0 MARIANA SOUZA E SILVA A CARACTERIZAÇÃO DO FEMININO EM THE SILMARILLION, DE J. R. R. TOLKIEN Assis 2008 1 MARIANA SOUZA E SILVA A CARACTERIZAÇÃO DO FEMININO EM THE SILMARILLION, DE J. R. R. TOLKIEN Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientadora: Profa. Dra. Cleide Antonia Rapucci Assis 2008 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Silva, Mariana Souza e. S586c A caracterização do feminino em The Silmarillion, de J. R. R. Tolkien / Mariana Souza e Silva. – Assis, 2008. 116 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, 2008. Bibliografia: f. 111-116 Orientador: Dra. Cleide Antonia Rapucci. 1. Tolkien, J. R. R. (John Ronald Reuel) - Crítica e interpretação. 2. Literatura inglesa. 3. Personagem feminina. 4. Análise de personagens. I. Autor. II. Título. CDD 823 3 MARIANA SOUZA E SILVA A CARACTERIZAÇÃO DO FEMININO EM THE SILMARILLION, DE J. R. R. TOLKIEN COMISSÃO JULGADORA DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social Presidente e Orientador ...................................................................................................... Dra. Cleide Antonia Rapucci 2º Examinador .................................................................................................................... Dr. Ivan Marcos Ribeiro 3º Examinador .................................................................................................................... Dr. Jorge Augusto da Silva Lopes Assis, 19 de dezembro de 2008 4 À minha família, por estes 24 anos de apoio, compreensão e amor incondicional. Amo vocês! 5 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a todos aqueles que contribuíram com a realização deste trabalho, diretamente e indiretamente. À CAPES, pela Bolsa concedida, o que me ofereceu condições propícias à execução do presente trabalho. À Seção de Pós-Graduação e todos seus funcionários, por toda ajuda que me foi dada nos momentos de maior precisão, em especial à Catarina, por compreender minhas dificuldades e dúvidas. À Telma, bibliotecária do campus de Marília da Unesp, por me ajudar em um momento de muita necessidade, com agilidade. Sua contribuição foi de grande importância, nunca me esquecerei deste gesto! Obrigada! À minha querida orientadora, professora Cleide Antonia Rapucci, pelo auxílio, orientação, compreensão, paciência e confiança, desde o final da Graduação, até hoje. Suas sugestões sempre foram valiosas, e muitas delas levarei comigo para a vida, após o cumprimento desta etapa. Muito obrigada! A todos os professores da Graduação e Pós-Graduação, pelos ensinamentos valiosos, conselhos, e por me apontarem este caminho pelo qual vou seguindo. Todos me inspiraram na realização deste sonho, que não seria possível sem que cada um tivesse dado um pouco de si! Obrigada, sempre! A todos meus amigos e amigas, principalmente aqueles que estiveram ao meu lado, desde os anos de Assis, e após a volta a Marília. Primeiramente, Priscila e Lívia, irmãs que ganhei para toda a vida! A convivência com vocês me tornou uma pessoa melhor! Agradeço por cada dia, cada experiência que vivemos, e carrego comigo todas as lindas lembranças que construímos juntas! Amo vocês, amigas! Simone, Marina e Rafael, irmãos também, com quem dividi momentos engraçados, tristes, nervosos e, acima de tudo, felizes! Obrigada pelos quatro anos de amizade, com certeza teremos todos os outros pela frente, apesar da distância! Aos amigos de Marília, Luiz e Alexandre. Sem vocês a vida por aqui não seria a mesma! Só tenho que agradecer por todos os momentos em que estiveram ao meu lado, nas vitórias e 6 derrotas, fosse rindo ou chorando. Vocês são irmãos, e eu os amo muito! Esse caminho seria mais difícil se não estivessem ao meu lado... obrigada! Às amigas que voltaram à minha vida, Camila e Joyce! Obrigada por tudo, minhas queridas! Vocês são essenciais! Às duas amigas de longe, Carlinha e Tati. Apesar de não estarmos juntas, eu sinto a presença de vocês, o carinho e a amizade, a todo momento! Obrigada por existirem em minha vida! Ao amigo André, pela ajuda em tantos momentos de dúvida, por me orientar, apoiar e incentivar! E por todos os outros momentos! Obrigadinha, Dé! Por fim, e não menos importante, agradeço à minha família, por tudo! Meus pais, por todo o esforço que fizeram para me oferecer o melhor, sempre! Graças a vocês estou aqui, agora, realizando este sonho! Minhas irmãs: Fabiana, por me amar e me aceitar, pelo apoio em todas as decisões, e pela paciência; e Daniela (in memorian), por despertar em mim o amor aos livros e às artes, servindo de exemplo, sempre! Saudades eternas, Dani! À minha querida tia Terezinha, pelo amor e dedicação à nossa família, e por ser nossa segunda mãe! Obrigada, Deus! 7 Roads go ever ever on, Over rock and under tree, By caves where never sun has shone, By streams that never find the sea; Over snow by winter sown, And through the merry flowers of June, Over grass and over stone, And under mountains in the moon. Roads go ever ever on Under cloud and under star, Yet feet that wandering have gone Turn at last to home afar. Eyes that fire and sword have seen And horror in the halls of stone Look at last on meadows green And trees and hills they long have know J. R. R. Tolkien 8 SILVA, Mariana Souza e. A caracterização do feminino em The Silmarillion, de J. R. R. Tolkien. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras – Literatura e Vida Social) – Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista, 2008. RESUMO Esta dissertação pretende analisar a construção das personagens femininas na obra The Silmarillion, de J. R. R. Tolkien. Esse romance possui um tom fantástico, e é parte de uma mitologia criada por seu autor; as personagens possuem características que vão do humano ao divino, e a maioria delas é formada por homens predominantemente heróicos. O presente trabalho é focado nas personagens femininas da obra, e através da análise de suas descrições físicas e psicológicas, ações, características, enfim, de suas construções, objetiva determinar o modo de representação do autor, chegando-se, assim, a uma reflexão acerca da importância destas personagens na mitologia tolkieniana, à qual The Silmarillion serve como ponto inicial. Faz-se necessário, também, desvendar a influência de fatores políticos, sociais e históricos na criação e desenvolvimento destas personagens. A obra estudada relata os fatos que servem como fundo mítico à criação do mundo no qual se passa, a Terra-média. São contados os acontecimentos que deram origem a tudo, seres e ambientes, sentimentos, o Mal e sua eterna luta contra o Bem pelo poder. Pretendemos realizar este intento com o auxílio de teorias diversas, em especial a linha feminista da crítica literária que se ocupa do papel da mulher como leitora de textos de autoria masculina, como é o caso. Esperamos, também, contribuir com o crescente interesse pela obra do autor inglês, deixado à margem do cânone pela crítica especializada, para que assim se possa reconhecer a importância de sua obra em seu tempo, e também a de suas personagens femininas. Palavras-chave: The Silmarillion, Tolkien, Literatura Inglesa, personagem feminina, análise de personagens. 9 SILVA, Mariana Souza e. The female characterization in The Silmarillion, by J. R. R. Tolkien. 2008. Dissertation. (Master’s in Languages – Literature and Social Life) – Faculty of Sciences and Languages – São Paulo State University, 2008. ABSTRACT This dissertation intends to analyse the female characterization in the novel The Silmarillion, written by J. R. R. Tolkien. This novel has a fantastic tone, and it is part of a mythology created by its author; the characters have features that go from human to divine, and most of them are formed by men that act as heroes. The present study focuses on the female characters of the novel, and through the analysis of their physical and psychological descriptions, actions, features, in short, their constructions, it intends to determine the author’s way of representation; so, it will be possible to reach a reflection about the importance of these characters in the Tolkienian mythology, to which The Silmarillion figures as the initial point. It is also necessary to unmask the influence of political, social and historical factors on the creation and development of these characters. The novel gives an account on the facts that figure as a mythical background to the world where it is placed, Middle-earth. The events that were the origin to everything, beings and places, feelings, Evil and its eternal fight against Good for power, are told. We intend to achieve this goal with the support of many theories, especially the feminist trend of literary criticism that deals with the role of woman as a reader of texts written by men, as it is the case. We also wish to contribute to the growing interest on the works of the English author, who was left at the edge of the canon by the specialized critics, so that it is possible to recognize the importance of his work at his time, and also the importance of his female characters. Key-words: The Silmarillion, Tolkien, English Literature, female character, characterization. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................11 CAPÍTULO 1 – O AUTOR J. R. R. TOLKIEN .......................................................................14 1.1 Tolkien na Literatura Inglesa e Universal ...............................................................................16 1.2 Tolkien e a crítica ....................................................................................................................21 1.3 Uma nova mitologia para a Inglaterra .....................................................................................27 CAPÍTULO 2 – A PERSONAGEM FEMININA NA LITERATURA ..................................32 2.1 Uma nova visão sobre a Literatura: a crítica feminista ...........................................................34 2.2 A questão da linguagem masculina e feminina .......................................................................48 2.3 Representação da personagem feminina: um ponto de vista masculino ..................................55 CAPÍTULO 3 – THE SILMARILLION E AS PERSONAGENS FEMININAS ....................60 3.1 A estrutura da obra ..................................................................................................................62 3.2 Valier .......................................................................................................................................64 3.2.1 Estë ..............................................................................................................................65 3.2.2 Nessa ............................................................................................................................66 3.2.3 Varda ………...…………….………………………………………………………...67 3.2.4 Yavanna ………...…………………………...……………………………………....70 3.3 Maiar .......................................................................................................................................73 3.3.1 Arien …………………........