIN, 1999, p. 234-235). Em contrapartida, o governo americano tem uma despesa de aproximadamente US$ 2.132.000.000 com a educação, ou seja, um valor bem inferior ao disponibilizado para outros direitos (HOLMES; SUNSTEIN, 1999, p. 235-236). No cenário brasileiro, podemos observar parecida disposição de recursos, ao verificar que no ano de 2012 uma parte do gasto para manutenção das estruturas dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público da União (MPU) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), foi dispensado cerca de R$ 8.495.828.291,00, considerando os limites de empenho e movimentação financeira que cabe a esses entes (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 2011), em contrapartida o orçamento para saúde relativo a manutenção das infraestruturas de Postos Comunitários, Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e Unidades Básicas de Saúde (UBS) foi de R$ 1.137.000.000,00 (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, 2011). Todos os direitos, sejam eles civis, políticos, econômicos e culturais têm um custo, e prescrevem as duas obrigações negativas e positivas. Os direitos civis não se esgotam por obrigações de abstenção por parte do Estado: exigem comportamentos positivos, como regulamentações, destinadas a definir o alcance e as limitações da atividade administrativa, direitos regulamentares, o exercício do poder de polícia, proteção contra interferência ilegal do Estado e de outras pessoas, a eventual condenação pelo Poder Judiciário em caso de violação, a promoção do acesso ao bem, que é o sujeito de direito. Basta rever mentalmente a grande quantidade de recursos alocados pelo Estado para a proteção dos direitos de propriedade: destina-se a grande parte da atividade da justiça civil e criminal, muito do trabalho da polícia, os registros de imóveis, automotivos e outros registros especiais, serviços cadastrais, o estabelecimento e controle de zoneamento e uso do solo, e assim por diante. Todas essas atividades envolvem, naturalmente, um custo para o Estado, sem as quais os direitos não seria, inteligíveis, e o exercício não teria nenhuma garantia. (ABRAMOVICH; COURTIS, 2009, p. 4, tradução nossa). Esse cenário de custos para promoção dos direitos na sociedade levanta questões sobre a noção de recursos escassos, fato que se comunica com a chamada teoria da reserva do possível12 , porém, é possível observar que a preocupação com a promoção dos direitos 12 Maiores apontamentos sobre a teoria da reserva do possível e a noção de recursos escassos serão realizados ao longo do trabalho. 28 individuais é mais corrente em nossa sociedade do que os direitos sociais, e esse fato se assimila com a própria história e formação dos direitos sociais no cenário brasileiro e as posteriores escolhas políticas baseadas em uma política neoliberal que potencializa o investimento no 'econômico' em detrimento do 'social'. Desta forma, há uma cultura política enraizada no governo em promover mais as estruturas básicas para garantia de direitos individuais do que de direitos sociais. Dispensam- se muito mais valores para garantir o direito à propriedade, direito à ação, direito ao voto, do que direito à saúde, educação, entre outros. 1.4.2 Os direitos sociais no cenário jurídico-social brasileiro É possível conceber os direitos sociais no cenário brasileiro como verdadeiros direitos originados no seio da sociedade, pois foram advindos das mobilizações sociais que pressionaram os poderes postos para terem condições mais dignas e protetivas de trabalho, saúde, educação, entre outras, que buscam um verdadeiro equilíbrio social13. Com a criação de indústrias e a necessidade de trabalhadores nesses novos seguimentos, surgem nos meios urbanos uma camada média que se une contrária às oligarquias, demonstrando a fraqueza do atual sistema e impulsionando uma revolução. Essa nova classe que surgia nos meios urbanos se contrapunha a oligarquia rural e pugnava melhores condições sociais, se inicia neste tempo, importantes movimentos e ideais para a construção e reconhecimento dos direitos sociais14 no Brasil. Com a revolução de 1930 se iniciou um importante momento no Brasil. O governo provisório instalado até 1934 já respirava algumas tendências do Estado Social como 13 Neste sentido: ―Os movimentos sociais são os indicadores mais expressivos para a análise do funcionamento das sociedades. Traduzem o permanente movimento das forças sociais, permitindo identificar as tensões entre os diferentes grupos de interesses e expondo as veias abertas dos complexos mecanismos de desenvolvimento das sociedades. Em cada momento histórico, são os movimentos sociais que revelam, como um sismógrafo, as áreas de carência estrutural, os focos de insatisfação, os desejos coletivos, permitindo a realização de uma verdadeira topografia das relações sociais. Tanto sua forma como seu conteúdo são condicionados pela específica constelação histórica, razão pela qual não se pode compreendê-los sem remissão direta às determinações históricas macroestruturais. Os movimentos sociais deixam entrever mais do que puras carências percebidas e demandas interpostas; eles permitem, de fato, o conhecimento do modelo de sociedade dentro da qual se articulam, cujas feridas se tornam, por intermédio deles, materialmente visíveis.