A Renovação Carismática do Brasil já envia missionários até para a igreja europeia, que levam na bagagem sua vivência de uma fé mais passional, pessoal e extrovertida O carisma é brasileiro unespciência Ilu st ra çã o: M ar cu s P en na TANQUà O PANTANAL PAULISTA ESTÁ EM RISCO? SAÚDE OBESIDADE EM JOVENS AFETA ATÉ OSSOS AMBIENTE POLUIÇÃO JÁ PREJUDICA DNA DE SAPOS setembro de 2014 ° ano 6 ° número 56 ° R$ 9,00 UC56_Capa_03.indd 1 29/08/2014 14:12:14 Produzir conteúdo, Compartilhar conhecimento. Editora Unesp, desde 1987 www.editoraunesp.com.br INICIAÇÃO À ANÁLISE GEOESPACIAL Nesse estudo introdutório sobre a teoria e as técnicas de geoprocessamento, o autor apresenta, com vasta profusão de exemplos práticos, as principais bases conceituais dos sistemas de informação geográ�ca (SIG), desvendando a inventividade humana presente em so�sticados softwares cada vez mais constantes em nosso cotidiano. Autor: Marcos César Ferreira 344 páginas · 16 x 23 · R$ 62,00 C M Y CM MY CY CMY K ca rt a ao le ito r Governador  Geraldo Alckmin Secretário de Desenvolvimento  Econômico, Ciência e Tecnologia Rodrigo Garcia UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Reitor Julio Cezar Durigan Vice-reitora Marilza Vieira Cunha Rudge Pró-reitor de Administração Carlos Antonio Gamero Pró-reitor de Pós-Graduação Eduardo Kokubun Pró-reitor de Graduação Laurence Duarte Colvara Pró-reitora de Extensão Universitária Mariângela Spotti Lopes Fujita Pró-reitora de Pesquisa Maria José Soares Mendes Giannini Secretária-geral Maria Dalva Silva Pagotto Chefe de Gabinete Roberval Daiton Vieira Assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa Oscar D’Ambrosio   Presidente do Conselho Curador Mário Sérgio Vasconcelos Diretor-presidente José Castilho Marques Neto Editor-executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente administrativo e financeiro William de Souza Agostinho unespciência Diretor de redação  Pablo Nogueira Editores-assistentes  André Julião e Guilherme Rosa Colunista  Oscar D’Ambrosio Arte  Hankô Design (Ricardo Miura) Assistente de arte  Andréa Cardoso Colaboradores Alice Giraldi, Mariana Pastore,  Maurício Tuffani (texto); Agência Ophelia,   Gui Gomes, Luiz Machado, Tipuana Imagens (foto);  Marcus Penna (ilustração). 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A RCC é bem mais complexa, e tem constituído, nas últimas duas décadas, um campo fértil para estudiosos brasileiros. Um deles é o antropólogo Antônio Braga, que é professor da Unesp em Marília. As pesquisas de Braga e de seus orientandos constituem a base da re- portagem de capa desta edição, produzida pelo editor- -assistente Guilherme Rosa. A história do catolicismo no Brasil se confunde com a própria história da nação. As naus que, no século 16, trouxeram da Europa batalhões de soldados para reivindicar o território para o domínio da Coroa por- tuguesa transportaram também padres cuja missão era salvar as almas dos povos indígenas submetidos. Ao contrário do que costuma imaginar o senso co- mum, religiões não são grandes estruturas monolíticas de pensamento que se mantêm inalteradas ao longo do tempo. Ao contrário: sofrem influências da época e do lugar onde estão. Cinco séculos de trajetória do catolicismo no Brasil resultaram na produção de um catolicismo com características brasileiras. A RCC nas- ceu nos EUA mas, após quase quatro décadas por aqui, amadureceu e incorporou alguns elementos da cultura brasileira. E é essa RCC que agora se internacionaliza, sendo convidada a fazer-se presente em dioceses do Velho Mundo, invertendo o sentido da evangelização. Esta edição de Unesp Ciência marca o início do sexto ano da revista. Em qualquer projeto que alcança deter- minada duração, é saudável fazer alterações, de forma a mantê-lo atualizado e em sintonia com seu público. A partir desta edição, a sessão “Ponto Crítico” passa a apresentar artigos escritos pelos docentes da Unesp, que apresentam comentários a questões contemporâ- neas. Esperamos que os leitores apreciem a novidade. Um abraço e até a próxima setembro de 2014 .:. unespciência 3 Pablo Nogueira diretor de redação UC56_Editorial_01.indd 3 29/08/2014 11:56:24 Capa Carisma verde e amarelo Renovação Carismática se consolida no Brasil e está sendo bem recebida até na igreja européia. Mas, por aqui, alguns grupos ainda se queixam de resistências, e preferem se reunir longe das igrejas para viver sua espiritualidade Ambiente insalubre Anfíbios e outros animais apresentam más-formações e problemas de fertilidade devido à presença de resíduos de agrotóxicos, hormônios e medicamentos no meio ambiente. Pesquisadores se preocupam com efeitos em humanos Estudo de Campo O pantanal paulista Uma barragem fez surgir no interior do Estado um ecossistema que lembra o Pantanal, mas construção de nova eclusa poderá causar seu desaparecimento. Pesquisadores da Unesp acompanham possíveis impactos ambientais su m ár io unespciência .:. setembro de 20144 18 30 36 UC56_Sumario_01.indd 4 03/09/2014 13:58:31 revistaunespciencia @unespciencia Tv: www.tv.unesp.br/unespciencia Site: www.unesp.br/revistablog E-mail: unespciencia@unesp.br Como se faz Estudo com uvas poderá transfor- mar região de Jundiaí em polo de turismo e produção de vinho Perfil Pedro Thadeu Galvão Vianna criou a área de anestesiologia da FMB, que é hoje referência nacional Arte Cecília Macedo vê na arte uma forma de caligrafia, onde cada um conta suas próprias histórias Click! Revoada de aves no Tanquã mostra parte das 170 espécies que povoam a região, muitas vindas de fora Estação de trabalho A sala de Teodoro Vaske Jr. retrata sua relação íntima com o mar e suas misteriosas criaturas Quem diria Grupo quer revolucionar conhecimento sobre homeopatia usando métodos científicos Livros O historiador Paul Veyne investiga o quanto os antigos gregos realmente acreditavam em sua rica mitologia Ponto crítico Rita de Cássia Biason investiga como o tema da corrupção poderá interferir na escolha do eleitor 6 12 16 42 44 46 48 50 Gordura prejudica ossos Enquanto a obesidade cresce rapidamente entre adolescentes e jovens, nova pesquisa mostra que o excesso de peso pode significar problemas também no futuro, pois está associado a perda precoce de massa óssea setembro de 2014 .:. unespciência 5 26 UC56_Sumario_01.indd 5 03/09/2014 13:59:02 Criador do primeiro departamento desta especialidade no Brasil, formou todos os primeiros professores da universidade na área, e ainda tornou-se pesquisador destacado e vice-diretor da FMB E le nos recebe à porta de sua casa, em Botucatu. Animado, já começa a contar a história da construção nada tradicional, toda em concreto aparente, com janelas amplas e elementos vazados que integram os jar- dins. “A casa onde vivo é fruto da euforia do começo dos anos 1970, quando 200 docentes vieram a Botucatu para construir um câmpus universitário”, diz Vianna, referindo-se aos primeiros tempos da Fa- culdade de Medicina e Ciências Biológicas de Botucatu, como era chamada a escola de medicina antes da fundação da Unesp, em 1976. “Encomendamos o projeto da casa ao arquiteto argentino Jorge Caron, o mesmo que projetou os ambulatórios do Hospital das Clínicas, a biblioteca e departamentos do câmpus.” A trajetória do médico anestesista Pe- dro Thadeu Galvão Vianna está mesmo misturada com a história da criação da Faculdade de Medicina da Unesp de Bo- tucatu. Baiano de Jequié, chegou à cida- de no final dos anos 1960, com o firme propósito de ajudar a pôr de pé o projeto da escola de medicina e, de maneira par- ticular, a área de anestesiologia. Acabou criando, em 1977, o primeiro departamen- to de anestesiologia do Brasil. Também organizou o mais prestigiado programa de residência para anestesistas do país. E ajudou a criar, ainda, um dos raros cursos de pós-graduação em anestesiologia no Brasil, hoje prestigiado com conceito 6 da Capes. “Sou assim: gosto de pegar as novidades”, define o anestesista. Esse gosto pelo novo associado a um espírito de liderança levou Vianna a ocu- par vários cargos nas áreas de gestão e representatividade, dentro de seu campo de atuação. Além de chefe do departamen- Pai da anestesiologia na Unesp Pedro Thadeu Galvão Vianna Pedro T h a d e u , so bre o início da Faculdade de Medici na de B o tu ca tu Houve uma euforia no começo dos anos 1970, quando 200 docentes vieram para Botucatu para construir um câmpus entrevista a Alice Giraldi ● fotos Agência Ophelia unespciência .:. setembro de 20146 UC56_Perfil_01.indd 6 29/08/2014 11:41:48 setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Perfil_01.indd 7 29/08/2014 11:41:53 Com a família, na formatura na Escola Baiana de Medicina e Saúde, em 1966 José Luiz Gomes do Amaral Professor de Anestesiologia, Dor e Terapia Intensiva da Unifesp Tive a oportunidade de conhecer o trabalho dele na Unesp no início. Fi- quei fascinado com a forma absolu- tamente inovadora como organizou o departamento. Como pesquisador, notabilizou-se na investigação em função renal em anestesia e, tam- bém, na anestesia venosa, onde al- cançou grande destaque. Silvana Artioli Schellini Diretora da Faculdade de Medicina de Botucatu Fiz uma carreira cirúrgica e traba- lhamos muitas vezes juntos. Ele tem um conhecimento fora da média na área de anestesia. Tem também to- das as características de liderança. Transmitiu ao grupo da anestesiolo- gia um forte espírito de trabalho em equipe. Seu departamento é diferen- te, chegou a ter cinco professores titulares ao mesmo tempo, ganhou reconhecimento nacional e mundial. José Carlos de Souza Trindade Professor da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu – Ex-reitor da Unesp É Idealista, acredita nas suas pro- postas e luta por elas. Teve um pa- pel muito importante na criação e consolidação do departamento de anestesiologia e de seus programas de residência e pós-graduação. Foi o responsável, praticamente sozinho, pela formação de todos os primeiros professores de anestesiologia. Isso favoreceu o desenvolvimento de to- das as especialidades cirúrgicas, em áreas como neurologia, cardiologia e transplantes. O que dizem sobre Pedro Thadeu G. Vianna to de cirurgia e vice-diretor da Faculda- de de Medicina da Unesp de Botucatu, ele foi membro do conselho superior e presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Recém-aposentado, mas na ativa, tanto em suas linhas de pesquisa como na co- ordenação do programa de residência que criou, o anestesista recebeu a equipe de Unesp Ciência para a seguinte entrevista: UC  De onde veio a inspiração para se- guir a carreira médica?  Vianna Tenho três tios médicos. Meu pai também era médico, mas nunca in- fluenciou a minha escolha profissional. Ele era daqueles médicos do interior, do tipo médico de família, que visitava as pessoas em casa. Gostava de entrar na casa dos pacientes pela porta da cozinha. Dizia que essa era a melhor maneira de conhecer os moradores e observar seu comportamento. Meu pai primeiro con- versava com os empregados e com a fa- mília, para só depois chegar ao quarto do doente. Algumas vezes, quando criança, eu ia acompanhá-lo nessas visitas. Mas ele nunca deixava que eu entrasse nas casas dos pacientes. Íamos de táxi e eu ficava esperando dentro do carro, juntamente com o motorista. UC  Então, certamente, sua opção profis- sional recebeu a aprovação dele. Vianna Sim, mas quando resolvi ser anes- tesista, ele não entendeu. Não conseguia compreender como é que um indivíduo podia estudar seis anos de medicina para ser anestesista (risos). Não aceitava isso. Mas havia um bom motivo para essa re- sistência. A anestesia foi criada em 1846, por Thomas Morton. Em 1957, quando eu estava com 15 anos de idade, tive uma apendicite e precisei ser operado de ur- gência, em Jequié mesmo. O anestésico que me deram foi exatamente a mesma substância usada na primeira aneste- sia pelo Morton, um século antes: o éter. Passei muito mal. Fui operado às 11 ho- ras da manhã e só fui acordar às oito da noite! Vomitei a noite inteira. Fui operado perto do Carnaval e me recordo de ouvir ao fundo, a noite toda, o som do baile no clube, que ficava perto da Santa Ca- sa. Foi uma experiência traumática. Ou seja: até aquela ocasião, passados 101 anos da criação da anestesia, não havia acontecido nenhuma inovação na área. Na verdade a anestesiologia só começou a se desenvolver a partir dos anos 1970. Dos anos 1980 em diante, principalmente, é que houve uma evolução grande na área, resultante de um “boom” de drogas, asso- unespciência .:. setembro de 20148 UC56_Perfil_01.indd 8 29/08/2014 11:41:55 Fo to s: R ep ro du çã o/ A rq ui vo p es so al Com a mulher, Zezé, e amigos, no Congresso Nacional de Anestesiologia, anos 1970Primeiros tempos em Botucatu, anos 1960 ciada à criação de novos equipamentos e à introdução da informática. UC  O que o levou a ser anestesista, então? Vianna Fiz o curso de graduação na Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador. No primeiro ano na faculdade, não fui muito bem na disciplina de anato- mia, cheguei até a ficar de exame. Mas, a partir do segundo ano, quando entraram as matérias de fisiologia, farmacologia e bioquímica, passei a ser um excelente aluno. Um dos meus irmãos, o Geraldo Adolfo, que era advogado, costumava me orientar. Em 1967, quando eu estava cur- sando o final do quinto ano de faculdade, fui conversar com ele, porque estava em dúvida sobre qual especialidade escolher. Avaliamos a situação e ele disse: “Thadeu, você foi muito bem nas matérias que são a base da anestesiologia!”