…………………………………………………………73 3.3.2 Melian ………………………………………………………………………………..75 3.4 Elfas .........................................................................................................................................78 3.4.1 Aredhel ………………………………………………………………………………79 3.4.2 Galadriel ……………………………………………………………………………..84 3.4.3 Lúthien ……………………………………………………………………………….86 3.5 Humanas ..................................................................................................................................96 3.5.1 Haleth ...........................................................................................................................96 3.5.2 Nienor ..........................................................................................................................98 11 3.6 Seres do Mal ..........................................................................................................................103 3.6.1 Ungoliant ...................................................................................................................103 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................107 REFERÊNCIAS .........................................................................................................................111 12 INTRODUÇÃO O papel da mulher na sociedade tem sofrido, com o tempo, importantes modificações, principalmente no que se refere ao seu valor. Este fato reflete também nas Artes, e de forma expressiva, na Literatura. Personagens femininas podem ser representadas de várias formas, cada uma refletindo a visão de seu autor, e também sendo influenciadas por vários fatores, tais como os históricos, sociais, artísticos, estilísticos etc. Considerando-se todos estes fatos, o estudo e análise das diferentes formas de representação tornam-se extremamente necessários e importantes, para que seja possível compreender as transformações ocorridas na sociedade. A partir desta premissa, surgiu o interesse em se analisar a representação das personagens femininas na obra The Silmarillion, do autor inglês John Ronald Reuel Tolkien (1892 – 1973), publicada postumamente em 1977, pela editora inglesa Allen & Unwin. Para que um estudo neste âmbito seja realizado, é necessário salientar o fato de que se trata de um texto de autoria masculina, e que, portanto, pode conter valores e visões de mundo que obedeçam a padrões sociais dominantes. Nossa proposta é avaliar cada aspecto do texto referente às personagens femininas, para que assim possamos compreender a maneira como foram construídas, a relevância a elas atribuída dentro do enredo, as influências que receberam de outros textos – intertextualidades, assim como o peso que as transformações sociais e históricas exerceram na representação destas. A obra fantástica de Tolkien, com todo seu universo mitológico, foi construída com a intenção de abrigar os povos imaginários; estes, por sua vez, criados para que as línguas fictícias do autor tivessem uma história a ser contada. Assim surgiu a Terra-média, habitada por seres maravilhosos, e ainda assim, com características humanas. Mesmo que à revelia do autor, podemos considerar sua obra uma grande alegoria da humanidade, com suas mazelas e feitos através dos tempos. Seguindo esta idéia, é coerente considerarmos que Tolkien tenha espelhado suas experiências de vida em sua escrita, de forma a serem detectáveis, através de um estudo minucioso, as ideologias presentes na narrativa, assim como aquelas que figuram como influências esparsas. Um autor que tenha sido produtivo a partir das primeiras décadas do século XX dificilmente não se deixaria influenciar pelos importantes acontecimentos sociais que começavam a mover a sociedade ocidental, principalmente. As duas grandes Guerras, e todas as 13 conseqüências de horror que deixaram em tantos povos e países, representam uns dos mais importantes destes acontecimentos. Mas aquele de maior interesse neste trabalho é a revolução sexual, que marcou um maior interesse das mulheres por seus direitos em todos os âmbitos, principalmente os sociais, sexuais, trabalhistas e políticos. Esta atingiu seu ápice em torno do início da década de 60, mas já vinha abalando as estruturas sociais patriarcais desde o começo do século, quando as primeiras manifestações sufragistas deram origem à campanha mundial a favor do voto das mulheres. Estas passaram a tomar maior consciência de seus papéis, dentro de seus lares, mas também fora, na sociedade. Começa a haver maior preocupação com a valorização da força de trabalho feminina, os direitos da mulher, e logo um movimento feminista estava formado, incumbido de lutar pela igualdade entre os sexos. Essa nova onda de pensamento começa a mover as mulheres, nas mais diversas áreas, e logo sua influência chega à Literatura. Nos anos 20, o trabalho de Virginia Woolf já demonstrava uma maior preocupação com a mulher e seu papel na literatura, mas foi no início da década de 70 que começou a despontar uma nova corrente chamada crítica feminista, que chegou colocando em questão a forma como as mulheres eram representadas, e também elevando o trabalho das escritoras que tiveram suas obras esquecidas por séculos, pelo simples fato de serem mulheres e, portanto, serem consideradas inferiores intelectualmente. Vários nomes ligados a esta nova fase da crítica despontam no cenário literário, tais como Kate Millet, Elaine Showalter, Helene Cixous, Simone de Beauvoir, entre muitas outras, e suas teorias mudaram os rumos dos estudos relacionados às mulheres desde então. Para completarmos os objetivos a que nos propomos no presente trabalho, baseamo-nos principalmente na corrente da crítica literária feminista que se preocupa com a mulher como receptora de textos de autoria masculina. Esta nos ofereceu embasamento teórico para que a análise e compreensão do ponto de vista masculino fosse mais clara, fornecendo pistas a serem seguidas no estudo das ideologias que impregnaram a criação do autor, assim como a construção de suas personagens femininas, ou seja, a visão masculina predominantemente patriarcalista, em sua origem, assumindo uma posição de superioridade em relação às mulheres representadas. O trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No primeiro, discutimos o autor Tolkien, sua obra, a importância desta e seu papel nas Literaturas Inglesa e Universal. Fazemos, também, um relato sobre a crítica destinada a ele, o que representou grande dificuldade devido ao 14 difícil acesso e existência escassa de textos de qualidade. Ainda neste capítulo, discutimos a criação da Terra-média e a relação desta com uma nova mitologia que o autor desejava formar. O segundo capítulo faz um percurso teórico, no que se refere à mulher na Literatura: sua representação, sua participação, enfim, seu papel como receptora e criadora neste universo fechado e, muitas vezes, machista. Discutimos cada uma das linhas da crítica feminista, as teorias que nortearam este estudo e todos os demais que são realizados com temática feminina, dada a importância que o surgimento desta corrente representa na Literatura moderna. A análise das personagens femininas tolkienianas em The Silmarillion vem no terceiro capítulo da dissertação. Estas foram divididas por raças, pois o autor atribui a cada uma características peculiares e exclusivas, e assim, julgamos isto como fato importante a ser considerado durante o estudo. É feito um breve comentário acerca de cada raça, para que se compreenda a construção de cada uma, as hierarquias sociais existentes no mundo da Terra- média, e até que ponto tais aspectos foram relevantes à criação das personagens presentes na obra. Vale ressaltar que a análise foi restrita àquelas personagens que representam papéis importantes ao enredo, ou seja, modificam a história de alguma forma e possuem autonomia na narrativa, e que também tenham uma história de vida própria. Tal restrição deve-se ao grande número de personagens que têm seus nomes apenas citados, não sendo possível ser feito algum tipo de levantamento analítico de suas construções. Na conclusão confrontamos as idéias apresentadas, as teorias e as análises das personagens, a fim de chegarmos a uma reflexão acerca do tema proposto. Pretendemos avaliar com precisão, após os estudos realizados, se há uma ideologia patriarcal que guia a representação das personagens femininas da obra em questão, e se estas receberam algum tipo de influência de idéias que vão de encontro a esta ideologia. Assim, esperamos poder contribuir para os estudos sobre Tolkien no Brasil, lançando uma luz sobre a crítica que o considera autor menor no cânone. Isso posto, passemos, então, à discussão objetiva dos temas propostos nesta dissertação, aliando a teoria à prática, para que se possa compreender melhor o desenvolvimento feminino na Literatura. 15 CAPÍTULO 1 O AUTOR J. R. R. TOLKIEN 16 The continuing appeal of Tolkien’s fantasy, completely unexpected and completely unpredictable though it was, cannot then be seen as a mere freak of popular taste, to be dismissed or ignored by those sufficiently well-educated to know better. It deserves an explanation and a defence. (SHIPPEY, 2001, p. IX) 17 1.1 Tolkien na Literatura Inglesa e Universal Para que se possa realizar um estudo minucioso de um autor e sua obra, é fundamental que se compreenda seu envolvimento no mundo literário à sua época, a importância que lhe foi atribuída, assim como o peso de sua escrita e a influência que esta exerceu através dos tempos. No caso deste trabalho, especificamente, começamos por localizar o surgimento da literatura tolkieniana, contextualizando sua escrita no universo da Literatura Inglesa contemporânea. A literatura surgida após a Era Vitoriana (1837-1901) veio com o compromisso de romper com a sobriedade e noção de verdade absoluta resultantes de tal época. A literatura produzida até então mostrava uma grande preocupação das pessoas com questões que lhes dissesse respeito, exclusivamente. O estilo apresentava um moralismo extremo, aliando a técnica romântica a uma linguagem ornamental. O Modernismo literário, influenciado pelas novas tendências das Artes em geral, não representou um movimento unificado, com autores empenhados em utilizar as mesmas características. Na verdade, estes modernistas desejavam seguir suas próprias idéias e valores à virada de século. A Literatura produzida, então, revelou-se ligada ao sentimento humano, às introspecções, sendo influenciada pelas novas vertentes da Psicologia freudiana, os escritos libertários de Marx, e todas as questões que colocassem o homem como centro. Porém, esta nova escola não possuía a objetividade humana como guia; a subjetividade imperou, levando a longas reflexões sobre o mundo, à fragmentação do discurso, desilusão, entre outras características que culminaram no pessimismo predominante no pensamento humano à época. Ela vinha carregada pela angústia do homem, causada pela solidão e pelo vazio da sociedade moderna, o que culminou na dificuldade de relacionamento entre as pessoas. Houve, no entanto, alguns fatos históricos que trouxeram conseqüências irremediáveis à humanidade. O século foi abalado por duas Guerras Mundiais, e a Literatura, como uma das grandes artes, acompanhou as mudanças provenientes de tais acontecimentos. As obras produzidas entre as guerras foram marcadas pela dor, e pela ânsia por um novo mundo. A humanidade se viu doente de ódio, e a Literatura respondeu com a liberdade de forma e verso, a temática da destruição de valores e normas sociais, com o homem vivendo em sociedades 18 utópicas: a Terra-média de Tolkien, a Ingsoc de Orwell, as ilhas remotas de Golding e Wells, ou mesmo os Marcianos de Vonnegut, como cita Shippey (2001, p. viii). Shippey (2001, p. xi) também afirma que todo o peso do período de Guerras propiciou o surgimento de uma Literatura mais imaginativa, fantasiosa, que servisse como escape àqueles que sofreram com os horrores do combate e suas conseqüências. Vários autores que tiveram tal experiência levaram às suas obras o resultado desses momentos de agonia, quando o desejo por uma realidade diferente e a esperança eram os principais meios de sobrevivência. O autor que nos propomos a estudar neste trabalho se encaixa neste perfil, pois, ao criar sua obra, teve o cuidado de atribuir a ela várias características pertencentes à Humanidade em geral, tornando-a uma alegoria representativa do homem e sua relação com o mundo onde vive. Podemos afirmar, assim, que o ponto principal na obra tolkieniana, aquele que vai guiar o andamento de todas as personagens e histórias da fictícia Terra-média, é uma reflexão acerca do surgimento do Mal e sua natureza, a forma como age sobre os homens, modifica atitudes, transforma personalidades, tudo isso apontando conseqüências históricas e, também, lingüísticas e culturais, dentro da esfera onde seu mundo teve origem e se desenvolveu. No caso de The Silmarillion, obra estudada especificamente neste trabalho, encontram-se relatos históricos de guerras entre os povos, desde a criação do mundo, até seu declínio, no decorrer de quatro Eras. Por este motivo, a tal obra é atribuída grande importância por aqueles desejosos de estudar a fundo o trabalho de Tolkien, pois os contos presentes nesta coletânea contêm, em si, as raízes de tudo aquilo que o autor almejava entender, como resultado de seus pensamentos e julgamentos de tudo aquilo que observava à sua volta. A escrita de Tolkien, assim como seu estilo, foi influenciada vastamente por seus estudos e trabalho como filólogo e lingüista, como veremos mais profundamente no terceiro item deste capítulo. Seu modo narrativo segue os padrões do estilo épico, pois relata fatos históricos de vários povos e diversas personagens dentro de um ambiente mitológico imaginário. Outra característica importante é o heroísmo nas ações, elevação das qualidades humanas, maniqueísmo acentuado, presença de personagens que se destacam pela altivez e forças física e psicológica, ao mesmo tempo em que denuncia a fraqueza de todos os seres diante do Mal. Esta é, como afirmamos acima, a chave para a leitura de Tolkien; o leitor não deve perder de vista que, apesar do elemento fantástico, sua obra como um todo se resume em um conto sobre a humanidade e sua sobrevivência no mundo onde foi colocada por um ser criador superior. 