‖ (SOARES DO BEM, 2006, p. 1138). 14 ―Ao longo da década de 1920, as bases políticas, sociais e econômicas do sistema rural-oligárquico entram em crise. Surge o tenentismo, movimento de oposição ao regime que congregava setores do jovem oficialato do Exército, e se baseava num vago ideário que englobava lutas contra a fraude eleitoral, o poder das oligarquias e a corrupção do governo. Na mesma época, uma nova classe média se afirma nos principais centro urbanos, com aspirações e valores divergentes daqueles das tradicionais elites agrárias que até então governavam o país. Por outro lado, ganha vulto no país a ‗questão social‘, com o aumento da força política dos trabalhadores nas cidades, que passaram a se organizar melhor e a reivindicar direitos.‖ (SARMENTO, 2010, p. 27): 29 a criação dos Ministérios da educação, saúde e do trabalho, indústria e comércio, impulsionados pelas estratégias interventores do New Deal americano e a constituição alemã de Weimar de 1919. Em contrapartida, a tendência dos regimes autoritários começa a surgir os fascistas na Itália, Franco na Espanha, Salazar em Portugal e o início do regime nazista começavam a apresentar um novo tempo de regimes totalitários e temerosos para a sociedade. No Brasil, em meio a revolução constitucionalista de 1932 e demais acontecimentos que pugnavam por uma reconstitucionalização do país, promulga-se a primeira constituição de caráter social em 1934, desligando-se do regime liberal estatudinense do século XIX15, impõe importantes mudanças e ―A partir dela, pelo menos sob o ângulo jurídico, a questão social não poderia mais ser tratada no Brasil como ‗caso de polícia‘, como se dizia na Primeira República, mas sim como ‗caso de Direito‘.‖ (SARMENTO, 2010, p. 31)16 O texto inovador e de caráter social não foi capaz de acompanhar as recorrentes crises enfrentadas pelo Estado brasileiro. Com evidente influencia do impacto de ideologias nacionalistas que emergiam no cenário europeu o Brasil atravessa um embate ideológico pelo poder expressado entre os representantes do partido da Ação Integralista Brasileira, de caráter fascista influenciados por Mussolini e Hitler, e a Aliança Nacional Libertadora, como partido de esquerda que se compunha do clandestino Partido Comunista17. A constituição de 1934 durou apenas quatro anos e o Estado brasileiro sucumbiu a um golpe de Estado arquitetado por Getúlio Vargas que desrespeitando o preceito constitucional que não previa reeleição ingressa no poder, implantando a ditadura no Brasil. Toda essa articulação política se baseou na criação de uma farsa denominada 15A constituição de 1891 que inaugura o período republicano brasileiro possuía traços do liberalismo norte americano inaugurando o sistema presidencialista e a forma federativa de governo, ao contrário da constituição monárquica de 1824 que tinha influências liberais europeias baseadas na construção de poder moderador (neste sentido: SARMENTO, 2010). 16 Neste sentido, José Afonso da Silva (2011, p. 69) comenta o viés social da constituição de 1934 que ―Teve em conta a questão social, que para a Primeira República era tida como simples questão de polícia. Pretendeu instaurar um Estado Social, que possibilitasse a todos existência digna. A liberdade econômica ficava subordinada à observância desse princípio de justiça. A lei deveria promover o amparo da produção e estabelecer as condições do trabalho na cidade e no campo, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País, e definia os direitos básicos dos trabalhadores, assim como reconhecia os sindicatos autônomos e as convenções coletivas de trabalho‖ 17 Cujos ideais tiveram importante influência no Brasil, ao movimentar a classe de trabalhadores urbanos para reivindicar melhores condições de vida e efetividade de direitos sociais, que mais tarde foi dissolvido pelo governo, como explica Sarmento (2010, p. 35) ao relatar que ―Em 11 de julho de 1935, invocando a Lei de Segurança Nacional recém-editada, que proibia a existência de partidos que visassem à subversão, pela ameaça ou violência, da ordem política nacional, o Governo dissolve a Aliança Nacional Libertadora, adotando como pretexto um discurso de Luis Carlos Prestes, seu Presidente de honra, que clamara pela derrubada do governo odioso de Vargas.