. Naquele ano fui a São Paulo para fazer a minha resi- dência no Hospital das Clínicas (HC). No HC, recebi o apoio de um grupo muito bom, que incluía o professor Bairão (Gil Soares Bairão, professor de farmacologia do HC-FMUSP), e a professora Eugesse (Cremonesi), que acabou vindo para Bo- tucatu. Ela foi a primeira docente da área de anestesiologia na Faculdade de Ciên- cias Médicas e Biológicas de Botucatu. UC  Foi um convite dela que o trouxe a  Botucatu? Vianna Sim, de uma certa forma. Como a Eugesse não podia dar tempo integral, a faculdade começou a procurar outro médico para a vaga. Então, ao terminar a residência, em 1968, resolvi vir aqui para conhecer a faculdade, junto com o professor (William Saade) Hossne. De volta da visita, disse à Eugesse que já havia me decidido: eu iria, sim, para Bo- tucatu, para ocupar a vaga de professor de anestesiologia. Eu estava num entu- siasmo tão grande que me desvencilhei de todos os meus compromissos em São Paulo. Depois, peguei um avião e fui co- nhecer Brasília, e, de lá, fui para Jequié, para visitar meus pais. Meu pai queria que eu ficasse por lá. Quando contei a ele sobre meus planos de ir para Botucatu, ele ficou muito chateado. A expectativa dele era de que eu viesse estudar em São Paulo e depois voltasse para a Bahia. Ex- pliquei que o projeto era ajudar a criar uma faculdade cujo curso básico já esta- va consolidado, mas o curso clínico, não. A Faculdade de Medicina de Botucatu, naquela ocasião, tinha 40 leitos, sendo 20 da clínica médica e 20 da pediatria. Não havia nenhum leito para a cirurgia, que funcionava na Santa Casa da cida- de, justamente por falta de anestesista. Mesmo não gostando da ideia, meu pai me apoiou financeiramente até eu poder começar em Botucatu. UC  O que o entusiasmou, o desafio de  começar um projeto do zero? Vianna Sim. No que tinha a ver com a minha disciplina, peguei a faculdade na estaca zero. Não havia nada. Era uma perspectiva fantástica! Em agosto de 1968 fui contratado como professor-instrutor. Fiquei sozinho como professor de anes- tesiologia durante três anos. Até que três residentes da cirurgia, que passaram pela Pedro T h a d e u , so bre a reação do pai médico à sua esc ol ha p el a a n e st e si ol og ia Meu pai não conseguia entender como alguém podia estudar seis anos de medicina para ser anestesista, não aceitava setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Perfil_01.indd 9 29/08/2014 11:41:56 Na sala da esposa, Zezé, no Depto. de Zoologia em Botucatu, no ano de 1970 Com colegas do departamento após receber o título de professor emérito, em 2014 Posando com a família durante o pós-doutorado na Inglaterra, em 1992 Fo to s: R ep ro du çã o/ A rq ui vo p es so al minha disciplina, resolveram se juntar a mim. O núcleo de anestesistas aumentou de um para quatro e, a partir daí, não parou mais de crescer. UC O Departamento de Anestesiologia de  Botucatu é pioneiro, foi o primeiro nes- sa área de estudo a ser criado no Brasil.  O senhor se inspirou em algum modelo  para criá-lo? Vianna Desde os tempos de residência eu ouvia o professor Bairão dizer que “a anestesiologia não cabe em nenhum lu- gar”. E é verdade. Não somos da área de cirurgia, por exemplo. Quem é anestesista conhece a fisiopatologia da cirurgia, mas não tem interesse pela técnica cirúrgica. Na USP de Ribeirão Preto a anestesia está na ortopedia – também não tem nada a ver! Então criamos um departamento es- pecífico, apenas comigo e cinco colegas, todos ex-residentes meus. Com o passar dos anos, começamos a pensar que havia uma consanguinidade muito grande entre nós, no que diz respeito ao conhecimento científico. Ficamos com medo de haver problemas no futuro em decorrência dis- so e acabamos fazendo um pacto, entre três colegas do departamento: cada um de nós faria pós-doutorado em uma área diferente, no Exterior. Um colega foi para Paris, outro foi para Nápoles e Milão, na Itália, para passar um período com grupos que realizavam estudos sobre dor. Esse colega fundou o nosso centro de terapia antálgica, que hoje é referência em todo país. E eu fui para Bristol, na Inglaterra. A ideia era que cada um de nós trouxesse novos conhecimentos para desenvolver o departamento aqui. UC O que o senhor trouxe do pós-dou- torado em Bristol? Vianna Fui para Bristol em 1991 como bolsista da Fapesp, para estudar o uso de uma droga empregada na proteção renal durante a cirurgia cardíaca. Um dos maiores problemas desse tipo de ci- rurgia é a insuficiência renal, que chega a atingir até 30% dos pacientes, de forma grave, com muitos óbitos. O objetivo da minha ida a Bristol era testar uma droga que os ingleses utilizavam, para ver se unespciência .:. setembro de 201410 UC56_Perfil_01.indd 10 29/08/2014 11:42:02 ela funcionava como um protetor renal. O pior é que eu provei que não funciona- va! (risos) Apresentei os resultados desse trabalho no Congresso Mundial de Anes- tesiologia em Haia, na Holanda, em 1992. O que acabei trazendo dessa experiência na Inglaterra foram conhecimentos so- bre a anestesia venosa, que, no Brasil, ainda estava engatinhando. Já fazíamos esse tipo de anestesia aqui, mas ainda de maneira bastante empírica, no que dizia respeito à dose. Na década de 1990, par- ticipei do desenvolvimento, juntamente com vários colegas ao redor do mundo, de um método de anestesia venosa alvo- controlada. Com base no perfil farmaco- cinético da droga, calculamos a dose a ser ministrada continuamente. Usamos uma bomba, que faz automaticamente todos os cálculos e fornece a velocidade de infusão. A introdução desse método é um marco dentro da área de anestesiolo- gia. Nos anos posteriores, viajei o Brasil inteiro para explicar como se emprega a técnica, ensinei muita gente. UC As técnicas de cirurgia cresceram  junto com o desenvolvimento da anes- tesia no Brasil? Vianna Sim, certamente. Há até um con- ceito, que eu costumava achar absurdo quando era citado nas palestras, duran- te a minha temporada na Inglaterra. Os ingleses diziam que no futuro, por volta do ano 2020, a anestesia feita nos am- bulatórios iria representar entre 70% a 80% de todas as anestesias realizadas em hospitais. E hoje isso já é verdade, viu? Atualmente existem os hospitais- -dia, que são uma maravilha: você chega lá de manhã, faz a cirurgia oftalmológica – ou da área de gastroenterologia, uma hérnia, por exemplo –, e sai à tarde. Is- so só é possível porque a recuperação da anestesia, hoje, é muito rápida. Não há mais náuseas e vômitos e, muito impor- tante, não há dor. Os equipamentos de monitorização também representaram um grande avanço para a anestesia. UC Qual é o projeto de pesquisa que o  senhor considera de maior importância  na sua carreira? Vianna Em 1981, descobrimos que o anes- tésico local em concentrações aumentadas, na raquidiana, causa lesão neurológica. Fizemos isso 10 anos antes do resto do mundo! Essa linha de pesquisa surgiu de maneira surpreendente quando, em apenas cinco dias, apareceram seis pa- cientes com lesão neurológica na porção terminal da medula. Fiz a pesquisa em cães, e um grupo apresentou a lesão. Pu- bliquei o artigo na Revista Brasileira de Anestesiologia, em 1985. A comunidade internacional não concordou com esses resultados e, por isso, não consegui pu- blicar a pesquisa em nível internacional. A partir de 1991, quando um pesquisador inglês relatou os casos de quatro pacientes com quadros semelhantes, inúmeras pes- quisas foram realizadas sobre o assunto. Em 2001, estudos mostraram que essa lesão é irreversível. UC Quais são hoje as linhas de pesquisa  mais promissoras no campo? Vianna Olha, antigamente os fármacos eram tão ruins que os cirurgiões riam da gente, sabe? Era horrível: havia ape- nas umas quatro ou cinco drogas, todas muito ruins. Quando eu fiz residência ainda era assim. Os cirurgiões passavam pela gente e perguntavam: “E aí, você já fez seus venenos para o doente?” Hoje eles não podem mais falar isso. Evoluí- mos tanto que o anestésico, além de não ser nocivo ao organismo, ainda protege o órgão. É isso que estamos estudando: formas de proteger os órgãos durante a anestesia. Recentemente enviei um pro- jeto para a Fapesp sobre isquemia e re- perfusão. A ideia é comprimir os vasos, suprimindo a circulação sanguínea dos órgãos momentaneamente e depois soltar, para proteger esses órgãos do efeito das drogas. Isso já tem sido feito com uma espécie de pinça, mas hoje já se pode fazer também quimicamente, com o uso de determinados anestésicos. A técnica se chama pré-condicionamento. É um grande desafio, uma pesquisa com alto nível de complexidade. UC O senhor toca uma fazenda de cacau  em Ilhéus, no sul da Bahia. De onde vem  o gosto pelo mundo rural? Vianna A fazenda eu herdei do meu pai. Mas tenho mesmo uma alma rural. Se você for olhar a minha origem, vai entender. Meu pai sempre gostou de fazenda e eu sempre me influenciei por ele. Quando jovem, eu queria fazer agronomia. Quem tirou isso da minha cabeça foi a minha mãe, que insistiu muito para que eu es- colhesse outro caminho profissional. Mas eu fiquei com aquele desejo, sempre gos- tei de fazenda. Tenho um sítio, também, aqui, perto de Botucatu, há 30 anos, que frequento regularmente. No verão, plan- tamos milho; no inverno, fazemos confi- namento de gado nelore. A cada 40 dias, pego um avião e vou a Ilhéus, para ver como vão as coisas. Instalei uma antena de celular na fazenda e agora posso me comunicar com o mundo à vontade. UC Além da vida de fazendeiro, o que  mais está nos seus planos para o futuro? Vianna O que eu quero é mostrar que hoje qualquer um pode muito bem fazer atualizações a partir do lugar onde está. Tenho me empenhado em divulgar essa ideia. Eu, por exemplo, conto com a ajuda das bibliotecárias do PUBMED, a maior biblioteca médica do mundo, localizada em Washington (EUA), para atualizar mi- nhas pesquisas. Recebo informação delas diariamente. Gosto muito de tecnologia. Quando vou à faculdade e vejo os meni- nos trabalhando com tantas facilidades tecnológicas, fico pensando: “Queria estar começando na anestesiologia hoje!”