19 O ponto de vista narrativo predominante em todos os escritos é onisciente. Colocamo-nos à presença de um narrador que conta os fatos, possui um ângulo de visão abrangente, pois tudo sabe a respeito das ações, ao mesmo tempo em que penetra no íntimo das personagens, conhecendo suas emoções e medos, e também impressões acerca de fatos que ocorrem à sua volta. O narrador tolkieniano também consegue imprimir suas próprias idéias naquilo que relata, atribuindo juízos de valor que acabam por nortear a leitura, ou seja, existe uma manipulação por parte deste, para que o leitor seja levado a apoiar apenas um lado da história. Em tal fato encontra-se o maniqueísmo de Tolkien, fruto de sua visão de mundo, e podemos interpretar sua intenção como a de apontar a forma como as massas podem ser arrebanhadas pelo poder da palavra, sem que um esforço muito grande seja realizado, da mesma forma como levamo-nos nós mesmos ao caminho da autodestruição, como mostram as guerras que o autor viveu e tanto abominava. A criação por um padre, após o falecimento da mãe, acabou por colocar o jovem Tolkien no caminho do catolicismo (COLBERT, 2002, p. 152). Ele transformou sua crença em fonte de inspiração, e assumidamente rotulou seu trabalho como ‘católico’. O fato mais interessante a este respeito é a quase ausência de referências à religiosidade em suas obras. As personagens são guiadas por seus próprios instintos e natureza, sem que a fé as abale ou modifique suas ações. Não é descrito nenhum tipo de exaltação ou culto religioso, embora seja dito, em algumas passagens, que certos povos nutriam a crença em algumas entidades, ou quando estes se deixavam cair sob o domínio do Mal. Existe, também, um ser criador correspondente ao Deus católico, Eru Ilúvatar, o único, que é acompanhado por uma horda de seres angelicais, ou semideuses, os Ainur, que o auxiliaram na criação do mundo e dos seres que habitam a Terra- média. Tal relato aparece como primeiro capítulo da obra que nos propomos a estudar, The Silmarillion, intitulado “Ainulindalë: the Music of the Ainur”. A intertextualidade entre este conto e o primeiro livro do Antigo Testamento da Bíblia, o Gênesis, é evidente; ambos apresentam várias características em comum, como por exemplo, o mais querido e sábio discípulo que se deixa corromper pelo poder, afastando-se do criador e dando origem a todo o Mal do mundo: na Bíblia, temos Lúcifer, o anjo caído, enquanto em The Silmarillion, acompanhamos a inveja tomar conta de Melkor, o mais alto Ainu, e depois sua transformação em Morgoth, o Senhor do Escuro, pai da discórdia entre os seres da Terra-média. 20 Apesar de não ter utilizado sua fé de forma explícita na criação de seu mundo, Tolkien deu à sua obra certo tom moralista. Os fatos apresentados, a história da Terra-média, da forma como é contada, servem como reflexão a uma humanidade desinteressada no bem comum a todos, egoísta e destruidora. Por isso, valores como a coragem, lealdade, amor ao próximo, retidão, obediência, estão ligados ao sucesso das empreitadas das personagens em luta contra o Mal, assim como a ausências destas características leva ao fracasso e derrota. Vários exemplos poderiam ser retirados de todas as suas obras, e especialmente em The Silmarillion, onde são contadas as guerras e principais levantes contra as forças escuras. Neste mundo imaginário, a Terra-média, os leitores terão a oportunidade de espelhar suas próprias experiências de vida, pois a humanidade está presente em atos e caracterizações. A fantasia, que poderia causar estranhamento (TODOROV, 2004, p. 31) e afastamento da realidade daquele que adentra o universo tolkieniano, passa a servir como ponte, levando a que aconteça o contrário. O fascínio pelo desconhecido, o inexistente, leva ao desejo de aproximação. As personagens heróicas assumem papéis que podem ser encontrados em nosso cotidiano, assim como as conseqüências de seus atos. Estas personagens, em sua maioria, são representadas por seres do sexo masculino, entre as diversas raças que foram criadas. As personagens femininas se fazem presentes, também, mesmo que muitas vezes acabem relegadas a segundo plano de ação. Conforme afirmamos anteriormente, os fatos históricos presenciados por um autor serão influência certa em sua escrita ficcional, e assim o foram para Tolkien. Sua obra foi fruto de sua vida, pois passou longos anos escrevendo-a. Começou com alguns textos antes de 1913, e apenas sua morte, em 1973, pôde parar seu trabalho (SHIPPEY, 2001, p. x). Neste meio, suas obras mais conhecidas, The Hobbit (1937), e The Lord Of The Rings (1954-1955) tomaram forma e foram publicadas, mas durante todo o tempo, seu trabalho mais importante foi sendo moldado, modificado e editado, vindo a ser publicado postumamente em 1977 sob o título de The Silmarillion. Cada conto presente nesta coletânea dá conta de fatos que contribuíram para a criação, modificação e também destruição de seu ambiente e personagens. Natural, então, que o homem Tolkien refletisse a respeito da natureza humana, levando em conta aquilo que via e vivia ao passar dos anos. O novo século não foi abalado apenas pelas duas grandes Guerras; houve fatos outros que podem ser considerados com grande importância: a emancipação feminina foi um deles. 21 O surgimento do movimento feminista, que teve suas origens com a luta pelo voto da mulher, no início do século, trouxe conseqüências a praticamente todas as esferas sociais, como será discutido de forma mais abrangente no segundo capítulo do presente trabalho. A emancipação feminina foi fator desencadeador do surgimento de novas figuras literárias, ou estereótipos de mulher. Muitas obras publicadas neste período refletem a opinião favorável ou desfavorável de seu autor, ao retratar a mulher do novo século, independente, levando em conta as relações de poder entre os sexos. A autora Kate Millet, em sua obra Sexual Politics, demonstra, através de exemplos, de que forma os autores passaram a retratar as personagens femininas, seja como mulher-objeto, ou a nova mulher desejosa de vencer as barreiras sociais em busca de sua felicidade. É importante, portanto, que se realize este tipo de levantamento nas obras literárias, levando em conta o fato de a Literatura ser parte do ser humano, e assim, representando meio de compreensão objetivo da História e sociedade, em geral. As personagens femininas em The Silmarillion, obra sobrevivente a todos os fatos citados acima, poderiam se encaixar em qual tipo de representação feminina? Elas foram construídas de modo a obedecer a estereótipos? A escrita de Tolkien segue os padrões da sociedade patriarcal falocêntrica dominante? Se sim, suas personagens femininas demonstram interesse em lutar contra essas regras sociais, ou se conformam com suas vidas sob a autoridade masculina? Se lutam, conseguem obter vitória, ou acabam desistindo, engolidas pelas amarras que as prendem ao patriarcalismo? As sociedades e povos criados por Tolkien representam as reais, incluindo suas mazelas, ou seriam exemplos melhorados da realidade, de forma a serem mais justas a todos, homens e mulheres ficcionais? Estas são as perguntas que pretendemos responder, através da análise das mais relevantes personagens femininas presentes na obra em estudo, com o objetivo de contribuir para a compreensão do papel da mulher na Literatura, para que lhe seja dada a merecida importância. Assim, o estudo de fatores históricos e sociais se faz necessário, e estes serão confrontados com o texto literário, de modo a obtermos os fatos que nos levarão a uma conclusão acerca do tema proposto. Os estudos da representação da mulher são, inegavelmente, importantes para que se chegue a um grau mais elevado de compreensão da obra de um autor, quando colocado em posição de questionamento perante o cânone onde se insere. Pretendemos, assim, contribuir para que haja um maior interesse em estudos referentes à obra de Tolkien, para que a ele seja dado o devido mérito de grande autor da Literatura Inglesa e Universal. O renascimento do estilo 22 fantástico épico, a influência que exerce até hoje e seu estilo seriam fatores a serem considerados por estudiosos e literatos, mas ainda assim Tolkien é deixado à margem pela maioria daqueles que o analisam. A grandeza de sua obra é inquestionável, e o fato de ter sobrevivido ao passar dos anos como uma das mais adoradas pelo público não deve ser ignorado. A crítica, porém, ainda a coloca em posição de inferioridade, e tal fato não parece se amenizar com a crescente volta a Tolkien e à Terra-média. O papel desta crítica e a forma como julga o autor em questão serão abordados mais detalhadamente no próximo item deste capítulo. 1.2 Tolkien e a crítica A obra de Tolkien tem causado, desde sua primeira publicação de The Hobbit, em 1937, certo desconforto na crítica moderna inglesa. Tal situação agravou-se principalmente após a publicação de The Lord of the Rings, sua obra mais importante que está dividida em 3 volumes, nos anos de 1954 e 1955. O estilo do autor foge dos padrões literários do pós-modernismo, encaixando-se no estilo épico. A intenção de Tolkien era criar uma nova mitologia que coubesse à Inglaterra numa época pré-Medieval, e para tanto estudou a fundo várias outras mitologias, como as nórdicas (norueguesa e finlandesa), germânica, céltica (escocesa e irlandesa), e anglo- saxã; também foi influenciado pelo poema inglês antigo Beowulf, e pela Bíblia. Cada um destes elementos culturais foi fundamental para a construção do mundo imaginado pelo autor, que também era filólogo e tinha grande prazer em criar novas línguas: desta paixão surgiram as línguas faladas pelos povos de sua obra. Com o sucesso de sua obra, a crítica viu-se em estado de perplexidade. Durante um longo tempo, a obra foi completamente hostilizada, sendo apenas considerada best-seller sem relevância literária. Mas com o tempo, passou a ser vista com outros olhos, e conforme estudos foram sendo feitos a partir da obra, percebeu-se que havia nela algo que poderia ser denominado ‘elemento canônico’. O crítico Richard C. West, em seu artigo “A Tolkien Checklist: Selected Criticism 1981- 2004” (2004), afirma que a crítica produzida até a década de 80 foi significante, apesar de ainda resumir-se, muitas vezes, a estudos críticos da obra que levavam em conta primeiramente o enredo e os aspectos literários. E em seu artigo West faz um apanhado daquela crítica produzida após essa primeira fase. 23 A crítica pura à obra de Tolkien, ligada a aspectos estéticos, teve um crescimento considerável após a publicação, em 