‖ 30 plano Cohen18, que foi divulgado pelo General Góes Monteiro como uma estratégia para os comunistas tomaram o poder (MEZZAROBA, 1992). O sonho de implantação de um Estado Democrático e Social de Direito em terras brasileiras fica apenas no papel. Em 1937 é outorgada a nova constituição com traços fascistas e autoritários, redigida por Francisco Campos, que logo no preâmbulo já dispunha sobre o suposto perigo comunista e a ameaça de guerras civis19. Os direitos sociais positivados na constituição de 1934 não tinham um capítulo específico, mas a alma de formação de um Estado Social circundava as positivações normativas dos capítulos relacionadas a 'ordem social e econômica' e da 'família, da educação e da cultura', estabelecendo previsões que apresentavam a garantia de tais direitos, como o 18 Sobre o plano Cohen: ―[...] por sugestão de GOES MONTEIRO aos comandantes militares, iniciaram-se as discussões de preparação para um golpe, com a revogação da Constituição, a única forma de garantir a unidade militar e liquidar definitivamente a subversão bolchevique. Marcadas as eleições presidenciais para o início de 1938, o ano de 1937 foi decisivo para o projeto continuísta de VARGAS e para realização dos desejos golpistas da hierarquia militar. Para tanto, seria necessário o apoio popular, bem como o respaldo "legal", através da concessão do "estado de guerra" pelo Congresso Nacional, o que possibilitaria total liberdade para o governo preparar o golpe final. Nesta conjuntura é que surge o Plano Cohen. Este, segundo a versão oficial teria sido elaborado pelo "Comintern" e visava a tomada do poder no Brasil. O nome do Plano, esclarecido em 1958, referia-se ao dirigente do "Comintern" BELA KUN. Sendo que, de acordo com explicações de GUSTAVO BARROSO (notório anti-semita e pró-nazista) ao autor intelectual do Plano, OLYMPIO MOURÃO FILHO, "Kun" e "Cohen" significavam a mesma coisa. O objetivo do Plano era criar um ambiente emocional, propício a rápida aceitação do golpe e da nova Constituição, como medidas de emergência e de salvação nacional, pela população. Para isso, foram antecipadas em dois meses as homenagens às vítimas militares ocorridas com a "intentona" de novembro de 35. Ou seja, em 22 de setembro de 37, realizou-se uma romaria cívica e militar ao local onde foram enterrados os mortos do movimento de 35. Na oportunidade VARGAS foi incisivo ao afirmar que o ato representava uma lição de patriotismo e de advertência aos comunistas e fracos que não tinham coragem para defender a Pátria. Concluindo, frisou, enfaticamente, que naquele momento, o povo, o Exército e as Forças Armadas estavam unidos. Em 27 de setembro de 37, num encontro da cúpula militar, foi introduzido na pauta de discussão o Palo [sic] Cohen que, de acordo com GOES MONTEIRO, seria um Plano de ação judáico-comunista. E para obstruí-lo, as Forças Armadas necessitavam da concessão do "estado de guerra". Terminada a reunião ficou aprovado que um novo regime deveria ser instituído. O qual não poderia ser caracterizado como uma ditadura militar, nem deveria privilegiar pessoalmente qualquer militar.‖ (MEZZAROBA, 1992, p. 92-93). 19 Neste sentido, segue o preâmbulo da Constituição de 1937: ―ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente; ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; Com o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas; Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o país.‖ (BRASIL, 1937). 31 artigo 12120, que estabeleceu diversos direitos trabalhistas como salário mínimo, repouso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho, férias, entre outros, o artigo 1021 sobre a saúde e o artigo 15022, que estabeleceu disposições sobre educação, entre diversos outros artigos que demonstravam uma nova aproximação do Estado com os anseios sociais impulsionados pelas correntes mobilizações sociais. No entanto, a positivação de tais direitos não garante a efetividade deles na sociedade e a Constituição de 1934 teve vida curta, logo substituída, como já mencionado neste trabalho, pela Constituição de aspectos fascistas de 1937, e o projeto de um Estado Social iniciado em 1934 e da garantia de direitos sociais capazes de igualar as relações sociais é postergado até 1988, mas o cenário social inaugurado continuou a fazer parte da sociedade brasileira que através de mobilizações sociais como o movimento sanitário, buscando a criação de um novo modelo para saúde, as greves dos trabalhadores, as 'grandes greves' de trabalhadores, ocorridas no regime militar, o movimento estudantil, o movimento feminista, entre vários