. Pedro T h a d e u , so bre a pouca variedade de anestésic os qu an do c o m e ço u na á re a Antes, os fármacos eram tão ruins que os cirurgiões riam da gente. Havia apenas quatro ou cinco drogas, todas muito ruins. Era horrível setembro de 2014 .:. unespciência 11 UC56_Perfil_01.indd 11 29/08/2014 11:42:02 A festa da uva Há séculos, o cultivo da fruta chegou a São Paulo, mas a produção de vinho ainda não se desenvolveu no Estado. Pesquisa quer mudar este quadro, e beneficiar pequenos produtores de Jundiaí paulistas é o consumo in natura, a chamada uva de mesa. Esta característica força as empresas paulistas que produzem sucos e vinhos a ter que recorrer à importação para obter matéria-prima para seus pro- dutos. “Hoje, 98% da uva que se usa para fazer vinho em São Paulo vem de outro Estado”, avalia Tecchio. O trabalho de Tecchio pretende contri- buir para transformar esse quadro. “Nos últimos anos tem havido uma demanda, por parte dos produtores de São Paulo, de estudos relacionados às variedades de uva que sejam próprias para a produção de vinho”, diz. O cultivo da uva envolve certas especi- ficidades. Em alguns países, o Brasil entre eles, a planta sofre com a ação de pragas M artin Afonso de Souza (1490- -1571) entrou para a história brasileira como sinônimo de pioneirismo. Comandou a primeira ex- pedição colonizadora, fundou a primeira cidade, foi o primeiro governador da co- lônia... E também foi a primeira pessoa a pensar que seria uma boa ideia plantar uvas por aqui. Mas o nobre português es- tava à frente de seu tempo. Dificuldades de adaptação ao solo e ao clima tropical impediram que o cultivo da planta da fa- mília das vitaceae se desenvolvesse no Brasil nos primeiros séculos. Hoje, uma pesquisa da Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA) da Unesp de Botucatu está procurando detectar quais as variedades da planta que melhor podem se adaptar ao Estado de São Paulo tendo como horizonte a produção de vinho. A pesquisa está a cargo do agrônomo Marco Antonio Tecchio, professor do departamen- to de Horticultura da FCA, com apoio da Fapesp e se iniciou em 2013. Somente a partir do século 19 é que a introdução de novas variedades de uva, combinada com o grande influxo de imi- grantes europeus, possibilitou que surgis- sem por aqui grandes lavouras de videiras. O Brasil é o 19º maior produtor de uvas do planeta, e 57% da produção vem de um único Estado, o Rio Grande do Sul. Pernambuco vem em segundo e São Pau- lo, em terceiro, respondendo por 12% do total nacional. Porém, o destino de mais de 99% dos frutos que saem das videiras texto Pablo Nogueira Fo to : A nd re w H ag en unespciência .:. setembro de 201412 UC56_Como_se_Faz_02.indd 12 29/08/2014 11:51:59 setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Como_se_Faz_02.indd 13 29/08/2014 11:52:05 A ENXERTIA NO CAMPO Em primeiro plano, vê-se o tronco da espécie que serve como porta-enxerto, onde será inserida a variedade de copa. A seguir, tira-se a parte superior do porta-enxerto, e o tronco da copa também é cortado, a fim de permitir o encaixe de junho e agosto, e pode ser realizada de duas formas, chamadas de tradicional e aérea. As duas são semelhantes, e dife- rem apenas no fato de que, no segundo caso, deixa-se um ramo do porta-enxerto intacto, isto é, sem ser substituído pela va- riedade de copa. Este ramo é chamado de “pulmão”, e tem a função de evitar uma saída excessiva de seiva do porta enxerto para as plantas de copa. Chega então o momento da enxertia propriamente dita. A etapa inicial é fazer uma limpeza em torno do porta-enxerto, a fim de facilitar a operação. A seguir, é selecionada uma parte lisa e reta do cau- le, preferencialmente a uma altura de 10 cm a 15 cm acima do solo. Nesse local, faz-se um corte horizontal, eliminando-se a copa. A seguir, faz-se a fenda, no senti- do longitudinal, com entre 2 cm e 4 cm de extensão. É aí que será introduzido o tronco da variedade que se deseja enxer- tar. Este é chamado de “garfo”. Para o preparo do garfo, toma-se uma estaca do cultivar copa, de diâmetro se- melhante ao do porta-enxerto. Corta-se a estaca de ambos os lados do caule, de maneira a formar uma cunha. O garfo é imediatamente encaixado na fenda do porta-enxerto, assim que preparado, de maneira que as regiões da casca do porta- como a filoxera, um inseto que pode atacar suas raízes. A solução é associar a videira a outra planta, que seja resistente à praga. Esta associação é feita através da técnica conhecida como enxertia. Inicialmente cultiva-se uma certa es- pécie de planta até que se ramifique nor- malmente. A seguir, corta-se seu tronco, e afixa-se a ela uma outra variedade de vegetal. A parte que se mantém enraizada é chamada de porta-enxerto, e a que foi posteriormente afixada é denominada copa. A primeira fase do plantio de uvas consis- te na colocação das espécies que servirão como porta-enxertos. Isso é feito através da técnica conhecida como estaquia, que envolve o uso de estacas do tronco dessas plantas. As estacas são coletadas de matri- zes selecionadas, lívres de vírus e isentas de brotações secundárias. As melhores estacas são as roliças, com diâmetro de 8 a 10 mm. Nas regiões de inverno seco, como São Paulo, as estacas são cortadas com comprimento variando entre 60 cm e 70 cm. Uma vez que as estacas tenham sido produzidas, podem ser colocadas dire- tamente no campo. Outra opção é cultivá- -las em outro ambiente, a fim de facilitar seu desenvolvimento, e só posteriormente transplantá-las para os vinhedos. O plan- tio das estacas dos porta-enxertos direta- mente no vinhedo exige maior cuidado e tem um custo mais elevado. Esta técnica implica a adoção de diversas medidas que assegurem o desenvolvimento da plan- ta, tais como precauções contra formigas cortadeiras, a construção de uma bacia para armazenar água da irrigação ou da chuva, o controle da incidência de plantas daninhas, uso de métodos para conservar a umidade do solo etc. No inverno do ano seguinte faz-se a co- locação da variedade de copa no porta- -enxerto, processo que é conhecido como enxertia. Nos vinhedos do Estado de São Paulo, o mais comum é que a enxertia seja realizada no próprio campo. A enxertia de campo costuma ser feita entre os meses Os pequenos produtores de uva de Jundiaí estão entre os que mais podem se beneficiar dos dados da pesquisa. Eles planejam capitalizar o turismo rural atraindo visitantes da capital paulista para acompanharem a produção de vinho unespciência .:. setembro de 201414 UC56_Como_se_Faz_02.indd 14 29/08/2014 11:52:08 ENXERTO FINALIZADO A variedade de copa é encaixada no porta-enxerto EM BUSCA DO PAR IDEAL Características climáticas e do solo podem fazer com que determinadas combinações de porta-enxerto e variedades de copa apresentem maior crescimento Fo to s: M ar co T ec ch io -enxerto e do garfo fiquem em contato di- reto, em pelo menos um dos lados. Após a colocação do garfo, ou garfagem, toda a região de enxertia e o garfo são revesti- dos com uma fita plástica fina e flexível, formando uma câmara úmida que protege o enxerto da dessecação. Graças ao uso de porta-enxertos resis- tentes à filoxera, os agricultores conseguem manter as videiras a salvo do ataque da praga. “Mas é preciso saber quais porta- -enxertos, dentre as várias opções dispo- níveis, são os mais adequados ao clima e ao solo das regiões produtoras de São Paulo”, explica Tecchio. “Cada espécie tem a sua limitação, e só a experimentação re- gional poderá determinar qual é o mais adequado para cada condição de cultivo.” Da videira à garrafa A pesquisa vai avaliar diferentes com- binações copa e porta-enxerto, visando a produção de uvas para mesa, vinho e suco. São cinco experimentos, distribuí- dos entre as cidades de Votuporanga, São Manuel e Jundiaí. Devido às diferenças de solo e de clima, apenas determinadas combinações de porta-enxertos e de va- riedades copa de uvas são testadas em cada cidade. Em Jundiaí, são avaliadas 14 variedades. Em Votuporanga, cinco, e em São Manuel, também cinco. Estas varie- dades são combinadas com cinco tipos de porta-enxertos, escolhidos de acordo com as características de cada local. Participam também dos experimentos Sarita Leonel, professora do departamento de horticultura da FCA, Erasmo J. P. Pires, Mara Fernandes Moura, Maurilo Terra, Luiz Antonio Teixeira e José Luiz Hernan- des, todos do Centro de Frutas do Instituto Agronômico de Campinas. Após a colheita, começa a etapa de ava- liação, que inclui acompanhar a produti- vidade, o número de bagas por cacho e a massa fresca dos cachos. A seguir são feitos testes para determinar o teor de só- lidos solúveis (açúcares), acidez das uvas, o pH e o teor de polifenólicos. As análises pós-colheita, no entanto, não representam o fim do processo. Wal- demar Gastoni Venturini Filho, também professor do mesmo departamento, vai cuidar da produção de vinho a partir do material produzido em Jundiaí, auxiliado pelos estudantes de pós-graduação da FCA Marlon Jocimar Rodrigues da Silva e Lu- ciana Trevisan Brunelli. Também fazem parte deste projeto de pesquisa os pós- graduandos Bruna Thais Ferracioli Vedoato e Ana Paula Maia Paiva, responsáveis pela condução das videiras no campo. Serão elaborados vinhos tintos e brancos, que passarão inclusive por uma etapa de avaliação sensorial – aquela em que são examinados fatores como aspecto, aroma, gosto etc., a cargo dos próprios pesquisa- dores da Unesp. Benefício para os pequenos Os principais candidatos a se beneficiar dos resultados da pesquisa são os pequenos agricultores. “Em Jundiaí, grande parte da estrutura de produção de uva envolve pro- priedades familiares”, explica o agrônomo. Atentos ao crescente interesse do bra- sileiro pelo turismo rural, e beneficiados pela proximidade da capital paulista, os pequenos produtores da região pensam em criar vinícolas abertas à visitação. Lá, os turistas poderiam acompanhar toda a produção da bebida, e adquirir garrafas da variedade local. “Seria uma produção em pequena escala, e não necessariamente com uma qualidade excepcional. A visita será uma forma de agregar valor ao pro- duto local, e estimular o consumo pelo turista”, explica. Quem sabe não esteja perto o dia em que São Paulo se torne o centro produtor de vinho que Martin Afonso imaginou, quase 500 anos atrás. Se isso acontecer, será mais uma vitória da pesquisa agronômica brasileira. setembro de 2014 .:. unespciência 15 UC56_Como_se_Faz_02.indd 15 29/08/2014 11:52:10 Teodoro Vaske Jr. Estudioso de grandes peixes pelágicos (que vivem em oceano aberto), além de tubarões e raias, o professor do Câmpus do Litoral Paulista, em São Vicente, tem uma relação íntima com o oceano, tendo passado cerca de 8 mil horas embarcado em cruzeiros de pesca e pesquisa. Nos últimos anos, ele tem se dedicado também a pesquisar espécies costeiras, em parte pela crise na pesca oceânica que praticamente acabou com essa prática no litoral de São Paulo. A paixão pelo mar fica evidente na coleção de objetos que compõem a sua mesa, que de vez em quando precisa ser reorganizada para dar espaço a novos suvenires. GANCHO Os anzóis gigantes são usados no espinhel, artefato de pesca utilizado na captura dos tubarões e atuns que o pesquisador estuda desde a época de estudante NAVEGAÇÃO O barquinho pesqueiro de madeira é uma lembrança dada pela sua mãe, que vive no Rio Grande do Sul e é grande entusiasta do trabalho do filho unespciência .:. setembro de 201416 UC56_Estacao_Trabalho_01.indd 16 29/08/2014 11:39:07 CAPTURA A rede é a ferramenta usada em suas pesquisas mais recentes, na costa, que buscam os bichos existentes na arrebentação, região onde as ondas quebram TRIBAL O peixe do Cretáceo celacanto, feito de contas coloridas, é um artesanato típico da tribo zulu, da África do Sul, e foi presente de outro professor da Unesp BRILHANTE Esse tubarão de alumínio, como outras réplicas do animal presentes na mesa do professor, é uma das tantas que alunos e colegas trazem de viagens de estudo Fo to s: A gê nc ia O ph el ia setembro de 2014 .:. unespciência 17 UC56_Estacao_Trabalho_01.indd 17 29/08/2014 11:39:24 texto Guilherme Rosa ● foto Agência Ophelia N um descampado na fronteira sul do município de Marília, um grupo de doze pessoas ca- minha, enquanto, ao fundo, veem-se as luzes das últimas casas na periferia da cidade. Elas são membros do grupo de oração carismático Semeando o Amor. Todas seguem o líder do grupo, Adilson Olivatto, um homem corpulento e falan- te, para fora dos limites urbanos. Depois de caminhar algumas centenas de metros no terreno escuro e acidentado, os fiéi chegam a um monte amplo, gramado e