1982, de The Road to Middle-earth, de Tom Shippey, que como o autor, é especialista em Literatura Medieval. De acordo com West (2004, p. 1016), esta obra foi um divisor de águas, pois apresentava uma nova visão da obra de Tolkien. Shippey foi o primeiro a considerar os aspectos filológicos e medievais presentes na obra de Tolkien, pois até então a crítica voltava-se apenas para o apelo fantástico da obra. Apesar de esta ser considerada por muitos a mais importante obra crítica sobre o autor inglês, Shippey publicou, em 2000, mais um estudo, desta vez voltando-se ao autor e dando a ele um lugar de destaque na história literária inglesa: esta é J. R. R. Tolkien: Author of the Century. Nele, Shippey argumenta e aponta os elementos estéticos recriados na obra de Tolkien que colaboram para a conclusão de que este foi o mais importante autor do século XX, segundo sua opinião. Ele condena a hostilidade com a qual foi recebida a obra pela crítica inglesa, desde sua publicação, segundo West (2004, p. 1017). Mas as publicações de Shippey não foram suficientes para que Tolkien fosse considerado um dos grandes na Literatura Inglesa, e o fato que mais contribui para tal constatação é, ainda, a popularidade do autor. A qualidade estética de Tolkien é confundida com ‘leitura fácil’, devido ao grande número de leitores que tem conquistado com o passar dos anos. The Hobbit é o livro infantil mais bem sucedido da história, vendendo centenas de milhões de cópias até os dias de hoje, e traduzido em mais de 40 línguas. Tal sucesso só foi superado pelo alcançado por The Lord of the Rings, que atrai leitores das mais diversas culturas, gêneros e classes sociais. Grande parte da crítica vê, então, um autor típico da chamada ‘literatura de massa’, em alta desde o século passado, sendo aquela que pretende apenas suprir uma necessidade básica de diversão dos leitores, e tem a preocupação principal de vender: os aspectos estéticos e literários são deixados em segundo plano. Grande parte da crítica limitou-se a encontrar paralelos entre a obra e a vida de Tolkien, o que muitas vezes teve como conclusão a descoberta de que The Lord of the Rings trata-se de uma grande alegoria do homem e sua fraqueza perante o poder de controle, e mesmo o poder de destruição. Impossível, então, não transformar sua obra em uma alegoria das Grandes Guerras Mundiais: Tolkien esteve na Primeira, presenciou o terror, perdeu vários de seus amigos, e acompanhou a agonia da Segunda, quando dois de seus filhos estiveram em combate. Mas esta visão, mesmo verdadeira, pode ser considerada muito simplista: toda sua obra foi criada com grande cuidado estético, atenção em cada mínimo detalhe, fosse este lingüístico ou literário. A 24 experiência de vida do autor pode sim exercer influência sobre o resultado de seu trabalho, tanto que é difícil dissociar texto de contexto em uma análise, porém, não se resume a isso. Tolkien sempre se mostrou contra essa interpretação alegórica de sua obra, embora a consideremos pertinente, no presente estudo. A grande desvantagem desta visão é que o texto, em si, torna-se uma preocupação secundária, sendo o mais importante aquilo que aponta no nível alegórico; a justificativa defendida por Tolkien é de que a Terra-média nunca poderia ter sido interpretada como fator secundário em seu trabalho, nem o Anel seria uma alegoria de armas atômicas ou algo parecido, como alguns críticos pensavam. Uma interpretação mais coerente seria a de que o Anel representa o poder viciante que opera sobre aqueles que o carregam. Isto tornaria, então, The Lord of the Rings uma obra contemporânea que trata de preocupações contemporâneas, apesar de seu estilo medievalista. Outro ponto freqüentemente focado pela crítica, em geral, é a influência católica sob a qual a obra foi produzida. Tolkien foi um católico fervoroso e ativo. A crítica sempre fez vistas grossas ao fato de que grande parte de sua obra recebeu conceitos e ideologias semelhantes àqueles celebrados pela fé religiosa. Um dos fatos apontados pelos críticos que seguem esta linha de pensamento é a comparação entre a personagem Frodo, de The Lord of the Rings, e sua missão de destruir o mal da Terra-média, com a história de Jesus Cristo. A fonte do mal, ou o pecado, seria representado, em Tolkien, pelo Anel, que em si leva toda a malícia e poder de seu criador, em um paralelo com a cruz que Jesus carrega, simbolizando os pecados do mundo. Tolkien nunca negou a influência de sua fé católica em sua obra, como o autor David Colbert cita: “é uma obra fundamentalmente religiosa e católica” (2002, p. 132). Porém sempre deixou claro o desejo de que sua religiosidade aparecesse em toda a obra de forma sutil, expressa principalmente nos ideais éticos, tais como a misericórdia, a compaixão, a união, a amizade, o respeito. Tal fato é comprovado pela falta de quaisquer tipos de cerimônias, orações ou rituais que pudessem servir de adoração a um Deus ou divindade dentro da obra. O intuito era mostrar a religião sem que se falasse sobre ela, o que muitas vezes foi ignorado pela crítica que condenava o moralismo exagerado na obra, representado pela visão maniqueísta do Bem e do Mal e sua eterna luta. Outra característica presente na obra que foi alvo de críticas ao longo dos anos é a amizade entre as personagens masculinas. Os fortes laços de companheirismo, especialmente entre os hobbits Frodo e Sam em The Lord of the Rings, são até hoje vistos como traços de um homossexualismo velado. Segundo Anna Smol, eu seu artigo intitulado ““Oh... Oh... Frodo!”: 25 Readings of Male Intimacy in The Lord of the Rings” (2004), esta amizade especial foi fruto das experiências vividas pelo autor durante a 1ª Guerra Mundial, quando os soldados tinham este tipo de relação uns com os outros: seria apenas a representação de um modelo de amizade britânico neste período, segundo a autora. Era normal que os homens cuidassem uns dos outros, muitas vezes assumindo o papel de mães ou esposas em um ambiente totalmente hostil e solitário; desta forma, os soldados amenizavam a sensação de abandono na missão de guerra; mas, por outro lado, poderíamos considerar os indícios de homossexualismo em tal situação, quando os homens, necessitados de um apoio feminino, compensariam essa ausência com seus companheiros de combate, com os quais conviviam muitos meses em isolamento. Esta experiência transparece no caminho percorrido pelos hobbits rumo ao destino da destruição do Anel, mas não apenas neste caso isolado. Em toda sua obra, Tolkien apresenta como uma das maiores virtudes a da lealdade, sendo esta responsável pelo sucesso ou não de muitas de suas personagens. Esta ideologia está presente já na primeira grande desgraça da história da Terra-média, que é o fraticídio entre os elfos devido à total falta de lealdade e amor aos semelhantes, contado em The Silmarillion. A questão da raça também é muito forte, já que os laços que unem as personagens geralmente vêm da igualdade racial; porém esta aparece de forma contrária em The Lord of the Rings, em que se percebe a mensagem de que, para que um bem comum seja alcançado, é necessário que todas as diferenças sejam deixadas de lado. Maior exemplo é a amizade desenvolvida entre o elfo Legolas e o anão Gimli no decorrer da história, ao passo que no começo mostravam-se incomodados com a presença um do outro. Estes laços podem ser vistos também como resultantes da ideologia religiosa presente na obra, mostrando a ligação fraternal que há entre os seres, mesmo que diferentes. Na Terra-média de Tolkien, mito e História convergem. Há os momentos decisivos míticos, os acontecimentos primordiais, como as 3 grandes guerras que finalizam as Primeira, Segunda e Terceira Eras: a Guerra da Ira, a Última Aliança e a Guerra do Anel. A relação entre mito e História é, geralmente, controversa, pois ambos têm a ver com um dos grandes problemas fundamentais da existência humana, que é o tempo. Os transtornos que acontecem na Terra- média são míticos, pois os Valar e outros espíritos divinos estão envolvidos, geralmente, e também por haver não só grande perda de vidas, assim como grandes mudanças geográficas, com terras sendo quebradas e refeitas. Estes acontecimentos também marcam períodos históricos. O tempo é marcado de forma linear, o que colabora com a intenção do autor de criar uma nova 26 mitologia. O grande engano que a crítica encontra é o predomínio do elemento fantástico. Este foi, muitas vezes, visto como exagero, sem que fossem consideradas as influências que Tolkien recebeu de outras mitologias e sagas medievais. Ele pretendia dar a impressão de que as histórias foram trazidas com a passar dos anos, e não inventadas. Também esta postura foi alvo de críticas severas, segundo Colbert (2002, p. 28), pois dava a impressão de que Tolkien queria, na verdade, envolver sua obra em uma atmosfera lúdica e misteriosa, para que assim houvesse maior interesse do público. Conforme foi crescendo o interesse pela obra, e estudos mais aprofundados foram sendo realizados, percebeu-se que essa não era a única intenção do autor, pois tudo o que se referia a seu trabalho era cuidadosamente estudado e pensado de forma a não banalizá-lo, como se fosse parte de um grande conjunto de histórias lendárias, um verdadeiro legendarium. Alguns outros pontos polêmicos presentes na obra de Tolkien foram revistos por críticos, em geral. Um deles é a questão do racismo presente nas histórias. As descrições dos povos que habitam na Terra-média são feitas de forma mais detalhada possível. Os povos que representam o Mal, geralmente, são associados a peles escuras, armas e vestimentas negras ou muito sujas; o próprio Sauron é chamado de “Senhor do Escuro”. Tudo isso vem com o medo do desconhecido: em The Lord of the Rings, vários povos são convocados para a guerra, e muitos deles, na visão dos hobbits – representando o Bem, pareciam personagens distantes, que não existiam, ou seja, o Outro. Estes são os Sulistas e Orientais, e sua origem também é fonte de provas àqueles que encontram o racismo na obra: a questão do Norte branco e desenvolvido em oposição ao Sul; e também a diferença existente entre Ocidente e Oriente. Mas o fato é que estes indicadores de racismo estão presentes apenas em The Lord of the Rings; em outras obras não existe essa separação definida, Bem e Mal estão em todos os lugares. Até existe uma explicação para essa diferenciação geográfica, já que Sauron, que tinha seu reino ao Norte, foi combatido e expulso, e aí procurou o lugar mais remoto da Terra-média para reconstruir seu domínio: este estaria localizado na fronteira Leste, e a partir daí foi subjugando os povos a seu redor. Há o lado da crítica que combate esta visão, e o argumento mais forte que encontram é o fato de que Tolkien escolheu, de todas as raças mais fortes e poderosas, a considerada mais fraca e até mesmo insignificante para ser a salvação de todos os outros seres: os hobbits, constituindo o povo que sofre preconceito desde o início da obra; são desconhecidos pela maioria das personagens, e também desacreditados em sua missão, principalmente o maior herói de toda a história, Frodo. 