outros, que persistiram na luta pelo reconhecimento e efetivação de direitos sociais, desaguando na Constituição 'cidadã' de 1988, onde tais direitos conquistaram sua positivação em lugar de destaque na normativa constitucional (SOARES DO BEM, 2006) Enquanto a luta por direitos sociais (saúde, trabalho, educação, etc.) fazia parte da pauta de setores mais fragilizados da sociedade, a crescente cultura jurídica de preservação de direitos de primeira geração olvidando o cunho de proteção patrimonialista civilista se desenvolvia na criação de importantes diplomas legais como o Código Civil de 1916 e o Código de Processo Civil em 1973, bem como a estruturação de um Poder Judiciário capaz de 20 Para leitura do artigo: ―Art. 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei; d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres; e) repouso hebdomadário, de preferência aos domingos; f) férias anuais remuneradas; g) indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte; i) regulamentação do exercício de todas as profissões; j) reconhecimento das convenções coletivas, de trabalho.‖ (BRASIL, 1934). 21 Para leitura do artigo: ―Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: […] II - cuidar da saúde e assistência públicas; [...].‖ (BRASIL, 1934). 22 Para leitura do artigo: ―Art 150 - Compete à União: a) fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do País; […] a) ensino primário integral gratuito e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos; b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível; […].‖ (BRASIL, 1934). 32 solucionar lides obrigacionais (contratos, propriedade, etc.). O Estado brasileiro patrimonialista preocupava-se mais em determinar proteção legal e efetiva para direitos que circundavam o capital do que para direitos que visavam um equilíbrio social. Neste sentido, Mascaro (2008, p. 92, 105): A legalidade, como instância técnica favorável a uma burguesia nacional nas suas relações produtivas e mercantis, no caso brasileiro encontra não apenas a estabilização jurídica da propriedade privada ou do contrato, mas, para além disso, encontra a instrumentalização dos meios jurídicos como forma de favorecimento de relações de fomento e privilégio [...] (MASCARO, 2008, p. 92). A dinâmica de reprodução capitalista parece sempre atingir seu mais alto patamar histórico de estabilidade na neutralização da instância político- jurídica. A saída de formas políticas absolutistas ou de fundo voluntarista é a grande conquista moderna da reprodução capitalista. De um lado, a autonomia técnica do Estado dominado pelo direito assegura o contrato e a propriedade, dando-lhes estabilidade e previsibilidade. De outro lado, neutraliza as possibilidades da política e, desse modo, torna a instância político-estatal refém da lógica econômica. (MASCARO, 2008, p. 105) Essa perspectiva da formação histórica dos direitos sociais no Brasil, seu processo de positivação e a cultura de efetivação dos direitos individuais, no plano político e jurídico, possibilita a compreensão da razão dos direitos individuais serem mais garantidos pelo Estado do que os direitos sociais. Fato que contraria a compreensão clássica de que os direitos individuais para serem efetivados necessitam apenas de uma abstinência estatal, pois como visto, trata-se de uma opção política e jurídica sua efetivação na sociedade. Tal lógica, no caso brasileiro, segue até 1988, quando no processo de redemocratização os direitos sociais também ganham um espaço de destaque no texto constitucional. No entanto, opções políticas neoliberais, ainda com traços conservadores e contrárias a ordem social estabelecida na constituição de 1988 foram capazes de suprimir a vontade popular de mudança e rompimento com todas as lembranças do antigo regime. Por óbvio, a transformação democrática ocorrido no pós 1988 foi positiva e positivadora de direitos, mas como salienta José Afonso da Silva (2011, p. 210-211) Estamos vivendo, sim, um momento histórico de amplas liberdades políticas, o que é extraordinariamente saudável e condição necessária para a luta pela efetivação da promessa de nossa Constituição quando, no 'Preâmbulo', se 33 proprõe a instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício de direito sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e quando afirma, no art. 1º, que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito que tem como fundamento, entre outros, a dignidade da pessoa humana. Essa dignidade não será, porém, autêntica e real enquanto não se construírem as condições econômicas, sociais, culturais e políticas que assegurem a efetividade dos direitos humanos, num regime de justiça social. O País vive, sim, num regime de amplas liberdades, mas