vazio, com exceção de uma única árvore que assoma em seu topo. “Na primeira vez em que viemos até aqui, Deus me fez perceber que este era o local certo para realizarmos nossas vigílias de oração”, explica Olivatto. "Desde que começamos, esta árvore, que estava seca e fraca, resplandeceu.” Misturado ao grupo e ouvindo atentamente está James Feito- sa, aluno de mestrado do Departamento de Antropologia da Unesp de Marília. Sua pesquisa tem como foco essas vigílias de oração nos montes, realizadas por alguns grupos ligados à Renovação Carismática Católica, ou RCC. Para escapar ao controle das lideranças da igreja, eles têm preferido se reunir em áreas isoladas no campo, a fim de vivenciar sua fé de modo mais livre. No topo do monte, todos os fiéis formam um círculo e dão-se as mãos. Olivatto co- meça a orar em voz alta, clamando pela presença do Espírito Santo e pedindo per- dão e cura para os presentes. Puxados por Missionários A Renovação Carismática atinge sua maturidade no Brasil. Agora, outros países importam missionários das comunidades carismáticas daqui, interessados em revigorar a fé dos seus rebanhos do fogo unespciência .:. setembro de 201418 religião UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 18 03/09/2014 13:53:05 VIGÍLIA NOS MONTES Fiéis do grupo Semeando o Amor se reúnem para orar na periferia de Marília. Ali, dizem viver sua fé de modo mais livre que na igreja setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 19 03/09/2014 13:53:07 GRUPOS NÃO OFICIAIS As vigílias são formadas por carismáticos que recusam o controle sobre sua experiência com o sagrado; na imagem, fiéis vivenciam o repouso no espírito ARDOR CARISMÁTICO No fim da vigília, os fiéis fazem uma fogueira e queimam papéis com... sua retórica forte e inflamada, outros fiéis começam a fazer suas próprias preces em voz alta, quase aos gritos. A energia que circula entre os participantes parece se in- tensificar: a roda balança de um lado para o outro e os participantes irrompem a falar em línguas, proferindo palavras irreconhe- cíveis, em estado de transe. De repente, todos entram em silêncio e, em uníssono, começam a cantar: “Incendeia Senhor a tua igreja”. As emoções se inflamam, uns passam a chorar, outros, a tremer. Feitosa comenta que tal tipo de experi- ência é típica dos católicos carismáticos brasileiros: “Eles dizem estar em contato direto com Deus, que são tocados pelo Espírito Santo”, explica. Até meados dos anos 1990, essa espiritualidade ardorosa, semelhante à dos evangélicos pentecos- tais, chegou a causar um estranhamento às autoridades da Igreja Católica — mas era justamente o que os fiéis buscavam. Hoje, a RCC está completamente assimi- lada pela instituição, a ponto de ter se tornado um de seus principais polos de atração de fiéis. Sua força é tão grande no Brasil que agora está começando a ser exportada para o resto do mundo. O mesmo tipo de espiritualidade vivida em igrejas, grupos de oração e comunidades espalhadas por todo o país está sendo divulgado por mis- sionários brasileiros em locais tão díspares quanto Itália, Espanha, França, Portugal, Israel, Estados Unidos e Angola. “Eles estão levando a experiência carismática onde ela ainda não tinha chegado“, diz Antônio Braga, professor da Unesp de Marília e orientador de Feitosa, ele está estudando missões carismáticas brasileiras no exterior. Diferentemente das vigílias de oração, no entanto, os grupos pesquisados por Braga são muito próximos da doutrina da igreja. Tão próximos que já têm missões até em Roma, no coração do catolicismo. “Essa é a maior prova da vitalidade da Renovação Carismática: eles estão disseminando sua forma de ser católico no próprio centro territorial da igreja”, diz o antropólogo, que viajou para a Itália no final de agosto, a fim de estudar o fenômeno. De colônia a metrópole Segundo o pesquisador, o espírito missio- nário não é nenhuma novidade no cato- licismo. Pelo contrário, está inserido no próprio DNA da religião. A dinâmica de conversão de fiéis já está presente nas epístolas de São Paulo apóstolo, reuni- das no Novo Testamento. É por isso que o cristianismo se propagou tão rápido, primeiramente entre judeus, depois entre romanos e, durante a Idade Média, por toda a Europa. A partir do século 16, a fé começou a ser exportada para as partes mais longínquas do mundo, a bordo das grandes navegações coloniais. “O Brasil foi um desses destinos tradicionais dos missionários católicos, que vinham evan- gelizar a população”, diz Braga. Hoje, a força da Renovação Carismática é tão grande no Brasil que missionários começam a levar seu modo de viver a fé católica para o resto do mundo. Comunidades já instituíram missões em países como Itália, Espanha, França, Portugal e Estados Unidos. unespciência .:. setembro de 201420 religião UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 20 29/08/2014 14:22:24 OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE O antropólogo James Feitosa participou de uma série de vigílias durante sua pesquisa de mestrado. Na foto, ele escuta as preces de Adilson Olivatto, líder do grupo pedidos de amigos e parentes. A queima é uma forma de solicitar a ação divina A grande novidade dos últimos anos é que as missões inverteram de sentido. Enquanto, durante o século 20, a Europa mergulhou em uma cultura cada vez mais secular, na qual a religião possuía menos força para atrair os jovens, a América de- senvolveu um cristianismo cada vez mais pujante, principalmente entre evangélicos pentecostais e católicos carismáticos. “Por isso, agora são missionários da América que vão até a Europa, promovendo uma espécie de reevangelização do continen- te”, diz o antropólogo. O fenômeno das missões reversas foi diagnosticado pela primeira vez entre os protestantes nos anos 1980, principal- mente em suas vertentes pentecostais e neopentecostais. Isso porque os missioná- rios evangélicos não costumam precisar de autorizações locais para realizar o seu trabalho. A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, necessita apenas de fiéis dispostos a levar sua fé para a Europa. Já entre os católicos, o processo é mais complicado. Como a religião já está es- palhada — e institucionalizada — por to- do o Velho Continente, é necessário que haja uma negociação entre cada missão carismática que pretende se instalar ali e o poder eclesiástico local. Por isso, foi preciso esperar até que a RCC fosse mais assimilada pelas lideranças da Igreja. “Nor- malmente, os missionários vão chamados pelas próprias dioceses e bispos europeus, o que faz com que consigam ter uma in- serção muito maior na comunidade local. Eles não estão ali para converter a popu- lação, mas para levar seu modo de viver a fé, seu carisma”, diz Braga. O carisma português Ano passado, James Feitosa esteve em Portugal, onde encontrou um exemplo claro do papel de reavivamento da fé ca- tólica que as missões reversas possuem no continente. Originalmente, ele viajou para investigar a Renovação Carismática local, em busca de algum fenômeno que se assemelhasse às vigílias de oração que estudava em Marília. No entanto, os grupos de oração caris- máticos que encontrou por lá estavam longe de mostrar o mesmo ardor, a média de idade estava na faixa dos 50 anos e o contexto era de franco declínio. “Em Por- tugal percebi um tradicionalismo muito maior, uma renovação carismática muito mais rígida. Os fiéis são mais introspecti- vos, não levantam os braços muito alto, não batem palma”, diz. Quase no final de sua estadia no país, ele encontrou um grupo de oração que florescia, atraindo um número cada vez maior de jovens bem no centro histórico de Lisboa. Não por acaso, tratava-se de um grupo missionário brasileiro, mantido ali pela Comunidade Aliança e Misericórdia, que também possui missões na Itália, na Polônia e na Bélgica. “Foi o grupo de oração mais animado que visitei. Eles estavam, sem dúvida, levando a performance brasi- leira, com cânticos e uma expressividade corporal muito mais extrovertida”, analisa o antropólogo. Tal como aconteceu nesse caso observado por Feitosa, é comum que essas missões no exterior sejam mantidas por comunidades formadas por leigos e padres carismáticos. São pessoas que se reúnem para adotar um estilo de vida comunitário, dedicado à igreja e à divulgação de sua fé. As comu- nidades arcam com os custos da viagem e da estadia dos missionários no exterior. Algumas das mais conhecidas e numerosas Fo to s: A gê nc ia O ph el ia setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 21 29/08/2014 14:22:44 O Brasil exporta sua fé Nas últimas décadas, várias reli- giões nascidas ou transformadas no Brasil estão se espalhando pelo mundo, principalmente na América do Sul. As que foram mais longe são, sem dúvida, as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais. A Igreja Pen- tecostal Deus é Amor e a Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, estão presentes em mais de cem países cada uma, com sedes nos cinco continentes. Os missionários dessas igrejas costumam ser enviados pelas próprias instituições. Religiões de matriz afro-brasi- leira, como a umbanda, possuem uma dinâmica que dá mais au- tonomia para os pais e mães de santo abrirem novos terreiros. Seu principal polo de dissemi- nação é a América do Sul, que abriga milhares de templos. Mas já chegaram a locais como Itália, Portugal, Inglaterra, Alemanha, Canadá e até Japão, onde, entre as entidades guias, foi adicionada a figura do samurai. As religiões que fazem uso da Ayahuasca (bebida preparada a partir de plantas amazônicas) tam- bém estão se internacionalizando. As principais são o Santo Daime e a União do Vegetal, presentes em países como Holanda, Itália, Espanha e Estados Unidos, onde o consumo da bebida é permitido pelo governo. O espiritismo kardecista é uma religião surgida na França, no século XIX. Mas, foi no Brasil que ele mais se desenvolveu, pela in- fluência das obras de Chico Xavier e Divaldo Franco. Hoje, ele está presente em mais de 30 países, em sua maioria pelo trabalho de missionários brasileiros. PORTUGAL CARISMÁTICA O grupo carismático Caminho e Luz se reúne em Lisboa. Durante suas pesquisas em Portugal, James Feitosa encontrou um movimento mais introspectivo e envelhecido Novidades na tradição Para entender o sucesso da fé carismática é preciso voltar às origens do movimento. A Renovação Carismática Católica (RCC) surgiu nos Estados Unidos, em 1967, num contexto em que a convivência entre ca- tólicos e protestantes era muito mais co- mum do que no resto do mundo. Ali, os católicos absorveram uma prática comum entre os pentecostais, que era a vivência direta dos dons do Espírito Santo. Essa prática remete a um evento descri- to na Bíblia quando, logo depois de Jesus subir aos céus, línguas de fogo desceram sobre os apóstolos, que entraram em transe. Eles passaram a manifestar uma série de dons, como o da cura e o das línguas. Ao passar pelo mesmo tipo de experiência, o fiel carismático considera estar revivendo esse momento fundador do cristianismo. Dos Estados Unidos, a RCC se espalhou rapidamente pelo mundo, e chegou ao Brasil em 1970. Durante muito tempo, seu principal meio de difusão foram os grupos de oração dentro das paróquias. Mas, com o passar dos anos, alguns fiéis foram sentindo a necessidade de dedicar uma parte maior de sua vida ao movimen- são a Shalom, a Canção Nova e a Obra de Maria, todas com obras no exterior. Tradicionalmente, os missionários ca- tólicos brasileiros recebem treinamento e apoio do Centro Cultural Missionário, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Já os novos missionários carismáticos costumam ser formados em sua própria comunidade. “Por isso, quan- do uma diocese europeia pede por uma missão brasileira, ela não está interessada em uma evangelização mais tradicional, mas quer o carisma específico daquela comunidade”, diz Antônio Braga. O que torna a RCC brasileira tão atraente nos dias de hoje, a ponto de se espraiar pelos mais velhos e importantes centros de difusão do catolicismo? Segundo Bra- ga, isso acontece porque