27 Existe um outro ponto notado pela crítica que se relaciona, de certa forma, à questão do racismo: a ética de combate. Em seu artigo intitulado “Geo- and Biopolitics of Middle-earth: A German Reading of Tolkien’s The Lord of the Rings” (2005), o autor alemão Niels Werber faz alguns paralelos entre a Terra-média à época de The Lord of the Rings e a Alemanha nazista de Hitler. Ele afirma haver, nesta obra, características do regime nazista, tais como a questão de raças superiores/brancas (Homens e Elfos, principalmente), e as inferiores/negras (Orcs e seres sob o domínio de Sauron). Ele aponta para o fato de que estes últimos são tratados como seres que não merecem a vida, da mesma forma que os Judeus eram vistos pelos adeptos do regime nazista, e tal constatação prova-se principalmente nas cenas de batalhas, onde estes seres são exterminados sem piedade, até mesmo em momentos em que se encontram rendidos e sem saída. Ele cita uma passagem de The Lord of the Rings, na qual os huorns, as árvores que possuem vida, voltam-se em fúria a um grupo de orcs vencidos, e os devoram; Weber afirma que esta revolta da natureza contra tudo o que for mau era um dos argumentos de Hitler para explicar a raça Ariana: esta era a pura e, portanto, superior, e qualquer outra deveria ser extinta, pois ia contra as leis da natureza. Weber não poupa argumentos e comparações em seu artigo, e encontra no texto tolkieniano fortes provas para seus argumentos. O fato de não haver ainda uma crítica mais sólida à obra de Tolkien é comentado por West (2004, p. 1007), também, em seu artigo citado anteriormente. O autor encontrou grande dificuldade em resenhar estes trabalhos, pois geralmente são produzidos por acadêmicos e publicados onde forem aceitos; também, muitos de seus autores não são filiados a instituições, o que torna ainda mais problemática a realização de um apanhado dessa crítica. West considera frutífera a existência de periódicos específicos de estudos sobre Tolkien, publicados por organizações voltadas ao assunto; cita alguns, tais como Mythlore (da Mythopoeic Society), Mallorn (da Tolkien Society), Arda (publicação sueca), Beyond Bree (do Tolkien Special Interest Group of American Mensa), e Minas Tirith Evening Star (da American Tolkien Society). Todas estas publicações oferecem estudos de mais variadas temáticas, assim como estudos críticos variados. Por fim, o autor cita alguns trabalhos de relevância na área, separando-os nas categorias de resenhas e artigos críticos, guias, monografias e livros, coleções de ensaios, edições especiais, ensaios e artigos, e aqueles produzidos por Tolkien. Para aqueles que estudam o autor e sua obra em outros países que não os falantes da língua inglesa, como o Brasil, a dificuldade é muito grande em se encontrar material crítico de 28 qualidade, ou mesmo qualquer material. O acesso é difícil, e há falta de traduções das obras mais importantes que foram publicadas. Um dos meios mais importantes de pesquisa é a Internet, e mesmo assim há, ainda, a questão polêmica da autoria, e também do embasamento teórico: muitos textos possuem argumentos pertinentes, porém, encontram-se em estado embrionário de crítica. Enfim, Tolkien é um autor que ainda divide a crítica. Assim como afirma West (2004, p. 1007), se visto positivamente, pode-se afirmar que fica um pouco fora do cânone; negativamente, foi totalmente excluído e tratado com hostilidade por muitos. A unanimidade da crítica levará tempo, se vier a acontecer um dia. Poucos foram os autores que conseguiram alcançar tal nível de conceituação. Mas o fato a ser considerado, atualmente, é que o interesse cada vez maior pela obra do autor inglês não pode ser mais ignorado e visto apenas como ‘fenômeno de vendas’: Tolkien é um dos grandes da Literatura Inglesa, e sua obra merece o respeito daqueles que realizam sua crítica. 1.3 Uma nova mitologia para a Inglaterra No que se refere à história criada por Tolkien, mito e fato se confundem: os aspectos mitológicos de sua obra, considerados quase como fatos históricos pelo autor, consistiriam, na verdade, de elementos ficcionais puramente fantásticos. Uma aura de fantasia foi criada em torno de obra, fazendo com que o tom fantástico assumisse proporções exageradas. Tolkien não pretendia criar um mundo mágico com a simples finalidade de iludir seus leitores e lhes proporcionar momentos de viagens a mundos não conhecidos. Antes disso, seu principal objetivo era montar um quebra-cabeça de histórias que pudessem servir como passado mitológico à Inglaterra. Esse interesse surgiu, primeiramente, com a vontade de estudar as línguas e dialetos que contribuíram na formação da Língua Inglesa como a conhecemos, principalmente as formas arcaicas como o Old English (700 a 1100 d. C.) e o Middle English (1100 a 1500 d. C.). É importante, neste estudo, que não se esqueça que a grande paixão de Tolkien foi a Filologia: como filólogo, ele descobriu o interesse em criar novos mundos (SHIPPEY, 2001, p. xi). Tolkien cursou a faculdade de Letras, em Oxford, e seguiu a carreira acadêmica, obtendo a cadeira de Anglo-saxão, na mesma instituição, de 1925 a 1945, e depois, de Inglês e Literatura Inglesa, de 1945 a 1959 (SHIPPEY, 2001, p. x). Durante toda sua vida profissional, produziu 29 farto material relacionado à sua Terra-média, tudo isso em meio a seus estudos lingüísticos e filológicos. Seu interesse foi, principalmente, a mitologia nórdica e sua influência sobre as histórias e mitos anglo-saxões, obtendo grande admiração e respeito com a publicação de seus estudos mais famosos, o primeiro sobre o texto Sir Gawain and the Green Knight, de 1925, e em 1936, o artigo comentado e tradução de Beowulf. Este último foi uma das principais fontes de influência na escrita de Tolkien, por seu estilo épico fantástico, e também pela língua. Vários acontecimentos e nomes de sua obra podem ser relacionados àqueles encontrados neste, que é o mais conhecido texto em Old English que se tem notícia. Como professor e estudioso respeitado, Tolkien procurou aliar a Lingüística e a Literatura à sua vocação pela Filologia. Como aponta o professor Tom Shippey (2001, p. xv), em sua concepção, primeiramente vinha o nome das coisas e pessoas, e depois a história poderia surgir com mais sentido. Com este pensamento, levou adiante sua idéia de criar um mundo onde houvesse povos que seriam falantes de suas línguas. Estas vieram antes da criação literária, e assim foram moldando o universo mítico onde existiram. Tolkien acreditava que o estudo filológico das palavras poderia levar a lugares ainda mais antigos do que o esperado, voltando-se à origem dos significados, e portanto, à origem das formas verbais de linguagem, por isso sentiu a necessidade de fazer o caminho contrário na construção da Terra-média. No entanto, Tolkien acreditava com segurança que não estava criando novas histórias de fantasia, e sim, harmonizando e reconstruindo aquelas que fizeram parte de seu repertório, mas com melhorias nas partes em que considerava haver contradições e erros históricos. A estas ele incluiu novos conceitos e idéias, como alguns dos povos que habitam a Terra-média, mas sempre mantendo em mente a concepção de que este mundo realmente existiu em um estágio pré-Idade Média, numa Europa pouco desenvolvida. Segundo Shippey (2001, p. xvi), as maiores influências na criação tolkieniana foram os legendariuns clássicos que o autor estudou. Este conceito de uma coletânea de lendas e mitos folclóricos sempre o fascinou, e desejava que sua mitologia fosse assim, dedicada a seu país, à Inglaterra. Alguns dos nomes que mais o fascinavam são Elias Lönnit, que em 1830 publicou o grande épico nacional finlandês, o Kalevala; na Alemanha, os irmãos Grimm, com as coleções de histórias populares e contos-de-fada; e também Nikolai Grundtvig e seu filho Sven, da Dinamarca. 30 Devido a estas influências marcantes, fica fácil reconhecer o estilo de Tolkien como predominantemente arcaico. A escolha vocabular, as inversões sintáticas constantes em sua escrita, assim como o uso de tantos termos em línguas antigas desconhecidas, tornam a leitura mais pesada, ao mesmo tempo em que remetem a antigos escritos mitológicos. Tais características podem ser consideradas premeditadas, pois conferem um tom mais realista aos relatos presentes em suas obras. Outro fator são os mapas que o próprio autor desenhou, e que são incluídos em grande parte das reedições dos romances. Eles servem como auxílio ao leitor, mas também sugerem que existe um mundo fora da narrativa, aumentando a profundidade mítica das histórias. O trabalho de construção desse universo começou por volta de 1913, e durou toda sua vida. Seus textos começaram a ser formulados como contos relatando a vida de personagens, que mais tarde figurariam como protagonistas de histórias da Terra-média. Tolkien planejava publicar uma obra com esses primeiros textos, que foram se desenvolvendo com o tempo e tomando a forma de sagas de alguns povos, e famílias e personagens, mas o primeiro interesse da editora Unwin foi pelo manuscrito de The Hobbit, publicado em 1937, tornando-se assim um sucesso de vendas quase que imediatamente. A partir daí, começou o trabalho que durou quase 17 anos de escrita, para então publicar The Lord of the Rings, em 1954-1955. Estas foram suas obras mais aclamadas e vendidas internacionalmente, o que lhe causou certo desconforto, pois não desejava o sucesso comercial, e sim, a compreensão de sua intenção criativa. O trabalho em sua obra de caráter mais épico e mitológico lhe rendeu inúmeros manuscritos. Estes foram organizados e editados por seu filho Christopher Tolkien, juntamente com Guy Gavriel Kay, de acordo com o desejo de seu pai, e publicados postumamente com o título The Silmarillion, baseado na história principal da obra, que conta a saga da criação das pedras preciosas denominadas Silmarils, e a forma como mudaram o destino de muitos que as cobiçaram. Temos, nesta obra, os relatos sobre a criação do mundo por Eru Ilúvatar, o Único, com auxílio de seres angelicais, os Ainur. O aparecimento dos povos e demais seres que povoam a Terra-média também é relatado. Existe uma separação por Eras, e assim os principais feitos, guerras e acontecimentos que influenciaram as história que deram origem, inclusive, às obras publicadas anteriormente. E pode-se dizer que foi a intenção do autor formar uma compilação destes contos que explicam as origens de seu mundo. Segundo o que se diz na obra de referência Senhoras dos 31 Anéis (RIOS, 2005, p. 30), os mitos criados por ou para uma sociedade geralmente apresentam uma descrição de um estágio anterior à criação do mundo, quando haveria apenas o Uno, sem distinções duais (masculino – feminino, bem – mal, etc); tal fase denomina-se Cosmogonia. Esta é precedida por uma fase de Origem, que relata o processo de transformação do ‘cosmos’ inicial naquilo que existe no presente da narrativa; este período também é chamado Etiológico, pois descreve a etiologia das coisas. Podemos utilizar esse esquema para classificar The Silmarillion uma obra mítica, a mais elucidativa criação tolkieniana. Mesmo após a publicação de The Silmarillion, Christopher Tolkien deparou-se com a enorme quantidade de material não publicado, e assim surgiu, em 1980, Unfinished Tales, este contando com um trabalho de edição mais apurado pois, como diz o nome da coletânea, grande parte dos contos encontravam-se em estados inacabados, e muitos deles apresentavam incoerências em relação a versões publicadas anteriormente. Posteriormente, Christopher continuou o trabalho de edição e comentário do material remanescente, e durante o período de 1983 a 1996, publicou uma série de doze volumes intitulada The History of Middle-earth, com o mesmo intuito de oferecer àqueles leitores mais ávidos da obra de seu pai um acesso mais aberto a tanta informação desconhecida. Este último trabalho, que não possui tradução para o português, é ainda pouco considerado, e merece mais atenção acadêmica devido à sua extensão e relevância aos estudos tolkienianos, por conter tantos fatos inexplorados pelos estudiosos especializados. Enfim, podemos salientar que a intenção primeira de Tolkien foi a de construir um mundo onde suas línguas pudessem ter uma origem coerente e existir sem barreiras. Ao todo, o autor criou cerca de doze línguas, com as mais diversas sonoridades e origens, sendo que cada uma teria ligação estrita com o povo o que a utilizava. As mais importantes, mais queridas por Tolkien e que, portanto, têm mais material disponível, vocabulário e estruturação gramatical, são as línguas élficas Quenya e Sindarin; a primeira, baseada principalmente no finlandês, era falada pelos altos Elfos e considerada uma língua de tradição e cerimônia, como o Latim. Já o Sindarin teve origem com os elfos cinzentos, tornando-se mais popular conforme o número de habitantes da Terra-média foi crescendo, e assim, podendo ser considerada a língua élfica comum. Grande parte de nomes de seres e lugares encontrados na obra tolkieniana tem sua origem em uma destas línguas, o que atribui a cada denominado uma história individual. Tal fato reflete a visão filológica na criação de Tolkien, assim como sua paixão pelas línguas. 