não vive ainda num regime democrático, se entendermos por 'democracia' um processo de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos humanos. Assim, apesar de todas as lutas sociais engendradas durante o século XX até a conquista da constituição 'cidadã' de 1988, o Brasil ainda concentra sua preocupação principal baseada no desenvolvimento econômico e não no desenvolvimento social, prezando suas posições políticas ao arrepio das diretrizes constitucionais que inauguraram um projeto de justiça social para o desenvolvimento do país. Há um dissenso entre as conquistas constitucionais de 1988 e as opções políticas pós 1988. Logo no início da década de 1990 impulsionado pelo neoliberalismo inaugurado por Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos da América na década de 198023, o Estado brasileiro não continua de maneira satisfatória a construção dos direitos sociais, agora positivados constitucionalmente e com força normativa, e não altera o enfoque da política desenvolvimentista da ditadura militar, buscando investimentos que prezam a abertura do mercado nacional, a privatização de serviços públicos, entre outras medidas, pensadas em uma lógica exclusivamente econômica. A cultura histórica brasileira de manter gastos com direitos individuais, prezando o capital e a propriedade, não foi interrompida com o processo de redemocratização de 1988, mantendo-se com as amarras conservadoras de políticas econômicas e sociais que privilegiam os mais abastados em detrimento dos mais necessitados, 23 Para uma breve explicação sobre o neoliberalismo: ―A década de 1980 foi marcada pelo surto de ideologia neoliberal. Ele se iniciou com vitória da Mme. Thatcher como primeira-ministra da Inglaterra e a eleição de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos. Neste período as políticas econômicas dos países mais poderosos estiveram dirigidas a uma desregulamentação de vários mercados, à privatização de certas empresas, ao aumento da competitividade internacional. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, sobretudo, tais medidas se complementaram com a diminuição de impostos sobre as camadas mais ricas da população e cortes importantes dos gastos sociais.‖ (SANTOS, 2010, p. 119). http://www.proppi.uff.br/revistaeconomica/sites/default/files/V.1_N.1_Theotonio_dos_Santos.pdf 34 [...] o modelo hegemônico que se instala na década de 1990, e que dá a direção efetiva da realidade econômico-social brasileira, é profundamente destoante da planificação jurídico institucional advinda da redemocratização. De certa maneira, a violência do contraste chega ao ponto de tornar plenamente ignorado o sentido jurídico-institucional da Constituição de 1988 para, em seu lugar, consolidar uma hegemonia de cunho conservador liberalizante. (MASCARO, 2008, p. 175)24 O conceito de desenvolvimento não é expandido como na perspectiva do economista Ignacy Sachs (1993) 25 e se mantém como sinônimo de economia 'forte', deixando as diretrizes constitucionais socializantes de lado. Por fim, é possível compreender que os direitos sociais no cenário brasileiro foram advindos de constante afirmação histórica perpetrada pela luta social de camadas menos beneficiadas da sociedade, buscando estabelecer um equilíbrio material nas relações sociais, e que tais fatores foram incorporados de maneira integra no texto Constitucional de 1988, demonstrando uma função de orientar as questões políticas e econômicas dentro de uma lógica para buscar a efetividade de tais direitos. No entanto, a cultura político-econômica utilizada no pós 1988 continua a não privilegiar de maneira satisfatória as questões sociais, havendo um leve melhoramento com o governo petista que passou a criar mais investimentos e programas para setores sociais, mas ainda sendo uma política de caráter econômico que não condiz com as necessidades da sociedade. 1.4.3 Os Direitos Sociais no Direito Constitucional brasileiro A positivação dos direitos sociais no texto constitucional de 1988 lhes garantiu um lugar de destaque como norma constitucional, através de todo desenvolvimento sócio-jurídico já demonstrado. Os direitos sociais estão inseridos no texto constitucional no ―Título II – Dos 24 Ainda, para completar o pensamento: ―Se a Constituição Federal de 1988 representa uma tentativa de expurgo da política autoritária, cujos lastros de cidadania praticamente inexistiam e cujo desrespeito aos direitos humanos era notório, a hegemonia política conservadora que sucede o movimento de redemocratização representa, um pleno assentamento nos grupos políticos que, historicamente, sustentam-se em relações de cunho autoritário, nas forças policiais dos Estados da Federação, na política de abandono social e na cooptação de elites judiciárias a favor de interesses políticos. Assim sendo, no plano político-institucional, a própria legalidade se esvai, e os princípios constitucionais dos direitos humanos se tornam inefetivos tendo em vista que a dominação autoritária contra a qual se insurgiam é a mesma que persiste na hegemonia política da década de 1990.