as religiões não existem isoladas do contexto em que es- tão inseridas. Decerto, tanto as vigílias de oração nos montes quanto as missões europeias refletem algo das sociedades contemporâneas, e é isso que interessa ao pesquisador. “Para o fiel, a religião li- da com fenômenos do outro mundo. Mas, para o antropólogo, o que interessa é o que ela diz sobre este mundo”, diz Braga. unespciência .:. setembro de 201422 religião UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 22 29/08/2014 14:22:49 FENÔMENO DE MASSAS Todos os anos a Canção Nova organiza o evento Hosana Brasil, que combina shows de bandas católicas com celebrações religiosas, reunindo dezenas de milhares de fiéis CALOR BRASILEIRO Fiéis se reúnem no Congresso Nacional da RCC. Presença de jovens é marcante Fo to s: J oã o P in to ; A rq ui vo R CC B R A SI L; N at al in o U ed a/ Ca nç ão N ov a to, criando as primeiras comunidades de vida e aliança. Em 1978, por exemplo, surgiu a Canção Nova, a mais conhecida do Brasil, e que tira boa parte de sua força do complexo midiático que foi capaz de construir ao longo dos anos, com rádios e um canal de televisão. Desde seu início, a RCC enfrentou re- sistências de padres e bispos mais tradi- cionalistas, que não simpatizavam com sua forma mais corporal de vivenciar a fé. O sucesso que o movimento atingiu, no entanto, tornou impossível que Roma o ignorasse. “A Igreja Católica é extrema- mente tradicionalista, afinal, é uma insti- tuição com 2.000 anos de idade. Mas ela não pode ser só tradição, senão morre. Sua vitalidade vem de sua capacidade de negociar com o novo”, diz Braga. Foi nos anos 1990 que a RCC se tornou conhecida das massas católicas. Nessa época estourou o fenômeno dos padres cantores, com expoentes como os padres Marcelo Rossi, Fábio de Melo e Antônio Maria. Eles apareciam nos principais pro- gramas de auditório da televisão, e suas missas mais pareciam concorridos shows de pop-stars. Já em 1994, mais de 3 milhões e oitocentos mil brasileiros se descreviam como católicos carismáticos. “A partir daí, o movimento passou a fazer parte do coti- diano e a receber mais atenção da própria igreja”, diz o antropólogo. Variedade carismática Uma dinâmica própria do catolicismo é sua capacidade de se dividir sempre, sem perder a unidade. Ao contrário das igre- jas protestantes, em que qualquer cisão interna acaba levando à criação de novas denominações, a Igreja Católica se ramifica para dentro, criando movimentos distintos porém internos ao próprio catolicismo. “Is- so é importante para que a própria Igreja se especialize em públicos específicos e concilie interesses dos mais diversos. Não é à toa que ela foi capaz de sobreviver por dois milênios”, diz o sociólogo José Geral- do Poker, professor da Unesp de Marília que pesquisa a presença do catolicismo em movimentos sociais no campo. Assim, é natural que, conforme a Reno- vação Carismática foi crescendo, ela tenha se tornado quase tão variada quanto o pró- prio catolicismo. Comunidades e grupos de oração possuem modos diferentes de lidar com a espiritualidade e a própria hie- rarquia da Igreja. A comunidade Shalom, por exemplo, possui uma relação muito próxima ao Vaticano, e é mais ortodoxa e contemplativa em seu modo de orar. Já a Canção Nova possui um modo mais in- tenso de viver seus carismas e tem uma ênfase muito grande no uso da mídia para a evangelização. Ao chamar alguma missão brasileira para atuar em sua diocese, um bispo eu- ropeu está escolhendo qual o exato tipo de espiritualidade que irá atuar ali. “A re- novação carismática reflete o universo As missões carismáticas brasileiras costumam ser chamadas para atuar no exterior pelos próprios bispos e padres locais. Por isso, os missionários não vão lá para evangelizar a população, mas sim para levar seu modo próprio de viver a fé católica. setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 23 29/08/2014 14:22:57 PASTORES DO POVO Padres ligados à Teologia da Libertação foram presença marcante em movimentos sociais brasileiros, como o MST. Esse envolvimento não foi bem visto pelo Vaticano PADRE DAS MULTIDÕES O sucesso dos padres cantores, como o padre Marcelo Rossi, atraiu um grande número de jovens seminaristas para a Renovação Carismática no Brasil Fo to s: D iv ul ga çã o/ So ny M us ic ; L uc as M am ed e/ Fo lh ap re ss religioso extremamente heterogêneo que existe hoje em dia”, diz Antônio Braga. “Parte da vitalidade dos carismáticos es- tá em refletir essa pluralidade do mundo contemporâneo, e em permitir que o fiel transite dentro dessa variedade." A ramificação da RCC aumentou ainda mais a partir de 1994, quando a CNBB publicou um documento que reconhecia e disciplinava sua atividade no Brasil. As novas regras recomendavam evitar ma- nifestações muito emotivas, e que não se incentivassem as intercessões de cura, o falar em línguas e o repouso no espírito, prática na qual o fiel é arrebatado duran- te a oração, jogando seu corpo ao chão. Essas regras desagradaram parte dos carismáticos, que viram nelas uma im- posição autoritária da Igreja. Esses fiéis tornaram-se o que os antropólogos chamam de carismáticos marginais, que tentam fugir da institucionalização de sua expe- riência religiosa. É nesse contexto que se inserem as vigílias de oração nos montes estudadas por James Feitosa. “Esses gru- pos acreditam que sua relação individual com o Espírito Santo não pode ser buro- cratizada pela instituição. Se não podem gritar e chorar dentro da igreja, vão buscar outro lugar”, diz. Adilson Olivatto, o líder do grupo de oração Semeando o Amor, explica que os montes foram escolhidos por serem o local onde Jesus ia para orar com seus discípulos. “Os padres dizem que Deus está presente apenas no sacrário, dentro da Igreja. Mas eles não podem prendê-lo atrás de uma porta. No primeiro grito que o povo dá no monte, Deus vai para lá”, diz. Seguindo a lógica própria do catolicis- mo, o fato de baterem de frente com a instituição romana não faz com que os carismáticos marginais deixem de se con- siderar como legitimamente pertencen- tes à igreja. Pelo contrário, eles se dizem ainda mais católicos que os outros, por seguirem um tipo de espiritualidade mais “quente”, semelhante à dos primeiros anos da Igreja. “Se começarmos a seguir todas essas regras, ficamos mornos, perdemos o Espírito Santo", diz Olivatto. "O quente é aquele que está ligado a Deus, que se deixa consumir por seu fogo. Enquanto unespciência .:. setembro de 201424 religião UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 24 29/08/2014 14:23:01 tivermos essa chama acesa, a Igreja vai continuar crescendo. No dia em que ela se apagar, a Igreja vai apagar junto”. Direita, volver Conforme a RCC começou a chamar a aten- ção no Brasil, uma primeira interpretação ganhou destaque entre os pesquisadores da religião. Ela dizia que o fenômeno era uma reação por parte do Vaticano para enfrentar o crescimento da Teologia da Libertação na América Latina. A Teologia da Libertação é uma corrente que defen- de uma Igreja mais próxima dos pobres, usando as palavras de Jesus para comba- ter a opressão política e econômica, o que desagradou a cúpula da igreja. A leitura dos pesquisadores fazia sentido. Com o papado de João Paulo II, nos anos 1980, os teólogos da libertação passaram a ser perseguidos pela Igreja. Alguns che- garam inclusive a ser censurados, como é o caso de Leonardo Boff. Paralelamente, a RCC crescia a olhos vistos. “O fato de o movimento ganhar forças e não encontrar limitações pelo Vaticano fez muitas pessoas verem nele um movimento conservador com o apoio de Roma”, diz Antônio Braga. Nos anos 1990, no ápice do neoliberalis- mo, os carismáticos foram vistos como um retrato de uma guinada à direita da América Latina. De fato, os membros da Igreja haviam sido, em anos anteriores, muito mais pró- ximos dos movimentos sociais. O soció- logo José Geraldo Poker, de Marília, estu- dou as manifestações religiosas presentes em acampamentos do MST, por exemplo. Sua pesquisa mostrou que a Teologia da Libertação foi essencial para o início e o desenvolvimento dos primeiros acam- pamentos do movimento. “No Brasil, os partidos políticos nunca tiveram sucesso na luta pela terra. Ela só deu certo quan- do passou a ocorrer pela mediação de um sistema simbólico religioso. As referências cristãs são mais simples e acessíveis para o povo, que passou a interpretar seu coti- diano a partir delas”, diz Poker. Ao privilegiar os carismáticos a Igreja escolheu outra forma de fazer política. O antropólogo Luis Ernesto Guimarães, doutorando da Unesp de Marília, estuda o envolvimento político de grupos liga- dos à Renovação Carismática e à Teologia da Libertação em Londrina. Ele diz que, apesar de parecer que os primeiros não se relacionam com a política, isso não é verdade. “Eles têm uma agenda, mas ela é bem menos contestadora e não prevê a transformação social pela ação coletiva”, diz. Neste ano, por exemplo, a RCC realizou em Brasília o Encontro Nacional de Cura e Libertação para Políticos Católicos. “Ali, eles pretendiam combater a corrupção, mas por meio da oração”, diz Guimarães. A fé global Braga, no entanto, acha que esta visão é reducionista e insuficiente para explicar em profundidade o fenômeno carismático, pois deixa de fora aquilo que atraiu tantos fiéis, e que leva missionários a cruzar o Atlântico para divulgar a sua fé. Pois, enquanto na Teologia da Liberta- ção a relação com a divindade é mediada pela coletividade, na Renovação Carismá- tica o fiel estabelece uma relação direta com Deus, sem mediações. “Os carismá- ticos propõem uma religião mais vertical, sem horizontalidade. Por isso, remetem muito mais aos sacramentos, à oração e à devoção do que à luta política”, diz José Geraldo Poker. Esse tipo de contato direto com o sagrado é feito em medida para as sociedades con- temporâneas. “A ideia de um Deus pessoal está em profunda sintonia com um tipo de religiosidade que é buscada pelo homem moderno, que é muito individualista”, diz Antônio Braga. “Ao propor que é possível ter uma relação direta com Deus, a RCC diz que essa experiência não precisa ficar restrita à Igreja. Pode ocorrer em grupos de oração, em shows, em casa e até no carro, pelo rádio. Ela pode, em suma, fa- zer parte de seu cotidiano.” O psicólogo Silvio Benelli, da Unesp de Assis, diz que a RCC é atraente não só para os fiéis, mas também para os pró- prios párocos. No mestrado e no douto- rado, ele estudou a formação de padres em seminários, e pôde ver que, embora o método de ensino incentivasse a forma- ção de padres mais tradicionais, a RCC era bem mais sedutora para os seminaristas mais jovens. “Os antigos modelos de pa- dre mais conservador ou popular foram substituídos pelo padre cantor e pop-star. Ele é atraente por causa do sucesso que representa na mídia, por atrair multidões para sua missa”, diz Benelli. É por estar tão afinado com o mundo atual que o ardor carismático representa um dos movimentos mais complexos e vivos do cristianismo no Brasil, atraindo fiéis tanto para os montes isolados quanto para auditórios lotados. E, em um contex- to onde a Igreja perde um número cada vez maior de fiéis para as religiões evan- gélicas, é nesse movimento que muitos católicos depositam a esperança quanto ao futuro de sua fé. “Os carismáticos são muito importantes para a vitalidade da Igreja. Por representarem tão bem a re- ligiosidade contemporânea, são um dos polos principais de atração e manutenção de fiéis”, diz Braga. Agora, é esse fogo que está sendo ex- portado ao Velho Mundo, na esperança de reacender a fé católica do continente. As novas missões carismáticas, no entanto, são diferentes das antigas. Elas estão in- seridas em um mundo globalizado, mar- cado mais pelas relações de troca do que pela imposição. “Os jesuítas do século 16, por exemplo, levaram o cristianismo para as mais diferentes partes do mundo. Mas hoje em dia temos um mundo em fluxo, onde os missionários tanto levam o seu carisma para a Europa quanto trazem para cá suas vivências da espiritualidade euro- peia”, diz