32 Pelo fato de termos como objeto de estudo uma obra fantástica mítico-épica, podemos já começar uma reflexão acerca do papel da mulher neste contexto. Se nos basearmos em sagas antigas, veremos que as mulheres, em sua maioria, eram vítimas de sociedades patriarcalista onde não desfrutavam de direito algum, nem sobre suas próprias vontades e destinos. Há, porém, exceções, com algumas personagens que despontam, revelando heroísmo e coragem frente aos desafios do mundo antigo. Como estas histórias influenciaram diretamente, e assumidamente, a escrita de Tolkien, é necessário fazermos uma leitura comparativa desta com aquelas que a precederam, para conferirmos se existem fatores comuns a serem considerados no momento de análise das personagens. Porém, torna-se necessário, antes disso, que reflitamos também a respeito da mulher na Literatura, em geral, em papel de leitora de textos, assim como no papel de criadora destes, já que ambos são frutos de movimentos que lutaram pela conquista desse direito, e deram origem a novas perspectivas para as mulheres. Passemos, então, a um estudo desses fatos tão importantes no cumprimento de nosso objetivo. 33 CAPÍTULO 2 A PERSONAGEM FEMININA NA LITERATURA 34 Se é pela palavra que se constroem as pretensas verdades, as ideológicas, fundadoras dos valores sociais, a verdade sobre o feminino fez-se também como construção masculina, seja ela imaginária, mítica ou científica. (BRANDÃO, 2006, p. 116) 35 2.1 Uma nova visão sobre a Literatura: a crítica feminista Em sua História, a humanidade tem sido marcada por ideologias patriarcais, ou segundo o conceito de Derrida, o falogocentrismo, que seria o predomínio da logicidade imposta pelo homem branco ocidental, dominante na sociedade em seus diversos campos. Neste espaço, o movimento feminista surgiu para denunciar a realidade das mulheres, que foram relegadas a uma posição inferior, com o passar do tempo, e também lutar, a princípio, por igualdade entre os sexos. A ideologia feminista passou, então, a alcançar os mais variados espaços e campos de conhecimento humano, dentre eles a Arte. Assim, surgiu um novo interesse pela mulher na Literatura, seja no papel de leitora ou de escritora, dando início a uma nova forma de crítica: a feminista. Porém, antes que discutamos tal corrente de pensamento, é importante que se faça um breve histórico da posição social e luta das mulheres na sociedade, e assim compreender a necessidade de haver um movimento sobretudo político que defendesse seus direitos e interesses. Desde a antiguidade clássica, na Grécia e em Roma, a mulher se encontrava em posição de inferioridade na sociedade, semelhante à dos escravos; suas funções principais eram a reprodução, cultivo da terra, tecelagem, ou seja, prover tudo o que fosse necessário à subsistência da família. Os campos artísticos, filosóficos e educacionais eram exclusividade do homem. Essa situação perdurou por séculos, em todo o mundo conhecido, até então, pelo homem. Foi no primeiro século da Idade Média que houve alguma mudança, quando as mulheres puderam, então, desfrutar de poucos direitos, como a possibilidade de ingressar em algumas profissões, o direito à propriedade e à sucessão. Há registros, também, de algumas mulheres que freqüentaram universidades na Europa. Uma das primeiras feministas de quem se tem registro é a francesa Christine de Pizan, escolhida a poetisa oficial da corte, e considerada a primeira escritora profissional da Europa, pois passou um longo período de sua vida, após a morte do marido, escrevendo poemas e baladas para sustentar sua família. Seu discurso se articulava em favor dos direitos da mulher nesta sociedade, defendendo a igualdade entre os sexos. Escreveu o que seria considerado o primeiro tratado feminista, A Cidade das Mulheres, publicado em 1405. A Idade Média foi marcada, também, pelo terror contra as mulheres, com a chamada ‘caça às bruxas’. A inquisição européia, apoiada pela instituição da Igreja, condenou à fogueira milhares de mulheres, consideradas hereges e bruxas por praticarem atos que desafiassem a moral vigente (patriarcal). Na verdade, essas mulheres apenas praticavam aquilo que lhes era 36 tradicional, como por exemplo, o conhecimento das propriedades medicinais das ervas, ou mesmo o fato de se unirem em grupos. O período renascentista, com sua visão antropocêntrica, voltou-se aos modelos greco- romanos, e isso provocou um retrocesso na questão dos direitos das mulheres. Estas perderam o direito a algumas profissões, devido à valorização do homem. A partir do século XVI, o número de mulheres trabalhando em domicílio aumentou de maneira significativa. No século XVII houve certa mobilização na América, como por exemplo, a igualdade pregada por Ann Hutchinson, na Massachusetts Bay Colony, em 1637. Ann havia formado um grupo de mulheres, às quais pregava sobre suas idéias religiosas e sociais; com o tempo, alguns homens passaram a participar do grupo. Mas tal fato não a impediu de ser acusada de sedição, ao afirmar que os ensinamentos religiosos na colônia continham erros. Na verdade, o processo envolvia o fato de tal sociedade não aceitar uma liderança feminina, em nenhum aspecto, e o resultado foi o banimento de Ann com toda sua família da colônia. Mas foi o século XVIII que causou profundas mudanças na sociedade, e também no posicionamento das mulheres neste espaço. Os ideais da Revolução Francesa provocam um novo interesse das mulheres em lutar por seus direitos. Algumas, como Olympe de Gouges, que publica em 1791 Os Direitos da Mulher e da Cidadã, propõem a inserção da mulher na vida civil e política em condição de igualdade. Mas um decreto de 1795 as proíbe de participar de movimentos revolucionários. Uma das crenças surgidas durante o século XVII foi a de que o corpo feminino configura-se como uma versão inferior, ou defeituosa, do corpo masculino. O sistema reprodutor feminino era entendido como uma anomalia em relação ao masculino, ou seja, não representava a ausência do falo, mas uma forma inferior deste. Tais fatores biológicos acarretavam outras formas de pensar a inteligência e capacidade de conhecimento sobre si mesmo de cada sexo, e representava uma visão materialista das diferenças sexuais. Foi apenas no século XVIII que essa visão caiu, sendo substituída por uma mais realista, na qual compreendia-se que existem diferenças biológicas, e não uma anatomia inferior à outra, ou anômala se colocadas em perspectiva de comparação. Foi no século XVIII que a pioneira no femininos moderno veio a ser conhecida: trata-se da escritora inglesa Mary Wollstonecraft. Esta fazia parte de um grupo de intelectuais, liderados pelo ministro anglicano Richard Price e seu amigo Joseph Priestly, que rejeitavam os dogmas cristãos. Nesta época, Mary comandava uma escola com sua irmã e uma amiga, e suas idéias a 37 respeito da educação chamaram a atenção do editor Joseph Johnson: ele acabou publicando, em 1786, a seu pedido, a obra Reflexões sobre Educação de Filhas, na qual a autora analisa a condição educacional imposta às mulheres, de ignorância e dependência, criticando a sociedade, que encorajava a mulher a ser dócil e a se preocupar apenas com sua aparência; propõe, também, uma reforma de todo o currículo escolar. Em 1789, Mary produz vários textos sobre suas preocupações sociais, tais como o tráfico de escravos e a injustiça com os desfavorecidos; um destes, intitulado A Vindication of the Rights of Men, tornou-se conhecido por autores como Tom Paine, William Blake, Edmund Burke, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire, sendo tema de estudos em seu país, como na França. Inspirada também pelos ideais franceses de Rousseau, a inglesa escreve, em 1790, A Vindication of the Rights of Woman, obra que lançou as bases do feminismo moderno. Nesta, afirma não haver diferenças naturais entre homem e mulher, sendo apenas uma questão de educação: este era o caminho para a conquista de uma posição econômica, política e social mais digna. Segundo a autora, Para que a humanidade seja mais perfeita e feliz, é necessário que ambos os sexos sejam educados segundo os mesmos princípios. Mas como será isso possível, se apenas a um dos sexos é dado o direito à razão? [...] é preciso que também a mulher encontre a sua virtude no conhecimento, o que só será possível se ela for educada com os mesmos objetivos que os do homem. Porque é a ignorância que a torna inferior... (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 36). Wollstonecraft afirmava, ainda, que o casamento seria uma ‘prostituição legal’ da mulher, pois ela se torna ‘escravo conveniente’ para o homem. A obra de Wollstonecraft foi de grande importância ao movimento feminista que estava prestes a surgir com mais força. Sua obra foi fundamental, e representou um novo interesse ao se considerar a posição da mulher na sociedade. Por isto, a autora inglesa é reconhecida até os dias atuais, e também por ser a mãe da escritora Mary Shelley, fruto de sua relação com o autor inglês William Goldwin. Mary Wollstonecraft faleceu devido a dificuldades acarretadas pelo parto de Shelley, em 1797. No Brasil, Nísia Floresta Brasileira Augusta faz uma adaptação do texto de Wollstonecraft, intitulado Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, publicada em 1832 pela Typographia Fidedigma. Nesta obra, além de traduzir o texto da feminista inglesa, Nísia introduziu suas próprias idéias a respeito da posição da mulher na sociedade, sendo considerada a primeira feminista brasileira. Também escreveu em favor dos índios e escravos negros. 38 Já no século XIX, quando ocorre a consolidação do sistema capitalista, a questão do trabalho feminino traz à luta muitas mulheres que exigiam condições iguais de salário e valorização de sua mão-de-obra. É neste cenário que surge, também, uma luta pelos direitos de cidadania, principalmente o de votar. O movimento sufragista universal, que uniu mulheres de todas as classes e condições sociais, teve início na Inglaterra, em 1897, quando Millicent Fawcett fundou a União Nacional pelo Sufrágio Feminino, mas levou anos até que conquistasse aquilo a que se propunha, e foi marcado pela luta, muitas vezes reprimida com violência, o protesto e o desejo de igualdade, em muitos países do mundo. No Brasil, o direito ao voto, ainda que facultativo, veio com o Decreto nº. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, transformando o país em um dos pioneiros em tal ação. No século XX uma noção de diferenças de gênero já começa a despontar nos estudos sociais. Havia uma compreensão a respeito deste, considerado análogo à raça, num primeiro momento, e isto acabou colocando a mulher em posição de equivalência àquela das raças consideradas inferiores, ou seja, qualquer uma que diferia do padrão dominante ‘homem branco’. Virginia Woolf publicou uma série de ensaios tratando da condição da mulher na sociedade. O mais importante deles, publicado em 1929, foi A Room of One’s Own, o qual exerceu grande influência sobre o pensamento feminista, e posteriormente, no surgimento da crítica feminista. Neste texto, Woolf reflete acerca da mulher escritora, a forma como leva esta atividade, e também as forças que agem sobre seu trabalho. Aqui, a autora é objetiva no que diz respeito à escrita como profissão, defendendo a idéia de que a mulher, para realizar este tipo de trabalho, necessita de um espaço só seu, ou ‘um teto todo seu’1, onde possa usar de sua criatividade e imaginação sem a interrupção de forças exteriores. Um outro ponto importante na obra é a opinião de Woolf a respeito das autoras dos séculos XVII e XVIII que tiveram a amargura, o ódio e o ressentimento como marcas de suas produções literárias, fato que conduz a uma não valorização dos textos produzidos por mulheres, já que esse tom predomina e interfere na qualidade. Apesar disso, reconhece que essas autoras contribuíram para a formação de uma tradição feminina na literatura. Woolf sugere que as mulheres passem a escrever com cuidado, objetivando a escrita artística, não apenas uma forma de extravasar seus sentimentos mais íntimos de dor; vê, à época deste ensaio, uma certa evolução das autoras, como se começassem a perceber que o valor estético deve estar além de uma confissão feminina. Termina por defender a tese de 1 Esta expressão vem do próprio título da obra, na forma como foi traduzido para o português. 