‖ (MASCARO, 2008, p. 180). 25 Para Sachs (1993, p. 37-38) o conceito de ‗desenvolvimento‘ não deve ser caracterizado apenas por aspectos econômicos, há necessidade de conceber um ‗ecodesenvolvimento‘ baseado em 05 fatores básicos: i) Sustentabilidade social; ii) Sustentabilidade econômica; iii) Sustentabilidade ambiental; iv) Sustentabilidade espacial; e, v) Sustentabilidade cultural. 35 Direitos e Garantias Fundamentais‖, ―Capítulo II‖, possuindo destaque como direitos fundamentais, ou seja, sujeitos a rigidez constitucional disposta no artigo 60, §4º, inciso IV, constituindo-se como cláusulas pétreas26. Essa centralidade dos direitos sociais advinda da construção histórica desses direitos possibilita sua compreensão como Direitos Humanos Fundamentais, pois ―compõem um construído axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de nosso presente, fundamentado em um espaço simbólico de luta e ação social‖. (PIOVESAN, 2005, p. 44)27. Assim, não são apenas meras normas programáticas 28 ausentes de eficácia imediata na sociedade, mas compõe uma construção histórica e social, que ao se positivarem como normas constitucionais em 1988 abriram a possibilidade de serem consideradas como ―normas jurídicas vinculantes‖, ―direitos subjetivos‖ e ―passíveis de judicialização‖ (MENDES; BRANCO, 2013, p. 218). Os direitos sociais além de uma vinculação jurídica, política e constitucional de orientar as ações do Estado pautados nos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, já assinalados neste trabalho, são passíveis de tutela jurisdicional, pois 26 Para maiores detalhes sobre a concepção de direitos sociais como direitos fundamentais e cláusulas pétreas vide Sarlet (2009). 27 Direitos Humanos Fundamentais, direitos fundamentais e direitos sociais podem fazer parte de uma mesma compreensão pactuada na formação histórica e social desses direitos e sua posterior positivação, não havendo razão prática sua distinção, apenas para colocá-los como direitos do plano internacional (direitos humanos) ou do plano nacional (direitos fundamentais), como faz Dimoulis e Martins (2012) e José Afonso da Silva (2006), entre outros. Assim, o presente trabalho compactua do posicionamento de Barros (2003, p. 39, grifo do autor): ―Não há razão por que separar direitos fundamentais e direitos humanos, pondo aqueles numa situação ontológica, na qual têm concreção normativa, aparecendo definidos, firmes, positivados, reforçados na constituição jurídica do Estado, e pondo estes numa situação deontológica imprecisa e insegura, sem uma definição positiva, que deveriam ter mas não têm, daí aparecendo sem tutela ou concreção reforçada. Mesmo porque tanto uns quanto outros estão em ambas as situações. Na verdade, o instituto nasceu uno e nunca foi senão um, conquanto admita, como outros institutos e conceito jurídicos, níveis ou campos de compreensão e de extensão que podem variar do mais geral e fundamental ao mais particular e operacional. Tal variância impõe reconhecer a existência de direitos humanos fundamentais e direitos humanos operacionais: aqueles estruturais, principais destes; estes conjunturais, subsidiários daqueles; mas todos no mesmo espaço institucional, compondo um só instituto jurídico: os direitos humanos.‖ 28 Sobre a conformação dos direitos sociais como normas programáticas Bonavides (2008, p. 245), afirma que ―As normas programáticas, às quais uns negam conteúdo normativo, enquanto outros preferem restringir-lhe a eficácia à legislação futura, constituem no Direito Constitucional contemporâneo o campo onde mais fluidas e incertas são as fronteiras do Direito com a Política.‖ e Miranda (1996, p. 218) conclui que ―[...] são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-gerais, explicitam comandos valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial – embora não único – o legislador, cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjetivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados‖. 36 [...] as disposições constitucionais relativas à Justiça Social não são meras exortações ou conselhos, de simples valor moral. Todas elas são – inclusive as programáticas – comandos jurídicos e, por isso, obrigatórias, gerando para o Estado deveres de fazer ou não-fazer. [...] Todas as normas constitucionais concernentes à Justiça Social – Inclusive as programáticas – geram imediatamente direitos para os cidadão