o antropólogo. Nessa experiência de intercâmbio pode morar o futuro do catolicismo, tanto de lá, quanto de cá. A Renovação Carismática propõe uma relação direta do fiel com Deus, sem mediações. Para o antropólogo Antônio Braga, esse tipo de religiosidade reflete valores da sociedade contemporânea, e por isso atrai fiéis tanto no Brasil quanto no exterior. setembro de 2014 .:. unespciência 25 UC56_Carismaticos_Brasil_02.indd 25 02/09/2014 11:32:56 tais como a anorexia e a anemia. O acom- panhamento da evolução das pacientes, ao longo dos anos, revelou alguns fatos novos e preocupantes. “A gente via jo- vens apresentando osteoporose e lesões ósseas graves antes mesmo dos 30 anos”, lembra Tamara. O passo seguinte foi estudar o referencial ósseo em meninos e meninas de pesos considerados normais. A partir dos anos 2000, grande número de obesos passou a ser atendido pelo ambulatório, e a partir daí surgiu uma nova linha de pesquisa. A estruturação dos ossos É no período da puberdade que acontece o processo de aquisição do conteúdo mineral ósseo, que se eleva gradualmente duran- te a infância e, posteriormente, de forma exponencial durante a adolescência em ambos os gêneros. “A fase crítica acontece logo após o pico do espigão: nos meninos dos 14 aos 15 anos, e nas meninas, entre 13 e 14 anos, quando geralmente ocorre a primeira menstruação”, diz Tamara. “Pro- blemas nesse período podem comprometer a composição óssea”, explica. Mesmo após o fim do período de cres- cimento, a massa dos ossos continua a aumentar por alguns anos, até atingir um pico. A partir daí, a massa adquiri- da pode manter-se nos mesmos níveis por alguns anos, ou entrar em declínio. Vários fatores influenciam o ganho de massa óssea, tais como o sexo do indiví- duo, sua etnia, a herança genética, seu peso corporal, sua dieta (que deve ser rica em cálcio e vitamina D), os padrões de atividade física e a ocorrência de de- terminados processos hormonais, que atuam na calcificação. A relação entre a obesidade em meninos e meninas e a perda de massa óssea foi tema de dissertação da nutricionista Lu- N uma sociedade que valoriza o visual acima de tudo, os ado- lescentes acima do peso sofrem com problemas como preconceito, bullying e sofrimento psíquico. Mas pesquisas recentes estão sugerindo que os danos causados pela obesidade podem ser maio- res, e afetar inclusive a saúde durante a idade adulta. Um estudo conduzido pelo Ambulatório de Saúde do Adolescente, da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu (FMB), encontrou evidências de que o excesso de peso pode, a longo prazo, aumentar o risco de desenvolver doenças como a osteoporose. O ambulatório é coordenado há 27 anos por Tamara Beres Lederer Goldberg, pro- fessora do Departamento de Medicina da FMB. Tamara explica que, no início, as atividades do ambulatório se focavam nas mulheres jovens com distúrbios alimenta- res e nos problemas de saúde decorrentes, Estudo com adolescentes mostra que excesso de peso e síndrome metabólica são fatores de risco para o surgimento de males como osteoporose precoce e diabetes Corpos obesos, saúde fragilizada unespciência .:. setembro de 201426 medicina texto Mariana Pastore UC56_Obesidade_02.indd 26 29/08/2014 11:27:23 Ilu st ra çã o: T he T ur tl e Fa ct or y setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Obesidade_02.indd 27 03/09/2014 14:00:47 Défic it altu ra Défic it altu ra Défic it peso Défic it peso Exc ess o peso Exc ess o peso Obesid ade Obesid ade BRASILEIROS CADA VEZ MAIS CHEINHOS Levantamento mostra, em três momentos diferentes da história recente, a disparada do excesso de peso e da obesidade em homens e mulheres ESTATÍSTICAS DE PESO Para analisar o grau de obesidade, pesquisadores usam um recurso estatístico chamado percentil. Um adolescente classificado no percentil 85 do peso, por exemplo, significa que 85% dos garotos da mesma idade pesam menos do que ele, e que 15% pesam mais Fonte: IBGE; Estudo Nacional de Despesa Familiar 1974-1975; Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição; Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição 1989; Diretoria de Pesquisas; Coordenação de Trabalho e Rendimento; Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 Fonte: Centers for Disease Control and Prevention (CDC) 10 30 60 20 50 40 0 19891974-1975 2008-2009 Homens Mulheres 8,6 11 ,9 32 ,0 1,8 2, 4 11 ,8 5, 4 1,5 3, 9 26 ,7 12 ,6 6,3 2, 9 4, 1 16 ,6 14 ,7 7,2 5, 7 10 ,9 15 34 ,8 2, 2 4, 3 29 ,3 ciana Nunes, com orientação de Tamara. A pesquisa foi divulgada no jornal norte- -americano Chicago Tribune, em 2013. “A adolescência é o período crucial para a aquisição do conteúdo mineral ósseo. Por isso, identificar o impacto do excesso de gordura corporal sobre a massa óssea desses jovens tornou-se uma linha de pesquisa bem interessante”, diz Luciana. Durante um período de quatro anos, elas avaliaram, clínica e nutricionalmente, 377 adolescentes com idades entre 10 e 19 anos, todos matriculados na condição de casos novos no ambulatório da Unesp. Após a avaliação, os jovens que se encon- travam acima do peso foram separados e divididos em três grupos: sobrepesos, obesos e superobesos. Para fazer o diagnóstico de sobrepeso e obesidade, foi realizado o cálculo do IMC (Índice de Massa Corporal) de cada participante. O índice para a idade deve ser obtido e comparado com as informa- ções das curvas de referência do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) (veja ao lado). Esta comparação permite identificar os casos de sobrepeso e obesi- dade. A essas categorias, as pesquisadoras acrescentaram mais uma, denominada de superobesidade. O grau de maturação esquelética foi determinado por uma radio- grafia de mão e punho, e os adolescentes também foram submetidos ao exame de densitometria óssea. Os resultados mostraram um impacto negativo da gordura corporal sobre a massa óssea, isto é, quanto maior o percentual de gordura entre os adolescentes, menor a densidade e o conteúdo mineral ósseo. A recomendação para o consumo diário de cálcio baseia-se, justamente, na rela- ção entre a sua ingestão e a saúde óssea, e depende da idade e do estado fisiológi- co. Durante a adolescência, a quantidade preconizada é de 1.300 mg por dia, para ambos os sexos. “Temos visto um declínio na ingestão de laticínios durante esses anos”, diz Luciana. Muitos jovens têm apresentado intolerância aos laticínios. Outros se ressentem do gosto ou passam a considerar o leite como bebida de criança. O desafio, agora, é esclarecer os me- canismos pelos quais o excesso de adi- unespciência .:. setembro de 201428 medicina IMC IMC 18 18 34 34 22 22 26 26 28 28 16 16 14 14 32 32 30 30 20 20 24 24 12 12 kg/m2 kg/m2 Idade (anos) 2 6 12 16 204 10 14 188 ABAIXO DO PESO NORMAL SOBREPESO OBESO 97% 95% 90% 85% 75% 50% 25% 10% 3% 5% UC56_Obesidade_02.indd 28 29/08/2014 11:27:27 GERAÇÃO DIGITAL, VIDA SEDENTÁRIA Fatores como a popularidade dos games contribuem para o crescimento da obesidade entre os jovens, detectado no Ambulatório de Saúde do Adolescente Fo to : D ik iiy posidade resulta em problemas para a massa óssea. Mas, de qualquer forma, os resultados já trazem a possibilidade de intervenção precoce, com o intuito de prevenir o aparecimento de quadros de osteoporose. É que, embora esta doença se manifeste na velhice, sua predisposição tem início na infância e na adolescência. Outra pesquisa realizada a partir dos casos acompanhados no ambulatório foi a dissertação de mestrado “Síndrome Metabólica e seus Componentes e a Den- sidade Mineral Óssea de Adolescentes com Excesso de Peso”, defendida pela nutricionista Valéria Nóbrega da Silva, e que também foi orientada por Tamara. Ao invés da obesidade, neste caso, o foco estava na síndrome metabólica. Trata-se de uma patologia que só foi reconhecida em 1988, sendo nomeada àquela épo- ca como “síndrome X”. É uma condição caracterizada pela associação de vários fatores, entre eles obesidade central (isto é, aumento da circunferência da cintura), alterações no metabolismo glicídico (como a resistência à insulina e a intolerância à glicose), dislipidemia (que é o aumento dos triglicérides e diminuição do chama- do colesterol bom) e hipertensão arterial. A obesidade é o fator que costuma pre- cipitar essa síndrome. Um dos problemas associados a ela é o desenvolvimento de resistência à insulina. “A insulina é o hormônio que metaboliza a glicose, isto é, que promove sua disposição no corpo sob a forma de gordura ou de músculo. E indivíduos com excesso de peso ten- dem a apresentar resistência à insulina”, explica Valéria. Por conta dessa associa- ção, as pessoas portadoras da síndrome metabólica têm também predisposição ao desenvolvimento de diabetes tipo 2. A ideia para a pesquisa de Valéria par- tiu de estudos anteriores, que detectaram a prevalência da síndrome metabólica em 18% dos adolescentes considerados sobrepesos, obesos e superobesos. Outro fator foi a constatação do impacto nega- tivo do percentual de gordura corporal sobre a densidade mineral óssea dos jo- vens com excesso de peso. O trabalho avaliou 271 adolescentes entre 10 e 16 anos com excesso de peso, de ambos os sexos, no momento da primeira consulta no ambulatório, entre agosto de 2011 e dezembro de 2012. Os jovens inicialmente foram submeti- dos a uma avaliação antropométrica, que compreende mensuração de peso, altura e medida da circunferência da cintura. Logo depois, os médicos avaliaram aspectos clínicos, patológicos, histórico familiar e mediram a pressão arterial dos jovens. Por fim, os adolescentes com excesso de peso ou hipertensão arterial foram submetidos a exames bioquímicos e de densitometria óssea da coluna lombar e do fêmur. Ao fim dos testes, nos casos em que houve confirmação do diagnóstico da síndrome, os jovens do centro de saúde receberam as orientações nutricionais adequadas para cada caso. Após análise estatística foi possível observar prevalência de síndrome me- tabólica em 14% dos avaliados. Indiví- duos com excesso de peso e portadores da síndrome apresentaram diminuição significativa de densidade óssea em todos os locais avaliados, assim como as ado- lescentes com circunferência abdominal aumentada. O mesmo foi observado entre os meninos, à exceção daqueles com au- mento na taxa de triglicérides. Os resultados do estudo sugerem que adolescentes acima do peso e com sín- drome metabólica têm menor densidade mineral óssea. E entre os componentes da síndrome, a circunferência abdominal revelou-se um fator determinante. O trabalho é transversal, ou seja, ainda é uma hipótese. Além disso, a nutricionis- ta ressaltou que o limite de peso imposto pela fabricante do aparelho de densito- metria recomenda, em sua orientação, um máximo de 100 kg de peso para a realização do exame. Esta limitação re- sultou na exclusão de um número elevado de adolescentes superobesos da amostra. Tamara Goldberg evita fazer previsões sobre o futuro desses jovens. “Sabemos que alguns dos hábitos deles, como a ingestão cada vez maior de calorias e o sedenta- rismo crescente, têm influência na saúde. Mas ainda não podemos prever com exa- tidão, quais serão as consequências.” setembro de 2014 .:. unespciência 29 UC56_Obesidade_02.indd 29 29/08/2014 11:27:33 FILHOTÃO Girinos de rã-touro, abundantes em criadouros, são usados como modelo em testes de toxicidade de contaminantes unespciência .:. setembro de 201430 ecotoxicologia UC56_Envenenamento_Anfibios_01.indd 30 29/08/2014 11:24:56 O veneno foi para o brejo Q uem caminha por um singelo pasto na zona rural de uma cidade do interior dificilmen- te imagina que pode estar cercado de substâncias que causam má-formação, problemas de fertilidade e até câncer. O professor Classius de Oliveira, do Ins- tituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp em São José do Rio Preto, sabe muito bem disso. Ele rea- liza pesquisas, financiadas pelo CNPq e pela Fapesp, que estão mostrando que a presença de resíduos de agrotóxicos, es- gotos e mesmo de hormônios femininos está causando danos à saúde dos anfí- bios na região. “Como esses animais têm uma dependência muito grande da água, ficam mais expostos a essas substâncias do que nós”, diz o pesquisador. “Isso os torna indicadores de contaminação no ambiente muito bons.” A presença desses contaminantes é uma consequência direta da interven- ção humana na região, principalmente das atividades ligadas à agropecuária e à expansão da urbanização. O cultivo da cana-de-açúcar, por exemplo, tem gera- do a contaminação por glifosato e triazi- na, substâncias presentes em herbicidas largamente usados pela indústria sucro- alcooleira. Em girinos de sapo-cururu (Rhinella schneideri), a contaminação por essas substâncias já mostrou ser capaz de causar deformações como perda de Anfíbios e outros animais apresentam más-formações e problemas de fertilidade devido à presença de resíduos de agrotóxicos, hormônios e medicamentos no meio ambiente texto André Julião ● fotos Gui Gomes setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Envenenamento_Anfibios_01.indd 31 29/08/2014 11:25:00 RETRATO COMPLETO Amostras de sangue são coletadas dos animais para testes celulares; depois que os órgãos são retirados, pesquisador fotografa pele para verificar pigmentação SOL PARTICULAR Os girinos de rã-touro infectados com E.coli são expostos a raios UV numa câmara que simula os raios solares; hipótese é que eles potencializam os efeitos da bactéria ALTERAÇÃO CELULAR Pontos pretos vistos nos testículos (acima) e no coração (no alto, à dir.)