39 que deve haver uma união dos lados masculino e feminino de cada indivíduo que deseja escrever, ou seja, não acredita que a escrita deva ter um sexo definido, e sim, ser andrógina. É necessário ser femininamente masculino e masculinamente feminina, para que não se criem obstáculos de interpretação e inferiorização das obras. Em O Segundo Sexo, publicado ao final da década de 40, Simone de Beauvoir sugere como a construção da identidade sexual feminina, ou da mulher, é dependente mais do social que do biológico. Uma criança que nasce com o sexo feminino será educada de forma a se condicionar nos padrões e comportamentos de mulher, respondendo ou não às expectativas da sociedade em relação ao gênero feminino. Isto quer dizer que ser mulher, ou homem, nada mais é que levar adiante uma educação e formação social, religiosa, étnica, etc, que correspondam àquilo que é esperado de cada identidade sexual, denunciando as raízes da desigualdade sexual. Alves e Pitanguy (1985, p. 52) comentam a teoria de Beauvoir, acrescentando a esta o agravante da questão do posicionamento da mulher inferiorizada socialmente, conseqüência da super valorização do papel do homem. Simone de Beauvoir estuda a fundo o desenvolvimento psicológico da mulher e os condicionamentos que ela sofre durante o período de sua socialização, condicionamentos que, ao invés de integrá-la a seu sexo, tornam-na alienada, posto que é treinada para ser mero apêndice do homem. Para a autora, em nossa cultura é o homem que se afirma através de sua identificação com seu sexo, e esta auto-afirmação, que o transforma em sujeito, é feita sobre a sua oposição com o sexo feminino, transformado em objeto, e visto através do sujeito. (ALVES e PITANGUY, 1985, p. 52). A obra de Beauvoir forneceu uma importante base para as reflexões feministas que ressurgiram a partir da década de 60, um período de grande importância para a Arte em suas diversas formas de manifestação, havendo um maior desenvolvimento do movimento de mulheres. Os ideais de igualdade, muitas vezes considerados simplistas e utópicos, dão lugar a um maior interesse das ciências sociais e humanas nos estudos do feminino. Essa nova onda de pensamento culminou, na década de 70, em uma nova forma de pensar o papel da mulher na sociedade patriarcal em que se insere. Ao invés de almejar a igualdade, passa-se a contestar a posição de inferioridade feminina, mas de forma a aceitar e enaltecer a diferença existente entre os sexos, e tal fato constitui vantagem às mulheres. Uma das áreas de destaque nestes estudos é a Literatura, conforme esta voltou seus olhos à necessidade de se compreender o papel da mulher 40 como leitora/receptora de obras produzidas por homens, e também como criadora de novos objetos de estudo. Assim, origina-se a crítica literária feminista, que tem como seu ponto inicial a publicação da obra Sexual Politics, de Kate Millet, em 1970. Na obra de Millet, segundo Lúcia Osana Zolin (2005, p. 181), a autora atenta para o fato de que a mulher difere do homem no que se refere às experiências de leitora e escritora de textos literários, o que “implicou significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontes de expectativas” (2005, p. 181). Millet aponta para o fato de que a mulher, seja nos papéis acima citados, seja como produto de obras masculinas, ou mesmo como crítica, acaba sempre inferiorizada. Sua análise aborda os aspectos ideológicos, biológicos, sociológicos, econômicos, antropológicos e psicológicos que permeiam as relações entre os sexos, reafirmando a dominação do sistema patriarcal em todas as culturas, atingindo as religiões, leis e costumes de todas as sociedades humanas. Estes princípios acabaram por permear uma primeira fase da crítica feminista, que procurava apontar para estereótipos na construção de personagens femininas, que em sua maioria correspondiam à dicotomia anjo/monstro, e também rever a importância e posicionamento de escritoras nos cânones universais e nacionais, assim como na historiografia literária de cada país (até então, a literatura produzida por mulheres era marginalizada e considerada subcultura). Este primeiro momento da crítica feminista, predominantemente ideológico, foi marcado por uma grande preocupação: em tempos de constantes mudanças sociais, históricas, e artísticas, como era o caso, é de se pensar o papel do cânone literário e sua formação. Era mais que necessário que os padrões estéticos considerados fossem revistos, em face da valorização daqueles antes considerados à margem e excluídos. Trata-se de uma questão do sentido que é atribuído a cada obra, sendo este variável ao gosto de cada um. As antigas categorias eram questionáveis no sentido em que receberam influências de “um mecanismo que controla os meios de representação” (XAVIER, 1999, p.), assim honrando ou marginalizando as obras de acordo com seus padrões. Era necessário que se repensasse toda a questão das diferenças de gênero, assim como a relação deste com a linguagem e literatura, envolvidos em um só novo objeto de estudo. Para tal, havia ainda a importância de reconhecimento acadêmico e científico de tais estudos, o que significava passar pela aprovação, ou não, dos white fathers (grandes pensadores e detentores de respeito social, sempre representantes do sexo masculino e da raça branca). 41 Uma segunda fase da crítica feminista, segundo Elaine Showalter em sua obra A Literature of Their Own (1977), seria marcada pelo estudo das autoras, e das formas como o feminino e o feminismo influenciam essa escrita: surge a ginocrítica, termo primeiramente utilizado por Showalter. Os tópicos abordados são “a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos das mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres” (HOLLANDA, 1994, p. 29). Trata-se de uma crítica de mulheres realizada por mulheres, para que as ideologias sexistas e patriarcais fossem deixadas de lado no momento de análise e interpretação do texto feminino. Humm (1994, p. 10-11) cita a obra Images of Women in Fiction (1972) como a primeira antologia produzida pela nova crítica feminista. Algumas outras obras de relevância surgidas após este estudo foram The Female Imagination (1975), de Patricia Meyer Spacks, no qual a autora configura uma mudança na crítica literária acadêmica, de androcêntrica para ginocêntrica, sendo a primeira a se dar conta de tal acontecimento; Literary Women (1976), de Ellen Moers, no qual a autora fornece uma história feminina na literatura, de forma a colocar em destaque as grandes autoras; e o estudo fundamental à ginocrítica, The Madwoman in the Attic (1979), de Sandra Gilbert e Susan Gubar. Neste último, segundo Humm (1994, p. 14), as autoras tomam como o modelo o paradigma androcêntrico descrito por Harold Bloom. Em seu estudo, Showalter vislumbra uma nova alternativa aos períodos literários, levando em conta a trajetória da mulher neste campo da Arte. Esta é formada por três estágios: feminine, feminist and female. Estes podem ser associados a cada fase distinta a qual a mulher escritora esteve sujeita, através dos tempos. Numa primeira fase, feminine, houve uma busca dos modelos literários consagrados, ou seja, buscava-se uma imitação e internalização da escrita masculina sem que houvesse ruptura e inovação desses padrões, mesmo que o conteúdo tratasse de questões relativas à mulher e sua vivência social. A segunda fase, feminist, como o próprio nome prediz, diz respeito à vontade de protestar contra a situação de submissão e inferioridade feminina, tendo um tom muitas vezes panfletário e revolucionário de escrita. E por fim, a fase female, marcada pela autodescoberta e valorização do modelo feminino, exaltação da diferença, celebração da feminilidade e busca de uma identidade. Tais fases podem ser utilizadas, também, na análise de textos de autoria tanto masculina quanto feminina, assim como a interpretação da construção de personagens femininas (averiguação da fase em que esta se encontra no enredo, e conseqüências 42 desta na narrativa, de forma geral). Ainda na obra A Literature of Their Own, Showalter aponta para as diferentes formas de interpretação da escrita feminina, sendo elas a biológica, a lingüística, a psicanalítica e a cultural. Esta fase foi de grande importância para os estudos da literatura produzida por mulheres, principalmente por representar um enorme esforço em se descobrir, e muitas vezes redescobrir, novas obras e autoras até então esquecidas pelo cânone (predominantemente masculino). Assim, teve origem uma terceira fase da crítica feminista, que teve como foco principal as questões do gênero e suas diferentes visões, e também a forma como a recepção e produção artística literária se deixam influenciar por este. Conforme contextualiza Susana Funck (1999, p. 19), nesta terceira fase, “além de quebrarem-se as fronteiras culturais, enfatiza-se a análise da construção do gênero e da sexualidade dentro do discurso literário”. Assim, há uma volta a todas as formas de literatura, sejam elas femininas, masculinas, ou produzidas pelas minorias (indígenas, negros, homossexuais etc). O gênero passa a ser considerado fator de diferenciação fundamental nos estudos literários, e visto como categoria de análise, devido a sua abrangência. Uma primeira definição de gênero seria como categoria gramatical, sendo o masculino considerado o universal. Neste sentido, o feminino configura o diferente. Mais importante para os estudos da crítica feminista é a definição de gênero como identidade social, cultural e psicológica, em relação à identidade biológica (sexual) inerente a cada pessoa. Não se trata, portanto, de sexo (macho ou fêmea), ou mesmo orientação sexual, e sim a representação que cada um assume perante a sociedade, independente de sua forma biológica. Uma outra definição é utilizada para gênero, segundo Linda Nicholson (2000, p. 9), nos casos em que este termo designa o conjunto de construções sociais que correspondam à dicotomia masculino/feminino. O grande trunfo desta fase voltada ao gênero foi o interesse que despertou na facção masculina dos estudos literários. A pouca crítica feminista produzida por homens constituía-se, em sua maioria, de artigos nos quais os autores apontavam defeitos ou exageros no pensamento ginocrítico. Conforme os estudos foram englobando outras fontes, inclusive a literatura canônica produzida por homens, estes demonstraram um maior respeito, que não existia até então, em relação à critica feminista, até o inicio da década de 80. Em meados desta década, já existiam estudos tratando da masculinidade e homossexualidade, todos enriquecendo os chamados ‘estudos do gênero’, que conforme Showalter, citada por Funck (1999, p. 21), constituem-se não apenas “num pós-feminismo, mas sim num pós-patriarcado”. Ressurge uma preocupação das 43 mulheres em defender a igualdade, mas não de forma semelhante àquele primeiro momento do movimento feminista. Era, na verdade, a luta pelo direito de ser diferente sem que houvesse inferiorização e marginalização de idéias. Acompanharam as mulheres, nesta luta, os homossexuais, índios, negros, e outras minorias que se sentiam menores na sociedade falogocêntrica. Houve uma valorização da mulher enquanto ser pensante, seu modo de agir e refletir a vida e vivência nos mais