... estruturas da boca. Ela é mil vezes mais tóxica para anfíbios do que para peixes e mamíferos. Já a criação extensiva de gado leva à produção de características femininas em indivíduos do sexo mas- culino de várias espécies, por conta dos hormônios excretados na urina das vacas. A reprodução dos animais tem sido afetada também pelo contato com dois elementos presentes nos efluentes de es- goto. Um deles são os resíduos do medi- camento Flutamida, usado no tratamento de câncer de próstata, como mostra pes- quisa da mestranda Lara Salgueiro de Gregório. Outra é a bactéria Escherichia coli, presente em fezes humanas. Essas alterações no habitat dos anfíbios, que aproveitam qualquer acúmulo de água para copular e pôr os ovos, podem contribuir para o declínio das espécies. E também alertam para o fato de que nós, humanos, também estamos expostos aos efeitos dessas mesmas substâncias. “Há inúmeros estudos mostrando como esses contaminantes afetam a saúde humana. Mas, como os sapos estão mais próximos das áreas onde há concentração de resídu- os de agrotóxicos, hormônios e bactérias, unespciência .:. setembro de 201432 ecotoxicologia UC56_Envenenamento_Anfibios_01.indd 32 29/08/2014 11:25:29 AJUDA CASCUDA Material coletado de cágados ajuda a reforçar os dados colhidos em sapos; grupo de pesquisas utiliza ainda estudos com peixes para conferir maior clareza às informações Fo to s: G ui G om es ; L ili an F ra nc o B el us si e J ua n M an ue l P er ez Ig le si as ...indicam aumento de melanina, que mostra ação de substâncias tóxicas (acima) tornam-se mais vulneráveis”, diz Oliveira. Embora a agropecuária não seja a prin- cipal atividade econômica em São José do Rio Preto (que se destaca pelo setor de serviços), sua influência não é desprezível. Para a safra de 2008 e 2009, o município respondeu por 12,79% da área total dis- ponível para a colheita de cana-de-açúcar no Estado, com 568.677 hectares. Segun- do os dados do último censo agrícola do IBGE, de 2006, a cidade tinha um reba- nho de 23,2 mil bovinos. As áreas onde predominam as plantações e criações são algumas onde os pesquisadores do grupo de Oliveira capturam animais, a fim de monitorar os efeitos dos contaminantes. Enquanto mostra à Unesp Ciência al- guns dos pontos de coleta, totalmente secos nesta época do ano, o biólogo explica que agora os sapos estão em estado de estiva- ção. Isso quer dizer que estão escondidos debaixo da terra, como se estivessem hibernando, para poupar energia até a época de chuvas, que vai de outubro a fevereiro. “Isso aqui fica um espetáculo, principalmente por conta das espécies de reprodução explosiva, que aproveitam a primeira chuva para atrair as fêmeas, copular e pôr os ovos em poucos dias”, lembra Oliveira, enquanto aponta uma grande poça seca. “Qualquer reservató- rio de água, até a pegada de uma vaca, pode servir como sítio de reprodução e como lugar para os girinos começarem sua vida”, diz. Como é impossível encontrar espécies nativas na época seca, os pesquisadores usam também girinos de rãs-touro (Litho- bates catesbeianus), cultivadas no ranário do Centro de Aquicultura da Unesp (Cau- nesp), em Jaboticabal. A espécie, originária da América do Norte, é largamente criada no Brasil para a comercialização da carne e pode ser encontrada o ano todo, não só na instituição da Unesp como também em ranários comerciais. Por conta des- sa facilidade de aquisição, a rã-touro é usada no mundo todo como modelo para estudos em anfíbios. A pós-doutoranda Lilian Franco Belussi analisa sangue, órgãos e pele tanto dessa espécie como da rã-quatro-olhos (Eupemphix nattereri), que é nativa da região, e conhecida pelas duas manchas redondas nas costas que confundem os predadores. Sem protetor solar Em sua pesquisa, Lilian está investigando o papel da melanina, presente nos órgãos dos anfíbios, na proteção do organismo de substâncias tóxicas, assim como a re- ação dos animais aos raios UV, que inci- dem com maior intensidade na Terra gra- ças ao buraco na camada de ozônio. Para avaliar esses efeitos, o primeiro passo é injetar na cavidade abdominal dos girinos o lipopolissacarídeo (LPS) de E. coli, um componente da parede bacteriana. Em seguida, eles são levados para uma sala separada. Nela, metade dos girinos vai A contaminação do habitat dos anfíbios mostra que também estamos expostos a esses poluentes. Como estão mais próximos de corpos d’água em que se acumulam agrotóxicos, hormônios e bactérias, porém, eles ficam muito mais vulneráveis aos seus efeitos maléficos setembro de 2014 .:. unespciência UC56_Envenenamento_Anfibios_01.indd 33 29/08/2014 11:25:40 CIDADES, PLANTAÇÕES E PASTOS Expansão da urbanização e da agropecuária faz com que mais poluentes sejam despejados no ambiente, por isso, práticas precisam ser mais bem reguladas para uma câmara com lâmpadas, onde são submetidos à incidência de raios UV semelhantes aos solares, por entre 12 e 72 horas. “Nossa hipótese é que os raios, associados à bactéria, causem danos ao sistema imunológico”, diz a pesquisadora. Na natureza, além da perda de ozônio na atmosfera, o desmatamento é um dos fatores que aumentam a incidência de raios solares sobre os animais. “Aqueles que antes viviam com uma certa proteção de cobertura vegetal ficam mais expos- tos com a perda dela”, explica Oliveira. “Ao se combinar com a contaminação bacteriana, os raios UV podem agravar a situação a ponto de afetar a estabilidade das populações, pois diminuem a fertili- dade dos animais.” Isso é especialmente preocupante com o aumento de cerca de 30% da incidência de raios UVB, segundo tipo mais nocivo, registrado no planeta nos últimos 10 anos. Os efeitos que a combinação de radiação e bactéria causa nos anfíbios são verifi- cados no passo seguinte. A cada período de 12, 24, 48 e 72 horas após a injeção do LPS e da exposição aos raios UV, os girinos têm retiradas amostras de sangue. Depois são sacrificados com superdosagens de anestésico, para que sejam retirados fígado, gônadas e um pedaço de pele. O material é posteriormente analisado no microscópio e num software para veri- ficar a coloração desses órgãos. Isso por- que uma característica peculiar de sapos, rãs e pererecas é a presença de células contendo melanina na superfície dos ór- gãos. Enquanto em humanos a melanina serve para proteção da radiação solar, nos anfíbios células contendo melanina- têm também a função de detoxificação, eliminando substâncias prejudiciais ao organismo. Estudos preliminares de Li- lian já mostraram que a administração do LPS aumenta as células pigmentares, demonstrando o efeito bactericida e prote- tor dessas células nos tecidos. Além disso, o LPS diminui as células germinativas, contidas nos órgãos reprodutores, o que mostra a ação prejudicial da E. coli na reprodução dos animais. Os pesquisadores dizem que os resí- duos de agrotóxicos poderiam diminuir consideravelmente se sua utilização fosse racionalizada, com a aplicação apenas da quantidade necessária. “Alguns produtores Aquecimento global afeta reprodução de anfíbios Os anfíbios talvez sejam um dos grupos de animais mais sensíveis às mudanças climáticas globais. A elevação das temperaturas ajuda na proliferação de um fungo que está levando algumas espécies à extinção, e o aumento do ní- vel do mar pode fazê-lo invadir áreas onde vivem espécies que não suportam água salgada, por exemplo. Um efeito visível, po- rém, é a queda na reprodução de algumas espécies por conta do aumento da temperatura, o que pode levá-las à extinção. A mestranda Gabriela Baroni Leite, orientanda do professor Classius de Oliveira, está mostrando como isso acontece com duas espécies da região, uma transição entre o Cerrado e a Mata Atlântica. Ela analisou o efeito da alta tempe- ratura sobre a espermatogênese (produção de espermatozóides) da rã-quatro-olhos (Eupemphix nattereri) e da rã-assobiadora (Leptodactylus fuscus). Machos adultos foram submetidos à tem- peratura de 35,1 °C. Ambas as es- pécies sofreram uma diminuição significativa da espermatogê- nese, o que pôde ser verificado na comparação de suas gônadas com as de animais mantidos em temperaturas normais. “No ge- ral, parece que a capacidade dos anfíbios de ajustar sua fisiologia às mudanças do meio são limita- das”, diz Gabriela. “Isso evidencia o perigo dos efeitos da rápida mudança climática.” Segundo a pesquisadora, o desequilíbrio da atividade reprodutiva dos machos pode afetar a reprodução desses animais, o que colocaria em ris- co a manutenção das espécies. unespciência .:. setembro de 201434 ecotoxicologia UC56_Envenenamento_Anfibios_01.indd 34 29/08/2014 11:25:55 NATIVA DA REGIÃO A rã-quatro-olhos é uma das que se reproduzem rapidamente nas chuvas e se escondem na terra por meses na época seca SENSO DE OPORTUNIDADE O professor Classius de Oliveira mostra poças d’água que servem de abrigo para os anfíbios de outubro a fevereiro Fo to s: G ui G om es ; L ili an F ra nc o B el us si rurais sequer consultam um agrônomo antes de aplicar o produto, e geralmente utilizam muito mais do que seria preci- so”, diz Oliveira. Outra precaução seria restringir as plantações e a criação de animais a áreas com uma distância mí- nima de corpos d’água. “Nessa região, é comum plantar até a beira do rio, e não restringir com cercas a aproximação do gado da água”, completa. Outro contaminante é mais difícil de se evitar. Trata-se do benzopireno, resí- duo gerado pela combustão de matéria orgânica. A molécula vai para a atmosfera por conta da queima da mata e de carvão vegetal, por exemplo, e volta ao ambiente na chuva. Em humanos, o benzopireno é conhecido por ser um potente cancerí- geno, encontrado também na fumaça do cigarro. Nas análises de fígado e intestino de pererecas (Hypsiboas albopunctatus) que tiveram o benzopireno aplicado no corpo, a mestranda Lara Zácari Fanali e o graduando Bruno Serra de Lacerda Valverde detectaram um aumento de me- lanina no fígado e alterações intestinais em comparação com um grupo controle. “Interagimos com inúmeras moléculas benéficas e maléficas o tempo todo, o pro- blema é a quantidade”, explica Oliveira. “No caso do benzopireno, em excesso ele pode causar em nós má-formação, infec- ções e até mesmo câncer”, diz. Para conseguir dados ainda mais con- fiáveis, o pesquisador conta com a cola- boração de outros professores do Ibilce. Eduardo Alves de Almeida e Claudia Re- gina Bonini Domingos realizam estu- dos semelhantes com peixes e cágados, respectivamente. O cágado-de-barbelas (Phrynops geoffroanus) foi escolhido pela abundância na região e grande resistência a ambientes contaminados. “Nós trazemos alguns animais para o laboratório e os mantemos em água limpa e com alimen- tação balanceada por algumas semanas. Depois, comparamos o sangue deles com o de indivíduos que acabamos de pegar no ambiente”, diz a pós-doutoranda Larissa Paola Rodrigues Venâncio (leia reporta- gem sobre a pesquisa dela na edição 42 de Unesp Ciência). “A vantagem do cágado é que é possível acompanhar a evolução de um mesmo animal nos experimentos, enquanto os peixes e sapos precisam ser sacrificados”, diz Oliveira. Ao reunirem os dados das reações a po- luentes em exemplares de peixes, répteis e anfíbios, os pesquisadores acreditam ser possível traçar um quadro mais comple- to do papel dos contaminantes na qua- lidade ambiental e suas consequências. Futuramente, as informações coletadas poderão embasar políticas ambientais que beneficiem não só os animais, mas a nós mesmos. “É impossível conter a ex- pansão da agricultura, da pecuária e da urbanização”, diz o pesquisador. “O que queremos é que elas avancem respeitando minimamente o ambiente.” Contaminante difícil de se evitar, o benzopireno é uma molécula gerada pela combustão de matéria orgânica, como nas queimadas, por exemplo. Ele provoca alterações nos órgãos dos anfíbios, além de infecções e câncer em seres humanos setembro de 2014 .:. unespciência 35 UC56_Envenenamento_Anfibios_01.indd 35 29/08/2014 11:26:03 texto Maurício Tuffani ● foto aérea Tipuana Imagens S ob um sol quente de início de agosto, estamos em uma lancha que percorre uma enorme planí- cie alagada, povoada por aves em grupos de dezenas e até em revoadas de centenas e milhares. São garças, colhereiros, jaça- nãs, socós, irerês, biguás e muitas outras espécies, além de tucanos, gaviões em voos solitários e carcarás quase sempre em casais atentos a toda a movimentação por perto. Capivaras, lontras, ratões-do- -banhado e outros mamíferos completam a paisagem. O barqueiro informa que de noite dá para encontrar jacarés-de-papo- -amarelo e que há onças-pardas em uma fazenda nas imediações. Bem próxima dessa fauna selvagem, a boiada pasta em trechos não alagados, e alguns bois até atravessam pequenos canais de água. Por incrível que pareça, não estamos no Pantanal Matogrossense, que se origi- nou do rebaixamento de terras há cerca de 2,5 milhões de anos. Estamos em um ecossistema cuja formação foi provocada inesperadamente por uma obra realiza- da há pouco mais de 50 anos e situada a dezenas de quilômetros de distância: a barragem da usina hidrelétrica de Bar- ra Bonita, no Rio Tietê, bem no centro do Estado de São Paulo, onde turistas fazem passeios em grandes barcos em sua famosa represa, com direito ao sobe e desce na eclusa. Estamos no final do prolongamento da área alagada por essa represa, que se mistura, em contrafluxo, com o sinuoso fim de curso do maior afluente do Tietê. É o Rio Piracicaba, após sua passagem pela área urbana da cidade batizada com seu nome de origem indígena que significa “lugar onde os peixes se juntam”. Aqui, a cerca de 200 quilômetros de São Paulo, é o Tanquã, o chamado “pantanal piracica- bano”, que desaparecerá se for construí- da outra barragem, mais próxima, para ampliar a hidrovia Tietê-Paraná. Na lancha está o geógrafo Roberto Bra- ga, professor do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE), do Câmpus de Rio Claro da Unesp. Ele conta que a cons- trução da barragem, iniciada em 1957 e concluída em 1963, transformou em um grande banhado a antiga área de várzea no entorno do grande “S” formado por largos trechos do Piracicaba. Antes e durante a travessia do rio pela cidade, explica Braga, suas águas aumen- tam seu teor de oxigênio na agitação das belas e famosas cachoeiras e corredeiras que tanto atraíram turistas e inspiraram Piracicaba A barragem de Barra Bonita fez surgir um rico ecossistema que desaparecerá se for construída outra eclusa mais próxima. O projeto vem sendo acompanhado por pesquisadores de Rio Claro O pantanal de unespciência .:. setembro de 201436 estudo de campo UC56_Estudo_Campo_04.indd 36 03/09/2014 14:06:34 setembro de 2014 .:. unespciência NO TANQUà as águas do Rio Piracicaba deixam para trás sua turbulência e formam um ambiente estável UC56_Estudo_Campo_04.indd 37 03/09/2014 14:06:36 BOIADA DE BAIXO IMPACTO Diferentemente do Pantanal, prejudicado pela pecuária extensiva, o gado vive em pequenos grupos às margens do alagado piracicabano e não afeta tanto o ambiente VISITAS DO SUL E DO PANTANAL Aves migrantes, o sulista marrecão (no alto) e o pantaneiro tuiuiú (acima) PEGA, MATA E COME Não falta chance para o carcará fazer o que diz a música que tem seu nome poetas e músicos regionais. Passada essa turbulência, o rio reduz sua velocidade em trechos mais largos e curvos e sob a desaceleração pelo ameno contrafluxo de Barra Bonita. O ambiente é de estabili- dade, com grandes extensões de baixas profundidades. As águas rasas e lentas desse remanso ocupam uma superfície que durante o ano varia de 20 a 33 quilômetros quadrados entre as épocas de estiagem e cheia. Fo- ra da interferência dos centros urbanos e da malha rodoviária, em poucos anos ali se desenvolveram as condições ide- ais para uma abundante fauna aquática, diz o professor da Unesp. Esse ambien- te rapidamente atraiu aves, mamíferos, répteis e anfíbios que estavam perdendo seus habitats naturais com a crescente derrubada de remanescentes de Mata Atlântica e de Cerrado para a expansão da agricultura. Não demorou muito para o banhado se tornar área não só de pouso, alimentação e descanso, mas também de reprodução de aves migratórias, inclusive do hemisfério norte. Esse cenário em que vive também o tuiuiú ou jaburu ( Jabiru mycteria), ave- -símbolo do Pantanal – que não avista- mos porque sua permanência na região acontece somente nos meses de verão –, atraiu também famílias de trabalhadores que desistiram da agricultura para se tor- narem pescadores profissionais. Paraíso desconhecido Especialista em planejamento territo- rial, Braga começou a atuar no Tanquã em 2012, ao receber do Ministério Público a incumbência de elaborar parecer sobre aspectos a serem considerados no estudo de impacto ambiental que estava então sendo elaborado para o projeto de amplia- ção da hidrovia Tietê-Paraná em cerca de 50 quilômetros. A iniciativa prevê outra barragem, mais próxima, no próprio Rio Piracicaba, na cidade de Santa Maria da Serra, de 1.390 metros, inundando uma área de 67 km2, nela incluída a do pan- tanal piracicabano além de 8,81 km2 de fragmentos de vegetação nativa, que com o Tanquã fazem conexão de fauna com as vizinhas Fazenda Bacury e Estação Eco- lógica de Barreiro Rico. O Câmpus de Rio Claro já havia desen- volvido alguns dos raros trabalhos de unespciência .:. setembro de 201438 UC56_Estudo_Campo_03.indd 38 29/08/2014 11:19:35 POUSO, ALIMENTAÇÃO E REPRODUÇÃO Garças, marrecos e jaçanãs fazem parte das 170 espécies de aves que já foram identificadas no Tanquã, sendo que 19 delas encontram-se ameaçadas de extinção COLHEREIRO E RATÃO-DO-BANHADO A cor rosada da ave indica equilíbrio do ambiente. Bom para o roedor O OLHAR DA ACADEMIA Roberto Braga analisa os impactos da expansão da hidrovia a pedido do MP pesquisa relacionados a esse ecossistema praticamente desconhecido, até mesmo pela comunidade científica, apesar de sua rica diversidade biológica. Uma das grandes dificuldades para prever os impactos dessa obra era e ainda é a escassez de estudos sobre o Tanquã. Na realidade, até recentemente, mesmo a população de Piracicaba ainda conhe- cia pouco sobre esse rico ecossistema. Na Wikipedia, por exemplo, no fechamento desta reportagem ainda não havia uma única menção ao Tanquã ou à fauna di- versificada e abundante no local. Além disso, no verbete “Rio Piracicaba” não constava nenhuma referência a essa gran- de área úmida, seja sob a denominação de banhado, remanso ou até mesmo so- bre a antiga várzea. Por outro lado, esse registro da enciclopédia on-line afirmava que a navegação de grande porte “poderá ser retomada com a construção de uma barragem próximo à foz do rio, em Santa Maria da Serra”. Esse vácuo de informação perdurou até cerca de três anos atrás, quando come- çaram a surgir reportagens comentando sobre a retomada, pelo governo estadual, do projeto da nova barragem e sua eclu- sa (que, aliás, já havia sido rejeitado em 1998). E um ano antes dessas notícias, em 2010, grupos de observadores de aves, como o Centro de Estudos Ornitológicos (CEO), começaram a publicar em blogs e sites na Internet os primeiros relatos de suas visitas ao Tanquã. Transformações A retomada do esforço para ampliar a hi- drovia chamou a atenção de promotores de Justiça em Piracicaba, que já sabiam serem poucos os estudos sobre o banha- do da cidade. Ainda na fase de plano de trabalho do estudo de impacto ambiental (EIA) para o projeto, o Ministério Público Estadual recorreu a Roberto Braga, que desde 2006 é representante da Unesp na Câmara Técnica de Plano de Bacias do Comitê das Bacias Hidrográficas do PCJ (Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí). Para atender à solicitação do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente do PCJ, o professor realizou trabalhos de campo no Tanquã e anali- sou pesquisas relacionadas ao projeto. Já era previsível que os impactos ambientais setembro de 2014 .:. unespciência Fo to s: G ui G om es ; L uc ia no M on fe rr ar i UC56_Estudo_Campo_03.indd 39 29/08/2014 11:20:07 O projeto de ampliação da hidrovia prevê a construção de uma nova vila dotada de rede de esgoto e água tratada. Mas muitos moradores têm medo que a obra leve ao desaparecimento do modo de vida tradicional, baseado na pesca e no turismo PROJETO AMEAÇA ECOSSISTEMA Para ampliar a hidrovia Tietê-Paraná, iniciativa prevê inundação do Tanquã por barragem no Rio Piracicaba SANTA MARIA DA SERRA Barragem Santa Maria da Serra Reservatório BARRA BONITA Hidrovia Ponte na SP 191 lizado coletas e análises periódicas dos sedimentos da região para monitorar os efeitos do reservatório de Barra Bonita. Esses estudos são importantes devido à escassez de pesquisas sobre a área do Tanquã e porque mostram a gênese dessa área úmida, do ponto de vista geomorfo- lógico, afirma Braga. “Esses trabalhos são também subsídios importantes para estu- dos posteriores e medidas de preservação desse ecossistema. E têm contribuído para a compreensão e o correto dimensiona- mento dos impactos ambientais previstos para o projeto de barragem, bem como para as medidas compensatórias e miti- gatórias”, diz o geógrafo. Em janeiro deste ano, já tendo sido apre- sentado o estudo de impacto ambiental, Braga elaborou para o Ministério Público novo estudo, dessa vez em coautoria com Cenira e outro colega do departamento, o engenheiro civil Rodrigo Moruzzi. No tra- balho, além de objeções sobre os impactos previstos no EIA para áreas urbanas, os pesquisadores questionaram outras con- siderações, como a de que, com a nova barragem, os habitats do Tanquã seriam substituídos por outros com característi- cas semelhantes em um novo remanso. e sociais desde o local escolhido para a barragem até a área do remanso e de seu entorno viriam a ser considerados no EIA, como exigem a legislação e as normas técnicas vigentes sobre o assunto. Em seu parecer, Braga recomendou que o estudo de impacto a ser elaborado não deixasse de considerar aspectos relativos à área urbana de Piracicaba, especialmente o risco de agravamento de enchentes, que são comuns na cidade. Braga contou também com a experi- ência no Tanquã de seus colegas do De- partamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento da Unesp em Rio Claro. Entre eles está Cenira Maria Lupi- nacci, especializada em geografia física e geomorfologia, que coordenou de 2009 a 2011 um estudo sobre os sedimentos depositados no leito do Rio Piracicaba a partir da construção da barragem de Barra Bonita. Desse estudo participaram o geólogo Fabiano Tomazini da Conceição e Adriano Heck Simon, ex-aluno de dou- torado e hoje professor da Universidade Federal de Pelotas (RS), que foi orientado por Cenira e também por Archimedes Perez Filh