variados ambientes sociais, assim como seu papel no mundo. “A identidade feminina deixa de ser o Outro do Mesmo para se tornar uma procura e uma invenção” (OLIVEIRA, 1999, p. 124-5). A crítica feminista anglo-americana teve papel importante nesta época de interesse na questão do gênero, ao mostrar que a literatura vai além de um conjunto de textos reconhecidamente importantes, mas sim uma arte influenciada e estruturada em diferentes ideologias sociais, políticas, e também sexuais. Sendo assim, a literatura produzida por mulheres passa a um outro âmbito de interpretação, onde poderia ser estudada a ponto de demonstrar as características que predominavam, exclusivamente, na escritura feminina, em oposição às outras escritas. Mesmo assim, a crítica francesa foi a que ofereceu maior material de estudo e debate, com suas teorias embasadas na psicanálise e subjetividade. Como o ponto principal desta nova fase era a linguagem, e a forma como esta é trabalhada e empregada de acordo com as diferenças de gênero e identidade, a vertente francesa encontrou uma brecha onde pôde revelar uma nova visão que relacionava mulher, psicanálise e linguagem. Tudo isso foi se ligando a um novo interesse pelo modelo pós-estruturalista de interpretação literária, que levava em conta os contextos culturais e sociais, e deu origem a uma questão de como a linguagem, carregada de características inerentes a cada gênero, poderia representar a realidade da mulher na escrita. Também a questão da construção dos gêneros foi fundamental neste meio, baseada na afirmação de Simone de Beauvoir, que dizia que a mulher se torna mulher, e englobando aspectos do pensamento pós-estruturalista, para assim formular argumentos que ligavam a linguagem à construção de gêneros. Em 1985, Toril Moi publica sua obra Sexual/Textual Politcs, na qual realiza uma profunda análise das vertentes anglo-americana e francesa da crítica feminista. A autora argumenta contra a crítica americana, acusando-a de ser extremamente empírica e, portanto, não passível a mudanças de opinião. A autora também fez uma diferenciação entre os termos feminist, female e feminine, mas de forma diversa à utilizada por Showalter. 44 Segundo Moi (1989, p. 117), feminist designa as idéias e correntes que dizem respeito ao movimento de mulheres surgido ao final dos anos 60, o feminismo. As militantes deste movimento devem primar pela pluralidade, de forma a aceitar e se apropriar de ideologias em uso, em benefício do movimento. As examples of this task of cultural transformation, we can point to the many women who have started the massive task of turning Freudian psychoanalysis into a source of truly feminist analyses of sexual difference and the construction of gender in patriarchal society, Hélène Cixous and Luce Irigaray who have put the philosophy of Jacques Derrida to illuminating feminist use, and Sandra Gilbert and Susan Gubar who have thoroughly rewritten the literary theory of Harold Bloom. (MOI, 1989, p. 120)2 Vale ainda ressaltar que, mesmo que a grande maioria das mulheres tenha sido vítima dos homens, intelectual, emocional e fisicamente, é também verdade que algumas tenham conseguido conter o poder masculino, e de forma eficiente, o que deu força ao movimento. O conceito de female, segundo Moi (1989, p. 120), significa o que se relaciona à mulher, e quando falamos de literatura, nos referimos aos textos produzidos por mulheres. Mas este termo não se liga ao anterior, ou seja, o female não é, obrigatoriamente, feminist, e desta constatação surge a necessidade de quebrar o estereótipo de que todo e qualquer estudo produzido por mulher, ou sobre mulher, se posicione de forma a atacar o sistema patriarcal. “A female tradition in literature or criticism is not necessarily a feminist one” (MOI, 1989, p. 120)3. Também a crença de que a experiência comum de vida da mulher dá espaço a uma análise de sua situação social através de um olhar feminista é, nas palavras de Moi, “politically naive and theoretically unaware” (1989, p. 121)4. É possível, também, passar a uma definição mais ampla de crítica feminista, pois, segundo a autora, os textos produzidos por mulheres não devem ser os únicos estudados e interpretados pela corrente; os textos produzidos por homens também podem se tornar objeto de estudo, como já havia feito Kate Millet. Outra importante questão levantada por Moi é a de que se possa haver, ou não, homens que sigam a ideologia feminista em sua forma 2 Como exemplos desta tarefa de transformação cultural, podemos apontar as muitas mulheres que iniciaram a enorme tarefa de tornar a psicanálise de Freud uma fonte de análise de diferença sexual verdadeiramente feminina e a construção de gênero na sociedade patriarcal, Hélène Cixous e Luce Irigay que colocaram a filosofia de Jacques Derrida como forma iluminadora de uso feminista, e Sandra Gilbert e Susan Gubar que reescreveram completamente a teoria literária de Harold Bloom. (Tradução nossa) 3 Uma tradição feminina na literatura ou crítica não é, necessariamente, feminista. (Tradução nossa) 4 politicamente ingênua e teoricamente inconsciente. (Tradução nossa) 45 política ou crítica. Ela responde que sim, é possível, porém os pontos de vista apresentados por tais sujeitos sofreriam a inevitável influência por estarem em uma posição diferente no patriarcado: “[...] men can be feminists – but they can’t be women [...]” (MOI, 1989,p. 122)5. Passando, finalmente, ao termo feminine, temos este em relação com o gênero, ou seja, representa o feminino como construção social e ideológica. O papel do patriarcalismo nesta definição é importante, já que este é que impõe as características femininas (feminine), ou de feminilidade (femininity) a todas aquelas nascidas com identidade sexual feminina (female). A confusão de termos é interessante, pois se espera que acreditemos haver uma conexão biológica entre o sexo feminino e a feminilidade, ou seja, que um pressuponha e dê origem ao outro. O patriarcado acabou por atribuir algumas características que seriam inerentes a todas a mulheres, entre elas, a doçura, modéstia, subserviência e humildade, ou seja: criou um modelo de feminilidade como regra. Esta foi uma das grandes causas do movimento feminista, quebrar o mito essencialista de que toda mulher deva ser, obrigatoriamente, feminina, e esta objeção liga-se à própria luta contra a dominação falocêntrica da sociedade. Há, também, a questão das oposições binárias homem/mulher, ou masculino/feminino no sentido biológico. Segundo Cixous, citada por Moi (1989, p. 124), baseada nas teorias filosóficas de Derrida, estas oposições acabam por colocar a mulher em posição inferior e negativa em relação ao homem, o que ocorre sempre, pois ao final destas idéias colocadas em duplas opostas sempre há uma volta ao modelo masculino/feminino, este conectado a positivo/negativo. Assim, Cixous pretende desfazer essa ideologia logocêntrica, colocando a mulher como ponto originário de vida e, portanto, positivo e não inferior. Para tal, conta com o advento de uma nova linguagem feminina, que seria instrumento nesta luta contra os esquemas binários do patriarcado que oprimem e silenciam a mulher: esta seria a desconstrução das oposições. Julia Kristeva também fez algumas considerações acerca de feminino. Seu pensamento foi muito influenciado pelas teorias psicanalíticas de Lacan; porém, isto se apresenta como um problema, já que a ordem simbólica proposta por Lacan representa a ordem social e sexual do patriarcado, em uma sociedade estruturada ao redor do falo, e cujas regras são ditadas pela Lei do Pai. Torna-se incoerente, pois, que as feministas procurem uma razão para o imaginário feminino provinda deste ambiente onde, na verdade, são silenciadas. Em sua opinião, segundo Moi (1989, p. 126), a feminilidade é uma posição marginalizada pelo sistema patriarcal simbólico. Para ela, o 5 [...] homens podem ser feministas – mas não podem ser mulheres [...]. (Tradução nossa) 46 homem também pode assumir uma posição à margem desse sistema. Sua visão representa uma diferença, se comparada à de Cixous, pois coloca toda a questão da repressão feminina como posicionamento. A feminista francesa possui um ponto de vista que relaciona a marginalização feminina com a essência atribuída à mulher, a saber, de falta, negatividade, falta de sentido, irracionalidade, caos, escuridão – ou não-ser, em oposição ao masculino. Na posição da margem, as mulheres encontram-se, então, não deslocadas ou fora do eixo da normalidade (do sistema patriarcal), mas no limite, na borda desse eixo. Isso explica a dualidade na representação do feminino, ora como ser monstruoso/Lilith, ora como ser angelical/Maria. Este posicionamento coincide com a colocação da mulher no território selvagem, sem conceitos pré-definidos, realizada por Showalter (HOLLANDA, 1994, p. 23). Kristeva ainda afirma que a luta feminista deve ser vista como um processo histórico e político que obedeceu a três fases, sendo elas: 1) exigência de igualdade da mulher no sistema simbólico, ou feminismo liberal; 2) rejeição do sistema simbólico em nome da diferença, ou feminismo radical; 3) rejeição da dicotomia masculino/feminino como metafísica. Esta última seria a responsável pela desconstrução almejada por Cixous. Em sua obra La Revolution du langage poétique (1974), Kristeva surge com o termo semiótico. Baseada em Lacan, a estudiosa propõe um estágio simbólico, posterior ao pré- Edipal. Este último representa o momento em que a criança, sem ter adquirido a noção de linguagem ainda, tenha seu corpo marcado por pulsões e vontades desorganizadas, e também é o momento em que as distinções de sexo são percebidas; assim, surge o simbólico, a noção de mundo, acompanhada da percepção do falo, no menino, e de sua ausência ou falta, na menina – a fase semiótica, de transição, passa então a ser reprimida. Por esse motivo, o semiótico está relativamente ligado ao feminino, pois o contato da criança com o corpo da mãe é constante, enquanto o simbólico representa a Lei do pai, uma força vinda do sistema patriarcal falocêntrico. O semiótico, reprimido e associado ao feminino, torna-se uma forma de sistema contrário à linguagem, subjetivo e ativo na psique do indivíduo. The semiotic is fluid and plural, a kind of pleasurable creative excess over precise meaning, and it takes sadistic delight in destroying or negating such signs. It is opposed to all fixed, transcendental significations; and since the ideologies of modern male- dominated class-society rely on such fixed signs for their power (God, father, state, order, property and so on), such literature becomes a kind of equivalent in the realm of language to revolution in the sphere of politics. [...] The semiotic throws into confusion all tight divisions between masculine and feminine – it is a ‘bisexual’ form of writing – 47 and offers to deconstruct all the scrupulous binary oppositions – proper/improper, norm/deviation, sane/mad, mine/yours, authority/obedience – by which societies such as ours survive. (EAGLETON, 1986, p. 241)6 A partir da década de 80 houve um novo interesse da crítica feminista na diferença racial, principalmente no que dizia respeito ao posicionamento das escritoras negras na literatura feminina. Várias descobertas foram feitas, conforme as obras vieram a ser objeto de estudo, entre elas a presença da espiritualidade nesta escrita, assim como as tradições populares. Devido ao grande número de obras e escritoras analisadas, a crítica de textos de autoria de mulheres negras passou a foco de toda a ginocrítica, mostrando-se mais próxima às teorias pós-estruturalistas, por se ater muito mais a mitos e questões exclusivamente femininas e, portanto, relacionadas a construções do gênero. Elaine Showalter publica, em 1989, Speaking of Gender. Nesta obra, a autora reafirma a necessidade de haver uma maior preocupação com diferenças sexuais e de gênero expressas em textos escritos não só por mulheres, mas também por homens, ou seja, que o foco n